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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES DEPARTAMENTO DE ARTES VISUAIS DESENHO E RELEITURA: Uma proposta para o ensino de artes visuais. Marcos Gonçalves Monteiro Porto Alegre 2º semestre 2014 Marcos Gonçalves Monteiro DESENHO E RELEITURA: Uma proposta para o ensino de artes visuais. Trabalho de conclusão de curso, apresentado para obtenção do título de Licenciado em Artes Visuais, pelo curso de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientadora: Profª. Drª. Andrea Hofstaetter Banca examinadora: Profª. Drª. Teresa Poester Profª. Drª. Laura Gomes Castilhos Porto Alegre 2014 AGRADECIMENTOS Agradeço à minha orientadora Prof.ª Dr.ª Andrea Hofstaetter, que me apoiou e acreditou no meu trabalho, dispondo de seu tempo para me atender, nos diversos momentos, me orientando e prestando os esclarecimentos de que necessitei. Aos membros da banca examinadora Prof.ª Dr.ª Teresa Poester e Prof.ª Dr.ª Laura Castilhos, por terem aceitado o convite de fazerem parte da minha banca, levantando questões para a minha reflexão. Àqueles professores que tive contato durante este período acadêmico, que compreenderam o meu trabalho e me mostraram as diversas ‘leituras’ da Arte, os diversos autores, os diversos caminhos a serem seguidos. Aos meus colegas de curso, com os quais pude trocar ideias e experiências ao longo destes anos e fazer grandes amigos. A minha esposa e pedagoga Marcia Luchese Monteiro, pela companhia e pelo apoio teórico a toda minha pesquisa, meus filhos Yuri e Andrei pela presença carinhosa, força e pelo incentivo constante, e ao meu pai Pedro Monteiro, pelo apoio em muitos momentos da vida. ‘In memoriam’ a duas pessoas eternamente queridas, a minha mãe, Maria Monteiro, pela educação, noções de ética e respeito ao ser humano, e ao meu irmão, o arquiteto Zeca Monteiro, que me propiciou os primeiros contatos com a Arte e através de suas palavras me estimulou a seguir este caminho. Enfim, um agradecimento a todas as pessoas, que de alguma forma tornaram este trabalho possível! A arte é, então, ‘uma disposição de produzir (poiésis) acompanhada de regras’. Produzir é “trazer à existência uma das coisas que são suscetíveis de ser ou não ser e cujo princípio de existência reside no artista.” (CAUQUELIN, 2005, p. 59) RESUMO Este trabalho de conclusão de curso teve como objetivo principal, fundamentar um projeto de ensino do Estágio de Docência em Artes Visuais. A pesquisa abordou possibilidades de aprendizagem com a linguagem do desenho, associada a práticas de releitura. Para isso se propôs investigar os processos e conceitos ligados à técnica do desenho, aos procedimentos de releitura, citação e apropriação, vinculados a uma apreciação imagética com referências na história da arte e na contemporaneidade. Refletir sobre as possibilidades de trabalhar com o desenho e a releitura de obras de arte no ensino de artes visuais, teve em vista uma abordagem ampla do tema, analisando e desenvolvendo questões ligadas ao desenho, como forma de acercar, problematizar e potencializar os conceitos de releitura, apropriação ou citação de imagens na educação escolar. Os principais referenciais teóricos são: Anne Cauquelin, Edith Derdyk, Fayga Ostrower, Ana Mae Barbosa, Analice Dutra Pillar, Ernst Gombrich e Giulio Carlo Argan. Como referenciais artísticos, utilizo o trabalho de vários artistas que se destacaram na utilização do desenho e da releitura na história da arte e também o meu próprio trabalho, já que tenho formação de bacharel em desenho, e faço uso de procedimentos de releitura, citação e apropriação no meu processo criativo. Proponho, assim, reflexões e diálogos sobre aprendizagens teóricas, experiências artísticas e impressões acerca da prática docente no estágio curricular, incluindo o planejamento do trabalho e seus resultados. Palavras-chave: Desenho. Releitura. Citação. Apropriação. Ensino de Artes Visuais. SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................7 1. DO DESENHO: CONCEITOS, SIGNIFICADOS E REPRESENTAÇÃO........13 1.1. O Desenho: origem no espaço e tempo...............................................15 1.2. O Desenho e suas possibilidades na arte contemporânea..................40 1.3. O Desenho e o ensino da arte no Brasil...............................................52 2. DA RELEITURA DE IMAGENS......................................................................64 2.1. A Releitura na história da arte..............................................................64 2.2. A Releitura na contemporaneidade......................................................80 2.3. A Releitura em sala de aula: equívocos desta prática no ensino das artes visuais.........................................................................................89 3. DA PROPOSTA DO ESTÁGIO......................................................................92 3.1. Contexto do projeto..............................................................................92 3.2. Planejamento do projeto......................................................................95 3.3. Resultados e análises..........................................................................97 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................118 REFERÊNCIAS.......................................................................................................121 APÊNDICE..............................................................................................................124 1. Projeto da prática docente em estágio supervisionado.......................................125 2. Outros desenhos realizados pelos alunos...........................................................145 7 INTRODUÇÃO Esta pesquisa foi realizada para a conclusão do curso de Licenciatura em Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS, apresenta a trajetória das investigações e reflexões teóricas, diretamente interligadas com o trabalho desenvolvido no estágio de docência supervisionado. Com este projeto, analisei e desenvolvi questões ligadas ao desenho em relação aos conceitos de releitura, citação e apropriação. A partir desta relação abordei e problematizei o tema da releitura de imagens no ensino das artes visuais. Quais significados intrínsecos estão implícitos nesta prática de ensino? Por que as aulas que envolvem a práxis da citação e releitura se tornaram repetitivas, vistas com preconceito e na maioria das vezes são ministradas sem fundamentos pedagógicos? Através de observações pessoais e relatos de vários autores sobre o tema, ficou evidente, durante a pesquisa e aproximação com o campo do ensino de artes visuais, que as práticas chamadas de releitura nem sempre são conduzidas de forma coerente. Não são realizadas as devidas contextualizações para que o aluno possa ter um ponto de congruência para suas possíveis reflexões. Podemos questionar também se a formaçãodos docentes de artes é determinante neste contexto, e se a metodologia usada consegue dialogar, contextualizar historicamente e culturalmente os objetos de estudo, enriquecendo o vocabulário visual e artístico dos alunos. A palavra releitura está relacionada com o verbo ‘reler’, ler novamente. No caso de uma obra de arte, clássica, moderna ou contemporânea, reinterpretar ou apropriar-se de uma imagem é ter uma nova visão da obra original, podendo-se mudar as técnicas usadas, descontextualizando os significados que estas carregam nas suas propostas originais. Neste processo estão envolvidos diversos aspectos epistemológicos, transversais e interdisciplinares, já que podemos envolver nesta prática outras áreas do conhecimento. No mundo atual, repleto de tecnologias ao alcance de quase toda a população, trabalhar com o desenho aliado à releitura pode ser um desafio, já que, talvez, muitos alunos instigados por celulares ou mesmo smartfhones, nem mesmo 8 pensam em pegar uma simples folha de papel, um lápis e fazer uma linha, um risco, um rabisco ou um desenho, por mais simples que seja, visto que, este gesto primordial na maioria das vezes, perde para estas tentações da atualidade. Estes conceitos, se corretamente usados e explorados, podem ser aliados às tecnologias, e no caso da apropriação de imagens, a internet pode ser uma grande ferramenta para a preparação, articulação e desenvolvimento destas aulas. Para a execução deste projeto, foi necessário pesquisar sobre as possibilidades de abordar o tema da citação através do desenho de forma mais ampla, contextualizando e estabelecendo relações com o desenho em suas diversas manifestações e linguagens, traçando alguns paralelos com o desenho da figura humana e suas variantes na história da arte, para assim, lograr resultados mais positivos acerca destas investigações com o desenho e a releitura. Assim sendo, será que neste momento atual em que temos tantos outros meios de propor imagens, haveria espaço para trabalhar com o desenho, seus conceitos e a releitura de obras de arte? Estas e outras perguntas me instigaram a elaborar a atual pesquisa, para delinear aspectos que me parecem de vital importância à minha busca de saberes