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A H I S T Ó R I A D A E C O N O M I A B R A S I L E I R A A S C I C AT R I Z E S D E U M C I C L O F U G A Z E O I N Í C I O D A I N D U S T R I A L I Z A Ç Ã O Borracha amazonia na A H I S T Ó R I A D A E C O N O M I A B R A S I L E I R A A S C I C AT R I Z E S D E U M C I C L O F U G A Z E O I N Í C I O D A I N D U S T R I A L I Z A Ç Ã O Borracha amazonia na PORTO ALEGRE, RS, BRASIL NOVEMBRO DE 2012 1a EDIÇÃO QUATTRO PROJETOS R I C A R D O B U E N O A H I S T Ó R I A D A E C O N O M I A B R A S I L E I R A A S C I C AT R I Z E S D E U M C I C L O F U G A Z E O I N Í C I O D A I N D U S T R I A L I Z A Ç Ã O Borracha amazonia na PROJETO CULTURAL: QUATTRO PROJETOS REALIZAÇÃO: QUATTRO PROJETOS I 51 3209.7568 www.quattroprojetos.com.br I quattro@quattroprojetos.com.br COORDENAÇÃO EXECUTIVA: FLAVIO ENNINGER COORDENAÇÃO EDITORIAL: RICARDO BUENO – ALMA DA PALAVRA CONSULTORIA: VOLTAIRE SCHILLING TEXTOS: RICARDO BUENO E VOLTAIRE SCHILLING (CAPÍTULOS 1 E 3 E BOX CAPÍTULO 6 – “À MARGEM DA HISTÓRIA?”) REVISÃO: FERNANDA PACHECO – ALMA DA PALAVRA PROJETO GRÁFICO E DIREÇÃO DE ARTE: LUCIANE TRINDADE IMPRESSÃO: GRÁFICA E EDITORA PALLOTTI REALIZAÇÃOPATROCÍNIO Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( CIP ) B928b Bueno, Ricardo Borracha na Amazônia : as cicatrizes de um ciclo fugaz e o início da industrialização / Ricardo Bueno. – 1. ed. – Porto Alegre : Quattro Projetos, 2012. 128 p. : fots. col. ; 23 x 31 cm. – (A história da economia brasileira ; v.2). História do ciclo da borracha e sua importância no cenário histórico e econômico da Amazônia. ISBN 978-85-64393-05-9 1. Amazônia – Borracha. 2. Economia – Ciclo da borracha. Borracha – Economia. I. Título. II. Coleção. CDU 316.31(81) 33(81-928.8)(091) Bibliotecária Responsável: Denise Pazetto CRB-10/1216 51 30297042 A Case New Holland pertence a uma categoria especial de empresas: aquelas que ajudam a moldar o mundo. A CNH produz máquinas agrícolas, fundamentais no plantio, cultivo e colheita de alimentos, e equipamentos para a construção, utilizados em larga escala em vários tipos de obras. Em seus mais de 60 anos no Brasil, a CNH sempre desempenhou um papel im- portante no desenvolvimento agrícola nacional. Suas soluções para a maior eficiência da agricultura e da produtividade do campo contribuíram para que o país conseguisse usufruir do seu imenso potencial agrícola, ajudando o Brasil a se tornar um dos líderes mundiais na produção de alimentos. A CNH também participou, de forma ativa, de grandes momentos da história do país, como a consolidação de Brasília, a implantação de importantes rodovias federais e de diversas outras obras fundamentais na interiorização do desenvolvimento, além da construção das usinas de Furnas e de Itaipu. Investir em hidrelétricas era um dos pilares do governo do então presidente Getúlio Vargas. Mesmo sem ver as principais obras prontas, ele vislumbrou, no Estado Novo, uma grande oportunidade para reduzir a dependência do país desses “ciclos”, em prol do avanço da industrialização. O último ciclo vivido pelo presidente Vargas foi o da borracha, já na sua segunda fase, no final dos anos 1940. Mas a primeira grande participação da borracha na história do Brasil aconteceu no final do século XIX e no início do século XX, na Amazônia, quando a exploração deste vegetal proporcionou a atração de estrangeiros em busca de riquezas e a expansão da colonização, transformando sociedades e culturas e impul- sionando o crescimento de importantes cidades como Manaus, Belém e Porto Velho, além da compra e depois criação do Estado do Acre. O “ciclo da borracha” e os “primeiros passos da industrialização brasileira” foram períodos riquíssimos da história do país, tão importantes que eles são os dois princi- pais temas do livro Borracha na Amazônia – as cicatrizes de um ciclo fugaz e o início da industrialização”, que dá sequência, com maestria, à coleção “A História da Economia Brasileira”. A primeira publicação, lançada em 2010, aborda os ciclos do pau-brasil, ouro e cana-de-açúcar. Já o ciclo do café foi o tema do segundo livro, lançado em 2011. Para 2013, a nova obra abordará a industrialização e o nacionalismo dos anos 50-60, entrelaçado com movimentos culturais. Toda a coleção é patrocinada pela CNH, com o apoio da Lei Rouanet de Incentivo à Cultura. Com ações como esta, a Case New Holland mostra que seu papel não se limita à construção física, mas também à construção cultural de nosso país. Esta publicação comemora também o 20º ano do Prêmio CNH de Jornalismo Econômico. VALENTINO RIZZIOLI PRESIDENTE DA CASE NEW HOLLAND E VICE-PRESIDENTE EXECUTIVO DA FIAT PARA A AMÉRICA LATINA a cultura construindo amazônia: da conquista à integração introdução 14 20 32 54 sumário a conquista do acre ouro branco: martírio,riqueza e cultura 70 94 112 fontes consultadas 122 trilhos no inferno verde frustração e abandono em meio à floresta os primeiros passos da industrialização 14 P O R R I C A R D O B U E N O histórias sobre contadores de 15 Há uma máxima no mundo da comunicação que diz o seguinte: para que um jornalista consiga ter sucesso em sua profissão, é necessário que ele seja um bom contador de histórias. Para tanto, além de talento na apuração e, depois, na narra- tiva, é preciso que ele goste de contá-las – toda e qualquer história. Evidentemente o jornalismo pressupõe lidar com fatos (ou as versões possíveis de serem levantadas e comprovadas sobre eles), diferentemente da literatura, que na construção de uma narrativa pode trabalhar com a realidade, com a ficção ou com ambas, simultaneamente. Mas o que significa, afinal, ser bem-sucedido como jorna- lista? Tal e qual um romancista, o segredo está em conseguir prender a atenção do leitor, conquistar seu interesse, estabelecer um canal de identificação dele com a narrativa, de forma a que se garanta que a informação/história seja transmitida na íntegra. A posterior avaliação sobre o que foi lido cabe ao leitor, que pode gostar, não gostar, acreditar, não acreditar. Acontece que, mesmo para bons apu- radores e contadores de histórias, se não houver um enredo minimamente atraente, dificilmente a conexão com o leitor/interlocutor vai funcionar. Mas há também certas histórias que, quase independentemente da forma como são contadas ou de quem as conta, por si só se sustentam, tal a carga de dramaticidade que carregam, tal a riqueza de personagens interessantes, conflitos, mistérios, sutilezas e curiosidades que as cercam. Este é o caso do chamado ciclo da borracha, uma das atividades econômicas mais relevantes na história de pouco mais de 500 anos do Brasil. Trata-se de um episódio cujas tramas e dramas paralelos à atividade econômica em si rendem não um, mas vários romances – alguns dos quais, inclusive, já foram escritos; que rendem, como já renderam, muitos livros escritos também por historiadores. Período esse da nossa história que, por mais que se escreva e leia sobre ele, a sensação é a de que sempre há a possibilidade de um novo olhar, a remexer e, quem sabe, reescrever o passado. 16 Ainda que à história da extração e da exportação da borracha no Brasil se possa, com relativa adequação, usar a palavra ciclo como de- finidora – no sentido de um processo econômico que nasceu, cresceu, expandiu-se e, de certa forma, encerrou-se, tudo isso em curtíssimo espaço de tempo –, a realidade é que os fatos históricos que se corre- lacionam, para quem busca entender o que efetivamente representou a saga da extração do látex da hevea brasiliensis, são um terreno farto. A começar pelos segredos, mistérios e fantasias que ainda hoje envolvem a Amazônia, suas dimensões colossais, suas peculiaridades dos pontos de vista geográfico, biológico, antropológico. Acrescente- -sea esse cenário uma árvore de lindas e delicadas flores, que no território amazônico se distribui de forma bastante esparsa, apenas três ou quatro em um hectare, mas que esconde por trás de sua casca um líquido precioso, cuja forma de extração, ao menos em meados do século XIX, exigia de um ser humano uma capacidade quase in- comensurável de resistência física e psicológica para sobreviver em meio à floresta. Homens esses, quase todos, que chegavam fugidos do flagelo de secas inclementes no Nordeste brasileiro, e que talvez nem em sonho pudessem imaginar o significado para a humanidade daquele gesto simples de abrir sulcos em algumas dezenas de árvores, colocar copos para recolher o látex, e depois transformar o líquido em estranhas bolas elásticas, mas resistentes. Junte-se a esses personagens alguns outros, encarnados pelos homens que os controlavam – e que de certa forma os aprisionavam –, e também os patrões destes intermediários, donos de grandes terras ou investidores inter- nacionais. Tempere essa relação de trabalho desigual com pitadas de muito, muito dinheiro acumulado, que proporcionaria a transformação, quase da noite para o dia, de duas pequenas e pacatas cidades do Norte brasileiro em metrópoles modernas, dos pontos de vista urbanístico, cultural e social. Faça uma pausa para tentar entender como se deu a luta, na floresta e nos gabinetes dos diplomatas, pela agregação de um território que até então pertencia a um país vizinho, o qual também se empenhava na luta por mais e mais território de onde pudesse extrair a matéria-prima da borracha, e que ansiava, mais do que tudo, por uma ligação com introdução 17 OS FATOS HISTÓRICOS QUE SE CORRELACIONAM SÃO UM TERRENO FARTO PARA QUEM TENTA ENTENDER OS IMPACTOS DO CICLO DA BORRACHA 18 introdução NÃO HÁ UMA HISTÓRIA DO CICLO DA BORRACHA, E SIM VÁRIAS LEITURAS DAQUELE MOMENTO HISTÓRICO E DAS CICATRIZES QUE DEIXOU 19 o mar – qualquer mar. Depois, imagine que alguém teve a ideia de construir na região uma ferrovia, talvez desconhecendo tão inóspito cenário, cortado por