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1 Unidade 2 Aula 1 – Capacitismo Joelma Cristina Santos Belo Horizonte, setembro de 2021 2 Capacitismo ainda não é um termo muito comum, mas tem sido cada vez mais frequente usá-lo, para fazer referência ao preconceito em relação às pessoas com deficiência. O capacitismo manifesta-se ao se considerar que pessoas com deficiência são menos capazes, ou, até mesmo, menos aptas a gerenciarem a própria vida. De modo semelhante ao machismo e ao racismo, o capacitismo parte do pressuposto de que existem pessoas situadas numa posição de inferioridade entre os seres humanos, por apresentarem características corporais diferentes do tipo considerado ideal e dominante. Dessa forma, pessoas são tratadas, como se não possuíssem os mesmos direitos que o padrão normativo (que ocupa o topo da hierarquia) e são consideradas menos capazes, em aspectos físicos, intelectuais e sociais. A base do capacitismo parte, portanto, da premissa de que existe um modelo de corpo normal e perfeito e de que todo corpo diferente desse referencial é um corpo anormal, imperfeito e menos capaz do que esse modelo ideal. No capacitismo, o entendimento é que uma vida com deficiência não vale a pena ser vivida e que determinados corpos precisam ser controlados. Na perspectiva capacitista, a deficiência é algo essencialmente negativo, que deve ser curado, superado ou eliminado, desconsiderando formas distintas de corpos, a menos que eles sejam subestimados (IVANOVICH; GESSER, 2020). Alguns aspectos contribuem para potencializar ou minimizar o capacitismo e, nesse sentido, é preciso considerar que, no nosso contexto, mulheres com deficiência ou mulheres negras com deficiência, por exemplo, vivenciam uma sobreposição de relações discriminatórias, por estarem numa intersecção entre marcadores sociais (diferenças construídas socialmente, mas tratadas como se fossem naturais, como deficiência, gênero e raça). Além disso, a “visibilidade” da deficiência influencia a forma e a intensidade com que o preconceito se manifesta. Por exemplo: a tendência é que uma pessoa com deficiência física, que utiliza cadeira de rodas, seja mais discriminada do que uma pessoa que possui uma das pernas amputadas e utiliza prótese, pois a deficiência dela talvez só seja percebida caso ela caminhe. Por outro lado, uma deficiência que não seja identificada/visível à primeira vista, como no caso das pessoas com perda auditiva, baixa visão, doenças musculares raras etc., são objeto de desconfiança social e sofrem com o descrédito em relação à sua demanda por direitos à acessibilidade, como se as suas solicitações fossem sinal de oportunismo, preguiça conta Highlight conta Highlight 3 ou outros desvios morais, o que as leva, muitas vezes, a serem humilhadas e rejeitadas socialmente (DAVIS, 2005). O capacitismo individual é uma atitude desfavorável (preconceito) em relação às pessoas com deficiência. Ao se manifestar publicamente (num tratamento desrespeitoso e/ou violento, em relação às pessoas com deficiência), a pessoa capacitista pode receber intensa condenação social. Mas, como a sociedade costuma repudiar esse tipo de atitude preconceituosa, as pessoas capacitistas apresentam, muitas vezes, comportamentos desejáveis socialmente, embora continuem evitando conviver com pessoas com deficiência, por associá-las a pessoas menos capazes, com as quais não valeria a pena se envolver. Além do capacitismo individual, também existe o capacitismo estrutural, que é uma ideologia, ou seja, um sistema de ideias que oferece justificativas lógicas, para a forma de organização da sociedade. O capacitismo constituiu-se de forma estrutural na nossa sociedade, pois as instituições e as relações sociais tendem a se apoiar sobre práticas discriminatórias. Você se lembra de quando discutimos, nas nossas primeiras aulas, como a discriminação de pessoas com deficiência ocorreu ao longo de toda a História e como as práticas de inclusão se tornaram mais efetivas somente nas últimas décadas? O resultado de todo esse processo social e cultural é a valorização da presença de pessoas sem deficiência, nos espaços de poder e de tomada de decisão, além da criação de barreiras de ordens diversas, que impedem o acesso e a participação das pessoas com deficiência. A “normalização” do preconceito A estruturação social define aquilo que chamamos de normal em nosso cotidiano, de modo que, do ponto de vista político, é normal termos homens brancos no poder, por exemplo. Assim, consideramos menos normal ou natural termos uma mulher, uma pessoa negra, menos ainda uma pessoa com deficiência em cargos de poder na sociedade. Do ponto de vista econômico, é normal ou natural associarmos pessoas negras a pessoas com menor poder aquisitivo e como moradores típicos de comunidades pobres, com trabalhos de baixa qualificação ou em situação de