acadêmicos, intrínsecos e extrínsecos ao trabalho que desenvolvo atualmente. A presente pesquisa teve como objetivo, fundamentar um projeto de ensino do estágio de docência, que abordou possibilidades de aprendizagem com a linguagem do desenho e apropriação de imagens. Para isso, foi imprescindível contextualizar e investigar os processos e conceitos ligados à educação escolar e ensino das artes, a fim de problematizar e desmistificar os procedimentos intertextuais como a citação, a apropriação e a releitura de imagens no ambiente escolar. O desenvolvimento de noções básicas do desenho, da percepção sensorial e da criatividade, contribui para valorizar a importância da técnica como instrumento de comunicação, independente do suporte, onde o aluno poderá se expressar segundo um procedimento gráfico de imagens, apreendidas da realidade ou mesmo de outros referenciais. O desenho favorece a educação da observação, da composição e a aplicação da representação formal da realidade ou de uma ideia. Os aspectos da criatividade, 9 são elementos formativos indispensáveis para promover nos alunos a aquisição de uma sensibilidade estética. Desta forma, elaborar possibilidades e alternativas para desenvolver o desenho, com estudantes de nível fundamental e médio da educação básica na disciplina de artes visuais, foi imprescindível para o desenrolar do projeto. Apontar as práticas do desenho como experiência geradora de impressões mentais e as estratégias para planificar estas imagens em um plano de trabalho, também foram importantes para apoiar a ideia inicial. Analisar o conceito de intertextualidade, citação, releitura e apropriação no contexto da arte contemporânea, utilizando o desenho, foram estratégias que permearam o projeto. Meus primeiros contatos com arte se deram através do arquiteto Zeca Monteiro, meu irmão mais velho, infelizmente já falecido (19551989). Já nos anos setenta ele cursava Arquitetura na Faculdade Ritter dos Reis em Porto Alegre. Pelo interesse que tinha nas artes visuais, sempre trazia uma revista de arquitetura ou um livro de artes da biblioteca da faculdade. Desta maneira, comecei a formar lentamente meu léxico artístico. Eu penso que, o fato que me marcou mesmo foi um presente que Zeca me deu em 1984: um livro sobre Michelangelo. O livro de edição rara e com imagens de pinturas e esculturas do mestre fiorentino, proporcionou um encontro decisivo para minha formação artística; foi um dos primeiros contatos com o mundo do Renascimento, que depois vai configurar em toda a trajetória da minha produção em artes. Foi neste mesmo ano de 1984 que comecei minha atividade artística; foi uma exposição coletiva em Porto Alegre, entre artistas brasileiros e portugueses. Depois segui com mais algumas exposições nos anos seguintes, sempre trabalhando muito intensamente com a linguagem do desenho, citação e releitura de imagens da história da arte. Contudo, foi somente a partir da primeira viagem à Itália, em 1993, que o desenho da figura humana e o interesse e desejo de apropriação destas imagens do passado, se transformam no meu principal objeto de estudo. 10 Desde então, investigo formas de trabalhar com o desenho e a pintura simultaneamente, procurando manter relações com a nossa contemporaneidade. Pesquiso na história da arte as referências para esta figuração que é proposta, buscando imagens, que são transportadas como fragmentos das obras de Caravaggio, Michelângelo, Bernini, por exemplo, ou da estatuária Greco Romana, para situarem-se, em nossa atualidade. O seu significado original é alterado, e é justamente esta desconexão e recontextualização de mundos, culturas e épocas, que me interessa. Minha formação artística foi no Atelier Livre da Prefeitura de 1985 a 1987, e em 1988 ingressei no Instituto de Artes da UFRGS – Departamento de Artes Visuais - Bacharel em Desenho; após esta trajetória com quase três décadas de produção artística, percebi que poderia retomar os estudos e solicitei junto a UFRGS um ingresso de diplomado em 2012, para fazer a Licenciatura em Artes Visuais. Não foi fácil chegar a esta decisão, já que estavam envolvidos muitos fatores profissionais e emocionais. Profissionais, porque já tenho uma trajetória nas artes, e seria de certa forma uma experiência nova, não queria tomar isso como se não tivesse alcançado êxito como artista, e sim como uma ‘virada’ total de paradigmas. Emocionais porque parece que depois de tantas ‘batalhas’, ir ao encontro de algo que me dê sustento econômico necessário e não me desvie do sonho de trabalhar com arte parece uma ideia mais concreta. Teria igualmente, que dar uma parada para esta retomada intelectual e estudantil na minha vida. Neste sentido, dar aula fica dentro de uma proposta que mantém o contato com o mundo artístico, e ainda aproveito minha experiência docente de mais de dez anos, em que ministrei cursos de artes em instituições culturais e em meu atelier, atualmente na Travessa dos Venezianos, no bairro Cidade Baixa, Porto Alegre. Quanto ao desenho, este, é o gesto primordial do ser humano, a expressão mais pura deste gesto e faz parte do desenvolvimento da humanidade. Basta observar que os únicos ‘traços’ deixados pelo homem pré-histórico nas cavernas, são expressivos desenhos pintados ou pinturas desenhadas. O desenho, talvez, 11 seja atécnica mais próxima aos olhos destes alunos que teremos enquanto professores, a técnica que mais se aproxima de seus anseios com relação às artes. Temos igualmente a facilidade de trabalhar com o desenho, do ponto de vista de materiais que são acessíveis e da precariedade das nossas futuras escolas de atuação, que talvez muitas não tenham nem mesmo sala de artes, como é o caso da escola em que realizei minha prática docente do estágio. Penso que o ato de desenhar responde às urgências expressivas, pois este possui uma característica natural de rápida execução, enfatizando o efêmero, sugerindo e evocando; estão implícitas relações de pensar e fazer, dentro e fora, espaço e tempo. Neste sentido, trabalhar com desenho em sala de aula está justamente ligado a estes conceitos; sua linguagem acessível e a facilidade com que se pode usufruir tecnicamente, tornam o desenho uma das técnicas artísticas mais próximas da realidade dos alunos de escolas públicas, onde foi realizado meu estágio. A importância do desenho na escola hoje, enquanto técnica e linguagem expressiva, proporciona um resgate dos mais íntimos anseios pela forma simples como é trabalhado, e pelos materiais que estão envolvidos neste fazer, permitindo assim, um resgate do seu valor artístico. O desenho responde ao frenético mundo da sociedade contemporânea, contribuindo para que os alunos possam trabalhar com uma técnica mais próxima de suas realidades, necessitando apenas de um lápis grafite eou um pedaço de carvão vegetal e folhas de papel, mesmo que estas sejam de papel tamanho A4. Com relação à releitura de imagens, apropriações e intertextualidade, são conceitos que igualmente vão ao encontro da minha própria pesquisa em artes. Evidencia-se nestas práticas, formas de abordar e contextualizar a história da arte e a reflexão acerca da leitura de imagens, fazendo com que estimule no aluno a fruição e a própria criatividade, já que se trabalha com a reinterpretação de uma imagem. Podemos também estabelecer relações interdisciplinares com História e Literatura, relacionando com os períodos artísticos e históricos; Português, com a questão da leitura e escrita; Geografia, de forma a mostrar para o aluno determinada 12 localização geográfica de um fato ou um período artístico; e Filosofia, pela relação de proximidade dos ‘saberes’ com as artes visuais. A releitura ou a apropriação de imagens são importantes práticas utilizadas por parte dos artistas, na arte contemporânea. Partindo da premissa de que a minha formação, bem como a minha produção artística tem estreita relação com desenho e a apropriação de imagens da história da arte, penso que estejam aqui as minhas referências para trabalhar com estes temas. Acredito também, que esta pesquisa projetou as minhas reflexões e inquietações, já que o desenho pode ser um instrumento de apropriação ou aproximação com o estado mais puro do ser humano, aliado aos procedimentos intertextuais. Desta forma, espero, enquanto professor de artes, ter instigado e passado aos alunos um pouco da cultura visual artística que de uma maneira geral é tão pobre e limitada nas escolas públicas. Neste sentido, procurei estimular o fazer artístico, para que desenhando e descobrindo novas formas de se expressar no mundo que os rodeia, talvez de uma maneira quase utópica, poderemos tentar uma mudança nos paradigmas de cada aluno, resgatando o humano do ser, bem como sua dignidade e sua ética com a expressão mais primordial do Ser, o Desenho. 