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< DESCRIÇÃO Histórico e importância da química medicinal, bem como sua origem nos produtos naturais relevantes na descoberta de novos fármacos. PROPÓSITO Apresentar a química medicinal como uma área multi e interdisciplinar que engloba o conhecimento dos produtos naturais como precursores para o desenvolvimento de fármacos é importante para a formação do profissional farmacêutico, visto que o conhecimento dos processos envolvidos no planejamento racional de um fármaco facilitará a atuação na área. OBJETIVOS MÓDULO 1 Descrever o histórico da química medicinal e a sua importância para as ciências da saúde MÓDULO 2 Reconhecer a importância dos produtos naturais na origem e descoberta de novos fármacos MÓDULO 3 Descrever as etapas do planejamento e a cadeia de desenvolvimento dos fármacos INTRODUÇÃO A química medicinal é uma área multidisciplinar que envolve diferentes aspectos da biologia, química orgânica, química teórica, farmacologia, ciências médicas e farmacêuticas. Neste conteúdo, você conhecerá essa área fascinante desde a origem da descoberta dos fármacos, a utilização dos produtos naturais, passando pelo planejamento e descoberta de compostos biologicamente ativos. Abordaremos também alguns termos, como composto protótipo, grupo farmacofórico, auxofórico e toxicofórico. MÓDULO 1 Descrever o histórico da química medicinal e a sua importância para as ciências da saúde HISTÓRICO E IMPORTÂNCIA DA QUÍMICA MEDICINAL Os produtos naturais usados como medicamentos, seja na forma de óleos, unguentos, seja na forma de extratos de plantas para a cura ou alívio de dores, datam da antiguidade. O papiro de Ebers, um dos textos mais antigos e famosos sobre medicina, tem aproximadamente 3500 anos e foi encontrado no Egito antigo. Esse documento prescrevia o uso terapêutico de alguns óleos, como os de girassol, açafrão, alho, terebentina e outros. Vamos ver neste módulo que realmente a fitoterapia ou tratamento por meio das plantas teve início há muito tempo e é a base para a química medicinal moderna! ANTIGUIDADE: HIPÓCRATES, GALENO E PARACELSUS Desde épocas remotas na China antiga, por volta dos anos 2600 a.C., já havia relatos de estudiosos como Huang Ti, FuHsi e Shen-Nong, que utilizavam diversas ervas para fins medicinais. Na Índia antiga também temos os textos conhecidos como Ayurvedas , que já relatavam a utilização de óleos naturais no tratamento de várias doenças. A medicina ayurveda oriental, que se popularizou no Brasil a partir da década de 1980, é baseada nesses textos e na interação e harmonia entre corpo, mente e alma. Medicina ayurveda oriental. Não podemos deixar de destacar as importantes contribuições do médico grego Pedanius Dioscórides, autor greco-romano considerado pai da farmacognosia em função de sua obra De matéria médica , que foi a principal fonte de informação sobre drogas medicinais por vários séculos, que já descrevia, dentre outros remédios, o uso de ópio como medicamento e como veneno. VOCÊ SABIA Apesar de o uso do ópio já ter sido relatado há tanto tempo, foi somente no século XIX que a morfina, alcaloide encontrado no ópio, foi descoberta. A morfina é usada para o alívio de dores muito fortes, porém causa dependência física e psíquica e deve ser somente utilizada sob supervisão médica. Vejamos outros nomes que deixaram importantes contribuições para o desenvolvimento da medicina e das ciências farmacêuticas: Hipócrates, o “Pai da Medicina”, descreveu para o tratamento das doenças uma dieta alimentar adequada observando os constituintes dessa dieta. De acordo com a alimentação, ingestão e o processamento desses alimentos, poderia haver um desequilíbrio do que ele chamou humores ou fluidos do corpo, que eram a bile amarela, a bile negra, a fleuma ou linfa e o sangue. Segundo ele, esses quatro humores deveriam permanecer em equilíbrio para se ter