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Introdução A cárie é uma doença de alta prevalência e que depende da sacarose presente no biofilme que se forma na superfície dos dentes; considerada a doença mais comum da infância, afeta 60 a 90% das crianças de 2 a 11 anos em todo o mundo, além de ser a causa mais comum de perda de dentes e de dor na cavidade bucal. Trata-se de uma doença diretamente ligada aos fatores biológicos do hospedeiro (microbiota bucal, capacidade tampão salivar), mas o consumo regular de sacarose presente na dieta é decisivo para sua implementação. Estudos epidemiológicos sobre o assunto indicam que a incidência de cárie varia entre diferentes realidades socioeconômicas; em países desenvolvidos, observa-se um declínio da prevalência da doença; já em países em desenvolvimento, a incidência continua alta. A diminuição da prevalência da doença nos países desenvolvidos pode ser atribuída ao conhecimento adquirido através de estudos sobre a patogênese da cárie dentária, o qual gerou maior consciência pública e educação da população em relação à saúde bucal, e também aos avanços na ciência dos materiais dentários e ao acesso aos serviços odontológicos. Por mais que os processos biológicos e bioquímicos sejam cruciais no desenvolvimento da doença, é importante lembrar que esta também é um processo determinado pelo estilo de vida, cujo início se mostra mais propício nos momentos em que a higiene e a dieta são negligenciadas de forma crônica. Nesses estágios iniciais em que a progressão da doença já está instalada, a lesão de cárie é passível de interrupção ou reversão; porém, se não receber o devido tratamento, podem ocorrer disfunções mastigatórias e infecções odontogênicas. A principal característica da doença cárie é desmineralização dos tecidos dentários, provocada por um desequilíbrio (disbiose) da microbiota residente que coloniza a superfície do dente. Essa microbiota encontra-se organizada e madura, formando um biofilme coeso que, ao metabolizar a sacarose da dieta, dá início a um processo dinâmico de desmineralização e remineralização do esmalte dental, proporcionando o desenvolvimento de lesões cariosas nessa superfície. Microbiota bucal e seu ecossistema A cavidade oral do ser humano abriga uma microbiota residente de mais de 700 espécies de bactérias. Essas espécies colonizam todas as estruturas da cavidade bucal, incluindo dentes, língua, mucosa bucal, palato duro, lesões cariosas e bolsas periodontais. A distribuição da microbiota bucal nessas estruturas se dá graças à preferência das bactérias por sítios que irão proporcionar condições ideais para o seu crescimento e desenvolvimento. A microbiota, de modo geral, é natural e benéfica ao organismo humano. O foco na patogenicidade de algumas espécies nas pesquisas científicas sugere que todas são prejudiciais, o que foge à verdade. De fato, a maioria consiste em bactérias que são comensais amigáveis, responsáveis pela defesa do nosso organismo contra outros microrganismos oportunistas, sendo componentes essenciais para manutenção da nossa saúde. O ecossistema bucal sofre diversas modificações, a partir da erupção do primeiro dente decíduo, com erupções dentárias subsequentes seguidas da formação de um novo ambiente com uma rica fonte de nutrientes: o sulco gengival. Cada sítio do ambiente bucal propicia condições ideais para certas espécies, como temperatura, salinidade, presença ou ausência total de oxigênio, abundância de nutrientes e pH. A estabilidade do microbioma de cada sítio pode ser afetada por variações na dieta, no fluxo salivar ou por uso prolongado de antibióticos. Função da saliva A cavidade oral é inteiramente umidificada e lubrificada pela saliva, oriunda da secreção das glândulas salivares, que contém diferentes tipos de substâncias biologicamente ativas. Através do seu estreito contato com todas as estruturas bucais, a saliva tem ação direta no biofilme dental, atuando como um sistema de liberação lenta e contínua de agentes antimicrobianos e tamponantes, e como fonte de nutrientes para os microrganismos, determinando assim sua qualidade e quantidade. A saliva tem propriedades antibacterianas, antivirais e antifúngicas, inclusive proteínas como lisozimas (bacteriólise), lactoferrina (bacteriostática), lactoperoxidase (bloqueia o metabolismo de glicose) e