rios e corredeiras, onde doenças as mais variadas e pequenos insetos disputam, ainda hoje, o privilégio de aniquilar a saúde de qualquer ser humano que por ali permaneça por mais de três meses. Tente calcular o número de brasileiros e de muitos estrangeiros que por aqui aportaram para trabalhar nessa obra insana, os quais perderam a vida em meio a febres torturantes, chuvas torrenciais e índios hostis, enquanto os dormentes eram assentados. Avance no tempo e calcule o tamanho dos sonhos e ambições do empreendedor que transformou não apenas a forma como o ser humano se locomovia dentro das cidades, mas que também revolucio- nou o modo como uma indústria deveria funcionar. Tente entender a dimensão de sua frustração ao constatar que os milhões de dólares in- vestidos no cultivo manejado de uma planta como aquela que brotava no seio da selva amazônica estavam sendo implacavelmente devorados por uma pequena criatura da natureza, apelidada de mal-das-folhas. Siga o percurso da história, e reencontre novas levas de nordestinos dirigindo-se para a Amazônia, mais uma vez seduzidos pelo sonho de fazer fortuna na floresta, mas também de certa forma ludibriados por uma campanha governamental que apelou para o seu patriotismo, em nome de uma guerra que eles não sabiam exatamente qual era. Costure tudo isso com o enredo de um país que buscava alternativas a um modelo baseado na economia rural, e que tentava dar seus primeiros passos rumo à industrialização e à criação de um mercado interno sólido, reduzindo, assim, sua dependência dos oscilantes mercados externos. Ao fim e ao cabo será fácil concluir que não há uma história do ciclo da borracha no Brasil, e sim várias possíveis leituras daquele incrí- vel momento histórico. A que está agora em suas mãos é apenas uma delas. Esperamos conquistar sua atenção daqui até a última página. Se assim acontecer, a missão desta série sobre ciclos econômicos no Brasil e sua correlação com a cultura e a sociedade estará mais uma vez sendo cumprida. O que não deixa de ser um enorme privilégio para um jornalista que gosta de contar uma boa história – qualquer uma. 20 amazônia da conquista à integração 21 22 A Amazônia é a maior região florestal e hidrográ- fica do mundo. Ocupa grande parte do hemisfério setentrional da América do Sul, correspondendo a 42% do território brasileiro. Estende-se das mar- gens do Oceano Atlântico, no leste, até o sopé da Cordilheira dos Andes, no oeste. Espalha-se pelas Guianas, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia, perfazendo mais de 6 milhões de km2. O vale amazonense é, ao sul, abastecido pelos rios que descem do Planalto Central brasileiro e dos que vêm da região das Guianas ao norte, e pelos filetes de água gelada que se desprendem da “corcova andina”, fazendo com que termine por assumir – como constatou o geólogo americano C.F. Marbut, que visitou-o em 1923 – a forma de um leque, pelo qual escorre 1/5 da água doce do planeta. O ensaísta nortista Raymundo Moraes, por sua vez, descreveu o vale como “o anfiteatro amazonense”. Devido a sua inacessibilidade, insalubridade e as dificuldades para explorá-la economicamente, a Amazônia é uma das áreas mais subpovo- adas do globo. É um “deserto verde”, pertencente a uma época em que a Terra ainda amanhecia abrigando uma das populações mais primitivas que se conhece – o homem neolítico em estado puro. Para outros, como Pedro de Rates Hanequim, que viveu por mais de 20 anos no Brasil, havia sido a morada de Adão e onde se encontrava a Árvore da Vida. Tanta certeza tinha de ter habitado o Paraíso Terreal – sendo o Amazonas o maior rio do Éden – que, ao voltar a Portugal, deixou-se processar e executar – “afogado e queimado” – em 1744, por ordem de um Tribunal do Santo Ofício pelo crime de heresia e apostasia, sem jamais ter pedido clemência. Os diversos governos, brasileiros e vizinhos, até hoje procuram integrá-la, promovendo sua ocupação, tanto por garimpeiros, por extrativistas, por sertanejos, criadores de gado ou empresas de mi- neração. O resultado disso são as intensas queimadas, ou coivaras, antigo método indígena de limpar o terreno para a lavoura, além de longas estradas que cortam as matas em todas as direções. Do Mato Grosso a Roraima, a fumaça toma conta dos ares e, por vezes, escapa completamente ao controle. Este é um dos temores do ecólogo Ro- bert Goodland e do botânico Howard Irwin: o de que o inferno verde torne-se um deserto vermelho, conforme o subtítulo do livro deles. O destino da Amazônia, portanto, tem preocupado as mais diversas amazônia: da conquista à integração 23 “TRATA-SE [A AMAZÔNIA] DE UM GRANDIOSO ANFITEATRO DE TERRAS BAIXAS, ENCERRADO ENTRE O ARCO INTERIOR DAS TERRAS SUBANDINAS E O PLANALTO DAS GUIANAS E O PLANALTO BRASILEIRO.” A Z I Z N A C I B A B ’ S Á B E R 24 instituições, tanto a Organização das Nações Unidas (ONU), como as orga- nizações não-governamentais ambientalistas, que temem por um desastre irreversível, a qualquer momento. O governo brasileiro sofre pressões de todos os lados para tentar coibir a ocupação predatória, ao mesmo tempo em que é politicamente constrangido pelos interesses internos no sentido de que proporcione vantagens, isenções e benefícios a grupos, empresas ou classes, para acelerar sua exploração econômica. Nesta tensão entre os apelos internacionais e a satisfação das necessidades locais de crescimento, Brasília vai alternando, ao longo dos anos, suas políticas para a região. PRIMEIRAS EXPEDIÇÕES “Do abismo viu o profundo/ do profundo o paraíso/ do paraíso viu o mundo/ e do mundo viu o que quis” Gil Vicente, 1539 As primeiras notícias que os espanhóis tiveram da existência de uma imensa região de selvas do outro lado dos Andes foi-lhes dada pelos próprios A FLORESTA AMAZÔNICA NAVISÃO DE JOSEPH LEONE RIGHINI amazônia: da conquista à integração 25 O RIO AMAZONAS À ESQUERDA, EM MAPA DE 1579, DE JACQUES DE VAU DE CLAYE nativos em Quito e em Cuzco. Graças a sua fantasia de homens medievais, os conquistadores imaginaram de imediato que aquela área misteriosa e desconhecida abrigava o lendário El Dorado, uma serra repleta de ouro puro. Bastava chegar lá e carregar o que desse. É certo que o grande rio já era conhecido desde que Vicente Pinzón navegou na sua foz, em 1500, chamando-o de Mar Dulce, mas quem primeiro organizou uma expedição partindo foi Gonzalo Pizarro, irmão do conquistador do Peru. Partindo de Quito, em 1541, comandando uma expedição com 150 soldados, 4 mil índios e 3 mil animais de tropa, inclusive com alpacas e lhamas, Gonzalo conseguiu transpassar os Andes por dificílimos caminhos, chegando às cabeceiras do rio Amazonas. As dificuldades encontradas fizeram com que ele destacasse Francisco Orellana para que, utilizando um barco lá mesmo construído, desse prosseguimento à missão exploratória. A viagem, assim, teve seguimento, até que atingiu a desembocadura do grande rio no Atlântico, em 1542, depois de terem sido percorridos por inteiro seus 5.825 km. Deve-se, pois, a Orellana a denominação do lugar. Deparando-se, nas margens do rio, com um grupo de belicosas índias que acompanhavam os homens em combate, chamou-as de amazonas, confundindo-as com as ORELLANA CHAMOU AS ÍNDIAS QUE COMBATIAM AO LADO DE HOMENS DE AMAZONAS, COMO AS LENDÁRIAS GUERREIRAS DA MITOLOGIA GREGA 26 lendárias guerreiras da mitologia grega. Ao retornar à Espanha, Orellana conseguiu ser nomeado adelantado, organizando uma nova sortida que o levou ao naufrágio e morte a bordo de um bergantim, provavelmente nas proximidades de Macapá, em 1550. O feito de navegação de Orellana repetiu-se depois, em 1561, por Lopo de Aguirre, um celerado e doido que assassinou Pedro de Ursua, o chefe da expedição, aceitando ser o rei dos seus seguidores, os marañones. FIXAÇÃO E PRIMEIRAS MISSÕES “Esta incorporação definitiva do Amazonas ao Brasil fez-se com as ‘jornadas’ dos capitães, com as ‘entradas’ dos colonos e com a ‘catequese’ dos missionários. Tríplice elemento, oficial, particular, religioso, este simultaneamente particular e oficial, interdependentes, todos três, e nem sempre concordes.” Serafim Leite, S.J. – História da Companhia de Jesus no Brasil, Tomo III, 1943 Não demorou muito para que outros desbravadores viessem ins- talar feitorias na região amazônica, preferencialmente na embocadura do grande rio e suas circunvizinhanças. A presença dos heréticos ingleses e holandeses nas Guianas seguiu-se pela dos franceses no Golfão do Maranhão, onde fundaram o forte de São Luís em 1612. As autoridades da União Ibérica (entre 1580-1640, quando Espanha e Portugal estavam sob o mesmo governo) decidiram por expulsar os franceses de São Luís e fixar-se em definitivo no estuário amazônico. A cidade caiu em mãos portuguesas em 1615 e, no ano seguinte, em 16 de janeiro de 1616, o capitão-mor Caldeira Castelo Branco fundou, na região que denominou de Lusitânia Feliz, o forte Presépio de Belém, a casa forte que deu origem à capital do Pará. Cidade essa, na baía de Guará, que se tornou a sentinela portuguesa na emboca- dura do Grande Rio e o trampolim para a conquista da hinterlândia amazonense. Uma longa guerra – comercial e teológica – travou-se na região, até que em 1697 afixou-se mais ou menos a fronteira entre os interesses holandeses, ingleses e franceses de um lado, do lado das Guianas, e os lusitanos do outro, do lado do Amapá, tendo o cabo Orange, no rio Oiapoque, como o acidente geográfico divisor, acordo esse celebrado no Tratado de Lisboa, de 1701. As portas do Amazonas, desde então, abriram-se exclusivamente aos navegantes portugueses, que passaram a deter o monopólio sobre o vale amazônico. Em 1639, o capitão Pedro Teixeira, partindo do rio Tocantins, atingiu a extremidade da sua investida no rio Napo, seguindo dali até Quito, no Equador. Em seguida, entre 1648 e 1651, foi a vez de Antônio