trabalho informal. conta Highlight conta Highlight 4 Da mesma forma, pessoas com deficiência, nos meios pobres, causam-nos menos comoção do que pessoas com deficiência em classes sociais mais abastadas. Do ponto de vista da sociedade, a proteção jurídica é vista como mais urgente, para classes médias e altas da população. Se uma criança de classe média morre assassinada, a notícia é veiculada em todas as mídias durante muito tempo. Se uma criança negra e pobre morre baleada, a notícia não gera impacto. Se uma criança com deficiência morre, o fato tende a ser visto, até mesmo, com certo alívio... O que esses exemplos mostram é que a sociedade segue uma lógica considerada natural de que alguns grupos são hierarquicamente superiores a outros. Mães de meninos negros e gays, por exemplo, têm um medo enorme de que seus filhos sofram violência na rua, por causa dessa hierarquia que elas sabem que existe. Mães de pessoas com deficiência têm uma grande preocupação com o futuro de seus filhos, temendo, muitas vezes, morrer antes deles, pois se angustiam por seus futuros, já que a sociedade, com frequência, nega-lhes a possibilidade de desenvolvimento da independência e da autonomia, ou mesmo de construírem relações de interdependência em que possam confiar. E por que existe essa hierarquização? Por que homens brancos heterossexuais são considerados mais capazes? Negros, mulheres, pessoas homoafetivas, pessoas com deficiência não seriam igualmente capazes, se tivessem oportunidades concretas de desenvolvimento? Você pode até pensar que todos têm acesso igual à educação e que esta é, então, uma questão de mérito... Mas a educação oferecida à criança rica é a mesma da criança pobre? A educação da criança considerada típica é a mesma da criança com deficiência? Seus potenciais de desenvolvimento são igualmente estimulados, considerando suas diferenças? A hierarquização das possibilidades/capacidades dos grupos faz com que percebamos as distinções entre as pessoas como se fossem normais e naturais. Além de não refletirmos sobre essa ordenação social, também não identificamos que são questões historicamente construídas. Numa perspectiva mais ampla, é necessário compreender que o capacitismo estrutural oprime as pessoas com deficiência e consiste na maior barreira à inclusão, pois dificulta, ou, mesmo, impossibilita o acesso a direitos fundamentais, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. O capacitismo, tanto individual quanto estrutural, está presente nas barreiras atitudinais, que são aquelas erguidas por atitudes ou comportamentos que impedem conta Highlight conta Highlight 5 ou prejudicam a plena participação das pessoas com deficiência (Lei nº 13.146, 2015). Como exemplos de barreiras atitudinais, podemos citar o desrespeito às vagas de estacionamento destinadas às pessoas com deficiência, a infantilização de adultos com deficiência (tratando-os como se fossem crianças, falando com umavoz mais aguda que o habitual), ou a negligência em relação à educação de alunos com deficiência, por acreditar que eles frequentam a escola somente para socialização. Além disso, todas as barreiras sociais, como as urbanísticas, arquitetônicas, comunicacionais e tecnológicas, são originadas nas barreiras atitudinais, pois, se as pessoas que projetam ruas, prédios, placas e equipamentos considerassem as várias formas humanas de interagir com o mundo, a sociedade seria acessível a todas as pessoas. Entender o capacitismo como estrutural não quer dizer que ele seja algo incontornável, mas que, ao contrário, por estar presente em todos os ambientes, é que é necessário contribuir para a sua desconstrução em qualquer lugar em que estejamos. É por meio do esclarecimento, da formação e da identificação dos padrões normativos que mantêm a sociedade tal como é que se torna possível transformá-la. Um outro exemplo de como o capacitismo está naturalizado no cotidiano são as expressões comuns no nosso vocabulário, que, ainda que não sejam, inicialmente, entendidas como falas preconceituosas, são vistas como ofensivas pelas pessoas com deficiência. Por exemplo: expressões como “o grupo não tem perna pra isso”, “que mancada”, “dar uma de João sem braço” e “a desculpa do aleijado é a muleta” remetem, respectivamente, à incompetência, a falhas cometidas, a uma pessoa desentendida/desinteressada, e à preguiça de quem que quer evitar um trabalho (ou, pior, como se as pessoas com deficiência usassem a deficiência para aparentar incapacidade). O ditado “em terra de cego quem tem um olho é rei” faz um juízo de valor de que cegos são inferiores a quem enxerga com os olhos e a expressão “perdido igual cego em tiroteio” passa a ideia de que cegos são incapazes de fazer as mesmas atividades que pessoas que enxergam com os olhos, além de equipará-los a pessoas atrapalhadas. Metáforas como “você é retardado?”, “está