outros componentes como mucinas, imunoglobulina A, G e M e outras glicoproteínas. As glicoproteínas ricas em prolina atuam como receptores que permitem a ligação de bactérias com a película adquirida, que cobre a superfície do dente. O fluxo salivar permite a entrada de nutrientes essenciais para as bactérias, mas também promove a remoção mecânica desses nutrientes das superfícies colonizadas. A quantidade e a qualidade da saliva desempenham papel crucial não apenas na iniciação e no desenvolvimento de lesões de cárie, mas também no processo de remineralização de lesões iniciais. Portanto, um fluxo salivar abundante protege o esmalte dental ao reduzir o tempo de exposição deste aos ácidos oriundos da dieta, normalizando o pH do ambiente após exposição a alimentos cariogênicos. Além disso, a presença de compostos tamponantes (p. ex., os íons carbonato e fosfato) facilita a manutenção do pH no microambiente do biofilme, assegurando a manutenção da composição mineral do esmalte dental. Biofilme Estima-se que mais de 95% das bactérias presentes na natureza estejam em biofilmes. É possível observar a presença de biofilme em praticamente todas as superfícies imersas em ambientes aquosos, exigindo uma oferta constante de nutrientes às bactérias colonizadoras. Os microrganismos que compõem o biofilme da cavidade bucal são endógenos, ou seja, naturalmente presentes no nosso organismo e não agentes infecciosos externos. Os microrganismos são submetidos a várias adaptações fisiológicas e morfológicas em resposta às mudanças no ambiente. Em biofilmes, diferentes concentrações de substâncias químicas, nutrientes e oxigênio criam microambientes aos quais os microrganismos têm que se adaptar para sobreviver, percebendo e processando as informações do meio para poderem regular respostas adequadas. Essa adaptação envolve a regulação de vários genes desses microrganismos, comprovando que aqueles encontrados no biofilme diferem fenotipicamente das suas versões planctônicas. A superfície dos dentes constitui um ambiente propício para adesão de muitas espécies bacterianas, já que possui algumas áreas inacessíveis aos mecanismos fisiológicos de limpeza e, diferente de outras superfícies do corpo humano, é uma superfície que não descama. A colonização dessa superfície obedece a alguns processos de adesão, sucessão e progressão, tornando-se mais espessa, organizada e complexa à medida que vai incorporando mais bactérias. Os microrganismos com capacidade de aderência se ligam, por meio de receptores específicos, à película adquirida do esmalte e formam um hábitat capaz de agregar outros microrganismos incapazes de promover essa adesão inicial. Por muitos anos, toda a microbiota bacteriana era considerada patogênica (hipótese da placa não específica) ou alguns microrganismos específicos eram considerados patogênicos (hipótese da placa específica). De acordo com os princípios da hipótese da placa não específica, toda a placa deveria ser removida; porém, percebeu-se que era impossível remover dos dentes esse acúmulo natural de bactérias, mesmo após a higienização. A hipótese da placa específica preconizava a eliminação de patógenos específicos por meio de tratamento antimicrobiano, mas os defensores de tal hipótese não conseguiram comprovar o papel desses microrganismos específicos na presença ou não de doença. Em 1991, foi proposta uma nova hipótese, chamada hipótese da placa ecológica. De acordo com essa hipótese, qualquer mudança no ambiente da microbiota residente desencadeia a expressão de fatoresde virulência em determinadas espécies que vão, assim, provocar doença em sítios específicos. A hipótese da placa ecológica não focou apenas espécies específicas, mas também fatores ecológicos que resultam em mudança do microambiente da placa (Figura 13.1). A abordagem ecológica do biofilme bacteriano misto começou a ser explorada por Kleinberg (2002), com a finalidade de entender o papel do metabolismo bacteriano na cárie dentária. Por meio dos estudos de Takahashi e Nyvad (2008, 2011 e 2015), foi comprovada a seleção de bactérias patogênicas através de alterações no ambiente em que ela se encontra, estendendo a hipótese da placa ecológica de Marsh para a hipótese da placa ecológica estendida. De acordo com ela, a produção de ácidos pela atividade metabólica bacteriana regula o