Raposo Tavares, um reinól dedicado às bandeiras que marchou por 10 mil quilômetros Amazonas adentro. amazônia: da conquista à integração SOMENTE EM 1697, APÓS UMA LONGA GUERRA COMERCIAL E TECNOLÓGICA, AFIXARAM-SE AS FRONTEIRAS DA REGIÃO 27 MAPA DAS GUIANAS E REGIÃO AMAZÔNICA, DE JAN JANSSON (1588-1664) 28 Paralelo aos capitães e desbravadores privados, assentaram-se as missões de jesuítas, franciscanos, mercedários, carmelitas e seculares, que se espalharam pelas vastas áreas entre os rios Solimões e Tapajós. Os missionários foram convocados para catequizar os gentios e também evitar a possível influência dos hereges protestantes. A orientação das ordens religiosas, por lá já encontradas em 1570, era de que aldeassem os nativos, geralmente dispersos em amplos territórios e divididos entre as nações tupinambás, urubus, gamelas, timbiras, apinajés, jurunas, caiapós, carajás, aimorés, munducurus, tapajós, aruaques, turumás, murás, jurimaguás, omáquas, manaus, barés e ianomâmis, para melhor evangelizá-los. Quase que imediatamente iniciou-se um conflito entre as cha- madas “tropas de resgate”, chefiadas por mamelucos escravagistas, e os padres. A disputa se estendeu por mais de século, na luta pelo braço indígena. Os religiosos desejavam-nos orando a Deus e a Cristo, enquanto os colonos queriam-nos no eito, suando sobre a lavoura e a extração. Os sacerdotes, mais influentes, conseguiram uma série de decretos, provisões, leis e alvarás reais atribuindo-lhes autoridade sobre os nativos e proibindo sua escravidão. Foi o caso da lei de 30 de julho de 1609, que determinava que “fossem os índios tratados como pessoas livres, sem serem constrangidos a executar serviços contra a vontade”, desde que lhes divulgassem a fé – a qual, obviamente, poucas vezes foi obedecida. Como defensor da causa dos gentios, destacou-se o Padre Antônio Vieira, o grande sermonista, que desembarcou no Maranhão em 1653, a quem logo os nativos chamaram de paiacu, o grande pai. amazônia: da conquista à integração DUROU MAIS DE UM SÉCULO A LUTA ENTRE MISSIONÁRIOS E MAMELUCOS ESCRAVAGISTAS PELO BRAÇO INDÍGENA 29 OCUPAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO Em 1640, Portugal recuperou sua independência, e a Espanha voltou a ser sua adversária. Novos fortins foram instalados nas mar- gens do Solimões e nos encontros dos rios, como o forte de São José do Rio Negro, em 1699, onde bem mais tarde, nas suas proximidades, surgiu Manaus. Esse período foi marcado pela penetração extrativista e coletora atrás das “drogas do sertão” e, também pela captura, por bandeirantes vindos do Sul, da mão de obra indígena tornada escrava. A resistência dos padres ao costume das “repartições”, onde os índios eram divididos entre os reinóis, agravada pela prática monopo- lista da Companhia de Comércio do Maranhão e Grão-Pará, ativada em 1682, fez com que uma revolta eclodisse no Maranhão: a rebelião – antijesuítica e antimonopolista – do senhor de engenho Manuel Beckmann, a Revolta de Bequimão, que morreu executado em 1685. Somente em 1750, pelo Tratado de Madri, Espanha e Portugal acordaram em relação às suas fronteiras. De Lisboa, o Marquês do Pombal, o todo-poderoso primeiro-ministro (1756-1777), enviara já o seu irmão Mendonça Furtado, em 1751, para supervisionar os negócios da companhia monopolista na Amazônia. A época do des- potismo ilustrado, representada por Pombal, na Metrópole, e por seu irmão, no Grão-Pará (como politicamente denominou-se a região do Amazonas), foi extremamente ativa. Os jesuítas que lá estavam desde 1607 foram expulsos em 1760. Novas lavouras foram introduzidas, POMBAL (AO LADO) EXPULSOU OS JESUÍTAS DA AMAZÔNIA. NA PÁGINA AO LADO, OBRA DE JACQUES BURKHARDT RETRATA MANAUS EM 1865 30 amazônia: da conquista à integração PASSAGEM DA FAMÍLIAREAL PELO PORTO DE BELÉM, EM 1807, É SAUDADA COM FESTA PADRE ANTONIO VIEIRA E SEUS SERMÕES: DEFESA DA CAUSA DOS GENTIOS NA AMAZÔNIA 31 como a do algodão, a do tabaco, a da cana-de-açúcar e a do café (trazido por Francisco de Melo Palheta – ver volume 2 desta coleção, Dos cafezais, nasce um novo Brasil). “Lusitanizou-se” o nome das ci- dades, abandonando-se a toponímica brasílica, e a língua portuguesa passou a ser ensinada. “Liberaram-se os silvícolas” dos seus encargos nos aldeamentos, bem como um pequeno número de colonos açoritas foi distribuído entre Belém, Santarém e Ourém, para viabilizar os empreendimentos. Administrativamente, a região sofreu uma reforma: pelo ato régio de 20 de agosto de 1772, dividiu-se o antigo Estado do Grão-Pará – existente desde 1618 – entre o Estado do Maranhão e Piauí (com capital em São Luís) e o Estado do Grão-Pará e do Rio Negro (atual estado do Amazonas, com sede em Belém), ambos subordinados di- retamente a Lisboa. A integração política da Amazônia com o resto do Brasil só deu seus primeiros passos com a instalação da corte de D. João VI no Rio de Janeiro, em 1808, quando então as duas capitais, Belém e Manaus, se lhe subordinaram. Os portugueses, dentro de um rígido mercantilismo, sempre mantiveram uma política de clausura das colônias. A Amazônia não foi exceção. Nem mesmo ao célebre naturalista alemão Alexander von Humboldt, que visitou a América entre 1799 e 1804 (dele, a propósito, é a expressão “hileia amazônica”) foi permitido penetrar no lado português da floresta. Essa política começou a ser reformada com a vinda da família real para o Brasil, e com o decreto da Aber- tura dos Portos às Nações Amigas. Durante o império, começaram a chegar ao país inúmeros naturalistas europeus, entre eles o francês Auguste Saint-Hilaire e os germânicos Spix e Martius, que coletaram informações sobre a botânica amazonense. Mas o imperador D. Pedro II, apesar das pressões internacionais, negou-se, pelo menos até 7 de setembro de 1867, a liberar a navega- ção do grande rio aos estrangeiros, tarefa que desde 1853 estava ao encargo monopolista de uma empresa do Barão de Mauá. A propósito, a abertura do rio Amazonas à navegação estrangeira, quebrando com o monopólio de Mauá, foi um dos grandes debates políticos e ideo- lógicos da segunda metade do século XIX, no qual se antepuseram liberais contra os mercantilistas. Três anos antes, em 1850, em uma outra reforma administrativa, criara-se a Província do Amazonas, separando-a do Grão-Pará, tendo Manaus como sua capital. A posição brasileira sobre a Amazônia era – e ainda é – ambígua. De um lado, reconhecia-se a escassez de recursos humanos e finan- ceiros para explorar o continente verde, e do outro, impedia-se que estrangeiros, por meio de acordos e tratados, o fizessem. Uma das razões mais fortes – talvez por dizer respeito às raízes psicológicas, ao imaginário popular – é que a maioria dos brasileiros vê naquela região, no seu verdor, nos seus imensos rios e matas, um dos símbolos maiores da nacionalidade, tendo dificuldades em aceitar sua exploração eco- nômica por mãos forâneas. Foi então que se deu o ciclo da borracha. INTEGRAÇÃO POLÍTICA DA AMAZÔNIA DEU SEUS PRIMEIROS PASSOS A PARTIR DE 1808, COM A CHEGADA DA FAMÍLIA REAL AO BRASIL 32 martírio riqueza ouro branco: e cultura 33 34 Foi em 1743, quando descia o Amazonas, vin- do do Equador, que o naturalista francês Charles Marie de La Condamine tomou contato com uma árvore grande e descorada, de galhos altos e flores delicadas. Da planta, que posteriormente seria cha- mada de Hevea brasiliensis, os nativos extraíam um líquido leitoso e viscoso. Condamine reparou que esse líquido, após coagulado, produzia uma substân- cia maleável, de elasticidade e impermeabilidade sem-par, a qual os índios moldavam na forma de seringas, botas, garrafas e brinquedos. De volta à França, com certa quantidade do caoutchouc, como era chamado na Amazônia, o naturalista tentou fabricar uma roupa à prova d’água a partir do ma- terial, que seguiu importando da Guiana Francesa para dar suporte a várias experiências. Foi assim que a substância aos poucos ganhou mais e mais espaço na Europa, tendo os ingleses, inclusive, percebido que a goma era excelente para apagar, e então a batizaram de rubber. As seringas e galochas deixaram de ser artigos incomuns na Europa do início do século XIX. Tanto que, em 1827, a Amazônia exportou 31 toneladas de borracha bruta, cifra que em 1830 subiria para 156 toneladas. O problema da matéria-prima, entretanto, era sua sensi- bilidade a mudanças de temperatura: as botas poderiam tanto ficar duras como pedra no auge do inverno, como grudentas no calor do verão. Somente em 1839 Charles Goodyear aperfeiçoou o processo de vulcanização, o que permitiu usar a borracha em rodas dentadas, correias, mangueiras, telhas, suspensórios, sapatos e capas de chuva. Mas o grande boom no consumo da borracha viria mesmo com a mania da bicicleta, inventada em 1890, seguida da popularização do automóvel, a partir de 1900 (Ford construiu seu primeiro carro em 1896). A fabricação de pneus, portanto, alteraria completamente o equilíbrio do mercado de borracha, que durante algumas décadas seria dominado pela produção amazônica. No Brasil, apesar do período conhecido como ciclo da borracha ser comumente identificado como tendo ocorrido entre 1870 e 1910, constata-se que já a partir de 1840 toda a atividade econômica da região amazônica passou a girar em torno da extração do látex e da exportação do produto fabricado a partir de seu manuseio. De acordo ouro branco: martírio, riqueza e cultura 35 A PARTIR DE 1840 TODA A ATIVIDADE ECONÔMICA DA REGIÃO AMAZÔNICA PASSOU A GIRAR EM TORNO DA EXTRAÇÃO DO LÁTEX GOODYEAR CONSEGUIU ESTABILIZAR QUIMICAMENTE A BORRACHA. ABAIXO, À ESQ., SERINGUEIRO, E À DIR., SEMENTES DA HEVEA 36 ouro branco: martírio, riqueza e cultura com Bárbara Weinstein, a penetração em novas zonas produtoras de borracha tornou-se preocupação especial já na década de 1860. Com o contínuo crescimento da