surdo?”, “paralisado de medo” ou “cego de raiva” referem-se a características físicas de forma negativa e fortalecem a imagem das pessoas com deficiência como imperfeitas ou sem valor. Dizer que uma pessoa está “confinada a uma cadeira de rodas” caracteriza conta Highlight conta Highlight 6 a pessoa que usa a cadeira, como alguém passivo ou aprisionado num equipamento de forma indesejada, quando, na verdade, a cadeira de rodas é capaz de proporcionar liberdade e autonomia para quem a utiliza. O modo como nos comunicamos está sempre evoluindo e a permanência de expressões desse tipo demonstra o quanto o capacitismo está presente nas nossas práticas cotidianas, mesmo quando nos posicionamos como pessoas sem preconceito. Desconstruindo o capacitismo Tendo em vista que as percepções acerca da deficiência são comunicadas socialmente e cristalizadas em conversas rotineiras, piadas e histórias que as pessoas contam, ações anticapacitistas simples podem ser promovidas, ao mudarmos a maneira como nos comunicamos, evitando o uso de expressões que denotam preconceito em relação às pessoas com deficiência. Podemos ainda orientar as pessoas ao nosso redor sobre como certos termos refletem o capacitismo, mesmo que esta não seja a intenção. Conversar com outras pessoas sobre a deficiência, visando à redução do capacitismo, contribui para que certos rótulos sejam desconstruídos e para que a inclusão social seja um tema tratado sob o ponto de vista da equidade, e não da compaixão. Além disso, tão importante quanto compartilhar informações, é promover a diversidade na convivência. Quando uma pessoa é capacitista, ela fica restrita a opiniões e prejulgamentos negativos, não possibilitando a si mesma ter algum contato ou conhecimento sobre o outro (visto como diferente), o que poderia propiciar a formação de novos conceitos. Estudos têm demonstrado que é exatamente o contato (não superficial) entre grupos socialmente considerados diferentes que pode diminuir o preconceito e levar a interações positivas, dependendo das condições em que essas relações ocorrem, como na necessidade de cooperação entre os grupos e na busca conjunta por objetivos em comum (REZENDE JÚNIOR, 2019). Conhecer mais sobre os diversos aspectos relacionados às pessoas com deficiência e debater as formas como o capacitismo opera no cotidiano são aspectos essenciais para a redução do preconceito ainda presente na sociedade. Assim, é possível concretizar ações de real impacto na vida das pessoas com deficiência e, ainda que, às vezes, essas ações pareçam gerar mudanças muito pequenas, a articulação das práticas individuais pode contribuir para uma sociedade mais inclusiva. conta Highlight conta Highlight conta Highlight 7 Você pode ajudar de forma individual e pode também auxiliar na mobilização e inspiração de outras pessoas, questionando a organização capacitista da sociedade e pressionando as estruturas de poder da sociedade a mudar. As dificuldades e a premissa de que a sociedade é assim, não são justificativas plausíveis para que reproduzamos atitudes e ações capacitistas em nosso cotidiano. A manutenção dessas justificativas não nos libera da responsabilidade, pois um crime cometido sem intenção continua sendo um crime. Podemos tentar pequenas mudanças todos os dias, até o dia em que daremos conta de que uma grande mudança aconteceu. Basta olharmos para o passado e vermos quantas mudanças ocorreram ao longo do tempo. Referências BRASIL. Lei n. 13.146, de 06 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 09 maio 2021. DAVIS, N. Invisible Disability. Ethics, v. 116, n. 1, p. 153-213, out. 2005. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/10.1086/453151?seq=1> Acesso em: 24 mai. 2021. IVANOVICH, A. C. F.; GESSER, A. F. Deficiência e capacitismo: correção dos corpos e produção de sujeitos a(políticos). Quaderns de Psicologia, v. 22, n. 3, p. 1-21, 2020. Disponível em: <https://www.quadernsdepsicologia.cat/article/view/v22-n3- friggi-marivete/1618-pdf-pt>. Acesso em: 18 maio 2021. REZENDE JÚNIOR, A. R. N. Os impactos do contato com pessoas com diferenças funcionais nas concepções de deficiência de futuros gestores. 2019. 70 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, MG, 2019. Disponível em: <https://ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/ppgpsi/DISSERTACAO%20- %20ARTIGO%20FINAL.pdf>. Acesso em: 18 maio 2021. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm https://www.jstor.org/stable/10.1086/453151?seq=1 https://www.quadernsdepsicologia.cat/article/view/v22-n3-friggi-marivete/1618-pdf-pt https://www.quadernsdepsicologia.cat/article/view/v22-n3-friggi-marivete/1618-pdf-pt https://ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/ppgpsi/DISSERTACAO%20-%20ARTIGO%20FINAL.pdf https://ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/ppgpsi/DISSERTACAO%20-%20ARTIGO%20FINAL.pdf