desenvolvimento de lesões de cárie através da adaptação das bactérias a um meio com baixo pH e altamente seletivo. Esses achados sugerem que as doenças bucais mediadas por bactérias como cáries dentárias e doença periodontal têm etiologia diferente daquela das doenças infecciosas baseadas nos postulados de Koch, segundo os quais o mesmo patógeno deve estar presente em todos os casos da doença; o patógeno deve ser isolado do hospedeiro doente e crescer em cultura pura; o patógeno da cultura pura deve reproduzir a doença quando inoculado em um animal de laboratório; o patógeno deve ser isolado do animal que recebeu o inóculo e corresponder ao organismo original. O biofilme dental é definido como uma comunidade bacteriana coesa e organizada, embebida em matriz de polissacarídeo extracelular produzida pelas bactérias bucais, aderidas à superfície do dente embebido por saliva. Apenas por essa definição, pode-se notar que o biofilme é uma estrutura muito mais complexa que a tradicional definição de placa bacteriana preconizada por Black (1886), que se referia a um simples acúmulo de microrganismos em lesões iniciais de cárie. No biofilme, várias espécies bacterianas ocupam seus respectivos microcosmos, que oferecem características ideais para sua sobrevivência, separadas por canais de água, que atuam como um sistema ‘circulatório’ primitivo, transportando nutrientes e subprodutos de microrganismos. A composição (proporção de polímeros solúveis e insolúveis) da matriz de polissacarídeo extracelular varia de acordo com os microrganismos presentes, sendo constantemente influenciada pelas condições ambientais e pelo tempo. Em geral, seu peso seco corresponde a 10 a 20% de glucano, 1 a 2% de frutano, 40% de proteínas de origem bacteriana e salivar, além de quantidades variadas de lipídios, cálcio, fósforo, magnésio e flúor. A estrutura da matriz de polissacarídeo tem um papel importante na virulência do biofilme, já que influi na aderência de microrganismos, na coesão, na fonte de energia, e protege contra agressões de agentes externos, afetando a difusão de substâncias entre o biofilme e o meio. Etapas de formação do biofilme dental A formação do biofilme dental segue algumas etapas de adesão e colonização bacteriana na superfície do dente. No entanto, por se tratar de um mecanismo extremamente dinâmico, tais etapas podem acontecer de maneira simultânea e não isoladamente, como representamos a seguir, para fins didáticos. Figura 13.1 Representação esquemática da hipótese da placa ecológica e etiologia da cárie dentária, segundo a qual uma mudança no microambiente do biofilme dental altera o equilíbrio da microbiota ali presente, favorecendo a prevalência de microrganismos acidúricos e acidogênicos, o que acarreta desmineralização da superfície dentária. Fonte: adaptada de Marsh, 1994, em Fejerskov e Kidd, 2005. Formação da película adquirida Comparado a outros tipos de biofilme existentes na natureza, o biofilme oral tem algumas peculiaridades, uma vez que precisa das glicoproteínas salivares do hospedeiro para aderir. Dessa forma, o primeiro passo para a formação do biofilme é a ligação à película adquirida, que é um filme proteico formado de glicoproteínas salivares em uma superfície de dente higienizada. O mecanismo de formação da película adquirida é baseado na Lei de Gibbs, que envolve as interações das glicoproteínas, outros componentes salivares e a superfície do dente. As forças dessas interações podem ser divididas em: forças de longo alcance (interações de Coulomb, forças de van der Waals e interações dipolo-dipolo), forças de médio alcance (interações hidrofóbicas) e forças de curto alcance (ligações covalentes, interações eletrostáticas, pontes de hidrogênio, interações iônicas e interações ácido-base de Lewis). Através dessas forças, as proteínas salivares são adsorvidas, rearranjadas e permitem que a película adquirida possa aderir às bactérias pioneiras. Adesão inicial A adesão das bactérias pioneiras à película adquirida é o segundo passo para a formação do biofilme. Algumas bactérias planctônicas podem reconhecer proteínas receptoras na película (p. ex., α-amilase e glicoproteínas ou proteínas ricas em prolina) e se ligam a ela. No entanto, nesse estágio a adesão é reversível e as bactérias inicialmente aderidas podem se desprender facilmente da película. As