saúde. Hipócrates. Platão e seu discípulo Aristóteles também contribuíram para o início do entendimento das doenças, porém Platão tinha uma visão, digamos, mais espiritualizada, pregando o conceito da existência da alma que predomina sobre o corpo, além de pensar como Hipócrates em relação à necessidade do equilíbrio entre os fluidos corporais. Aristóteles já tinha um pensamento mais racional e científico baseado nos quatro elementos, terra, fogo, ar e água. Ainda na Grécia Antiga, Claudius Galeno, considerado o “Pai da Farmácia”, contribuiu em diversas áreas como anatomia, fisiologia, patologia e terapêutica. Em nossa área farmacêutica, destacamos suas famosas prescrições, as preparações galênicas. Galeno dava maior importância ao uso dos fitoterápicos do que aos de origem mineral e animal. Claudius Galeno No final da Idade Média, surge Paracelsus, grande revolucionário dos conceitos da medicina prática e terapêutica. Ele nos ensina a importância dos produtos naturais quando diz: “A medicina se fundamenta na natureza, a natureza é a medicina, e somente naquela devem os homens buscá-la. A natureza é o mestre do médico, já que ela é mais antiga do que ele e ela existe dentro e fora do homem”. Ele ainda afirmava que cada doença tinha o seu remédio específico para curá-la. Podemos dizer que, de certa forma, com Paracelsus surgiram as bases da química medicinal. Nessa mesma época, o isolamento, a descoberta e utilização de substâncias químicas de origem natural para tratar doenças deram condições para a futura investigação de novos fármacos não naturais. Paracelsus também já pregava que os remédios para tratar as doenças deveriam ser de origem química porque o corpo humano seria um grande conjunto de processos químicos. Assim, ele utilizava enxofre, ópio, mercúrio, ferro, arsênio e sulfato de cobre na preparação de medicamentos. Paracelsus SÉCULOS XIX-XX: PRINCIPAIS CONTRIBUIÇÕES A partir dessa época, a química medicinal começa a aparecer como ciência necessária ao desenvolvimento de novos fármacos. No final do século XIX, substâncias sintéticas começam a ser introduzidas na terapêutica a partir de compostos de origem natural, como veremos mais detalhadamente no próximo módulo. Em 1899, com o desenvolvimento da química orgânica, foi sintetizado o ácido acetilsalicílico, a Aspirina (Figura 1A), e comercializado pela Bayer. No final do século XIX e início do século XX, temos importantes contribuições de Paul Ehrlich, Prêmio Nobel de Medicina em 1908 e considerado o “Pai da quimioterapia”. Ehrlich teve reconhecimento mundial com a descoberta do Salvarsan (Figura 1B) e do Neosalvarsan, utilizados na época para o tratamento da sífilis. Ele também introduziu o conceito de receptores específicos, afirmando que os fármacos agiam a partir de interações químicas com esses receptores, uma das bases da química medicinal. Figura 1: Estruturas tridimensionais da Aspirina (A) e Salvarsan (B). Os trabalhos pioneiros de Charles Overton e Hans Horst Meyer correlacionando a lipofilia com a atividade biológica dos compostos nos deram a base para os estudos de determinação de coeficientes de partição tão importantes na química medicinal. Em 1869, os pesquisadores Fraser e Brown falaram pela primeira vez das relações entre a estrutura química e a atividade biológica das substâncias, SAR, estudando derivados da morfina, estricnina e atropina. Já as relações quantitativas entre a estrutura química e a atividade biológica, QSAR, só foram descritas em 1964 por Corwin Hansch. Aproveitando os trabalhos de Overton e Meyer, Hansch passou a considerar o uso do coeficiente de partição (log P) como medida da lipofilia das substâncias. javascript:void(0) LOG P O valor de log P é um parâmetro muito utilizado nos estudos QSAR, sendo determinado pela partição de um composto entre dois líquidos imiscíveis. Outra contribuição marcante para a área foi a proposta do modelo de “chave-fechadura” para as interações enzima-substrato, baseando-se na complementariedade dessas estruturas feitas por Emil Fischer em 1894. Essa complementariedadese daria por meio de diversos tipos de interações entre as partes como, por exemplo, ligações de hidrogênio, forças de Van der Waals e interações hidrofóbicas. Atualmente, sabemos que esse modelo está ultrapassado, porém foi de grande valia porque permitiu extrapolar e entender as interações entre os fármacos e seus receptores. Seguindo a ordem cronológica das descobertas importantes na química medicinal, jamais poderemos deixar de mencionar a descoberta, ao acaso, da penicilina, em 1928, por Alexander Fleming. Esse marco na história foi um enorme avanço no tratamento de doenças infecciosas que antes matavam milhares de pessoas e é o ponto de partida para o desenvolvimento de novos antibióticos. Ilustração do fungo Penicillium e da molécula da penicilina em 3D. Voltando a falar sobre as interações entre os fármacos e seus receptores que têm como resultado o desencadeamento de diversos processos bioquímicos e terminam com a resposta biológica, a teoria do encaixe induzido, descrita por Koshland e seus colaboradores, vem mostrar que esse processo não era algo tão simples como demonstrava o modelo chave- fechadura. Essa nova teoria sugeria que a interação do fármaco, ou podemos dizer de forma mais geral de um substrato, com seu receptor/enzima induzia a uma mudança conformacional levando a adotar a conformação responsável pelo processo catalítico. EXEMPLO Podemos observar diversos exemplos desse modelo que pode ser demonstrado pelas interações de uma substância análoga à neocarzinostatina, um produto natural que apresenta atividades antitumoral e antibiótica. Essa substância tem como sítio alvo uma molécula de DNA que sofre mudanças conformacionais quando ambas estão ligadas na forma de um complexo ligante- receptor. Vários estudos comprovaram as diferenças conformacionais entre o DNA sozinho e complexado com o ligante, comprovando a teoria do encaixe induzido. Outro exemplo é a molécula da hirustasina, que foi isolada da sanguessuga Hirudo medicinalis e age pela inibição de uma enzima do tipo serino protease chamada de calicreína. Foi observado que ocorre um movimento da região N-terminal da hirustasina, que é um peptídeo, quando ela está complexada com a enzima calicreína, o que difere de quando ela está na forma livre. Nesse caso, a grande flexibilidade do ligante (a hirustasina) permitiu seu reconhecimento pela enzima alvo por um encaixe induzido. Atualmente sabemos que tanto o ligante quanto seu receptor em geral são estruturas flexíveis, e tratar essa interação pelo modelo rígido tipo chave-fechadura não corresponde muito à realidade. ERA MODERNA E AS NOVAS TECNOLOGIAS Nas últimas décadas, observamos um grande salto na química medicinal devido aos avanços em várias áreas como a química analítica que, por meio da cristalografia (técnica que estuda a estrutura e propriedades das substâncias na forma de cristais) e da ressonância magnética nuclear (RMN – é uma técnica espectroscópica utilizada como ferramenta para determinar a estrutura de um composto e que se baseia no comportamento dos núcleos atômicos que possuem estado de spin -1/2 e +1/2 (1H, 13C, 15N, por exemplo), quando submetidos à determinado campo magnético externo), contribuiu muito para a determinação estrutural das substâncias e seus alvos biológicos. COMENTÁRIO O computador começou a ser usado e atualmente é indispensável em várias etapas do processo de planejamento e descoberta de novas moléculas bioativas, seja pelo entendimento das interações molécula-receptor, por meio de suas estruturas tridimensionais e seus comportamentos dinâmicos, seja por cálculos de propriedades físico-químicas, proposição de mudanças estruturais, dentre outras muitas contribuições. Atualmente, a modelagem molecular é ferramenta fundamental