13 1 DO DESENHO: CONCEITOS, SIGNIFICADOS E REPRESENTAÇÃO. Como nem sempre é possível no domínio das artes visuais, estabelecer uma definição satisfatória para o Desenho, procurei defini-lo dentro de padrões bem específicos e que me pareceram de maior relevância dentro da minha trajetória enquanto artista plástico, e das pesquisas e leituras realizadas no decorrer da estruturação desta pesquisa. Entretanto, não pretendo delimitar cada um dos conceitos, mas tentar contribuir para as possíveis elucidações sobre o tema. A reflexão sobre a representação plástica do desenho (através da análise da obra de artistas e de movimentos na história da arte), contribui para um debate mais amplo sobre os métodos da sua figuração na arte. Através de um esclarecimento e sedimentação dos eixos conceituais que fundamentam este projeto, uma vez que a componente teórica se encontra estreitamente ligada à componente prática, e foi desenvolvida concomitantemente, o desenho passa a ser entendido como um exercício de destreza, que credita a segurança do olho e da mão, seja na cópia de um objeto ou de uma paisagem, seja como passo preliminar para uma pintura ou escultura; o desenho se constitui num estudo parcial e pode ser entendido como a representação gráfica dos contornos de objetos reais ou imaginários. O desenho também pode ser compreendido como a representação da profundidade e do volume, sendo importante o entendimento dos conceitos de perspectiva, profundidade e luz e sombra, que extrapolam os limites entre a realidade e a metafísica. Já na arte contemporânea, o desenho também passa a ser uma linha no espaço tridimensional, um fio de cordão, uma corda, enfim, qualquer sequência de ‘pontos’ que se transforme em uma linha no plano. Todavia, Rudel diz que o desenho, ...procura ser o mais preciso mediante um efeito “imitativo” que se apoia na memorização da coisa vista em seu essencial: uma silhueta, o galope de um animal, e conservada e transmitida como tal sob forma de “modelo” sacralizado. (RUDEL, 1980, p.10). 14 Neste sentido, é possível dizer que o ato de desenhar tem um caráter expressivo e individual. É a maneira pela qual uma pessoa imagina, conhece, cria e demonstra uma ação. Assim, o desenho é simplesmente a necessidade interna de um indivíduo se expressar graficamente; é a maneira mais fácil de se expressar, fazendo surgir diferentes valores lineares, resultantes de uma ação gráfica sobre o plano de trabalho; pode ser compreendido como uma linguagem artística que tem por procedimento, traçar linhas ou signos sobre uma superfície através de instrumentos específicos tais como, lápis grafite, carvão, caneta ou pincel com tinta; os suportes mais frequentes são papel, tela ou madeira. A atividade gráfica de uma pessoa é expressa através do desenho, sendo difícil defini-lo seja no plano teórico ou prático. Pode-se dizer que desenho é uma união de sinais, pontos e traços, que com diferente densidade, organizam uma superfície plana, sendo por excelência a expressão artística e humana de uma ação. Conforme Wölfflin, no desenho “...tudo é linha, tudo é delimitado por contornos nítidos, sendo o contorno o elemento principal de expressão” (WÖLFFLIN, 1989, p.40). Sendo assim, a linha é subordinada à forma, e tem uma grande força expressiva; ela é controladora do sentido direcional da composição. A palavra desenho aparece em nossa língua no fim do século XVI, com um significado diverso: desenho - desígnio, intenção. Conforme Edith Derdyk, “Disegno.Desenho.Desígnio” – lugar possível para a composição de diferentes acessos e experiências com e a partir do desenho - projetando percursos inusitados para uma linguagem, tão antiga e tão permanente, em contínua resolução. Tal como o fluxo do rio de Heráclito, nunca se desenha o mesmo desenho, nunca o traço da linha será igual. Em permanente mutação, a natureza do desenho é sempre a mesma e sempre outra! (DERDYK, 2007, p.17) Então, desenhar obedece a um desígnio. Tem uma intenção por trás destaação, que leva o artista a gravar linhas e signos em uma superfície. Este conjunto de marcas, posteriormente, será chamado de desenho. Com relação a isso, Teresa Poester coloca que, O traço é uma incisão sobre o suporte [...] O lápis não toca a superfície [...] ele agride, a desafia. O lápis, seco e pontudo, arranha a superfície. O 15 contato do grafite sólido sobre o papel estabelece uma resistência ao deslocamento do braço e da mão agindo como uma força contrária ao movimento. (POESTER, 2005, p.56) Assim sendo, como podemos observar, o ato de desenhar pode ser entendido como uma técnica utilizada pelo artista para tomar posse da realidade, e fazer uma imagem objetiva; desta forma, a experiência do desenho ajuda o artista a expressar seus conceitos ou imagens que foram desenvolvidas a partir de sua mente; primeiro a ideia e depois o esboço, ou um estudo preparatório para uma pintura, uma escultura ou o próprio desenho como obra acabada. Então este gesto, é a fragilidade de um impulso criativo. 1.1 O DESENHO: ORIGEM NO ESPAÇO E TEMPO Sobre a origem do desenho, pela primeira vez escreveu o escritor romano Plínio, o Velho (Caio Plínio Segundo, 23 d.c – Como, Itália79 d.c -, Stabia, Itália), em seu tratado de “História Natural”. Em um dos capítulos, sobre arte, desenho, pintura e escultura, Plínio escreve sobre a origem do Desenho (fig. 1): ele descreve que Kora, a filha de Butades de Sícion, gravou com carvão vegetal em um muro o contorno da silhueta do amado, antes deste partir para uma viagem de longa duração. Naquele muro ficaram impressas linhas que deram forma a um desígnio e uma intenção que se plasmaram mediante àquele ato. 16 Fig.1 Joachim von Sandrart, gravura, 1675. Ilustração da Lenda de Plínio: A filha do oleiro Butades fixa com um desenho de carvão vegetal a sombra de seu amante na parede. Ao longo dos séculos o desenho passou a ser utilizado de diferentes maneiras. Na Pré-História, um dos mais importantes legados que nos foi deixado, foram linhas traçadas nas paredes das cavernas, a chamada arte rupestre (fig. 2,3). Estes grafismos, alguns abstratos outros figurativos representando pessoas e animais, fixavam o essencial, o que de fato interessava àqueles homens. Não se sabe a verdadeira função destas manifestações, se eram sinais, passatempo ou magia, mas nos forneceram os primeiros meios de comunicação e de significação da humanidade antes mesmo do surgimento da escrita. 17 Fig. 2 Desenhos e pinturas rupestres - Gruta de LascauxFrança. Cerca de 17.000 anos. Fig.3 Desenhos e pinturas rupestres na Toca do Boqueirão da Pedra Furada. Serra da Capivara, PiauíBrasil. Cerca de 50.000 anos. Na antiguidade, como no Egito antigo, o desenho ganha status de sagrado (fig. 4), onde é usado para decorar tumbas e templos. Sua função também já estava 18 inserida na escrita, como nos hieróglifos, que transmitiam ideias e conceitos; desta maneira, este, teve funções bem definidas, como por exemplo na comunicação e decoração. Os Mesopotâmicos, Chineses e povos do continente Americano desenvolveram cada qual um sistema diferente de desenhar, com significados próprios e que caracterizaram cada população. Da mesma forma ocorreu na antiguidade clássica, quando gregos e romanos utilizaram o desenho para representar seus deuses, cenas idílicas e cotidianas. Fig.4 Desenho do ‘Livro dos Mortos’, 1040 a.c945 a.C. Do desenho no período greco-romano, poucos exemplos ou quase nada foram deixados para a posteridade. Na cultura grega, o que mais se aproximava ao desenho eram as pinturas murais e as pinturas em vasos e ânforas. Podemos observar, que a linha ocupa um lugar importante, era pintura, mas muito linear. (fig. 5,6). O pincel tinha uma função quase de lápis, em determinadas pinturas se observam traços e linhas quase como num desenho, como na figura 5. 19 Fig. 5 Pinturaafresco dos túmulos reais macedônios. O Rapto de Perséfone por Plutão. Segunda metade do século IV a.c. VerginaGrécia. 20 Fig. 6 Pintura em vaso grego. Apolo e Artêmis - 470 a. C - LouvreParis. Assim, o desenho na antiguidade, como no período greco-romano, foi o que definiu a forma e evoluiu para um sistema de hachuras a pincel (fig. 5,7), ou no estilo linear do Grotesco (fig. 8), como podemos observar nas pinturas murais encontradas em Roma e Pompéia. 21 Fig. 7 Cena do casamento de Aldobrandine, séc. I a.c. Afresco: 92 x 242 cm (detalhe). Museu do VaticanoRoma. Fig. 8 Pinturaafresco romano – séc. I - Grotesco do 4º estilo, Domus ÁureaRoma. 22 Da mesma forma, que as pinturas rupestres ficaram ‘seladas’ nas cavernas por milhares de anos, e com isso ganhamos com a conservação das mesmas, as pinturas murais da cidade italiana de Pompeia, soterrada pela erupção do vulcão Vesúvio em 79 d.C., igualmente ficaram preservadas. Neste sentido, graças ao trabalho arqueológico das escavações, pode-se descobrir muito das técnicas pictóricas do afresco (pintura feita com a argamassa ainda úmida), e o processo de como era realizado; assim, foi descoberto que existiu na pintura mural um tipo de desenho subjacente, chamado de sinopia, nome derivado da cidade turca de Sinop, no Reino do Ponto, um antigo Estado helenístico, localizado ao norte da península da Anatólia, na atual Turquia. Desta região vinha este pigmento vermelho- amarronzado, semelhante ao ocre, que os pintores realizavam o esboço prévio da pintura para o afresco. (fig. 10) O pintor fiorentino do trecento italiano, Cennino Cennini, em seu “Il libro dell´arte”, escrito entre os séculos XIV e XV, descreve a sinopia da seguinte forma: Il termine sinopia ci è giunto attraverso Plinio (XXXV, 13), che con sinopis identificava uma terra rinvenuta per la prima volta a Sinope, nel Ponto. Siamo nel campo delle ocre rosse, vale dire dei pigmenti che devono il loro colore a ossidi di ferro...