adesões iniciais são realizadas através de atrações eletrostáticas ou adesões físicas, que podem ser mediadas pela síntese de glucanos pela glicosiltransferase (GTF) e por outras proteínas da superfície celular, como a superfície antígeno I/II (também conhecida como P1), além de proteínas B, PAC, MSL-S e SR, as quais se ligam aos receptores salivares. Muitas espécies bacterianas apresentam estruturas em sua superfície (p. ex., fímbrias e fibrilas) que possibilitam sua adesão à superfície dentária. Essas estruturas são apêndices extracelulares de longos filamentos proteicos, compostos de fimbrilina, uma proteína altamente antigênica. As fímbrias já foram identificadas em alguns Gram-negativos e em poucos Grampositivos, entre os quais Actinomyces naeslundii, Streptococcus sanguinis e Streptococcus parasanguis, e em Streptococcus mutans. Além disso, já atraíram o interesse pela manipulação de uma vacina contendo anticorpos contra adesinas fimbrianas purificadas, para impedir a colonização da superfície dentária. A colonização da superfície dentária por S. mutans acontece devido à presença de enzimas glicosiltrasferases (Gtfs) da película adquirida. Essas enzimas são capazes de sintetizar glucanos in situ provenientes da sacarose da dieta, promovendo sítios de ligação para muitos microrganismos, incluindo S. mutans. A partir disso, pode-se afirmar que as Gtfs de S. mutans influem na colonização das superfícies dentárias e, em consequência, na formação de lesões iniciais de cárie. Maturação Depois que aderem umas às outras, as bactérias pioneiras proporcionam sítios de ligação específicos para que outras bactérias reconheçam suas proteínas receptoras, ligando-se a elas. As bactérias se coagregam, formando estruturas características de um biofilme oral maduro. As espécies bacterianas subsequentes incluem Fusobacterium nucleatum, Treponema spp., Tannerella forsythensis, Porphyromonas gingivalis, Aggregatibacter actinomycetemcomitans, entre outras. Os componentes microbianos do biofilme maduro são diferentes daqueles do biofilme inicial, devido a mudança na proporção de bactérias durante a sua formação. A quantidade de Streptococcus e Neisseria diminui, enquanto a quantidade de Actinomyces, Corynebacterium, Fusobacterium e Veillonella aumenta. Biofilmes maduros (com 2 semanas ou mais) contêm muitas camadas porosas e canais de água através de sua estrutura, proporcionando às bactérias nutrientes essenciais. À medida que o processo de agregação se inicia, as bactérias começam a interagir, coagregando-se umas às outras por meio do reconhecimento do polissacarídeo e dos receptores celulares entre espécies diferentes ou cepas distintas de umamesma espécie, através das pontes de coagregação. F. nucleatum é uma das espécies bacterianas reconhecidas como pontes agregadoras para estreptococos ou outros anaeróbios obrigatórios. Dispersão No biofilme maduro, as bactérias se desprendem do biofilme sozinhas ou em grupos, devido à limitação de nutrientes no sítio original, que força seu deslocamento para outro lugar com mais nutrientes disponíveis, possibilitando seu crescimento. Essa procura por nutrientes pode ser ativa, conduzida pelas próprias bactérias, ou passiva, realizada por outras espécies de bactérias que competem por nutrientes com a espécie que foi levada para outro sítio. Às vezes, o próprio sistema de defesa realiza esse deslocamento, a fim de limitar o desenvolvimento do biofilme. Quorum sensing Os biofilmes têm algumas funções que dependem da capacidade das bactérias e das microcolônias ali in-seridas de se comunicarem umas com as outras. Essa comunicação permite que as bactérias respondam coordenadamente ao ambiente em que se encontram. Quorum sensing, por definição, é a “expressão gênica mediada pela densidade celular da bactéria”, envolvendo a regulação da expressão de genes específicos através do acúmulo de componentes sinalizadores que medeiam a comunicação intercelular. Portanto, é ativado em resposta à densidade celular, podendo ser encontrado tanto em microrganismos Gram- positivos como em Gram-negativos. Os estímulos para os sistemas de quorum sensing são feitos através de moléculas sinalizadoras, chamadas autoindutoras. Estas são produzidas regularmente e sua concentração depende da densidade microbiana, o que também afeta a percepção do sinal. O