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Educação de Jovens e Adultos: Fundamentos e Práticas Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Dr.ª Márcia Pereira Cabral Revisão Textual: Prof. Me. Claudio Brites Educação e Escolarização de Jovens e Adultos no Brasil no Século XX: Percurso e Trajetória do Analfabetismo no Período de 1930-1980 Educação e Escolarização de Jovens e Adultos no Brasil no Século XX: Percurso e Trajetória do Analfabetismo no Período de 1930-1980 • Contextualizar a educação e escolarização no Brasil no século XX (de 1930 a 1980) e refletir o papel da alfabetização e da educação de jovens e adultos no desenvolvimento social do país. OBJETIVO DE APRENDIZADO • Introdução; • Educação e Escolarização de Jovens e Adultos no Brasil: Conceitos, Trajetória, Programas e Políticas; • Educação e Alfabetização; • O Papel da Educação de Jovens e Adultos no Contexto Social. UNIDADE Educação e Escolarização de Jovens e Adultos no Brasil no Século XX: Percurso e Trajetória do Analfabetismo no Período de 1930-1980 Introdução A educação de jovens e adultos é bastante complexa, já que envolve tanto as políticas educacionais criadas para atender a essa necessidade quanto as práticas pedagógicas que são utilizadas nesse tipo de educação. Para compreender a educação de jovens e adultos de maneira ampla, o tema principal desta unidade são os fundamentos teóricos relacionados com a história e a política desse tipo de educação no Brasil. Para tanto, abordaremos o conceito que envolve essa categoria de escolarização; a história da escolarização de jovens e adultos no Brasil, com ênfase no processo inicial dessa escolarização; e, por fim, destacaremos algumas iniciativas, programas e políticas implementadas na legisla- ção brasileira sobre a educação de jovens e adultos e os pensamentos teóricos que influenciaram essas decisões. Figura 1 Fonte: Getty Images Esta unidade tem como finalidade conceituar educação e escolarização de jovens e adultos e historiar o seu processo educacional no Brasil, com um recorte temporal baseado no marco da reformulação do papel do Estado, ou seja, o Período de Getúlio Vargas, Revolução de 1930 até o processo de redemocratização do país situado na década de 1980. É importante entender que a educação de jovens e adultos está ligada ao Ensino Fundamental e Médio, inserindo-se, portanto, em debates que perpassam toda a educação básica. Embora compreendamos a educação de jovens e adultos como uma diversidade de processos e práticas que ocorrem, formal e informalmente, fora do espaço escolar, e, sistematicamente, no espaço escolar, na educação básica – en- sino fundamental e médio –, daremos ênfase, nesta unidade, à análise que situa as práticas nas etapas iniciais do ensino fundamental. 8 9 Adotaremos, também, a perspectiva quantitativa, de forma que possamos de- monstrar o que mudou, em termos quantitativos, em relação ao analfabetismo no Brasil nesse período de 50 anos de história da educação. Também é importante entender que o tema está relacionado a aspectos transversais da educação, como a cidadania e a inclusão social. Nesse sentido, cabe a problematização por meio de questões fundamentais e centrais para refletirmos sobre a complexidade da temática de educação de jovens e adultos no Brasil: por que chegamos ao atual contexto, início do século XXI, com indicadores tão alarmantes de analfabetismo e não escolarização da população de 15 anos e mais no Brasil? Podemos considerar que avançamos na expansão educacional quando nossos indicadores demonstram que, no ano de 1940, havia 16.452.832 pessoas não alfabetizadas entre a população de 10 anos ou mais, um índice de 56,7%, e finalizamos a década de 1980 com 22.393.295 pessoas não alfabetizadas entre a população de 10 anos ou mais, ou seja, um índice de 25,5%? (FERRARO, 2009, p. 87). Educação e Escolarização de Jovens e Adultos no Brasil: Conceitos, Trajetória, Programas e Políticas Entendemos [...] não ser possível pensar, sequer, a educação, sem que se esteja atento à questão do poder (FREIRE, 1986). Abordaremos a educação de jovens e adultos e o seu processo de escolarização inseridos no período de 1930-1980, já que esse tempo engloba os maiores movi- mentos nesse tema antes da atualidade. Embora a história da escolarização de jovens e adultos tenha início no período da Colônia e Império brasileiros, nossa atenção estará centrada após a Revolução de 1930, período em que o Estado