è costante nei ricettati antichi e medievali...Oltre al consiglio di usar la sinopia in tavola e in muro...Cennino ne descrive l´uso per abbozzare le figure da eseguire a fresco. (FREZZATO, 2003, p. 267).1 Portanto, a sinopia é uma etapa das técnicas do afresco ou do mosaico, e consiste em desenhar com um pigmento vermelho um esboço preparatório. Uma vez completada esta fase, o desenho vem coberto pelo reboco. (fig. 9,10). 1 Versão do autor para o texto original: O termo sinopia chegou até nós através de Plínio (XXXV, 13), que identificou sinopis como uma terra encontrada pela primeira vez em Sinope, em Ponto. Estamos no campo do ocre vermelho, ou seja, dos pigmentos que devem a sua cor para os óxidos de ferro ... é constante nas preparações antigas e medievais ... Além do conselho de usar a sinopia em tela e na parede ... Cennino nos descreve o uso para desenhar figuras na realização do afresco. 23 Fig. 9 Milão – Basílica de S. Lorenzo - Capela S. Aquilino - Apoteose de Elias. Neste mosaico do século IV d.C., onde caiu parte da estrutura se evidencia a sinopia. Fig. 10 Desenho em sinopia. Ermida de Montesiepi/Itália. Antigo esboço com pintura vermelha sobre parade. A técnica da sinopia, teve um amplo uso até os primeiros anos do século XVI, quando foi substituída gradualmente pelo grafito, desenho obtido pressionando sobre o papel o contorno do esboço preparatório;e pelo pó, desenho feito em papel, em seguida, perfurado ao longo das bordas e polvilhado com pó de carvão de modo a mostrar as linhas pontilhadas do esboço na parede. 24 Na Idade Média, a arte fica subjugada ao mecenato da igreja; com a escassez de materiais e papel, muitos desenhos eram reaproveitados, reutilizados ou jogado fora, assim, chegaram raros esboços até a atualidade (fig. 11). Contudo, o desenho neste período da história aparece como primeira formulação da imagem, são estudos para mosaicos e afrescos sobretudo em igrejas e ganha um significado mais espiritual ligado aos monges copistas com suas iluminuras (fig.12). Esse trabalho era minucioso e extremamente detalhado, exigindo dos artistas muita observação, um olhar acurado, e a mente sempre voltada para questões espirituais. Na verdade, mesmo na Idade Média, o processo de criação artística começava a partir de desenhos preliminares de pequeno formato. Fig. 11 Villard de Honnecourt. Estudo de animais (Urso e cisne), e de uma arquitetura. 1230. Biblioteca NacionalParis. 25 Fig. 12 Manuscrito. 1450. 395 x 300 cm. Girart de Roussillon em Roma. Biblioteca Nacional de Österreichische, Vienna. Com as mudanças ocorridas a partir do século XIV na Europa, no campo das artes, da economia e da política, começa uma nova era de valorização do homem e dos novos paradigmas do pensamento humano. O ato de desenhar torna-se importante instrumento para as novas buscas científicas do mundo. Um dos artistas mais importante do quattrocento italiano, e que abriu as portas do pensamento científico usando a técnica do desenho e da gravura, foi Antonio Pisanello (1395- 1455). Este, conseguiu ampliar o conceito do desenho a uma nova dimensão, observando a natureza com um olhar mais atento atraído pela fauna e flora das 26 paisagens italianas, sendo igualmente considerado como influenciador do método científico de análise de Leonardo da Vinci (1452-1519). Pisanello é considerado um dos maiores desenhistas de sua época, muito desta vastíssima produção estão reunidos no Codice Vallardi, hoje conservado no Gabinete dos Desenhos do Museu do Louvre. Este rico material foi um verdadeiro caderno de esboços onde estão reunidos diversos estudos, cópias e projetos arquitetônicos, na sua maioria de Pisanello; acredita-se que era um livro de modelos usados em ateliers artísticos da época. (fig. 13,14). Fig. 13 Antonio Pisanello, desenhos. Letras árabes e dignitários bizantinos, durante o concílio di Ferrara, 1438. Codice Vallardi. 27 Fig. 14 Pisanello, Estudos de cão. 14141422 aprox. Caneta tinteiro sobre papel. Codice Vallardi. Contudo, é somente no século XV, no Renascimento com o revalorização da cultura clássica greco-romana, que o desenho passa a ocupar um lugar de muita importância no cenário artístico europeu. Os artistas desenhavam muito, visto que as oficinas de arte tinham seus ensinamentos baseados no desenho de observação e na incessante atividade gráfica, que girava em torno de cópias de estampas, estudos dos mestres, e ao final, desenho do real. Somente quando o aprendiz 28 adquiria habilidade com desenho, era permitido pegar nos pincéis e se defrontar com as cores. O desenho era um dos fundamentos mais importante da arte. Este, era considerado, a base para a pintura, a escultura e a arquitetura. Concomitantemente, o seu estudo se desenvolveu através das décadas e através de várias áreas disciplinares, tais como: geometria, perspectiva, anatomia, arquitetura, o estudo da luz, e o estudo das cores. É por isso que para ser artista, desde a idade média, era necessário ser um grande desenhista, no sentido de domínio da forma e representação da realidade. No renascimento nórdico alemão, Albrecht Dürer (Alemanha. 1471- 1528), talvez seja o expoente com uma maior produção gráfica. Dürer, apresenta um desenho mais contundente com a realidade e com uma carga expressiva quase naturalista (fig. 15), em que mostra uma eloquência de significados expressivos e catárticos, típico dos povos do norte da Europa, que enfrentam um clima mais hostil em contraposição ao refrescante e luminoso sol mediterrâneo da Itália. Fig. 15 Albrecht Dürer. Desenho conté (carvão). Retrato da mãe, 1514. 29 No Renascimento o desenho adquire autonomia, ganha perspectivas e passa a retratar mais fielmente a realidade ao contrário do que ocorria, nas ilustrações da Idade Média, quando a falta de profundidade criava cenários completamente impossíveis. Surge também um conhecimento mais aprofundado da anatomia humana e os desenhos ganham em expressão e realidade. Mestres da pintura na época eram também exímios desenhistas que usavam os conhecimentos da anatomia para dar mais realidade as imagens através do uso de sombras, proporções, luz e cores. O desenho se torna traçado, risco, mediador para expressão de uma ideia a realizar, é a permanência do instante criador. (fig. 16,17, 18). Fig. 16 Leonardo da Vinci. Itália, Vinci. 1452-1519. Estudo para a "Última Ceia". 26x29 cm. Sanguínea sobre papel. 1495-7. Galleria dell´accademiaVeneza 30 Fig. 17 Leonardo da Vinci (1452-1519) – Estudo de Mãos Femininas, c. 1476. Desenho, ponta de prata sobre papel preparado, 21,4 x 15 cm. Castelo de Windsor, Inglaterra. Fig. 18 Michelangelo Buonarroti. Itália, Caprese. 1475-1564. Desenho, conté (carvão) sobre muro. 1529. Basílica de San LorenzoFlorença, Itália. 31 Entretanto, estes desenhos eram somente testemunhos das buscas desses artistas e artesãos, e se constituíam numa etapa para uma ideia posterior. O desenho era ainda considerado um estudo para uma pintura ou para uma escultura, e posteriormente, depois que estes tomaram valor com o tempo, foi possível observar que estes ‘estudos’ eram de uma expressividade as vezes superior do que a própria obra acabada. (fig. 19, 20). Fig. 19 Fig. 20 Fig. 19. Michelangelo Buonarroti. Itália, Caprese. 1475-1564. Sibila Líbica. Afresco. 1511-12. 395x380 cm. Capela Sistina. Museu do VaticanoRoma. Fig. 20. Michelangelo. Estudos para Sibila Líbica. Sanguínea sobre papel. 1510-11. 28.9x21.4cm. The Metropolitan Museum of ArtNew York. No período compreendido entre Renascimento e Barroco, houve a primeira ruptura do estilo linear (fig. 21), para o estilo pictórico (fig. 22), que pensava em termos de massa. Depois de compreendida e dominada a representação da natureza, foi natural o surgimento de uma nova forma de expressão. O Barroco por sua vez, foi responsável pela dissolução das formas conquistadas no Renascimento, sobre esta transformação complementa Sánchez, “[...] il valore della linea in se stessa va diminuendo, cedendo il posto all’interesse per la macchia di luce e per il volume [...]”.2 (1970, p.9). O estilo linear no Renascimento desenvolveu valores 2 Versão do autor para o texto original: O valor da linha em si mesma vai diminuindo, cedendo lugar ao interesse pela mancha de luz e pelo volume. 32 próprios, que desapareceram depois com o estilo pictórico do Barroco. Segundo Wölfflin (1996), o estilo linear vê em linhas, o pictórico em massas; e, ver de forma linear significa procurar o sentido e a beleza do objeto primeiramente no contorno, ou seja, na linha. Fig. 21 Fig. 22 Fig. 21.Sandro Botticelli. Itália, Florença. 1445-1510. O Nascimento de Vênus. Têmpera sobre tela. 172.5x278.5 cm. 1483. Galleria degli Uffizi. FlorençaItalia. Fig. 22. Michelangelo Merisi da Caravaggio. Itália, Milão. 