termo quorum é usado para descrever esse tipo de sistema sinalizador, já que os microrganismos devem estar em uma quantidade ou densidade suficiente que permita a captação do sinal e, em contrapartida, a resposta da população. Em bactérias Gram-positivas, as moléculas sinalizadoras são peptídios secretados, enquanto em bactérias Gram-negativas as mais comuns são as acil homosserina lactonas (AHLs) e furanosil borato diéster. O conhecimento das propriedades do quorum sensing em um biofilme microbiano ajuda a definir a etiologia de doenças dependentes de biofilme, desafiando as práticas atuais de diagnóstico e tratamento. Biofilme cariogênico Várias espécies bacterianas vivem em uma comunidade microbiana que mantém sua homeostase através de uma complexa interação de sinergia e antagonismo. Essa comunidade pode sustentar perturbações rápidas no seu ambiente sem precisar alterar sua estrutura e sua composição, situação rotineira na cavidade bucal. Ao contrário, se essas alterações forem graves e persistentes, haverá impacto direto naquela comunidade organizada, resultando em mudança no seu equilíbrio, favorecendo organismos capazes de sobreviver nesse novo ambiente. Fatores ambientes como consumo de açúcar ou higiene oral insatisfatória possibilitam a seleção de bactérias acidúricas (tolerantes em meio ácido) e acidogênicas (capazes de produzir ácidos) no biofilme, tornando-o cariogênico. Biofilmes cariogênicos são muito aderentes, virulentos e resultam da interação de bactérias específicas como as do grupo de estreptococos e lactobacilos e seus produtos metabólicos. A formação de matriz de biofilme rica em polissacarídeo extracelular (EPS), acidificação e manutenção de um microambiente de baixo pH são fatores de virulência moduladores da patogênese da cárie dentária. Os biofilmes formados in vivo têm microbiota mista, mas as espécies do grupo estreptococos, especialmente as do grupo viridans, como Streptococcus mutans, S. oralis, S. sanguinis e S. mitis, são reconhecidamente os produtores primários de matriz rica em polissacarídeos, além do S. sobrinus, que também já está relacionado com alta atividade de cárie. Considerado o mais cariogênico de todos os estreptococos, S. mutans é um dos colonizadores iniciais da superfície dentária, produzindo quantidades significativas de EPS, sendo responsável pelo estágio inicial da formação de biofilme e lesões de cárie. Essa bactéria tem a capacidade de produzir glucanos (polímeros extracelulares associados à adesão) e levanos (polímeros intracelulares de reserva) na presença de sacarose, e eventualmente amido, para sintetizar rapidamente exopolissacarídeos através das enzimas glicosiltransferases (Gtfs) e frutosiltransferases. Além disso, o S. mutans sintetiza o mutano, que é um tipo de glucano insolúvel, contribuindo para a transformação de um biofilme não patogênico em um altamente cariogênico e virulento. Em contrapartida, estudos clínicos indicaram que grandes números de Streptococcus não mutans em biofilmes, como Streptococcus sanguinis e Streptococcus gordornii, foram associados a baixos números de S. mutans, sugerindo uma competição entre eles e ausência de atividade de cárie nos pacientes. Streptococcus oligofermentans também ajuda na manutenção de um biofilme não cariogênico, por inibir o crescimento de S. mutans e metabolizar o ácido láctico produzido pelas bactérias do biofilme. Biofilmes cariogênicos se desenvolvem a partir da adesão inicial de microrganismos seguida de um acúmulo na superfície dentária, predominantemente mediado por mecanismos dependentes de sacarose. Os açúcares são metabolizados, e são produzidos ácidos por bactérias sacarolíticas supragengivais, inclusive Streptococcus, Actinomyces e Lactobacillus, enquanto os aminoácidos também podem ser metabolizados por essas bactérias e transformados em ácidos e amônia. O exopolissacarídeo é composto principalmente por glucanos, que são sintetizados por Gtfs presentes na saliva, na película adquirida (GtfC) e aquelas adsorvidas nas superfícies bacterianas (a maioria GtfB) na presença de sacarose. Os glucanos formados in situ proporcionam sítios de ligação para colonização por S. mutans, S. sobrinus e outros microrganismos acidogênicos ou acidúricos, matriz que agrega todas as células microbianas para formar grupos coesos como as microcolônias. Sem