demanda pelo produto no mercado mundial, a economia amazônica teve de incrementar sua produção do único modo que se julgava possível, até então: via expansão física para seringais ainda não explorados rio acima, especialmente na província do Amazonas. Em decorrência, Belém assumiu o papel de principal porto de escoa- mento da produção gomífera. Mas diz Bárbara Weinstein: “Embora o Pará continuasse à frente na produção da borracha até anos avançados da década de 1880, a parcela que lhe cabia na produção total da região decaiu rapidamente de 1870 em diante. Enquanto durante os primeiros anos apenas uns poucos municípios paraenses (Breves, Anajás, Melgaço e Gurupá) haviam respondido pela maior parte da borracha produzida, na década de 1870 a extração da borracha havia se espalhado para o oeste, no baixo Xingu e no baixo Tapajós, no Pará, e de maneira ainda mais impressionante no Amazonas, nas zonas ricas em seringueiras dos rios Solimões, Madeira, Purus e Juruá”. Segundo Bárbara, embora muito distantes do mercado exportador de Belém, a densa concentração de ESTRADA DE FERRO MADEIRA-MAMORÉ SERIA IMPORTANTE CANAL DE ESCOAMENTO DA PRODUÇÃO DE BORRACHA A PARTIR DE 1912 37 seringueiras ao longo desses rios e a relativa facilidade com que todos eles, com exceção do Madeira (ver capítulo 4), podiam ser navegados pela crescente frota de barcos a vapor do Amazonas, faziam com que fossem preferíveis aos trechos superiores do Xingu e do Tapajós, que corriam através de florestas também ricas em Heveas, mas semeados de corredeiras e quedas d’água intransitáveis. Ainda assim, era em Belém que quase toda a borracha amazônica continuava a ser armazenada, acondicionada e vendida para exportação. De 1870 a 1910, ocorreu o maior surto econômico da região. Em 1871, a borracha alcançou o primeiro lugar nas exportações do Pará, com4,8 milhões de quilos, contra 3,3 milhões de quilos de cacau. Segundo Bárbara Weinstein, em fins da década de 1880 o valor anual das exportações de borracha havia subido 800% na comparação com os números de 1860, e a borracha representava aproximadamente 10% do comércio exterior do Brasil, apesar da acentuada expansão da economia cafeeira no período (ver volume 2 desta coleção, Dos cafezais nasce um novo Brasil). “Na virada do século, a borracha se tornaria o segundo produto brasileiro, constituindo 24% da exportação total do país”, atesta Bárbara. EM FINS DA DÉCADA DE 1880, O VALOR ANUAL DAS EXPORTAÇÕES DE BORRACHA HAVIA SUBIDO 800% EM RELAÇÃO A 1860 PARÁ DOMINOU A PRODUÇÃO DE BORRACHA ATÉ MEADOS DOS ANOS 1880 38 ouro branco: martírio, riqueza e cultura REGISTROS DE SERINGUEIRO PRODUZINDO BORRACHA DENTRO DE ABRIGO CONHECIDO COMO TAPIRI NO SÉCULO XIX, GOVERNO DO AMAZONAS NÃO COGITAVA CULTIVO MAJENADO DA HEVEA 39 OS SERINGUEIROS O ciclo da borracha alterou de maneira significativa, não apenas a economia, mas também as relações sociais e culturais no Brasil de finais do século XIX. As duas mais importantes vertentes do processo dizem respeito, de um lado, às formas brutais de exploração da floresta, e de outro, à riqueza proporcionada pela borracha, que alterou completamente dois centros urbanos, Manaus e Belém, os quais, de cidades inexpressivas, em pouco tempo passaram a figurar como importantes e modernas metrópoles brasileiras. Vejamos de início como se dava a rotina de um seringueiro. Euclides da Cunha definiu o seringueiro como “o homem que trabalha para escravizar-se”. Tão chocantes eram suas condições de vida e tamanha sua impotência que o próprio Euclides registrou, em sua narrativa Judas-asvherus, que na época da malhação do judas os seringueiros faziam um boneco a sua semelhança, um judas-seringueiro. Malhavam a si mesmos, como que se autopunindo por aceitarem aquela situação infeliz. Na visão de Euclides, o maior jornalista brasileiro da época, a exploração a que os seringueiros estavam sujeitos era tamanha que constituía “a organização do trabalho mais criminosa que podia ser imaginada pelo egoísmo mais revoltante”. Como isso se dava na prática? Quando chegavam à Amazônia, os homens que imaginavam fazer fortuna trabalhando na floresta, quase todos eles vindos do Nordeste, fugindo da seca, eram obrigados a comprar não apenas os utensílios usados na extração do látex, mas também o pirarucu ou charque e alguns litros de farinha que cada um deles iria precisar nos primeiros dias na mata, enquanto não aprendessem a caçar. O patrão do seringueiro tanto podia ser o grande proprietário (seringalista), que arrendava suas terras ao se- ringueiro, como também o comerciante local, conhecido como aviador, que controlava informalmente a produção e o comércio da borracha na área, negociando a produção dos seringueiros e mantendo-os abastecidos de ferramentas, víveres e quaisquer outras extravagâncias a que pudessem se dar ao luxo. Nas palavras de Warren Dean, respeitado brasilianista e autor de A luta pela borracha no Brasil: um estudo de história ecológica, livro que se tornou um clássico sobre o tema, a técnica da coleta do látex “é fácil de explicar, mas difícil de imaginar”. Dean assim descreve o trabalho dos seringueiros em meados do século XIX e início do XX: “A Hevea brasiliensis é uma espécie típica do estágio clímax da floresta pluvial amazônica. Como quase todas as espécies semelhantes, não se encontrava em arvoredos ou em grupos, mas bastante dispersa na floresta, comumente apenas duas ou três árvores por hectare. O seringueiro espe- rançoso tinha, primeiro, de localizar as árvores, depois abrir picadas – as chamadas estradas – ligando-as entre si. Essa tarefa poderia levar seis e até sete meses, tempo durante o qual pouca ou nenhuma extração podia ser feita. Normalmente o seringueiro abria duas ou três picadas com 60 a 150 árvores cada, o máximo que uma pessoa seria capaz de se ocupar. Os métodos de extração foram ligeiramente aperfeiçoados: em vez de deixar o látex escorrer tronco abaixo a partir de numerosas pequenas incisões feitas com uma machadinha, prendiam-se pequenos copos sob cada incisão. (...) LOCALIZAR AS ÁRVORES DA HEVEA PODERIA LEVAR DE SEIS A SETE MESES DE TRABALHO, ANTES DE SE INICIAR A COLETA DO LÁTEX 40 ouro branco: martírio, riqueza e cultura Efetuava-se a sangria em dias alternados em cada estrada, a fim de permitir que as árvores se recuperassem. O seringueiro passava duas vezes por uma estrada. Na primeira vez, de manhã cedinho, quando o fluxo de látex era mais pesado, fazia as incisões. Depois, na segunda passagem, colhia o látex. À tarde, acocorava-se diante de um fogo alimentado por cocos, sobre o qual suspendia uma vara, que girava sem parar, enquanto o látex gotejava lentamente. Aos poucos, formava-se uma grande bola de borracha sólida”. Prossegue Dean sobre a rotina do seringueiro: “A temporada de coleta resumia-se aos seis meses de pluviosidade relativamente baixa, porque na estação das chuvas as trilhas se alagavam e os copos se enchiam de água. Dependendo das características variáveis das árvores, do tempo, do solo e dos seringueiros, essas técnicas propor- cionavam uma produção anual de 200 a 800 quilos por seringueiro, com a média ficando abaixo de 500 quilos. (...) O processo de extração muitas vezes transcorria de tal modo que as árvores logo se exauriam ou sua casca ficava tão danificada que não podiam mais ser exploradas. Embora o produto acabado, se cuidadosamente ‘defumado’, atingisse preços tão elevados quanto os da melhor borracha coagulada das plantações, ami- DESENHO DE JEAN PIERRE CHABLOZ, DE 1943, MOSTRA SERINGUEIRO PRODUZINDO AS BOLAS DE BORRACHA 41 úde era cheio de impurezas, umidade e adulterações, estas introduzidas para elevar o preço de venda. O seringueiro deve ter sentido que merecia algum tipo de compensação. As torturantes condições de isolamento, privação e perigo a que estava sujeito limitavam sua carreira a algumas poucas temporadas, durante as quais contrair malária, doença de Chagas e leishmaniose era uma certeza virtual.” O seringueiro era o último elo da cadeia econômica da borracha. Apa- rentemente, era livre, mas a estrutura econômica o colocava em situação de trabalho semelhante à relação de servidão. Isto porque ele não tinha alternativa a não ser comprar os suprimentos necessários, a preço altíssimo, no armazém mantido pelo seringalista, e por isso estava sempre em débito na contabilidade e endividado, não conseguindo escapar da exploração do patrão. Aqueles que tentavam fugir de seus débitos eram remetidos de volta aos seringais, capturados em Belém ou Manaus. Apesar da desigualdade absurda a que se submetiam os seringueiros, Warren Dean acredita que tal forma de organização era a única que acei- tariam: “Embora o sistema extrativo lhes impusesse taxas de mortalidade e uma exploração tão severa que sua reprodução se tornava impossível, SERINGUEIRO ESTAVA SEMPRE ENDIVIDADO, NÃO CONSEGUINDO ESCAPAR DA EXPLORAÇÃO DOS PATRÕES SERINGAL NO ACRE NOS DIAS DE HOJE: CULTIVO MANEJADO GARANTE RENTABILIDADE E MELHORES CONDIÇÕES DE TRABALHO 42 os seringueiros, segundo se afirma, preferiam a existência itinerante ao plantio, por um orgulho embriagador e uma idêntica predileção pelo en- riquecimento rápido em detrimento de uma remuneração fixa.” A lucratividade da borracha era tanta e o domínio do mercado mun- dial, tão marcante, que pouco se cogitava, na época, de buscar métodos de plantio manejado. Como relata Warren Dean, “a seringueira nativa era invencivelmente superior à seringueira plantada. O governo do Amazo- nas exprimia sua confiança em que, quando a demanda desabrochasse, o Estado atrairia cada vez mais capital estrangeiro, o que reduziria os custos da coleta, estimulando, assim, o fornecimento nativo.” A crença na épo- ca, portanto, era de que, caso um diaos estoques naturais se esgotassem, os amazonenses poderiam plantar a Hevea quando bem quisessem, e a borracha