1571-1610. A Ceia em Emaús. Óleo sobre tela. 139x195cm. Galeria Nacional de Londres. Antes, a figura era delimitada e contrastava com seu fundo (fig. 21); depois, as massas se ‘perdem’ num fundo quase sempre escuro, e os limites da figura se fundem com esta obscuridade, assim, a linha e o plano transformam-se em massa e espaço respectivamente (fig. 22). De acordo com a concepção neoplatônica do cinquecento italiano, o desenho supera o perceptível e reproduz a beleza da natureza, sendo elemento determinante e mediador da harmonia. O desenho é reflexo imediato da inspiração, aquilo que é plasmado de uma ideia, e alcança seu valor máximo com o esboço. Lichtensten observa que O desenho é sempre definido como uma representação abstrata, uma forma de natureza espiritual cuja origem reside unicamente no pensamento; a marca de uma atividade intelectual que prova, aos olhos de quem condena a pintura, que esta obedece sempre à ordem de um ‘desígnio’, isto é, de um projeto. Seja qual for a época, questionar a supremacia do desenho é atacar as condições intelectuais que fundamentam a inteligibilidade da representação pictórica e, portanto, arruinar qualquer possibilidade de vinculá-la ao universo do discurso. (LICHTENSTEN, 1989, p.151) 33 Já no barroco, com a dissolução das formas e consequentemente da linha, o desenho se torna mais emoção e menos razão como toda a cultura suntuosa e ornamentada da época. Produziu artistas como Caravaggio, Rembrandt, Rubens e Velázquez, que deixaram um indelével legado de obras para a posteridade. Desenvolveram e trabalharam as descobertas anteriores, e o elemento comum das variações rítmicas da linha, era a sensibilidade e o domínio absoluto da luz para obter o máximo de impacto expressivo e emocional. O período do barroco começou em Roma quando os papas se dispuseram a financiar magníficas catedrais e grandes trabalhos de artistas importantes do período como o italiano, Caravaggio. Este mecenato tinha o propósito de manifestar o triunfo da fé católica depois da Contrarreforma, e para atrair novos fiéis com a dramaticidade das obras de arquitetura. Entretanto, de Michelangelo Merisi da Caravaggio (Milão, Itália. 1571-1610) e Diego Velázquez (Sevilha, Espanha. 1599- 1660), não ficaram registros de desenhos, por outro lado, Peter Paul Rubens (Siegen, Alemanha. 1577-1640) e Rembrandt Harmenszoon van Rijn (Leida, Holanda. 1606-1669), tiveram uma vasta produção gráfica de desenhos e gravuras. (fig. 23,24). Fig. 23 Rembrandt, Elefante, 1637. 34 Fig. 24 Peter Paul Rubens, conté preto e sanguínea. Retrato do filho Nicola, 1620. Museu Albertina, Viena. Nos períodos compreendidos entre o século XVII e o século XVIII, com a criação das academias a maneira francesa, o ensinamento sistemático das técnicas gráficas e a sua concepção do desenho são modificados. Estes, muitas vezes, já vem realizado com uma finalidade fechada, como uma obra completa e válida em si mesma. É neste século, que a criação gráfica é mais valorizada e a linha fica mais autônoma; é frequente achar belíssimos desenhos inspirados na cultura clássica e muitas vezes, na cópia de pinturas renascentistas, sobretudo de Rafael. Geralmente, a figura vem em primeiro plano sem profundidade, as linhas são suaves e enfatizavam o desenho; já a linha tinha um apelo para o intelecto, ao invés da cor, que explorava os sentidos. O Desenho era construído com formas claras e exatas da beleza idealizada. Dois artistas que representam a virada do século XVIII para o XIX, são os pintores e desenhistas franceses, Jean Auguste Dominique Ingres (Montauban, França. 1780-1867), e Eugène Delacroix (Saint-Maurice. França. 1798- 1863). (fig. 25, 26). 35 Fig. 25 Jean Auguste Dominique Ingres. Estudo para ‘A Grande Odalisca’, 1814. Grafite, 18.5 x 25.4 cm. Galeria Courtauld, Londres. Fig. 26 Eugéne Delacroix (1798-1863), Estudo para ‘Liberdade Guiando o Povo’. Grafite e conté branco sobre papel. Réunion des Musées Nationaux/Art Resource, NY. 36 Após a dissolução da forma pelos impressionistas, artistas como Paul Cézanne (Provença, França. 1839-1906), Claude Monet (Paris, França. 1840-1926), Paul Gauguin (Paris, França. 1848-1903) e Vincent Van Gogh (Groot Zundert, Holanda. 1853-1890), procuraram “uma síntese na qual a estrutura do desenho organiza o plano da cor, como a passagem do valor, necessária, através da realidade tonal.” (RUDEL, 1980, p. 36). (fig. 27, 28). Fig. 27 Fig. 28 Fig. 27. Vincent Van Gogh (1853-1890), Rua em Saintes-Maries. Arles, 1888. Desenho a caneta, 24,5 x 31,8 cm. The Museum of Modern Art. Nova Yorque. Fig. 28. Vincent Van Gogh. Dois autorretratos - outono de 1886, Paris - Lápis e caneta com tinta sobre papel - 31,6 x 24,1 cm. Rijksmuseum Vincent van Gogh, Amsterdam. A importância do desenho para Vincent Van Gogh, geralmente obscurecidos pela fama de suas pinturas, era evidente pela quantidade que trabalhou com essa técnica; muitos desenhos de Van Gogh permanecem desconhecidos, embora eles estejam entre suas criações mais expressivas e marcantes. Em grande parte autodidata, Van Gogh acreditava que o desenho era a base de tudo. Suas razões para desenhar eram inúmeras. No início de sua carreira, ele sentiu a necessidade de dominar o preto e branco antes de tentar trabalhar em cores. Assim, desenhos formaram uma parte inseparável de seu desenvolvimento como pintor. Houve períodos em que ele 37 preferia não fazer nada, além de desenhar. Às vezes, era uma questão de economia: os materiais que precisava para criar seus desenhos - papel e tinta comprados em lojas próximas e canetas que ele mesmo cortava com um canivete, enquanto que as tintas e telas caras tinham que ser encomendadas e enviadas de Paris. Quando os violentos ventos Mistral tornaram impossível para ele montar um cavalete, ele descobriu que podia desenhar em folhas de papel pregado com segurança a uma tábua. Van Gogh usou desenho para praticar temas interessantes ou capturar uma impressão no local antes de se aventurar na tela e preparar uma composição. No entanto, na maioria das vezes, ele inverteu o processo, fazendo desenhos depois de suas pinturas para dar a seu irmão e seus amigos uma ideia de seu mais recente trabalho. Van Gogh produziu a maioria de seus maiores desenhos e aquarelas durante os pouco mais de dois anos que passou trabalhando na Provence. Quando desenhavam, os impressionistas tinham uma necessidade de um retorno ao essencial e à expressão elementar da linha. Foi nesta época que os artistas deixaram seus estúdios e partiram em busca da luz natural, desta forma, pintar e desenhar a plein air se tornou um hábito entre os pintores, e estes esboços foram rápidos registros e captavam o indispensável. Os impressionistas, buscavam a captura de um momento espontâneo, se utilizando de pinceladas rápidas e estudando a influência da luz sobre as cores. Van Gogh, foi um dos representantes deste período que teve uma maior produção gráfica de desenhos, e era visto constantemente pintando ou desenhando nos campos aos arredores de Arles, no sul da França. Já na arte moderna, período que compreende o fim do século XIX e metadedo século XX, o desenho começa por adquirir uma independência enquanto procedimento artístico; o surgimento da fotografia também contribui para uma reflexão sobre o modo de pensar a arte, enquanto pura cópia do real. Com a fotografia substituindo a representação do visível na pintura, cabe aos artistas repensarem os propósitos da arte. No modernismo, os artistas queriam romper com 38 o passado e buscavam novas formas de expressão, já que, tinham alcançado uma liberdade poética e formal conquistadas nos ismos do início do século passado. Assim sendo, o Surrealismo, com os desenhos de René Magritte (Lessines, Bélgica. 1898-1967) e Salvador Dalí (Figueres, Espanha. 1904-1989), o Dadaísmo, o Expressionismo Abstrato e o Cubismo com os desenhos de Pablo Picasso (MálagaEspanha-1881-1973), manifestavam a necessidade de um tipo novo de organização, no qual a mancha, o ponto e a linha tomavam um lugar e uma grandeza novos. Desta forma, o desenho se torna puro gesto, e a expressão primordial do artista se transforma cada vez mais até sua plena valorização. (fig. 29,30,31, 32). Fig. 29 René Magritte, Sem título. Cachimbo, 1944. Desenho, lápis sobre papel. 39 Fig. 30 Salvador Dalí. Desenho, lápis e tinta sobre papel. 55.8x43.2 cm. 1952. Birmingham Museum of Art, Alabama, USA. Fig. 31 Pablo Picasso (1881-1973). Homem com pirulito. Desenho grafite s papel – 1938. 30,8X23,2 cm Metropolitan Museum – Nova York. 40 Fig. 32 Pablo Picasso (1881-1973). Françoise Gillot. Desenho, conté sobre papel. 1946. 1.2 O DESENHO E SUAS POSSIBILIDADES NA ARTE CONTEMPORÂNEA A arte sofreu diversas mudanças de paradigmas no decorrer dos séculos, transformando-se de acordo com as mudanças sociais e culturais de cada época. Na contemporaneidade se dá a confirmação do desenho como linguagem autônoma; a mimesis é sobrepujada pela representação mais espontânea da realidade; a arte abstrata e a arte conceitual, vão tomar a frente como formas de expressão na atualidade. Por outro lado, conforme Cauquelin, [...] a mimesis não é cópia de um modelo, pálido decalque da ideia, afastada na verdade em muitos graus, como era o caso para Platão [...] produz do mesmo modo como a natureza produz, com meios análogos, com vista a dar existência a um objeto ou a um ser; a diferença se deve ao fato de que esse objeto será um artefato, que esse ser será um ser de ficção. (CAUQUELIN, 2005, p. 61). 