modificou o seu papel frente à educação ao reafirmar a educação como um direito de todos e ao estabelecer várias medidas que o colocavam como responsável pela sua manutenção e desenvolvimento. Como podemos verificar, uma nova concepção de Estado fez- -se presente na Constituição de 1934, um Estado preocupado com a problemática econômica, mas também com o seu olhar voltado para as questões educacionais e culturais. Vale lembrar que o período foi marcado pelas ações do movimento armado que surgiu em reação à política do café com leite, que revezava presidentes da oligar- quia de leite mineira com a cafeicultura paulista. Quando os representantes paulistas não cumpriram a ordem de revezamento e indicaram o paulista Júlio Prestes à pre- sidência, o movimento armado deu o golpe de Estado e colocou Getúlio Vargas no poder, dando início ao Estado Novo. 9 UNIDADE Educação e Escolarização de Jovens e Adultos no Brasil no Século XX: Percurso e Trajetória do Analfabetismo no Período de 1930-1980 Entender como funcionava a educação na época da vigência da Constituição de 1934 é muito importante para compreender as bases da educação brasileira e o seu percurso histórico. Nesse sentido, o artigo “A educação escolar durante o período do Estado Novo”, de Leonardo Guedes Henn, Pâmela Pozzer Centeno Nunes, é uma boa leitura sobre o tema. O artigo está disponível em: https://bit.ly/3gRa7Uw A nova Constituição propôs a elaboração de um Plano Nacional de Educação, fi- xando as responsabilidades da União, estados e municípios, como veremos a seguir. Dentre suas atribuições está o fato de assegurar o “ensino primário integral gratuito e de frequência obrigatória extensivo aos adultos”. Reafirma, dessa forma, o direito de todos e o dever da família e do Estado para com a educação por meio da oferta do ensino primário integral e gratuito, sendo extensiva aos adultos a sua obrigatorie- dade. Vejamos o Artigo 150 (BRASIL, 1934, grifo nosso) a seguir: Art. 150. Compete à União: [...] e) exercer ação supletiva, onde se faça necessária, por deficiência de iniciativa ou de recursos e estimular a obra educativa em todo o País, por meio de estudos, inquéritos, demonstrações e subvenções. Parágrafo único – O plano nacional de educação constante de lei federal, nos termos dos arts. 5º, nº XIV, e 39, nº 8, letras a e e , só se poderá renovar em prazos determinados e obedecerá às seguintes normas: a) ensino primário integral gratuito e de frequência obrigatória exten- sivo aos adultos; b) tendência à gratuidade do ensino educativo ulterior ao primário, a fim de o tornar mais acessível; [...] Mesmo com essa determinação legal, a educação de adultos passou a ser en- carada como um problema de política nacional somente ao final da década de 1940. Em 1942, instituiu-se o Fundo Nacional do Ensino Primário, sendo esse regulamentado somente em 1945 e ficando estabelecido que “25% dos recursos de cada auxílio deveriam ser aplicados num plano geral de Ensino Supletivo desti- nado a adolescentes e adultos analfabetos” (HADDAD; DI PIERRO, 2000, p. 111). Sendo assim, ficaram a cargo da União as despesas com construção de escolas e qualificação dos professores e os estados assumiram a manutenção do sistema de ensino. Como bem destaca Ferraro (2009, p. 93), fundamentado em Paiva (1973), “O efeito dessa política se traduziu num aumento notável do número de prédios escolares, o qual passou de 28.300 em 1946 para 77.000 em 1958 e 98.000 em 1962, com novos aumentos nos anos seguintes”. Ou seja, nota-se que, pela primei-ra vez na história do Brasil, existiam verbas definidas somente para investimentos em políticas educacionais. 10 11 Essa década aponta outras iniciativas na área da educação de adultos, como a instalação, em 1947, do Serviço de Educação de Adultos (SEA), considerado um serviço especial do Departamento Nacional de Educação no Ministério da Educa- ção e Saúde. Sua finalidade consistia em reorientar e coordenar os trabalhos dos planos anuais do ensino supletivo direcionados a adolescentes e adultos analfabetos. Responsabilizou-se pela Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA), que atuou no período de 1947 até 1950. Lourenço Filho, educador e signatário do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova em 1932, foi o idealizador e primeiro coordenador da CEAA. Essa se carac- terizou como um amplo movimento de mobilização nacional em favor da educação de jovens e adultos analfabetos. Previu a