na área. QUÍMICA COMBINATÓRIA Na década de 1990, surge a química combinatória como mais um avanço na área e uma nova estratégia de se obter o maior número de moléculas no menor tempo possível, aumentando muito a probabilidade de se descobrir um novo fármaco. A química combinatória consiste na síntese de inúmeros produtos simultaneamente, formando o que chamamos de quimiotecas, ou seja, bibliotecas de compostos. Essas quimiotecas são testadas farmacologicamente em ensaios biológicos automatizados, os chamados HTS (do inglês high throughput screening) que permite a avaliação de muitas substâncias. A química combinatória serve tanto para descobrir novas moléculas ativas como para melhorar sua atividade biológica e reduzir seus efeitos indesejáveis como a toxicidade, por exemplo. Para isso, todas as etapas do processo devem ser bem planejadas, principalmente os métodos de síntese que serão usados. Dentre eles, temos a síntese em solução ou a síntese em fase sólida que se utiliza um polímero insolúvel. As quimiotecas também podem ser construídas por meio da síntese de compostos puros, isolados (síntese em paralelo) ou pela síntese de misturas de compostos. Essas misturas obtidas são testadas dessa forma mesmo, como misturas, e caso tenham algum resultado positivo, a mistura é separada e investigada. A substância sorafenibe (Nexavar), usada no tratamento de cânceres renal e hepático, foi descoberta utilizando o HTS de uma quimioteca produzida por química combinatória. Nesse ensaio, foram testados mais de mil compostos, sendo inicialmente identificado um derivado ativo com IC50 de 17 mM para inibição da enzima quinase. Observamos que somente a introdução de uma metila no anel benzeno desse composto fez com que a atividade melhorasse em 10 vezes (IC50 1,7 mM). Outras modificações estruturais foram feitas racionalmente, usando princípios do bioisosterismo, como a substituição do anel tiofeno pelo isoxazol e introdução de uma piridina (que fez melhorar a solubilidade em água) que otimizaram a atividade, levando o valor de IC para a ordem de nanomolar (IC50 230 nM). Outras modificações estruturais levaram à obtenção do fármaco sorafenibe, que apresentou IC 50 de 25 nM (Figura 2). BIOISOSTERISMO O bioisosterismo é uma estratégia de alteração de um composto-protótipo, que se baseia na modificação de partes das moléculas por outras que apresentem características semelhantes, tais como volumes moleculares, formas, distribuições eletrônicas e propriedades físico- químicas de compostos ou subunidades estruturais de forma que o composto modificado apresente atividades biológicas parecidas com aquelas do composto-protótipo. Figura 2: Planejamento do fármaco sorafenibe e sua estrutura tridimensional. Estudamos nesse módulo os primórdios da química medicinal quando ela nem mesmo tinha esse nome. Vimos a valiosa contribuição de vários pesquisadores, pensadores e filósofos sem deixar de mencionar a importância dos produtos naturais para a descoberta de novas substâncias bioativas, futuros fármacos. Esse assunto será abordado mais profundamente no próximo módulo. Atualmente, sabemos que a química medicinal ou farmacêutica envolve não somente o planejamento racional de moléculas bioativas, mas também tudo relacionado a isso, além do isolamento de substâncias naturais, síntese, estudos de elucidação estrutural, estudos das relações existentes entre as estruturas químicas e suas atividades biológicas e toxicológicas, compreensão das interações das moléculas e seus sítios-alvo, utilização de novas tecnologias para o planejamento e descoberta de fármacos, dentre outros estudos. A QUÍMICA MEDICINAL DO PAPIRO DE EBERS ÀS PERSPECTIVAS FUTURAS O especialista Emerson Peçanha apresentará uma linha do tempo, ressaltando os principais marcos históricos da química medicinal. Finalizando, o especialista citará as perspectivas da química com aplicações medicinais