41 Com a consolidação da Arte Contemporânea, a partir dos anos 50 e 60, a Pop Art e a Arte Conceitual seriam as mais novas formas de manifestações artísticas. Essas novas tendências, na maioria das vezes, valorizam mais a intenção do artista do que um produto final; desta maneira, o desenho passa a ter uma maior especificidade em relação a sua etapa de criação artística, se constituindo em mais um procedimento possível de ser adotado pelos artistas, como forma de ter a obra acabada, mesmo que esta, seja um desenho inacabado. Então, a arte contemporânea resgata a importância do desenho enquanto procedimento artístico, este, já não é somente um estudo, um esboço para uma pintura ou escultura, mas passa ser também o produto final do artista. Contudo, o contemporâneo na arte já era prenunciado no princípio do século XX, a arte conceitual dava seus primeiros passos com o artista francês, Marcel Duchamp (Blainville-Crevon, França. 1887 – 1968), ao propor vários exemplares de trabalhos, como os Ready-made, que se tornariam modelos para os artistas conceituais na contemporaneidade. O termo ready-made, foi criado por Marcel Duchamp para indicar um tipo de objeto, de uso cotidiano e industrial, que podia ser produzido em massa, selecionado sem critérios estéticos e expostos como obras de arte em espaços legitimados como museus e galerias. Esse paradoxo, eleva os objetos à categoria de obra de arte, uma vez que se trata de uma apropriação de algo que já está feito, escolhendo como alvo, produtos industrializados, realizados com finalidade prática e não artística, como por exemplo o urinol de louça e a roda de bicicleta com banqueta. (fig. 33,34). 42 Fig. 33 Fig. 34 Fig. 33. Marcel Duchamp. Roda de Bicicleta. 1913 Fig. 34. Marcel Duchamp. A Fonte. 1917. Sobre ‘O Grande Vidro’ (fig. 35), obra de Duchamp, Edith Derdyk diz que: Trata-se de uma apologia ao caráter mental e “seco” da arte como ideia. Como projeto, o desenho, assim como a linguagem (escritura), é índice de uma obra ausente e ocupa um lugar híbrido, intermediário entre a obra de arte e sua documentação. (DERDYK, 2007, p.141). 43 Fig. 35 Marcel Duchamp. O Grande Vidro. 191523. Museu de Arte Filadelfia, EUA. Com a obra "O grande vidro", o desenho extrapola os limites do suporte e da expressão gráfica, alcançando patamares de obra finita e autônoma. Nesse trabalho, Duchamp utiliza tinta a óleo sobre placas de vidro, deixando transparecer formas ‘desenhadas’ no vidro que junto com a simetria das rachaduras sofridas em um acidente de transporte, compõe e finaliza a obra, já que, o próprio Duchamp achou que o destino, tinha por fim, terminado a sua obra. Nos anos 60, a Pop Art aparece como a grande tendência artística do momento. Artistas como o norte americano Andy Warhol (Pensilvânia, EUA. 1928- 1987) se destacou no cenário das artes como sendo o artista de maior relevância do período. Com raízes no dadaísmo de Marcel Duchamp, a pop arte começou a tomar forma no final da década de 1950, quando alguns artistas, após estudar os símbolos e produtos do mundo da propaganda, passaram a transformá-los em tema de suas obras. Era a volta a uma arte figurativa, em oposição ao expressionismo abstrato que dominava a cena estética desde o final da segunda guerra. 44 A iconografia da pop arte era, a televisão, a fotografia, os quadrinhos, o cinema e a publicidade. A defesa do popular traduz uma atitude artística adversa ao hermetismo da arte moderna, com o objetivo de criticar e bombardear a sociedade capitalista pelos objetos de consumo da época, ela operava com signos estéticos de cores inusitadas massificados pela publicidade e pelo consumo. (fig. 36). O período da pop arte foi de intensa produção gráfica, já que, os artistas tinham no desenho um rápido e dinâmico procedimento para plasmar suas ideias acerca do mundo consumista que os rodeava. (fig. 37,38). Fig. 36 Andy Warhol. Latas de Sopa Campbell. Serigrafia sobre tela. 50,8x40,6 cm. 1962. Museu de Arte Moderna, Nova Yorque. Fig. 37 Fig. 38 Fig. 37. Andy Warhol. Garota pensativa com a mão na cabeça. Desenho sobre papel, 1951. The Andy Warhol Foundation for the Visual Arts, NY. Fig. 38. Andy Warhol. Face repetida oito vezes, 1958. Desenho sobre papel, 1951. The Andy Warhol Foundation for the Visual Arts, NY. 45 Após os anos 60, a arte contemporânea passa a não ser mais construída com o novo e o original, como ocorria no Modernismo e nos movimentos vanguardistas. A contemporaneidade se caracteriza, principalmente, pela liberdade de atuação do artista, que não tem mais compromissos institucionais, não tem mais o limite, e assim pode exercer seu trabalho, sem se preocupar em imprimir nas suas obras um determinado cunho religioso ou político. Os artistas passam a questionar a própria linguagem artística, e a arte passa a se desenvolver igualmente nas ruas, influenciada pelo grafit, fora de galerias e museus,tentando uma aproximação com um público que talvez, infelizmente, não tenha a ‘cultura’ de visitar esses espaços legitimados, mesmo que esses tenham entrada franca. É na esteira das intensas transformações vigentes, neste período, que a arte contemporânea se consolida. Da mesma forma, pode-se dizer que desenho não é mais visto como uma simples relação bidimensional entre lápis e papel, mas sim, algo de natureza mental, que pode percorrer o espaço, até mesmo tridimensionalmente, rompendo os limites da representação pura. O desenho pode assumir várias formas, assim como pode adotar vários suportes. Mesmo que não esteja configurado na contemporaneidade, e mostrando o artista atemporal que foi Duchamp, a instalação ‘16 Milhas de Fios’, (fig. 39), de 1942, criada para a abertura de uma exposição em Nova York sobre arte surrealista, é um exemplo claro desta passagem do desenho, do bidimensional para o tridimensional. Nessa obra o artista utiliza 1.610 metros de fio contínuo entrelaçados entre as obras expostas, interferindo no espaço da galeria, formando uma espécie de desenho com as linhas. Esta intervenção realizada por Duchamp tinha como objetivo ressaltar a força da linha (fio) de avançar sobre e tomar o espaço, dividindo- o e guiando o espectador. O espaço da galeria também determina o caminho percorrido pela linha. Mais uma vez esse artista estava à frente de sua época. 46 Fig. 39 Marcel Duchamp. 16 milhas de fios, 1942. Instalação. O artista agora aceita a efemeridade da obra; ela é algo perecível, assim como o próprio artista. A instalação enquanto linguagem pode apresentar esse caráter não duradouro, pois a mesma é uma construção que depende do espaço para existir. Nesta mesma linha de pensamento, os artistas Christo (Gabrovo, Bulgária. 1935) e Jeanne-Claude (Casablanca, Marrocos. 19352009), tinham como ponto de partida, a fragilidade e efemeridade da obra de arte. O casal ficou conhecido pelas instalações de arte ambiental, no qual, ‘embrulhavam’ monumentos ou paisagens para ressignificá-los e elevá-los à condição de arte. No entanto, segundo os artistas, não é a questão do embrulho que é importante nas suas obras, mas sim, que realmente traduzem o caráter temporário de uma obra de arte. Podemos observar essas características no trabalho Valley Curtain, instalado entre duas montanhas no Colorado em 1972 (fig. 40). Nota-se nos desenhos de Christo, que ele tem o domínio da forma e detém os códigos necessários para fazer um projeto, um estudo ou um desenho representando a sua verdadeira intenção, concretizando e materializando as ideias para as instalações propriamente ditas. (fig. 41, 42). 47 Fig. 40 Christo e Jeanne-Claude. Desenhoestudo para a instalação, Valley Curtain, Fig. 41 Christo e Jeanne-Claude. Desenhosestudos para a instalação, Valley Curtain, 48 Fig. 42 Christo e Jeanne-Claude. Valley Curtain, Instalação entre duas montanhas no Colorado. 1972. Assim, pode-se compreender o desenho como uma primeira manifestação do pensamento, uma tentativa de externá-lo, de forma visual. Através do ato de desenhar se é capaz de expressar, de maneira ágil e totalmente particular, ideias com as mais diversas finalidades, seja uma simples inquietação ou um projeto, ou mesmo uma explicação que não cabe no âmbito da linguagem verbal. Dentro deste entendimento percebe-se também a natureza efêmera do desenho, que acompanha a rapidez do pensamento e responde às urgências expressivas do mundo contemporâneo. Interessante observar o que Teresa Poester diz sobre o artista contemporâneo: O artista contemporâneo conta com uma abundância crescente de meios de expressão e suas escolhas se tornam o próprio conteúdo de seu trabalho. 