instalação de classes noturnas de ensino de adultos nas áreas rurais e urbanas de todo o país. Apresentava-se como parte da “educação de base” ou “educação fundamental”, baseando-se no desenvolvimento de conhecimentos de leitura, escrita e cálculo e noções gerais de história, geografia, ciências, higiene, saúde e civismo (FERRARO, 2009). O artigo “O manifesto dos pioneiros da educação nova”, publicado na Revista HISTEDBR On-line, é uma boa pedida para entender melhor o assunto. Disponível em: https://bit.ly/2BnsgsG Ainda temos em destaque duas campanhas: a primeira denominada Campanha Nacional de Educação Rural (CNER), que atuou de 1952 até 1963, ano de sua extinção pelo Departamento Nacional de Educação, e a segunda é a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, em 1958. Destaca-se que ambas pouco realizaram durante o seu tempo de atuação junto ao público de adultos analfabetos. O vídeo produzido pelo Portal dos Fóruns e EJA no Brasil comenta as campanhas realizadas entre 1947 e 1963. Disponível em: https://youtu.be/iX97anetW8Q A partir de 1950, deparamo-nos com uma nova forma de encarar a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Como bem destacam os autores a seguir, a EJA foi Elevada à condição de educação política, através da prática educativa de refletir o social, a educação de adultos ia além das preocupações exis- tentes com os aspectos pedagógicos do processo ensino-aprendizagem. (HADDAD; DI PIERRO, 2000, p. 113) Em termos políticos, essa condição favoreceu à formação de pessoas mais críti- cas, sendo compreendida como instrumento de formação de agentes de construção do futuro desejado. Houve uma forte mobilização nacional, principalmente no pe- ríodo entre 1958 e março de 1964, sendo o Brasil palco de inúmeros movimentos sociais, vários dos quais estavam diretamente ligados à questão do analfabetismo e da alfabetização. Situamos, a seguir, cinco movimentos: 11 UNIDADE Educação e Escolarização de Jovens e Adultos no Brasil no Século XX: Percurso e Trajetória do Analfabetismo no Período de 1930-1980 • O Movimento de Educação de Base (MEB), estabelecido em 1961, da CNBB: Originou-se das ações das arquidioceses de Natal e Aracaju, por meio de escolas radiofônicas. Foi oficializado pelo Decreto n. 50.370, de 21 de março de 1961. Seu funcionamento previa o estabelecimento de parcerias e convênios en- tre o Governo da União e a CNBB. Houve financiamento para o desenvolvimen- to dos trabalhos de educação popular nas regiões subdesenvolvidas do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste do país. Atuava por meio de sistema radiofônico de educação de base. Atingiu 15 unidades federadas: Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e o território de Rondônia. Eram man- tidos 55 sistemas radiofônicos de educação de base (BEISIEGEL, 1997, p. 223); O número de alunos concluintes no período de 1961/1965 foi de cerca de 380.000, com um pico de 146.310 em setembro de 1963. Os alunos concentravam-se entre os 15 e 30 anos, mas com número apreciável de menores de 15 anos. A evasão ficava por volta de 25%. (WANDERLEY apud BEISIEGEL, 1997, p. 224) • O Movimento de Cultura Popular (MCP) do Recife, a partir de 1961: Tinha como princípio a criação de escolas para o povo, aproveitando salas de asso- ciações de bairros, de entidades esportivas, de templos religiosos etc. Deu início ao plano de alfabetização de adultos e buscava realizar a conscientização das massas por meio da alfabetização e educação de base; • Os Centros Populares de Cultura (CPC), órgãos da UNE, foram consti- tuídos em 1961: Sua principal forma de atuação foi o teatro de rua. Outras formas de atuação: cursos, encontros, festivais, produção de filmes e promoção de alfabetização de adultos; • A Campanha “De Pé no Chão Também se Aprende a Ler”, da Secretaria Municipal de Educação de Natal, teve início em 1962: Como as outras iniciativas, buscou ofertar a educação escolar para as populações mais pobres. Quando foi suprimida, em abril de 1964, a Campanha já atendia a mais de 17 mil alunos, entre crianças, jovens e adultos participantes de diferentes cursos profissionalizantes; • Em 1964, o Programa Nacional de Alfabetização do Ministério da Educa- ção e Cultura contou com a presença do professor Paulo Freire: Esse pro- grama resultou de uma ação abrangente de alfabetização de adultos desenvolvida, inicialmente, no âmbito do MCP e que utilizava o método Paulo Freire de Alfabe- tização. O