uma higienização eficaz e com exposição frequente a carboidratos da dieta (especialmente a sacarose), as bactérias acidúricas e acidogênicas irão metabolizar a sacarose em ácidos orgânicos e sintetizar polissacarídeos in situ. A produção de elevadas quantidades de exopolissacarídeos melhora a aderência bacteriana e torna o biofilme mais coeso. As bactérias ali embebidas ficam protegidas contra possíveis agressões do ambiente (p. ex., antimicrobianos), o que melhora a sua estabilidade no biofilme. No microambiente do biofilme, glucanos solúveis, frutanos e polissacarídeos intracelulares servem como fonte de energia, podendo ser metabolizados para aumentar a produção de ácido. A acidificação da matriz do biofilme proporciona uma vantagem ecológica para bactérias tolerantes a estresse e para a microbiota acidogênica, como o S. mutans. Esse ambiente de baixo pH, em estreito contato com a superfície dentária, resulta em desmineralização desta. Desequilíbrio no processo desmineralização-remineralização O esmalte dental é composto basicamente de hidroxiapatita (HA) – Ca10(PO4)6(OH)2 – e se encontra embebido nos líquidos bucais, em homeostase com alguns minerais responsáveis por esse equilíbrio, como o cálcio e o fosfato. Em ambiente com pH neutro, os cristais de hidroxiapatita se dissolvem e liberam cálcio (Ca2+), fosfato (PO43–) e íons hidroxila (OH–) no ambiente. Caso a saliva já tenha os mesmos minerais, ela se torna supersaturada, precipitando esses minerais de volta no esmalte do dente, caracterizando a remineralização (RE). Em um ambiente com pH ácido, a saliva torna-se subsaturada em íons fosfato (PO43–), levando à dissolução de cristais de hidroxiapatita, na tentativa de ressaturação, processo chamado desmineralização (DES). Essa dissolução ocorre em um ambiente abaixo do pH crítico de HA,que varia de 5,5 a 6. Se houver presença de flúor (biodisponível), este reage com o esmalte dental remineralizado, tornando-o resistente a ácido, através da formação de uma estrutura superficial denominada fluorapatita (FA). A FA pode ser desmineralizada apenas quando o pH está abaixo de 4,5 (maior acidez), o que lhe confere maior resistência, se comparada aos cristais de hidroxiapatita do esmalte dental. Na ocorrência de um desafio cariogênico, quando o consumo de sacarose for frequente e as funções protetoras da saliva estiverem comprometidas, o pH da parte mais profunda do biofilme maduro não é suscetível a mudanças no ambiente, sendo mais ácido se comparado à saliva. Isto se deve à incapacidade da saliva de penetrar no biofilme e, assim, exercer sua capacidade tampão, alterando também a proporção de microrganismos acidogênicos e acidúricos naquele microambiente. Além disso, a quantidade de cálcio e fosfato no biofilme é menor que na saliva, o que torna o biofilme sempre subsaturado de íons minerais em relação ao meio aquoso, perdendo continuamente esses minerais para o meio, o que leva a cavitação. Todo o processo DES e RE está limitado a alguns milímetros da superfície de esmalte. De início, a perda de minerais do esmalte dental não é clinicamente visível (fase subclínica); porém, se o processo não for detido, as lesões de mancha branca, opacas e incipientes se instalam em áreas que propiciam o acúmulo de biofilme, indicando a presença da doença cárie no indivíduo. Ainda assim, essas lesões são passíveis de reversão, pois a camada externa de esmalte se encontra intacta. As lesões de mancha branca iniciais de cárie são facilmente confundidas com outras hipoplasias de esmalte, como a fluorose (Figura 13.2), causada pelo excesso de flúor durante a formação do esmalte dental, ou outras amelopatias, como a hipoplasia molar-incisivo (Figura 13.3). A principal diferença entre elas é que, na fluorose, as manchas brancas se apresentam difusas na superfície de esmalte, enquanto na lesão de cárie inicial as manchas e localizam em superfícies do dente que possibilitam o acúmulo de biofilme (Figura 13.4). O papel da saliva e da película adquirida é crucial no manejo desse processo. A quantidade, a qualidade, a capacidade tampão e a composição determinam dissolução e precipitação de minerais no esmalte, além da proteção da superfície do dente contra ataques ácidos. Cárie radicular Em geral, as pesquisas sobre cárie dentária são direcionadas para a desmineralização do esmalte dental. Os