resultante sempre seria mais barata e de melhor qualidade que a asiática, onde, por volta de 1890, se iniciaram as primeiras experiências de cultivo manejado. As sementes da Hevea brasiliensis que viriam a desen- cadear uma violenta alteração no mercado da borracha, cerca de 20 anos depois, teriam sido contrabandeadas do Brasil pelo inglês Henry Wickham, tendo as plantas que brotaram passado por um período de adaptação no Jardim Botânico de Kew, na Inglaterra, antes de serem transportadas para Ceilão, Java e Sumatra, onde deram origem a enormes seringais. Em seu livro, Warren Dean narra com riqueza de detalhes toda a misteriosa operação de contrabando realizada por Wickham, que acabou inclusive recebendo, em 1926, um prêmio por ter sido “o Francisco de Mello Palheta dos ingleses” (Palheta é o sargento-mor que em 1726 teria contrabandeado para o Brasil as primeiras sementes de café, as quais transformariam o país no maior produtor mundial do grão). BELÉM, DO PARÁ E DO MUNDO Os sacrifícios a que eram submetidos os seringueiros na floresta ama- zônica eram apenas uma das faces do ciclo da borracha. Graças à riqueza proporcionada pela exportação do produto, Manaus e Belém viveram momentos de luxo e glamour. As duas cidades passaram a ser as mais desenvolvidas do Brasil e das mais prósperas no mundo, principalmente Belém, não só pela sua posição estratégica – quase no litoral –, mas tam- bém porque sediava um maior número de residências de seringalistas, casas bancárias e outras importantes instituições. Foram atraídas para a região, nesse período, levas de imigrantes estrangeiros, como portugueses, chineses, franceses, japoneses, espanhóis e outros grupos menores, com o fim de desenvolverem a agricultura nas terras da Zona Bragantina. Maria de Nazaré Sarges, autora do estudo Belém – riquezas produzindo a Belle Époque (1870-1912), refere que todo o processo de transformação pelo qual passou a capital do Pará se deve ao fato de que uma parte do excedente que se originou da riqueza proporcionada pela borracha foi canalizada para os cofres públicos, os quais direcionaram o investimento para a área urbana, incluindo o calçamento de ruas com paralelepípedos ouro branco: martírio, riqueza e cultura DE PEQUENAS E MODESTAS CIDADES, BELÉM E MANAUS SE TRANSFORMARAM EM MODERNAS METRÓPOLES RUA XV DE NOVEMBRO E OS TRILHOS DOS BONDES: MODERNIDADE NA CAPITAL PARAENSE 43 44 de granito importados da Europa, construção de prédios públicos, casarões em azulejos, monumentos, praças etc. “Era preciso alinhar a cidade aos padrões da civilização europeia. Desse modo, a destruição da imagem da cidade desordenada, feia, promíscua, imunda, insalubre e insegura, fazia parte de uma nova estratégia social, no sentido de mostrar ao mundo civilizado (entenda-se Europa) que a cidade de Belém era o símbolo do progresso, imagem que se transformou na obsessão coletiva da burguesia”, refere a autora. Da Europa, especialmente da França, é que veio o modelo de urbanis- mo moderno, reproduzido em Belém com expressividade. Foi durante a administração do Intendente Antônio José de Lemos que se construíram boulevards, praças, bosques, asilo, mercados. Na mesma época, implantou- -se também uma rigorosa política sanitarista. “Belém vai sofrer alterações que se operam nas estruturas sociais, ocasionando uma intensificação da vida social e intelectual da cidade, aumento demográfico, maior comple- xidade nas relações sociais e a concentração de fortunas entre os novos setores dominantes”, atesta Maria de Nazaré. Esse nova ordem econômica propiciou a composição de uma nova elite, formada por comerciantes, seringalistas, financistas, com destaque para os profissionais liberais, geralmente de famílias ricas e oriundos de universidades europeias. É este novo grupo dominante que, em nome ouro branco: martírio, riqueza e cultura CHAFARIZ NO LARGO DA PÓLVORA E CASAL EM TRAJES DE ÉPOCA, EM FOTO DE BELÉM NO INÍCIO DO SÉCULO XX 45 VER-O-PESO LOGO SE TRANSFORMOU EM UM DOS MAIS MODERNOS MERCADOS DO PAÍS do progresso, vai direcionar a remodelação da cidade, imprimindo-lhe o brilho da chamada belle époque. O cosmopolitismo do ciclo da borracha transformou Belém, e também Manaus, como se verá adiante, em pequenas reproduções de cidades europeias. Em Belém, entre 1890 e 1900, surgiram 25 novas fábricas – de biscoitos, açúcar refinado, caramelo, pão, café; de fibras e cordas; de artefatos de borracha, e até uma fábrica de licores, além da Fábrica de Cerveja Paraense, em 1905. Não há dúvida de que a moda é um fenômeno típico da sociedade ur- bano-industrial, estimuladora do consumo. Na Belém do século XIX, mu- lheres das classes abastadas tinham um zelo especial pela indumentária,de tal forma que precisavam mandar buscar seus vestidos em Londres e/ou Paris. Para resolver essa questão, surgiram na cidade estabelecimentos comerciais para atender o requinte das damas e cavalheiros, entre eles Paris N’América, Bom Marché, Maison Française, além de lojas ambu- lantes que vendiam, em carros e tabuleiros, fazendas francesas, inglesas e diversas miudezas. A navegação a vapor, introduzida em 1853, teve grande importância econômica para a exportação da borracha e o comércio internacional. Os modernos extrativistas trataram de mandar seus filhos estudarem na Europa, visando a uma futura substituição dos burocratas administrativos EXTRATIVISTAS MANDAVAM OS FILHOS PARA A EUROPA, FORMANDO UMA NOVA ELITE INTELECTUAL 46 que comandavam o país até então. Essa elite de doutores e intelectuais influenciou na formação de novos hábitos: os donos de seringais, em sua maioria, moravam na cidade, atraídos pelos confortos que esta passara a lhes oferecer. Alguns dos novos ricos construíram suas residências inspira- dos no estilo art nouveau, com azulejos de Portugal, colunas de mármore de Carrara e móveis de ebanistas franceses. Mandavam buscar companhias artísticas na França, em Portugal e no Rio de Janeiro, que fizeram época no Teatro da Paz. Calcula-se que apenas de fevereiro a dezembro de 1878 foram apresentados aproximadamente 126 espetáculos no teatro. Foram criadas linhas de bonde, bancos instalaram-se na cidade (em 1886 já funcionavam quatro estabelecimentos), assim como companhias seguradoras, essas últimas intimamente ligadas ao sistema financeiro es- tabelecido na região. Na verdade, franceses, ingleses e norte-americanos dirigiam a comercialização da borracha. Os ingleses chegaram a instalar na cidade uma agência do London Bank of South America, antes mesmo de outros bancos brasileiros. A libra esterlina circulava como mil-réis, e os transatlânticos da Booth Line faziam linhas regulares entre a capital amazonense e Liverpool. Todo o processo de urbanização em Belém não esteve ligado somente à intensificação da vida industrial, como ocorreu nas cidades europeias e americanas. Aqui, as funções comercial, financeira, política e cultural tiveram influência decisiva. O crescimento populacional impactou a cida- de. Em 1872, a população do Pará era de 275 mil habitantes, 61.900 dos ouro branco: martírio, riqueza e cultura O TEATRO DA PAZ, EM OBRA DE RIGUINI 47 quais em Belém. Em 1900, estes números subiram para 445 mil no Estado e 96.500 na capital. Em 1920, o Pará tinha quase 1 milhão de habitantes, dos quais 236 mil em Belém. Além dos lucros gerados pela extração e comercialização da borracha, a queda da Monarquia e a proclamação da República garantiram aos Estados maior autonomia e maior participação na renda concernente à exportação da borracha. Foi graças a esses recursos que surgiram na cidade o Merca- do Ver-o-Peso (1901), o Hospital Dom Luiz, o Grêmio Literário, a The Amazon Telegraph Company, o Arquivo e a Biblioteca Pública (1894), o já citado Teatro da Paz (1878), 43 fábricas (que produziam desde chapéus atéperfumarias), cinco bancos, quatro companhias seguradoras, além da implantação da iluminação a gás, em 1905. Do ponto de vista do saneamento e da limpeza pública, o objetivo era afastar os ares fétidos causados pela emanação mal cheirosa do lixo urbano. A utilização do crematório do lixo tornou-se imprescindível. O governo estabeleceu e divulgou a hora em que o arrematante da limpeza passaria nos prédios e casas para recolher os lixos e nos lugares públicos em que seus carros especiais passariam. Os infratores seriam multados. Graças à criação do Departamento Sanitário Municipal, viabilizou-se a construção de redes de esgotos e de água e a drenagem de pântanos. Até mesmo barbeiros, cabeleireiros e semelhantes foram obrigados a empregar materiais que não prejudicassem a saúde e a esterilizar seus instrumentos. O conceito de “higienização” da cidade incluiu também uma nova A IMPONENTE CATEDRAL DA CAPITAL DO PARÁ, TAMBÉM NA VISÃO DE RIGHINI DEPARTAMENTO SANITÁRIO CONSTRUIU REDES DE ESGOTOS E ÁGUA E DRENOU OS PÂNTANOS 48 ordem no que se refere às questões de moralidade. Ao observarem-se as condutas que passavam a ser proibidas, é possível detectar alguns dos hábitos frequentes dos cidadãos que moravam nos núcleos urbanos antes do boom da borracha. Pelo artigo 110 do Código de Posturas, por exemplo, ficava proibido “fazer algazarras, dar gritos sem necessidade, apitar, fazer batuques e sambas”. Já o artigo 128 proibia inclusive “proferir palavras obscenas nas ruas e lugares públicos, praticar atos ou gestos reputados ofensivos à moral e à decência, tomar banho nas praças e fontes públicas”. O inciso VII do mesmo artigo ia além: “... é proibido chegar à janela ou porta em traje indecente ou em completa nudez, ou conservar-se em casa em tais condições, de maneira que seja visto pelos transeuntes”. Se de um lado Belém era dependente comercialmente da Inglaterra, de outro mantinha uma relação cultural muito próxima com a França, a qual se intensificou a partir de 1838, com a criação do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. A