método Paulo Freire favorecia o desenvolvimento de uma consciência crítica e de classe entre as pessoas jovens e adultas envolvidas nos trabalhos que centravam sua ação na relação entre o trabalho educativo e a atividade política, de forma a reafirmar a impossibilidade de “negar a natureza política do processo educativo” (FREIRE, 1986, p. 26). Em menos de um mês após a vitória do movi- mento militar que depôs o Presidente João Goulart, o Programa Nacional de Al- fabetização teve sua Portaria n. 237, de 14 de abril, revogada (BEISIEGEL, 1997). “Do ponto de vista crítico, é tão impossível negar a natureza política do proces- so educativo quanto negar o caráter educativo do ato político” (FREIRE, 1986). 12 13 O escritor Moacyr de Góes desempenhou um papel importante nesses movimentos en- quanto esteve à frente das Secretarias de Educação de Natal (1960-1964), Rio de Janeiro (1987-1988) e novamente Natal (1989). Confira a entrevista com ele sobre o “De Pé no Chão Também se Aprende a Ler”, disponível em: https://bit.ly/36Y7vj3 Educação e Alfabetização Expusemos, até aqui, os conceitos de educação e escolarização de jovens e adultos , as políticas e programas no período de 1930 a 1964, o papel do Estado como garantidor do direito educacional e a inscrição da educação de jovens e adultos no quadro mais amplo dos embates políticos em um contexto de mudanças sociais, políticas e econômicas. Consideramos, também, importante demonstrar a evolução do número e da taxa de pessoas não alfabetizadas, população de 10 anos ou mais, no Brasil de 1930 a 1980. Para aprofundar o nosso olhar sobre as ações voltadas para a educação de adultos, abordaremos, posteriormente, o Mobral e a sua atuação nas décadas de 1970 e 1980. Nesse período, entre 1930 e 1980, temos a preocupação pela busca de alfabeti- zação dos adolescentes e adultos e, ao mesmo, destaca-se a incapacidade de produzir uma tendência de queda substancial da taxa de analfabetismo. Vejamos a Tabela 1. Tabela 1 – Evolução do número e da taxa de pessoas não alfabetizadas entre a população de 10 anos ou mais. Brasil, 1940 a 1980 Ano/Censo Demográfi co População Total Não Alfabetizada N. % 1940 29.037.849 16.452.832 56,7 1950 36.557.990 18.812.419 51,5 1960 48.839.558 19.378.801 39,7 1970 65.867.723 21.638.913 32,9 1980 87.805.265 22.393.295 25,5 Fonte: Censo IBGE 1940, 1950, 1960, 1970, 1980 apud FERRARO (2009, p. 87) Segundo Ferraro (2009, p. 96): Para Freire e outros educadores populares da época, a alfabetização era um processo político-pedagógico.Para o regime militar e os administra- dores da educação por ele improvisados, a alfabetização era uma questão técnica, não política. 13 UNIDADE Educação e Escolarização de Jovens e Adultos no Brasil no Século XX: Percurso e Trajetória do Analfabetismo no Período de 1930-1980 O período que se seguiu após o golpe militar de 1964 é tratado de forma muito particular na história do analfabetismo e deixa sua marca com o Movimento Brasi- leiro de Alfabetização (Mobral). O vídeo a seguir, mostra as atividades culturais coordenadas pelo Mobral. Disponível em: https://youtu.be/FeXHMMVMjnA O Mobral foi criado pela Lei n. 5.379, de 15 de dezembro de 1967. Apresentou-se como uma alternativa ao trabalho da Cruzada ABC1. O economista Mário Henrique Simonsen assumiu a Presidência do Movimento e com o Ministro da Educação, Coronel Jarbas Passarinho, passou a fazer a propaganda junto a empresários. Esse movimento se configurou como um programa criado para atender aos obje- tivos de dar uma resposta aos marginalizados e aos objetivos políticos dos governos militares (instrumento de segurança interna). Seus recursos financeiros tinham ori- gem em 1% do Imposto de Renda devido pelas empresas mais 24% da renda líquida da Loteria Esportiva. O Mobral apresentava-se como um programa que buscava atender aos objetivos políticos dos governos militares. Buscava-se ampliar junto às camadas populares as bases sociais de le- gitimidade do regime, no momento em que essa se estreitava junto às classes médias em face do AI-5, não devendo ser descartada a hipótese de que tal movimento tenha sido pensado também como instrumento de obtenção de informações sobre o que se passava nos municípios do interior do país e na periferia das cidades e de controle sobre a popu- lação. Ou seja, como instrumento de segurança interna. (PAIVA apud HADDAD e DI PIERRO, 2000, p. 114) Sua função política estava bem delineada como um programa