49 Sua filosofia se revela na forma de expressão escolhida e na maneira como esta se inscreve no sistema de arte. Pintar ou desenhar, hoje, representa uma tomada de posição, uma atitude a ser sustentada. (POESTER, 2005, p.53) Neste sentido, as diversas linguagens da arte atual criam novos códigos de expressão, onde o desenho se manifesta através de representações, se materializando mediante diferentes materiais e suportes; o desenho, agora pode ser representado por uma linha no espaço tridimensional, não necessitando mais estar configurado em um plano bidimensional, como uma folha de papel. Nas práticas artísticas atuais, se observa também que a linguagem do desenho surge aliada a outras técnicas como a pintura, a colagem e a fotografia. Neste sentido, desenhar agora surge também como processo criativo nos procedimentos de releitura, citação e apropriação de imagens. Nesta mesma esteira pós-moderna, e procurando estabelecer uma relação dialógica com o tema, proponho no meu trabalho uma analogia com o desenho e os processos intertextuais. Na minha pesquisa, busco interagir com a história da arte, trabalhando com os procedimentos de citação e apropriação, ressignificando e contextualizando, imagens de períodos artísticos específicos que considero importante para minha pesquisa. (fig. 43, 44, 45). 50 Fig. 43 Hô Monteiro. Desenho e pintura sobre tela. 2010. Madonna col Gesù. 100X140 Pinacoteca Aldo Locatelli e Ruben Berta. Porto Alegre. 51 Fig. 44 Fig. 45 Fig. 44. Hô Monteiro. Padre perdona loro perchè non sanno quello che fanno. 2003. Desenho, grafite e pintura sobre tela. 100x170. Coleção particular, Bergamo, Itália. Fig. 45. Hô Monteiro. La Vittoria-Parte I. 2010. Desenho, carvão e pintura sobre tela. 60x130. Coleção particular, Porto alegre, Brasil. Assim, na arte contemporânea, onde ‘tudo’ é permitido, onde a intenção do artista tem, muitas vezes, maior valor do que o objeto artístico, o desenho adquire o status de obra de arte; esta autonomia é confirmada através da produção atual de certos artistas contemporâneos, que permitem assim, uma maior abrangência, e buscam infinitas possibilidades enquanto procedimento e expressões artísticas. Então, desenhar corresponde a um ato que pode ser entendido, como um processo ou como um fim em si mesmo. 52 1.3 O DESENHO E O ENSINO DA ARTE NO BRASIL O desenho é a primeira representação gráfica utilizada pelo ser humano. Desde a pré-história, o homem desenha e se expressa através de signos e símbolos, como podemos ver na arte rupestre que nos foi legada. Observamos em toda a história da arte, momentos alternados em que a importância do desenho foi mais acentuada no desenrolar histórico-artístico. Na contemporaneidade, o desenho readquire sua importância enquanto procedimento autônomo. As primeiras expressões gráficas de uma criança quando pega um lápis ou uma caneta, nada mais são que expressivas linhas ou grafismos plasmados em um plano qualquer. A linguagem do desenho é parte inerente da formação de qualquer indivíduo e em qualquer período histórico. Desta maneira, entende-se que o ato de desenhar possa contribuir no processo de ensino e aprendizagem do ser humano, estimulando a criatividade e o pensamento, podendo ser uma ferramenta importante e um motivador na construção do conhecimento. Desenhar, é representar, é colocar forma e sentido aos nossos pensamentos. O desenho é um instrumento essencial do processo de desenvolvimento do aluno, faz parte do desenvolvimento e do crescimento do ser humano, auxilia no processo cognitivo e levaao raciocínio criativo e intuitivo. Entretanto, a história do ensino da arte e do desenho no Brasil, está deliberadamente marcada pela dependência cultural em relação ao continente europeu; e já no período colonial estava ligado a tutela dos Jesuítas, que por sua vez eram europeus. Trazido de Portugal, o Barroco sofre uma ‘releitura’ tropical, na qual, seu conceito é reelaborado deixando como legado um barroco mais colonial. Os artistas e artesãos brasileiros, criaram um barroco com distinções formais em relação ao barroco europeu. Desta forma, temos no Barroco o primeiro produto cultural brasileiro de origem erudita. O ensino da arte barroca, tinha lugar nas oficinas através do fazer sob a orientação do mestre. Estas oficinas eram a única educação artística popular na época. 53 A Aula Régia de Desenho e Figura, foi a primeira instituição de ensino de Artes Plásticas a ser instituída no Brasil, já no final do período colonial. Instalada no Rio de Janeiro, em novembro de 1800, foi nomeado para dirigi-la, Manuel Dias de Oliveira, um pintor brasileiro com formação europeia. Esteticamente, destacou-se por romper com a cópia de modelos pré-estabelecidos, até então praticada, instaurando a cópia com modelo vivo. A primeira institucionalização do ensino de arte nas escolas no Brasil, foi com a chegada da Missão Francesa em 1816, trazendo consigo o modelo neoclássico em voga na Europa. Foi também com D. João VI a criação da Academia Imperial de Belas Artes, que após a proclamação da República se transforma na Escola Nacional de Belas Artes. Os conteúdos aprendidos eram o retrato, a cópia e o desenho de partes do corpo e objetos como bustos de gesso. Posteriormente, em 1856 foi criado o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, com o objetivo de difundir o ensino das belas-artes aplicadas aos ofícios e indústrias. Este é um período histórico de grandes mudanças culturais, econômicas e industriais. Desta maneira, o ensino de arte tinha um papel de formação de mão de obra especializada, e o conteúdo abordado era matemática aplicada, desenho geométrico e escultura de ornatos. O Decreto nº. 981, de 8 de novembro de 1890 aprovou o Regulamento da Instrução Primária e Secundária do Distrito Federal, no qual, o ensino das escolas primárias de 1º grau abrangia três cursos: Desenho, Elementos de Música, Trabalhos Manuais e Trabalhos de Agulha, sendo estes para os meninos e meninas, respectivamente. No mesmo Decreto nº. 981, também deixava explícito que do primeiro ao quinto ano haveria duas horas de aula tanto para Desenho quanto para Música, e no sexto ano, apenas uma hora para Desenho, assim como, determinava os conteúdos a serem desenvolvidos em cada disciplina. Entre os conteúdos para Desenho destacavam-se: linhas retas e suas combinações, princípios de desenho de ornato, circunferências, polígonos, rosáceas estreladas, curvas tiradas do reino vegetal, caules, folhas, flores, elementos de perspectiva, desenho de figura, desenho de máquinas simples e desenho de paisagem. 54 Devemos também à figura ilustre do político, diplomata e filósofo Ruy Barbosa (1849-1923), o incentivo em prol do ensino do desenho no sistema educacional brasileiro. Em seu discurso de 23 de novembro de 1882, num sarau artístico, no liceu de artes e ofícios, no Rio de Janeiro, enaltecia o desenho e seu ensino. Apresentou avanços e deixou claro que se o ensino não valorizasse a disciplina de desenho, deixaria de acompanhar o desenvolvimento industrial daquele final de século. Em outros países, como Inglaterra, França e Alemanha a obrigatoriedade do ensino do desenho já era uma realidade nas escolas populares. Segundo Ruy Barbosa, o ponto de partida para promover a expansão da indústria nacional, seria incluir o ensino do desenho em todas as camadas da educação popular, desde a escola até os liceus. Até o início do século XX, o ensino do desenho é visto como uma preparação para o trabalho em fábricas e serviços artesanais. São valorizados o traço, a repetição de modelos e o desenho geométrico. Mesmo com as ebulições culturais das manifestações da Semana de Arte Moderna, o ensino segue as tendências da escola tradicional, que defende a necessidade de copiar modelos para treinar habilidades manuais. A disciplina Desenho, apresentada sob a forma de Desenho Geométrico, Desenho do Natural e Desenho Pedagógico, evidenciava a busca e a predominância de reprodução naturalista e figurativa das formas. Por outro lado, é também com a Semana de Arte Moderna, que temos a valorização das correntes artísticas expressionistas, futuristas e dadaístas; estas, valorizavam a estética da arte mais primitiva, ingênua e infantil. Assim, começam a surgir novos métodos no ensino da arte como a valorização da expressão e espontaneidade da criança. Nesta mesma esteira da livre expressão, foi criada em 1930 a Escola Brasileira de Arte de São Paulo. Conforme Ana Mae Barbosa, foi a ...primeira escola de arte para crianças numa rede pública de ensino no Brasil. Naquela época, os ricos ainda não haviam nomeado sua filantropia de “terceiro setor do poder”, mas já financiavam a arteeducação, que também não tinha esse nome. O resto era muito semelhante: os professores se esforçavam, e quem aparecia era o patrocinador. Tarsila do Amaral chegou a dizer que a iniciativa da escola foi de Isabel von Ihering, 55 quando foi um projeto e um sonho acalentado por doze anos pela professora Sebastiana Teixeira de Carvalho, que conhecia o que havia de melhor em educação da época, de Claparède a John Dewey. Sua filha, Susana Rodrigues, fundou o primeiro ateliê para crianças em um museu brasileiro, no Masp, em março de 1948. E seu genro, Augusto Rodrigues, foi quem criou, também em agosto de 1948, em parceria com a artista educadora americana Margaret Spencer, a Escolinha de Arte do Brasil, célula inicial do movimento de escolinhas de arte, que considero a primeira institucionalização do ensino modernista de arte em nosso país. (BARBOSA, apud Ações Singulares, p.20) É de extrema importância saber que a oitenta e quatro anos