babel de influências estrangeiras nos hábitos e costumes, de outra parte, se expressava na importação de biscoitos e cham- panha franceses; de vinagre e azeitonas portuguesas; de vinhos franceses, portugueses e espanhóis; de manteiga inglesa; de sabão americano e até de chá de Pequim. Os navios europeus, principalmente franceses, traziam também as notícias sobre as peças e livros mais em voga, as escolas filosófi- cas predominantes, o comportamento, o lazer, as estéticas e até as doenças. Até a arborização fez parte do planejamento urbano, visando à qualidade de vida proporcionada pelo ar purificado, mas também o embelezamento da cidade, amenizando o clima tropical. O calçamento se intensifica, tomando o lugar das pedras soltas e areia. Nas vias que circundavam o Teatro da Paz, por exemplo, foram usados paralelepípedos de asfalto, para que o tráfego de veículos condutores de passageiros, quando feito junto a esse prédio, não perturbasse os assistentes das funções da casa de espetáculos. O serviço de viação pública, a propósito, foi inaugurado em agosto de 1907. Havia vários tipos de bondes, incluindo-se carros-salões, com vestíbulo em cada extremo, 12 cadeiras móveis, seis janelas de ventiladores, ouro branco: martírio, riqueza e cultura ALARGAMENTO DAS RUAS E CONSTRUÇÃO DE AVENIDAS E SUNTUOSAS PRAÇAS RENOVARAM O CENÁRIO URBANO DE BELÉM E DE MANAUS 49 caprichado acabamento interno e até mesmo serviço de buffet. Quando ocorria a condução de autoridades em ocasiões especiais, acrescentavam- -se ventiladores, cortinas, porta-chapéus e bengalas, vasos com plantas e pequenas mesas. O alargamento das ruas, a construção de largas avenidas e suntuosas praças também integrava a renovação do cenário urbano de Belém. No Mercado de Ferro Ver-o-Peso, os balcões dos açougues eram de mármore e as ruas do interior calçadas a paralelepípedos de granito, sobressaindo-se na construção os gradis, a escada em espiral feita de ferro, tudo de acordo com o estilo art nouveau. MANAUS Manaus, simultaneamente, foi uma das primeiras cidades do Brasil a vivenciar o espírito da belle époque, transformando-se de um sim- ples vilarejo à beira do rio Negro em uma pujante cidade, dotada de infraestrutura urbana moderna, tornando-se a sede dos negócios que giravam em torno da borracha na Amazônia ocidental. O governador Eduardo Ribeiro destacou-se por suas ações administrativas visando à estruturação urbana e paisagística da cidade, dotando-a, inclusive, com o Teatro Amazonas, inaugurado em dezembro de 1896 e considerada a mais importante demonstração de refinamento e bom gosto da belle époque no Brasil. Em janeiro de 1909, os amazonenses criaram aquela que é considerada a primeira universidade brasileira, que recebeu o nome de Escola Universitária Livre de Manaus, atualmente denominada de Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Os médicos Adolfo Lindenberg e Vítor Godinho publicaram, inicial- mente no jornal O Estado de S. Paulo, e depois em livro (Norte do Brasil através do Amazonas, do Pará e do Maranhão) as impressões de uma viagem que empreenderam em 1904. A respeito de Manaus, dizem eles: “A cidade de Manaus lembra São Paulo por muitas razões: por seu cosmopolitismo, por seu progresso vertiginoso, por sua arquitetura, por suas obras municipais, por ter um monopólio comercial e pelo futuro que lhe está reservado. Há 50 anos, Manaus era uma cidade pequeníssima: contudo, os seus visitantes já lhe previam um futuro grandioso por sua situação privilegiada. Depois da República, ela tem aumentado extraor- dinariamente, devendo possuir hoje uma população de 50 mil a 55 mil habitantes. Pode-se dizer que foi a imigração maranhense que lhe levou a iniciativa e o progresso.” Prosseguem Lindenberg e Godinho em sua narrativa: “O progresso de Manaus lembra o vertiginoso progresso de São Paulo, porque se acentuou depois da República. (...) Em Manaus, há muito menos pedra de construção do que em São Paulo; por isso, as edificações são em sua grande maioria de tijolos, que se prestam a uma arquitetura muito mais fácil e mais em conta do que pedra. (...) Quase todas as casas têm platiban- das, o que as torna muito mais elegantes. Também as ruas são largas e bem alinhadas, e já se tem cuidado da arborização de alguma delas, e sobretudo das praças. Bonitos jardins existem, ostentando a exuberância da região amazônica, e nos arredores da cidade bosques bem aproveitados. (...) As ALFÂNDEGA (ALTO) E SEDE DO BANCO ULTRAMARINO (ACIMA), EM MANAUS. NA PÁGINA AO LADO, BANCO COMERCIAL, EM BELÉM 50 ruas centrais da cidade são bem calçadas a paralelepípedos de granito, importados de Portugal ou do Rio de Janeiro, e duas delas são asfaltadas. (...) É de lastimar. Os chopes consumidos em Manaus são de procedência alemã, e por isso custam caro, 1 mil réis. O consumo de cerveja é muito grande, como em geral de todas as bebidas alcoólicas. Os botequins e mercearias existem profusamente e são todos muito frequentados. Neles se nota um hábito muito europeu: as mesinhas dispostas nos passeios dos boulevares ou avenidas, nos trottoirs, como se diria em Paris.” Mais adiante, comentam os médicos: “Em Manaus, não faltam doentes de impaludismo. Os seringueiros que adoecem nas regiões mais paludosas vêm tratar-se na cidade, e são em tão grande número que dão meios de subsistência a um respeitável corpo clínico. Quando lá estivemos, havia na cidade cerca de 70 médi- cos. (...) O Palácio da Justiça é um monumento aparatoso tanto por sua construção como por sua mobília. (...) A mesma coisa se poderá dizer do teatro, que custou 11 mil contos de réis. Este tem enormes saguões, espa- çosos corredores, um recinto primoroso e um foyer magnífico. O foyer é circundado de vistosas colunatas fingindo mármore, e a decoração é obra de De Angelis. (...) A cúpula do teatro é toda de mosaico, com as coresda bandeira nacional, losangos amarelos em campo verde.” A DECADÊNCIA Em janeiro de 1910, o mundo industrial foi subitamente acometido de grave crise de “febre” da borracha. Após dois anos de aumentos de ouro branco: martírio, riqueza e cultura CÚPULA DO TEATRO AMAZONAS: 36 MIL PEÇAS DE ESCAMAS EM CERÂMICA ESMALTADA E TELHAS VITRIFICADAS, VINDAS DA ALSÁCIA 51 preço firmes, porém gradativos, uma alta sem precedentes no valor da borracha fez com que os capitalistas de todo o mundo se lançassem a investir apressadamente na produção da borracha bruta. Nos meses que se seguiram, centenas de companhias, representando milhões de libras esterlinas de capital, surgiram literalmente da noite para o dia. A Indian Rubber World, sempre tomando o pulso do mercado da borracha bruta, instava com seus leitores que não hesitassem em aceitar adquirir a borracha a 2 dólares a libra, advertindo ser pouco provável que os preços viessem a cair em futuro próximo. Mas já no mês de maio a febre estacou. Ninguém estava preparado para o violento mergulho que deu o mercado da borracha bruta nos meses restantes do ano de 1910, chegando a menos de um 1,20 dólar já em novembro. Ao contrário do que também imaginavam os brasileiros, a partir de 1911 o preço do produto caiu vertiginosamente, à medida que uma quantidade cada vez maior da borracha de cultivo (originária da Ásia) chegava ao mercado. Numa onda especulativa, o produto brasileiro subiu para 15 mil réis o quilo em abril de 1910, mas em junho de 1911 caiu para 6 mil réis. Nas palavras de Bárbara Weinstein, “essa queda, longe de um simples interlúdio, acabou sendo o começo de uma de- cadência de dez longos anos que iria aleijar a economia extrativa da Amazônia”. Prossegue Bárbara: “Para tornar pior o que já estava mau, a causa real dessa febre de última hora da borracha era exatamente aquilo que iria desferir o golpe fatal na economia extrativa da região: após 20 anos de trabalho dedicado de botânicos e de empresários TOMBADO COMO PATRIMÔNIO HISTÓRICO EM 1966, TEATRO TEM CAPACIDADE PARA 701 PESSOAS NA PLATÉIA E NOS CAMAROTES QUEDA BRUSCA DOS PREÇOS DA BORRACHA, EM 1910, DEU INÍCIO A UMA LONGA E DEMORADA DECADÊNCIA 52 britânicos, as plantações de Hevea na Ásia tinham, afinal, começado a produzir borracha em quantidades consideráveis”. Ao contrário do que caracterizava o modo de produção brasileiro, que previa a necessidade de mais e mais seringueiros embrenhando-se cada vez mais profundamente na floresta, a borracha cultivada quase não apresentava obstáculo à expansão, após o período de cinco a oito anos para as árvores atingirem a maturidade. Em termos gerais, as condições na Ásia eram extremamente favoráveis ao cultivo: enormes extensões de terra podiam ser ocupadas sem burocracia, o transporte era feito sem dificuldades e a preços baixos, enquanto a mão-de-obra era abundante e sabidamente barata. Com isso, não é de se estranhar que a área de cultivo da Hevea crescesse de 5,3 milhões de hectares, em 1905, para 46 milhões em 1910, e para incríveis 101 milhões de hectares em 1915. Como aponta Bárbara Weinstein, “se se calcular uma média de 200 árvores por hectare, torna-se logo evidente como o cultivo de Hevea conseguiu, em tão pouco tempo, eclipsar a economia da borracha silvestre”, com suas duas ou três árvores por hectare. O governo brasileiro, tardiamente, tentou reagir, criando o plano Defesa Econômica da Borracha, que incluía prêmios para pessoas que tentassem um “cultivo racional” e recursos para estações agrícolas experi- mentais. De nada adiantou. Mais uma vez é Warren Dean quem sintetiza o momento: “Quando a crise atingiu a região, o crédito privado logo sofreu um colapso, juntamente com o do governo. Os aviadores e patrões estavam endividados, com pouca margem para honrar os exportadores credores. Diz-se que as perdas em 1913 chegaram a mais de 4 milhões de libras. A elite regional lutou para persuadir os investidores estrangeiros a renovarem seus