que atendia aos interesses hegemônicos do regime militar, legitimando o modelo socioeconômico daquele contexto. Quanto às suas características, os teóricos apontam três: • O paralelismo em relação aos demais programas de educação; • A organização operacional descentralizada – Comissões Municipais encarre- gadas de executar a campanha nas comunidades, promovendo-as, recrutando analfabetos, providenciando salas de aula, professores e monitores; • Centralização de direção do processo educativo – Gerência Pedagógica do Mobral Central – organização da programação, da execução e da avaliação do processo educativo; treinamento de pessoal. O planejamento e a produção de material didático eram de responsabilidade das empresas privadas. 1 A Cruzada de Ação Básica Cristã (ABC), nascida no Recife, buscou ocupar os espaços deixados pelos movimentos de cultura popular. Tinha como finalidade servir, de forma assistencialista, aos interesses do regime militar. Ocorreu uma série de críticas à condução da Cruzada e ela foi se extinguindo progressivamente nos vários estados entre os anos de 1970 e 1971. 14 15 De acordo com Haddad e Di Pierro (2000, p. 115): As três características convergiam para criar uma estrutura adequada ao objetivo político de implantação de uma campanha de massa com controle doutrinário: descentralização com uma base conservadora para garantir a amplitude do trabalho; centralização dos objetivos políticos e controle vertical pelos supervisores; paralelismo dos recursos e da estru- tura institucional, garantindo mobilidade e autonomia. A Reforma Educacional do ensino de 1º e 2º Graus, realizada por meio da Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971, representou a consolidação do projeto educacional do regime militar. Essa lei regulamentou, além da educação de modo geral, também o ensino supletivo, que teve seus fundamentos e características melhor desenvolvidos pelos documentos CFE n. 699, publicados em 28 de julho de 1972, de autoria de Valnir Chagas e, ainda, pelo documento “Política para o Ensino Supletivo”, produzido por um grupo de trabalho e relatado pelo próprio Valnir Chagas (HADDAD; DI PIERRO, 2000). Segundo Haddad e Di Pierro (2000, p. 116), a Lei atenderia a dois objetivos: [...] recuperar o atraso dos que não puderam realizar a sua escolarização na época adequada e [...] germinar “a educação do futuro, essa educação dominada pelos meios de comunicação, em que a escola será principal- mente um centro de comunidade para sistematização de conhecimentos, antes que para sua transmissão”. Além disso, destacamos, tomando como base Haddad e Di Pierro (2000), três princípios, ou “ideias-força”, estabelecidos pelos documentos acima citados. São eles: o ensino supletivo, como um subsistema integrado, independente do ensino regular; a integração pela alfabetização da mão de obra marginalizada; a adoção de uma doutrina e uma metodologia apropriadas aos “grandes números característicos dessa linha de escolarização”. O ensino supletivo apresentava quatro funções: suplência, suprimento, aprendiza- gem e qualificação. Apareceu como uma oportunidade para aqueles que, por dife- rentes motivos, não acessaram a escola ou como a possibilidade de escolarização e atualização para aqueles que perderam a chance de escolarização em outras épocas. Quanto ao ensino supletivo, o que se verifica é que: [...] se propunha a recuperar o atraso, reciclar o presente, formando uma mão de obra que contribuísse no esforço para o desenvolvimento nacional, através de um novo modelo de escola. [...] Segundo o Parecer 699, era necessária, também, a ampliação da oferta de formação profissional para “uma clientela já engajada na força de trabalho ou a ela destinada a curto prazo”. (HADDAD; DI PIERRO, 2000, p. 117) Cabe, ainda, ressaltar o sentido político da Educação de Jovens e Adultos no período militar, pois autores como Haddad, Di Pierro (2000) e Ferraro (2009) 15 UNIDADE Educação e Escolarização de Jovens e Adultos no Brasil no Século XX: Percurso e Trajetória do Analfabetismo no Período de 1930-1980 destacam que o regime militar traduzia a oferta educacional para os jovens e adultos como uma nova chance individual de as camadas populares realizarem a ascensão social. A educação assumiria a responsabilidade pela correção das desigualdades produzidas pelo modo de produção capitalista. O Mobral colocava-se como uma alternativa aos movimentos sociais e educacionais de inspiração freiriana – Paulo Freire –, o quais foram reprimidos pela Ditadura pós-1964. Esperava-se que a educação no período militar formasse uma infraestrutura ade- quada de recursos humanos atendendo às necessidades socioeconômicas, políticas e culturais daquele contexto. Em especial, a Educação de Jovens e Adultos passou a ser considerada uma “poderosa arma e capaz de acelerar o desenvolvimento, o progresso social e a expressão ocupacional” (HADDAD; DI PIERRO, 2000, p. 118). Tabela 2 – Evolução do número de pessoas de 5 anos ou mais que não sabem ler e escrever, no período de 1970 a 1980, por grupos de idade – Brasil Grupos de Idade Pessoas que não sabem ler e escrever 1970 1980 – Total 30.718.597 32.731.347 + 2.017.750 5 a 9 anos 9.079.684 10.338.052 + 1.258.368 5 a 6 anos 4.869.582 5.585.278 + 715.696 7 a 9 anos 4.210.102 4.752.774 + 542.672 10 anos e mais 21.638.913 22.393.295 + 754.382 10 a 14 anos 3.491.936 3.676.448 + 184.512 15 a 19 anos 2.487.024 2.235.370 – 251.654 20 a 24 anos 2.199.723 1.799.071 – 400.652 25 a 29 anos 1.947.390 1.699.039 – 248.351 30 a 34 anos 1.772.124 1.683.251 – 88.873 35 a 39 anos 1.763.552 1.685.783 – 77.769 40 a 44 anos 1.682.965 1.694.856 + 11.891 45 a 49 anos 1.431.446 1.498.207 + 66.761 50 a 54 anos 1.310.994 1.453.185 + 142.191 55 a 59 anos 1.045.336 1.245.951 + 200.615 60 a 64 anos 900.760 1.089.299 + 188.539 65 a 69 anos 614.809 1.024.476 + 409.667 70 anos e mais 943.667 1.540.498 + 596.831 Idade ignorada 47.187 67.861 + 20.674 Fonte: IBGE, Censo Demográfico 1970 e Censo Demográfico 1980 apud FERRARO (2009, p.116) A partir da Tabela 2 é possível identificar que a redução do analfabetismo da po- pulação ocorreu na faixa etária de 15 a 39 anos (– 1,1 milhão), entretanto, não redu- ziu na mesma proporção do seu aumento registrado nos grupos de 40 anos e mais, o qual, em número absoluto, representou + 1,7 milhão. Uma observação relevante de Ferraro (2009) aponta que essa redução é constatada, mas o número de analfabetos nos grupos compreendidos entre 15 a 39 anos ainda é extremamente elevado, pois ultrapassa a casa de 9,5 milhões de pessoas adolescentes e adultas analfabetas. 16 17 O que se percebe é que a política educacional pós-1964 pretendia eliminar o analfabetismo de adolescentes e adultos por meio de programas como o Mobral e o ensino supletivo. Nesse sentido, não foi possível a eliminação do analfabetismo, e a redução que ocorreu não foi mérito somente da atuação do Mobral, mas também do ensino supletivo direcionado para o 1º grau, bem como dos movimentos e das associações de caráter popular. Em avaliação aos resultados do Mobral, Ferraro (2009, p. 117) sintetiza: [...] pode-se dizer que, de 1970 a 1980, o número de analfabetos diminuiu nos grupos de 15 a 39 anos, precisamente nos grupos que foram alvo da ação do MOBRAL, e aumentou tanto entre a população de 7 a 14 anos como entre a população de 40 anos e mais. Para o conjunto da popu- lação de 7 anos e mais, aos 25,8 milhões de analfabetos existentes em 1970, somaram-se mais 1,3 milhão durante a década de 70. O Papel da Educação de Jovens e Adultos no Contexto Social É importante entender que a educação de jovens e adultos vai além da concretiza- ção da educação formal. A alfabetização possui um aspecto social que gira em torno dos aspectos que decorrem no analfabetismo o contexto de um mundo letrado. Para entender essa questão, é preciso pensar no indivíduo enquanto um ser in- serido em um contexto social. Esse contexto, na atualidade, é um mundo em que leitura e escrita são instrumentos fundamentais para que se tenha possibilidades de capacitação profissional, leitura de notícias sobre o mundo, seguimento de instruções escritas e, pensando em nível mais profundo, na leitura de seus direitos e potenciali- dades. É possível afirmar, assim, que um sujeito alfabetizado está instrumentalizado pela escrita a funcionar no mundo que o cerca (KLEIMAN, 1993). A sociedade atual vive e opera sobre pilares que se estruturam linguisticamente. A leitura e a escrita coordenam processos de educação e capacitação profissional que se fazem necessários para se obter colocação no mercado de trabalho. Da mes- ma forma, o analfabetismo é um fator de exclusão social, que priva o sujeito de executar direitos cidadãos e interagir e posição de igualdade com seus semelhantes. A própria língua falada sofre os efeitos dessa exclusão na medida em que os indiví- duos que se comunicam pela oralidade reproduzem verbalmente as lacunas de uma educação restrita. É preciso pensar nesse sentido para entender o papel que a educação de jovens e adultos representa na vida dos educandos para, assim, entender como o docente precisa conduzir suas ações. A educação deve ir além do letramento, que compreen- de o simples ensinar do sistema alfabético, ou seja, o sujeito aprende a ler e escrever, mas não desenvolve as habilidades que podem ser obtidas com uma educação cida- dã. O papel do docente é fundamental para que esse objetivo seja cumprido. 