fatores que iniciam o processo de desmineralização da dentina, provocando a cárie radicular, têm desenvolvimento diferente daquele da cárie de esmalte, já que a dentina radicular tem composição essencialmente orgânica, como o colágeno. Portanto, a lesão de cárie radicular acontece através da desmineralização dos carbonatos presentes na dentina e da degradação do colágeno dentinário. Figura 13.4 Hipoplasia de esmalte localizada próximo à margem gengival de dentes decíduos, característica de mancha branca de cárie incipiente. Fonte: imagem gentilmente cedida pela Prof.a Dra. Fernanda Bartolomeo Freire-Maia. Essa diferença na composição afeta a colonização microbiana e o padrão de desenvolvimento da lesão. Enquanto na lesão de cárie de esmalte a invasão bacteriana ocorre após a ruptura do esmalte, na dentina a colonização ocorre desde os estágios mais iniciais. Seu tecido menos mineralizado fica à mercê de todos os agentes agressores da cavidade bucal, através da recessão gengival (quando a gengiva marginal se localiza no sentido apical do dente) provocada por escovação traumática, ou por outros problemas periodontais. A colonização inicial da superfície radicular não tem diferença da colonização do esmalte. As bactérias pioneiras continuam sendo as do grupo Streptococcus (S. mutans, S. sanguinis, S. oralis e S. mitis) e os Actinomyces. Em lesões ativas de cárie radicular, além das bactérias acidúricas citadas anteriormente encontram-se espécies de Lactobacillus e Bifidobacterium. No entanto, ao contrário das lesões em esmalte, o S. mutans não se torna predominante nas lesões radiculares, mas sim o Actinomyces. Se o processo de desmineralização e degradação do colágeno por bactérias proteolíticas não for detido, a lesão de cárie pode provocar inflamação na polpa dentária, por estresse, tanto físico (proximidade da superfície radicular com a polpa) quanto químico (metabólitos secundários das bactérias), podendo gerar a mortificação pulpar. É importante salientar que a prevalência das lesões de cárie radicular tende a aumentar devido ao envelhecimento da população de modo geral. A manutenção dos dentes e a presença de recessão gengival deixa a dentina exposta ao meio bucal, correndo o risco de sofrer desmineralização e de ter suas matrizes orgânicas degradadas por proteases da saliva e da dentina do próprio hospedeiro. Esse processo parece ser bastante lento, porém inevitável. Novas abordagens de tratamento para esse tipo de lesão se fazem necessárias, especialmente para a população idosa. Diagnóstico e tratamento da doença A prevenção de cárie dentária é a estratégia mais inteligente, eficiente e de menor custo em nível populacional. No entanto, requer conhecimento suficiente acerca de todos os sinais clínicos de uma doença de desfecho rápido e progressivo para possibilitar seu controle. As estratégias de prevenção em crianças e adolescentes tem como principal objetivo deter a desmineralização do esmalte dental nos estágios iniciais, permitindo a remineralização da superfície danificada, clinicamente caracterizada pela presença de lesões de mancha branca. O flúor é o material mais indicado para prevenção de cárie, seja através da aplicação pelo profissional ou através da escovação com dentifrícios, que é comprovadamente a medida mais eficaz para controle da doença. Apesar de ser substância capaz de reduzir a produção de ácidos pelos microrganismos e inibir a produção de enzimas intra- e extracelulares, o flúor, isoladamente, não impede a inicialização da doença, mas pode paralisar seu desenvolvimento, preservando o tecido dentário. Quando as agressões contínuas ao esmalte dental levam a fratura e cavitação do esmalte, o tratamento indicado é o restaurador. A Odontologia vem desenvolvendo materiais cada vez mais modernos no que diz respeito ao restabelecimento da forma e função do dente. Ainda assim, prevenir e lidar com todos os fatores que levam a essa perda é a melhor maneira de intervir na doença cárie. Considerações finais A cárie dentária é doença de alta prevalência e que não deve ser negligenciada. O controle da microbiota responsável pela inicialização da doença é medida necessária para se preveni-la, aliada a educação em saúde bucal, conscientização e motivação da população para o autocuidado.
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