investimentos na coleta da borracha. Procurou fundos para o banco regional proposto, para novos escritórios locais de compra das indústrias da borracha e para mais aquisições de seringais nativos pelas chamadas companhias de plantação”. Mas tudo foi por água abaixo com a queda do preço da borracha. Em 1910, a exportação do produto correspondia a 134 mil contos de réis, para uma produção de 34 mil toneladas. Três anos depois, não alcançava 70 mil contos de réis. A crise se manifestou na falência das casas aviadoras, na queda da produção dos seringais, no caos das finanças públicas. Luis Osiris da Silva assim resumiu a fase de decadência: “A Amazônia, descapitalizada, manietada pela falta de poupanças locais, presa a uma estrutura econômica retrógrada, viu passar desse modo sua chamada fase áurea. E assim, embora tenha sido a pedra de toque da conquista do vale para o Brasil, a borracha ficaria reduzida apenas ao mais vibrante capítulo do homem planiciário para constituição de sua economia”. Se o primeiro ciclo da borracha estava encerrado, outros capítulos na história da região amazônica ainda estavam por ser escritos: a conquista do Acre, a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, a Fordlândia e a triste história dos soldados da borracha. ouro branco: martírio, riqueza e cultura SE O CICLO DA BORRACHA ESTAVA ENCERRADO, OUTROS CAPÍTULOS NA HISTÓRIA DA AMAZÔNIA ESTAVAM POR SER ESCRITOS TEATRO AMAZONAS PASSOU POR COMPLETA RESTAURAÇÃO EM 1990 53 54 do acre a conquista 55 56 Trinta e cinco anos antes de eclodir o problema do Acre, território que o Brasil reconhecia ser da Bolívia, o governo do império do Brasil assinara o Tratado de Ayacucho, em 1867, com aquele país no sentido de mais ou menos fixar áreas limítrofes em comum. Dez anos depois, assombrados pela violenta seca de 1877/79, que devastou o Ceará, milhares de cearenses partiram para os fundões da Amazônia atrás de uma alternativa para a sua sobrevivência. Em 1882, fundaram o Seringal Em- presa, que mais tarde veio a ser a capital do Acre, rebatizada de Rio Branco. Foi assim, na chamada “transumância amazônica”, que os nordestinos adentraram na região do rio Acre, situada no extremo noroeste do Brasil, atrás das valiosas seringueiras. A revolução dos transportes que andava a galopes nos países Europeus e nos Estados Unidos, paralela à expansão da eletricidade, tinha fome por borracha, que naquela época saía toda ela da Amazônia, sendo que 60% era extraída do território acreano. Obviamente que o governo andino não via com bons olhos aquela arribada crescente dos brasileiros. Para os bolivianos, a situação pratica- mente repetia o que ocorrera na década de 1870, com a penetração de trabalhadores chilenos na área do Atacama atrás do salitre, que provocara a Guerra do Pacífico (1879-1883). A Bolívia, derrotada, perdeu sua saída para o Oceano Pacífico, tendo que aceitar ficar isolada dos oceanos do mundo. Em um primeiro momento, José Paravicini, o embaixador boliviano no Rio de Janeiro, determinou que fosse fundado, em 3 de novembro de 1899, um posto alfandegário em Puerto Alonso, para se fazer presente na área. Ato de soberania que, se bem que legítimo, irritou profundamente os seringueiros brasileiros que cercaram o posto e expulsaram os funcio- nários dali. Neste entremeio, entra em cena o aventureiro Luís Galvez, dito “o Imperador do Acre”. Luiz Galvez Rodrigues Arias era um jornalista de origem espanhola, que pretendeu ocupar o vazio deixado pela momen- tânea ausência das autoridades bolivianas, espantadas com a fúria dos seringueiros. Poliglota, duelista audaz e boêmio, Galvez era diretor do jornal Comércio do Amazonas, e escorado pelo governador Ramalho Júnior, tomou a peito realizar uma incursão ao Acre. Tratou-se de uma epopeia rocambolesca, digna das páginas da litera- tura fantástica, visto que Galvez, um sem-raízes que vivia intrigando nas redações, consulados e palácios,terminou não somente proclamando a a conquista do acre IMAGEM DE J.A.CORREA RETRATA A FOME NO CEARÁ EM 1877-78 57 58 Independência do Estado do Acre, na data simbólica de 14 de julho de 1899, como ainda, por nove meses (entre 14 de julho de 1899 e 1º de janeiro de 1900 e depois, entre 30 de janeiro e 15 de março), agiu por lá, nos velhos moldes ibéricos, como um ditador. Assumiu por igual a magistratura, mandou fazer selos, desenhou a bandeira acreana (a estrela vermelha pairando em meio às cores brasileiras), criou ministérios e até um serviço de bombeiros. Por igual abriu escolas para tentar dirimir o analfabetismo dos seringueiros. É possível que, com a captura do Acre, ele quisesse realizar uma espécie de desforra contra os ianques, pois naquele mesmo ano, com o desastre da Espanha na Guerra Hispano-Americana de 1899, Cuba e Porto Rico haviam sido integradas aos interesses dos Estados Unidos. Tanto assim que, na formação do seu “exército”, Galvez conseguiu atrair uns 20 veteranos espanhóis que, foragidos do Caribe e enfiados no interior da Amazônia atrás da fortuna, se mostraram dispostos a embarcar no navio para dar uma lição nos prepostos dos americanos. Para eles, impedir que os ianques ocupassem o Acre era compensar-se da recente derrota. Era um império de selva fechada e de barrancas de rio, habitado por uns 13 mil seringueiros com suas famílias. O sonho delirante acabou A GRANDE SECA NO CEARÁ LEVOU MILHARES A MIGRAREM PARA O ACRE AVENTURAS E TRAPALHADAS DE GALVEZ RENDERAM LIVROS EM PORTUGUÊS E ESPANHOL a conquista do acre 59 MONUMENTO A GALVEZ, EM FRENTE À ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ACRE CAPA DO LIVRO DE ALFONSO DOMINGO SOBRE GALVEZ quando tropas federais brasileiras, atendendo os reclamos dos bolivianos, deslocaram-se para lá para afastá-lo definitivamente. Luiz Galvez, que ao seu jeito, como modos de tirano, implementou o primeiro governo moder- nizador naquelas áreas, ainda que bem pouco conhecido, foi o derradeiro aventureiro espanhol a embrenhar-se na conquista da Amazônia, façanha começada no século XVI com Gonzalo Pizarro e Francisco Orellana. Detido sem resistência no Acre, Galvez, levado de volta para Manaus, viu-se desterrado para Pernambuco, de lá embarcando de volta para a Espanha. Suas aventuras e trapalhadas atraíram a atenção do novelista amazonense Marcio de Souza, que narrou suas peripécias no livro Galvez, imperador do Acre, de 1976. Na Espanha, editou-se em 2003 o livro La Estrela Solitaria, de autoria de Alfonso Domingo, que conta a aventura do espanhol que criou o Estado Independente do Acre, concluindo que ele foi “o único espanhol que ganhou uma guerra contra os Estados Unidos”. O BOLIVIAN SYNDICATE Cada vez ficava mais evidente de que a Questão do Acre repetia Atacama, portanto La Paz precisava agir para manter o território em mãos nacionais. Além de enviar uma força para lá, engendraram um outro 60 a conquista do acre PLÁCIDO DE CASTRO E BARÃO DO RIO BRANCO: FIGURAS DECISIVAS NA HISTÓRIA DO ACRE 61 caminho. A solução encontrada não podia ter sido pior. Fora o próprio Luís Galvez que, trabalhando então para o cônsul boliviano em Manaus, descobriu que os bolivianos estavam em tratativas de passar o controle do território do Acre para o Anglo-Bolivian Syndicate, de Nova York, que tinha o milionário Withridge como seu acionista principal. Era um contrato do tipo conhecido como chartered companies, muito em voga na África naquela época, pelo qual uma empresa concessionária qualquer, europeia ou americana, praticamente assumia as funções soberanas sobre certa área que ela desejava explorar economicamente. Detinha não só o monopólio sobre a produção e exportação, como também auferia os direitos fiscais, mantendo ainda as tarefas de polícia local. Concretizado o contrato, o Bolivian Syndicate, associado à U.S. Rubber Co., que compraria toda a produção da borracha, fatalmente atrairia para dentro da região amazônica o poder dos Estados Unidos que, em última instância, assumiriam, ainda que indiretamente, a proteção dos interesses de uma empresa norte-americana no Acre que gozaria por lá de privilégios majestáticos. Portanto, qualquer de- savença que ocorresse entre os seringueiros e os interesses do Bolivian Syndicate oporia o Brasil aos Estados Unidos. Dois acontecimentos vieram, então, a atrapalhar aqueles planos dos bolivianos: a rebelião acreana de Plácido de Castro e a ação diplomática do Barão do Rio Branco, que considerou a concessão boliviana ao Bolivian Syndicate uma “monstruosidade legal”. A REVOLTA DOS SERINGUEIROS Os conflitos anteriores entre brasileiros e bolivianos – entre os quais a célebre “expedição dos poetas”, uma romântica aventura de intelectuais e estudantes amazonenses liderados por Orlando Corrêa Lopes que, partindo de Manaus a bordo do vapor Solimões, quiseram ajudar os seringueiros a “libertar o Acre”, fracassando lamentavelmente –, fizeram-se quase espontaneamente, sem planos, sem estratégia, sem liderança. Foi então que entrou em cena um novo personagem, que daria outros rumos aos acontecimentos. A vida de Plácido de Castro ainda não gerou um romance a sua altura. Nem os poucos ensaios que lhe foram dedicados conseguiram capturar a diversidade dramática das suas façanhas. Gaúcho de São Gabriel, nasci- do em 9 de setembro de 1873 na estância Tapera da Genoveva, Plácido trazia no sangue o pulsar de um guerreiro. Descendia de uma dinastia de militares: seu pai, Prudente da Fonseca, havia lutado na Guerra do Paraguai; seu avô, José Plácido, esteve nas Guerras Cisplatinas, e um dos seus bisavós, Joaquim José Domingues, participou junto com Borges do Canto na ocupação das Missões, que levou à integração delas ao território do Rio Grande do Sul, em 1801. Quando aluno do Colégio Militar, Plácido não acompanhou seus colegas de farda na época da Revolução Federalista de 1893. Antifloria- nista e anticastilhista, abandonou