17 UNIDADE Educação e Escolarização de Jovens e Adultos no Brasil no Século XX: Percurso e Trajetória do Analfabetismo no Período de 1930-1980 Nesse contexto, o compromisso do professor não é com o acervo cultu- ral, que representa um conhecimento de ordem mais genérica, ordenado e passível de verificação; seu compromisso está com resolução de pro- blemas imediatos lançando mão do contexto imediato, de forma a dar respostas verossímeis, não verdadeiras. (KLEIMAN, 1993) Uma educação de jovens e adultos que seja estruturada na perspectiva do de- senvolvimento da cidadania representa, portando, um elemento transformador na vida dos educandos. Nesse sentido, vale a pena considerar o caso da experiência do educador Paulo Freire na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte. Paulo Freire foi ao município para realizar ações que contavam com o patrocínio do Governo do Rio Grande do Norte e da “Aliança para o Progresso”. Assim, o educador colocou em prática seu projeto que tinha o ousado objetivo de alfabetizar e desenvolver habilidades politizadas adultos em 40 horas. O país vivia, então, um clima de muitas mobilizações em favor das cha- madas reformas de base. O campo nordestino fervilhava com as Ligas Camponesas e com os Sindicatos Rurais que lutavam pela reforma agrá- ria. Partidos reformistas conseguiram ampliar os seus espaços no par- lamento, e políticos identificados de esquerda conseguiram ser eleitos para altos cargos executivos (governador, prefeito) em diversos estados e cidades importantes do país. De igual modo, a Igreja passou a se envolver mais com as questões sociais, e, no horizonte das relações internacionais, preponderavam a “guerra fria”, a revolução socialista de Cuba e assim por diante. (GERMANO, 1997) É nesse contexto que o componente social e político da educação começa a des- pontar e o programa de Paulo Freire atua como marco desse período. Participaram do programa 300 adultos da cidade, que tiveram o primeiro contato com a experi- ência idealizada pelo educador. Figura 2 – O educador Paulo Freire em seu programa de alfabetização em Angicos, RN Fonte: reporterbrasil.org.br 18 19 O método consistia em começar o processo de alfabetização por palavras do co- tidiano das pessoas. A alfabetização era intercalada com discussões sobre a palavra no dia a dia; o termo “banana”, por exemplo, poderia ser ensinado e discutido: quem são os produtores locais de banana? Qual os preços? Quem são os vendedores? Assim, a educação era realizada de maneira politizada na medida em que coloca- va a alfabetização como uma ferramenta que permitiria aos educandos compreender melhor o mundo e dialogar mais intensamente com outras partes da sociedade. Ao final do processo, houve uma solenidade de formatura dos educandos, que se tornou um dos momentos mais emblemáticos da educação de adultos no país. Um dos alunos, o agricultor Antônio Ferreira, fez uso da palavra em um discurso que ilustra bem os objetivos sociais e cidadãos do programa: Em outra hora, há poucos dias, ninguém não sabia ler, não sabia de letras algumas, como eu era um que não sabia; só sabia o que era o O, que era que nem a boca da panela, ou o A que era que nem um ganchinho de pau. E hoje em dia, graças a Deus e os meus professores, já assino o meu nome e leio argumas coisas, graças a Deus. Tanto que fiquei bastante sastisfeito com o alfabetismo que fez a nós aprendermos. Eu, já com a idade avançada, com 51 anos, mas graças a Deus tenho a inteligência e vou já escrevendo quarquer coisa. Hoje mesmo, já fiz uma cartinha para o Sr. Presidente da República, dizendo algumas coisas; e do mais que peço a sua majestade que é a pessoa maior que nós enxerguemos no Brasil, é o Presidente da República, quarqué coisa, ouviu, peço que con- tinue o curso de aula para nós todos, não tão somente no Rio Grande do Norte como em todos os lugares por aí que têm necessidade, de milhares e milhares que não sabem