atrás, uma escola de arte funcionou na rede pública de ensino. Era coordenada por profissionais de alta qualidade e tinha como foco o ensino do desenho. Ainda segundo Ana Mae, Algumas notícias falam em ensino de pintura, mas a escola se destinava mesmo ao ensino da escultura e do desenho, no amplo sentido desse termo, englobando desenho artístico, desenho decorativo e desenho industrial, especialmente as “artes gráficas”, que era um dos pontos altos da escola. Sua estrutura pedagógica correspondia à da “art and design education” da qual falavam os ingleses, propagada durante a Primeira República, e às escolas de artes decorativas dos franceses...Considero a Escola Brasileira de Arte uma escola pré-moderna, pois apesar de Sebastiana valorizar nas crianças a “maneira individual de expressarem a forma por que compreendiam o mundo exterior”, era àqueles considerados “talentosos” pelos testes de aptidão para ingresso que a escola era destinada. (BARBOSA, apud Ações Singulares, p. 20,21) Desta forma, o movimento modernista valorizou a expressão pessoal, fez crer que todos eram capazes de se expressar através da arte, e que a sua práxis, era importante para desenvolver a criatividade de todos os seres humanos. Na mesma época, surgindo na década de 1930, a Escola Nova, foi um movimento de renovação do ensino que surgiu primeiramente na Europa no século XIX e tomou força no Brasil a partir do início do século XX. O expoente máximo da Escola Progressista (Escola Nova) foi John Dewey (1859, Vermont, EUA –1952. Filósofo e pedagogo norte-americano); a pedagogia usada no movimento estava centrada no aluno, e as aulas de artes eram direcionadas a um trabalho de livre expressão, buscando a espontaneidade e valorizando o crescimento do aluno. Os anos 50 e 60, ainda influenciados pela tendência escolanovista, as experimentações 56 marcam a sociedade e influenciam o ensino de Arte nas escolas de todo o país. É a época da tendência da livre e auto expressão se expandir pelas redes de ensino. Logo depois, Viktor Lowenfeld (Linz, Áustria. 19031960), professor de arte educação do estado da Pensilvânia, EUA, publica em 1947 o livro Creative and Mental Growth. Este, foi o livro mais influente na arte educação durante a última metade do século XX. Este livro descreve as características das produções artísticas das crianças em cada faixa etária, portanto, conforme Lowenfeld o desenvolvimento gráfico infantil se divide em 06 etapas principais: Fase das Garatujas, Fase Pré- esquemática, Fase Esquemática, Fase do Realismo, Fase Pseudonaturalista, Período de Decisão. Muitos trabalharam com o conceito de que o desenho era uma questão de livre expressão. Após este período, o Desenho fica entre o fazer fortuito e o desenho técnico. Esse conceito tinha como objetivo fundamental facilitar o desenvolvimento criador da criança, entretanto, como resultado, desencadeou-se uma descaracterização progressiva da área. Conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais, [...] “Esses e muitos outros lemas foram aplicados mecanicamente nas escolas, gerando deformações e simplificações na ideia original, o que redundou na banalização do “deixar fazer” — ou seja, deixar o aluno fazer arte, sem nenhum tipo de intervenção”. (PCN-ARTE, 1997, p. 22) No início da década 60, foi aprovada a Lei nº. 4.024, de 20 de dezembro de 1961, no governo de João Goulart, que fixou as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Nessa lei, educadores lançaram as bases para uma nova mudança de foco dentro do ensino de Arte, questionando basicamente a ideia do desenvolvimento espontâneo da livre expressão artística e procurando definir a contribuição específica da arte para a educação do ser humano. Na nova lei de 1961, no seu Art. 26, Parágrafo único, determinava que os sistemas de ensino poderão estender a sua duração até seis anos, ampliando, nos dois últimos, os conhecimentos do aluno e iniciando-o em técnicas de artes aplicadas, adequadas ao sexo e à idade, e mais, no Art. 38, item IV, a organização do ensino de grau médio deveria observar as normas e incluir atividades complementares de iniciação artística. 57 A brusca interrupção da democracia, com o golpe militar de 1964, causou indeléveis marcas no cenário cultural e, como não poderia deixar de ser, na educação brasileira. Os avanços até então conquistados são deixados de lado, e é introduzido no ensino o que ficou conhecido como a tendência pedagógica liberal tecnicista. Essa corrente pedagógica desenvolveu-se a partir da década de 1950 nos Estados Unidos, e tinha como principal objetivo a formação de pessoas para a intensa industrialização daquele país; assim, o ensino passa a favorecer a formação de técnicos, que possam ser úteis à produção. Outra colaboração que podemos destacar nesse período militar foram as ideias e conceitos desenvolvidos pelo pedagogo e filósofo brasileiro, Paulo Freire (1921-1997). Seu trabalho repercutiu politicamente pelo seu método revolucionário de alfabetização de adultos, voltado para o diálogo educador-educando e almejando à consciência crítica, inspirando os movimentos populares e a educação formal. Atualmente é denominada de pedagogia libertadora, e propõe uma educação crítica a serviço da transformação social. Após dez anos da aprovação da lei anterior de 1961, foi aprovada a Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971, no governo de Emílio G. Médici. Segundo esta nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a Educação Artística que inclui artes plásticas, educação musical e artes cênicas, passa a fazer parte do currículo escolar do Ensino Fundamental e Médio, todavia, ainda era considerada “atividade educativa” e não disciplinar. O ensino e aprendizagem ainda centram na prática da cópia e no fazer expressivo dos alunos. Em 1973, criaram-se os primeiros cursos de licenciatura em Arte, com dois anos de duração e voltados à formação de professores capazes de lecionar música, teatro, artes visuais, desenho, dança e desenho geométrico. Igualmente nessa década de 70, Feldman, Thomas Munro e Elliot Eisner, apoiados em John Dewey, foram responsáveis pela mudança de rumo do ensino de arte nos Estados Unidos, e afirmavam que o desenvolvimento artístico é resultado de formas complexas de aprendizagem e que, portanto, não ocorre automaticamente à medida que a criança cresce; é tarefa do professor propiciar 58 essa aprendizagem por meio da instrução. Segundo esses autores, as habilidades artísticas se desenvolvem pelas questões que se apresentam ao aluno no decorrer de suas experiências de buscar meios para transformar ideias, sentimentos e imagens em um objeto material. Tal experiência pode ser orientada pelo professor e, nisto consiste sua contribuição para a educação no campo da arte. Todavia, ainda nos anos 70, no ensino e aprendizagem da arte, foram mantidas as decisões curriculares vindas dos conceitos escolanovistas, com ênfase na aprendizagem reprodutiva e no fazer expressivo dos alunos. Na efervescência dos anos 80, e o fim da ditadura militar, tivemos os movimentos voltados para o ensino de Arte no Brasil e o movimento de Arte- Educação que ampliaram as discussões junto aos professores de artes nas escolas. Em 1980, um encontro em São Paulo, reúne quase 3 mil professores para discutir as questões políticas da Arte-Educação. Em 1983 é criado o curso de pós-graduação em Arte-Educação na Universidade de São Paulo, sob a orientação da professora e educadora brasileira Ana Mae Barbosa. Uma das principais contribuições de Ana Mae é a “Proposta Triangular”, que tem como conceito e princípio a integração entre o fazer, a apreciação e a contextualização artística. Esta proposta foi expandida no país por meio de projetos, dentro os quais em São Paulo, no Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC-USP), e em Porto Alegre, com o Projeto Arte na Escola da Fundação Iochpe e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Neste sentido, Analice Pillar afirma que a metodologia triangular, [...] inter-relaciona o fazer artístico, a leitura de imagem e a história da arte, concebe a arte como uma forma de conhecimento e procura evidenciar os conteúdos específicos da arte-educação. Nesta metodologia a imagem é imprescindível em sala de aula para se poder, como enfatiza Ana Mae Barbosa, consultora do Projeto Arte na Escola, “ensinar arte através da arte, imagem através da imagem. (PILLAR, 1992, p. 1-2) Os pressupostos conceituais dessa abordagem de ensino da arte, foi concebida na Inglaterra e nos Estados Unidos, nos anos 60, por professores de arte como Richard Hamilton (Newcastle University, Inglaterra), Manuel Barkan (Universidade do Estado de Ohio, EUA) e Elliot Eisner (Universidade de Stanford, 59 EUA). Entretanto, a sistematização dessa proposta ocorreu somente em 1982, com a criação do Getty Center for Education in the Arts, que teve como objetivo melhorar a qualidade e o status da arte educação das escolas nos EUA, já que estas, ocupavam uma posição marginal no currículo escolar. Ainda conforme Pillar, Os pesquisadores concluíram que era necessário adotar uma abordagem
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