o exército e foi alistar-se junto ao líder maragato Gumercindo Saraiva (1852-1894), que assombrava o interior do Rio Grande do Sul com sua veia de combatente astuto e muito valente. A VIDA DE PLÁCIDO DE CASTRO AINDA NÃO DEU ORIGEM A UM ROMANCE QUE ESTEJA À ALTURA DE SEUS FEITOS 62 Anistiado no posto de major aos 21 anos ao findar o levante, Plácido de Castro tinha alguns conhecimentos técnicos, e assim tornou-se inspetor do Colégio Militar do Rio de Janeiro e, logo depois, funcionário das docas de Santos. Curiosamente, justo quando estava na função de fiscal do cais do porto, obteve a provisão de agrimensor. Entediado com aquilo, tomando por meio de um amigo ciência da carência de profissionais nas áreas da borracha, embarcou em 1899 para o Amazonas, atrás de fortuna. Pouco depois, quando estava demarcando áreas seringueiras no rio Purus, estourou o escândalo do Bolivian Syndicate, que implicava no arrendamento do território por 20 anos. Os seringais voltaram a se abalar com os gritos de guerra. A notícia do arranjo de La Paz com os americanos foi o elemento catalisador de todas as energias revolucionárias. Desta vez o furor dos acreanos teria um comandante profissional na liderança da insurgência. O tempo dos amadores impul- sivos, como Galvez e os poetas, passara. A Revolução Acreana, por fim, encontrara o seu caudilho. Em uma reunião feita em Caquetá, no 1º de julho de 1902, Plácido e os demais insurgentes, formando a Junta Revolucionária, urdiram as bases do futuro Estado Independente do Acre, prevendo sua integração no Brasil. O gaúcho exigiu de todos o compromisso de obediência indiscutível ao Comandante-em-chefe do Exército do Estado Independente do Acre, não aceitando a dispersão da autoridade ou seu questionamento. Obteve, inclusive, a anuência do representante do governador do Amazonas, o doutor Gentil Norberto, que, mesmo sendo o homem do dinheiro e do fornecimento das armas, aceitou subordinar-se a ele. A experiência de combate adquiridapor ele junto à guerrilha maragata ajudou-o na montagem da estratégia. Em pouco tempo, um exército de 2 mil seringueiros estava à disposição nos arredores de Xapuri. Bastaram 33 deles, capitaneados por um tal de José Galdino, para capturarem o povoado. Em 6 de agosto de 1902, começara a etapa final do processo revolucionário com a imediata proclamação de independência, ato que se seguiu ao arriar a bandeira boliviana. A LUTA NA SELVA Cercando as guarnições enviadas de La Paz com grandes cinturões de homens armados com rifles e com arma branca (por força do ofício, os caucheiros eram exímios lutadores com facas), surgiam de repente do interior dos matos e punham todos os inimigos a correr. Diga-se que, na- quelas condições, caminhando pelas trilhas em meio à selva densa, mais medo tinham das feras e dos insetos do que de enfrentar homens. Em uma campanha relâmpago, uma por uma das praças foram caindo no controle dos revoltosos, até que, 171 dias depois da tomada de Xapuri, em 21 de janeiro de 1903, Plácido de Castro contou com a vitória definitiva. Os combates mais importantes foram o da Volta da Empresa, travado em 18 de setembro de 1902 (ocasião em que os acreanos emboscaram a tropa do coronel Rosendo Rojas), e o da Nova Empresa (onde o mesmo oficial foi novamente batido quando submetido a um cerco em 6 de outubro de 1902). a conquista do acre A EXPERIÊNCIA DE COMBATE ENTRE OS MARAGATOS AUXILIOU PLÁCIDO A MONTAR A MELHOR ESTRATÉGIA DE LUTA 63 PLÁCIDO LIDEROU 2 MIL SERINGUEIROS, MAS TERMINOU MORTO EM UMA EMBOSCADA NO BRASIL UMA DAS RARAS IMAGENS DE PLÁCIDO DE CASTRO EM COMBATE (NO ALTO, À DIREITA, A CAVALO) 64 A operação derradeira foi concluída com o ataque de Plácido ao Porto Acre, manobra que se estendeu por nove dias, de 15 a 24 de janeiro de 1902, e que findou com o içar da bandeira branca por parte do governador boliviano e a assinatura da Carta de Rendição da Bolívia por Dom Lino Romero. Os remanescentes dos destacamentos bolivianos entregaram-se ou deram a volta para o interior do país. Plácido de Castro pouco proveito tirou da vitória. Ainda que trans- formado em mito vivo aos olhos dos seringueiros, não conseguiu fazer frente às práticas traiçoeiras da política das selvas. No dia 8 de agosto de 1908, foi vítima de um atentado tramado pelo coronel Gambino Bezouro e pelo subdelegado Alexandrino José da Silva, que lhe mon- tou uma tocaia. Baleado pelas costas, Plácido veio a falecer dois dias depois na companhia do seu irmão, Genesco, em um lugarejo chamado Benfica. Seu corpo foi transladado para Porto Alegre e sepultado no Cemitério da Santa Casa, sendo que a família mandou gravar sobre a lápide o nome dos 14 jagunços que participaram do crime, para que a infâmia jamais fosse esquecida. O nome dele foi dado a um município que hoje conta com pouco mais de 15 mil habitantes. Voltando a 1902: quando o governo da Bolívia, na presidência do ge- neral José Maria Pando (1899-1904), empenhou-se em uma mobilização de tropas, acenando com uma grande marcha para o Acre, a fim de recuperar o terreno perdido e dar fim nos “flibusteiros brasileiros”, a diplomacia do Barão do Rio Branco entrou em ação. a conquista do acre QUANDO O GOVERNO BOLIVIANO AMEAÇOU MARCHAR SOBRE O ACRE, NA TENTATIVA DE RECUPERAR O TERRITÓRIO PERDIDO, ENTROU EM CENA A HABILIDADE DO BARÃO DO RIO BRANCO O BARÃO DO RIO BRANCO RETRATADO POR J.G. FAJARDO, OBRA EXPOSTA NO CONGRESSO NACIONAL 65 TRATADO DE PETRÓPOLIS ENTROU PARA A HISTÓRIA DA DIPLOMACIA BRASILEIRA O TRATADO DE PETRÓPOLIS Estimaram a multidão que o recepcionou em 10 mil pessoas, que se espalhavam desde o cais do porto até as avenidas do centro do Rio de Janeiro. Todos lá estavam, naquele dia jubiloso de 2 de dezembro de 1902, para saudar o Barão do Rio Branco, o Juca Paranhos, como era conhecido entre os cariocas. Viram-no como um bom filho que retornava à casa, o Brasil. Recepcionaram-no desde o porto com bandas, palmas e aclamações, espalhando os retratos dele por toda parte. Até a estátua do pai do barão, o Visconde do Rio Branco, merecera uma bela ramada de flores. Provavelmente muitos deles, dos que lá estavam presentes para aplaudir o novo ministro das Relações Exteriores, recém vindo da Eu- ropa, tinham estado umas semanas antes na frente do Palácio da Catete para vaiarem estrepitosamente o presidente Campos Sales, quando esse deixava o poder coberto de impopularidade. Enquanto o político paulista saía debaixo de apupos, o chanceler carioca desembarcava com vivas. A república, o novo regime recém implantado no Brasil fazia 13 anos, tinha causado enormes decepções ao povo. Primeiro, pela inflação e pelos escândalos financeiros provocados pelo Encilhamento, em 1890/91; em seguida, a Armada rebelou-se por duas vezes, uma em 1891 e outra em 1893, disparando contra a própria Capital Federal, ocasião em que tam- bém rebentou no Rio Grande do Sul a sangrenta Revolução Federalista de 1893/95 e, mal cauterizada essa, foi a vez da revolta de Canudos fazer correr sangue no sertão da Bahia, em 1896/97. 66 Como uma espécie de arremate de tanta desgraça, o presidente Campos Sales, herdando os rombos orçamentários daquilo tudo, teve que apelar para o Funding Loan, uma renegociação geral da dívida externa do país, acertada em 1898, que implicou em tomar mais 10 milhões de libras esterlinas das casas financeiras. UMA REPÚBLICA SEM BONS EXEMPLOS Deodoro da Fonseca morrera, Floriano Peixoto também, Benjamin Constant fora-se antes de todos os outros, a república não tinha heróis, não oferecia alguém de peso, um vulto ilustre, um varão a lá Plutarco com quem o povo pudesse se empolgar ou se orgulhar. Daí a vibração com o barão, ironicamente um monarquista, alguém do antigo regime derru- bado em 1889, mas que naquele momento muito especial, quase que de depressão coletiva, encarnava, por assim dizer, as melhores expectativas da nacionalidade. Rodrigues Alves (1902-1906), o novo presidente, o convidara para o ministério, e ele, deixando Londres, viera assumir o posto. E chegava em boa hora, porque os atritos na fronteira do Brasil com a Bolívia, lá longe, na floresta amazônica, soltavam chispas para todos os lados. Como observou Álvaro Lins, o melhor biógrafo do barão, “o caso do Acre fora a princípio de geografia e história, depois, uma questão de ordem política e econômica.” Rio Branco estabeleceu dois frontes para evitar o choque militar com a Bolívia. Em um deles, arregimentou o apoio da Casa Rothschild, de Lon- dres, instituição financeira de históricas ligações com o Brasil, para que os banqueiros intermediassem um acordo com o Bolivian Syndicate de Nova York. Operação bem-sucedida, pois os norte-americanos aceitaram uma compensação de 110 mil libras esterlinas para desistir do negócio, o que enfraqueceu o lado do governo de La Paz. O outro, foi mostrar à Bolívia que o Brasil estaria mesmo disposto a ir à guerra na defesa do povo extrativista do Acre, visto que a opinião pública não aceitaria que o governo do Rio de a conquista do acre POR IRONIA, A REPÚBLICA, QUE NÃO TINHA HERÓIS, FESTEJOU O RETORNO AO PAÍS DE UM MONARQUISTA CENTENÁRIO DA MORTE DO BARÃO DE RIO BRANCO REUNIU DESCENDENTES EM BRASÍLIA 67 FOTO DE PEDRO HESS, FEITA EM 1860-1870, MOSTRA PRAÇA DE PETRÓPOLIS 68 a conquista do acre MAPA DA FRONTEIRA BRASIL-BOLÍVIA, DE HORACIO E. WILLIANS (1905) 69 Janeiro cruzasse os braços, caso soubesse que os seringueiros seriam expulsos pelas armas daquela área. Um admirador exaltado da posição tomada pelo barão escreveu na imprensa: “Temos um homem no Itamaraty.” Para dar prova de seriedade, como demonstração de força, ordenou- -se a mobilização de tropas federais em Mato Grosso e no Amazonas para que se deslocassem para o território do Acre. Assim, com essa articulada combinação de diplomacia e do uso do argumento militar, só restou ao governo da Bolívia retroceder. Aceitou