as primeiras letras do alfabeto, são pessoas que têm necessidade, para melhorar a situação do Brasil, para mais tarde servir mesmo para o Senhor Presidente da República, para o Governador do Estado e para nós todos. Tanto que eu fiquei muito sastisfeito e mais sastisfeito ficarei continuando a escola. Naquele tempo anterior, veio o Presidente Getúlio Vargas matar a fome do pessoal, a fome da barriga – que é uma doença fácil de curar. Agora, na época atual, veio o nosso Presidente João Goulart matar a precisão da cabeça que o pessoal todo tem necessidade de aprender. Temos muita necessidade das coisas que nósnão sabia e que hoje estamos sabendo. Em outra hora, nós era mas- sa, hoje já não somos massa, estamos sendo povo. (CARVALHO, 2018) Note, assim, a concretização do efeito transformador da educação na medida em que permitiu que os alunos compreendessem seu papel e seu potencial dentro da sociedade em que estão inseridos. Em comemoração aos cinquenta anos da experiência em Angicos, o MEC produziu um docu- mentário sobre o tema. Disponível em: https://youtu.be/rgcyWqpa0fc Mais informações sobre o programa também constam no vídeo disponibilizado pelo Fórum EJA , disponível em: https://youtu.be/2QG1UhHClqc 19 UNIDADE Educação e Escolarização de Jovens e Adultos no Brasil no Século XX: Percurso e Trajetória do Analfabetismo no Período de 1930-1980 Em Síntese Esta unidade se propôs a conceituar educação de jovens e adultos e historiar o seu pro- cesso educacional no Brasil, focando na escolarização inicial e no processo de alfabeti- zação. Vimos que a educação de jovens e adultos se apresentou, ao longo desse período de 1930-1980, por meio de uma diversidade de práticas. Apresentamos as iniciativas dos diferentes governos desse período apontando claramente para uma característica de ações pontuais, dispersas, em formas de campanhas que pouco contribuíram para a escolarização da população de jovens, de 10 anos a mais, e adultos e para a superação do quadro de analfabetismo no Brasil. Consideramos importante destacar, ainda, que, embora a década de 1980 tenha se apre- sentado como um período democrático e de alargamento dos direitos sociais e políticos, notamos o esvaziamento da EJA como política de Estado e uma crescente visibilidade de programas compensatórios. Dessa forma, a EJA continua ocupando um espaço secundá- rio no campo das políticas públicas, quando analisada frente a outras modalidades da educação. Encontramos diversos desafios a serem enfrentados na modalidade de edu- cação de jovens e adultos, que serão explorados nas próximas unidades. 20 21 Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Vídeos Educação na Ditadura: A Marca da Repressão https://youtu.be/YqDgaGNDads Alfabetização em Angicos – A Pedagogia de Paulo Freire https://youtu.be/ENks3CJeJ5E Leitura Letramento e Inclusão Social na Sociedade do Conhecimento https://bit.ly/2U6VQcp Revolução de Angicos: quando Paulo Freire pôs em prática seu projeto pedagógico https://bit.ly/2XQxTHm 21 UNIDADE Educação e Escolarização de Jovens e Adultos no Brasil no Século XX: Percurso e Trajetória do Analfabetismo no Período de 1930-1980 Referências BEISIEGEL, C. de R. A política de educação de jovens e adultos analfabetos no Brasil. In: OLIVEIRA, Dalila A. (org.) Gestão Democrática da Educação: desafios contemporâneos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. CARVALHO, R. T. de. Cerimônia na alfabetização de jovens e adultos: aparato performático. Pro-Posições [online], v. 29, n. 2, p. 322-351, 2018. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1980-6248-2016-0080>. Acesso em: 29 maio 2020. FERRARO, A. R. História inacabada do analfabetismo no Brasil. São Paulo: Cortez, 2009. FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo, SP: Cortez Editora: Autores Associados, 1986. GERMANO, J. W. As quarenta horas de Angicos. Educ. Soc., v. 18, n. 59, p. 391-395, ago. 1997. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid= S0101-73301997000200009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 29 maio 2020. HADDAD, S.; DI PIERRO, M. C. Escolarização de jovens e adultos. Revista Brasi- leira de Educação, n. 14, p. 108-130, maio/jun./ago. 2000. KLEIMAN, A. B. Exclusão social e alfabetização. Temas em Psicologia, n. 3, p. 97-107, 2003. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S1413-389X1993000300013>. Acesso em: 29 maio 2020. 22
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