VERIFICANDO O APRENDIZADO MÓDULO 2 Reconhecer a importância dos produtos naturais na origem e descoberta de novos fármacos PRODUTOS NATURAIS E A DESCOBERTA DE FÁRMACOS Sabemos que desde sempre o homem se utiliza da natureza, especialmente das plantas, para tratar seusmales. Nos primórdios, ele usava os produtos naturais tal como os encontrava ou, no máximo, como preparações próprias de forma bastante primitiva. Com o passar do tempo, o avanço da biologia e da química nos permitiu o uso das substâncias puras naturais, pelo desenvolvimento de técnicas de extração e purificação, ou sintéticas, pelo domínio dos métodos de síntese total ou parcial de produtos naturais. Destacamos a seguir alguns produtos naturais que tiveram papel muito importante na descoberta de fármacos. PRODUTOS NATURAIS DE ORIGEM VEGETAL Os glicosídeos digitálicos são compostos de origem vegetal considerados dos mais antigos com aplicações terapêuticas. Essa classe de compostos é usada no tratamento de doenças do coração, como a digoxina. Estrutura química da Digoxina. Não podemos deixar de mencionar a classe de produtos naturais dos alcaloides a qual pertencem a morfina, atropina e quinina. A morfina deu origem à classe dos fármacos analgésicos centrais, como o tramadol. Esse fármaco foi planejado pelos químicos medicinais usando estratégias de simplificação molecular na tentativa de suprimir os efeitos de tolerância e dependência da morfina. Estruturas químicas da morfina e tramadol. Já a quinina foi a base para o desenvolvimento dos compostos antimalariais do tipo quinolínicos, tais como a primaquina e cloroquina. Estruturas químicas da quinina, primaquina e cloro quina e imagem da Chinchona . Ainda falando sobre alcaloides, destacamos a importância dos compostos vincristina e vimblastina, isolados da Vinca rosea. Esses fármacos são eficazes no tratamento de leucemias e são extraídos de fonte natural pela empresa farmacêutica Eli Lilly. Estruturas químicas da vincristina e vimblastina e imagem da flor da Vinca . Duas outras substâncias utilizadas contra o câncer isoladas de fontes naturais vegetais são o paclitaxel (Taxol) , isolado das cascas da árvore Taxus brevifolia (Figura 3), e a camptotecina, isolada da árvore chinesa Camptotheca acuminata (Figura 4). A estrutura química desafiadora do paclitaxel e a introdução de um novo mecanismo de ação com a sua descoberta ainda estimulam os químicos medicinais pela busca por novos fármacos anticâncer por meio de planejamento e síntese de análogos do Taxol. Figura 3: Estrutura química do Taxol e imagem da árvore Taxus brevifolia . Figura 4. Estrutura química da camptotecina e imagem da árvore Camptotheca acuminata . Na medicina oriental, principalmente a chinesa e indiana, são utilizadas, há tempos, as plantas na terapia. Elas sempre contribuíram muito para a identificação de novas substâncias bioativas e temos como exemplo a utilização da Ginkgo biloba. Dessa árvore ancestral foram isolados importantes compostos chamados ginkgolídeos A, B, C e M com ação antitrombótica, que agem pelo antagonismo dos receptores do fator de ativação plaquetária, o PAF. PRODUTOS NATURAIS DE ORIGEM NÃO VEGETAL Muitas vezes temos a ideia errônea de que produtos naturais são somente aqueles provenientes das plantas. Devemos saber que muitos compostos farmacologicamente ativos também são oriundos de outras fontes naturais como fungos, bactérias e origem marinha, conforme veremos a seguir. COMPOSTOS FARMACOLOGICAMENTE ATIVOS ORIGINADOS DE FUNGOS Uma das mais importantes, senão a mais importante, classes de fármacos isolados de fungos são os antibióticos β-lactâmicos, como a penicilina G. Em 1928, o pesquisador Alexander Fleming identificou a penicilina G a partir do fungo Penicillum notatum, que apresentou atividade antibacteriana. Colônia de fungos Penicillium e estrutura química geral das penicilinas. Após essa descoberta e graças a ela, tivemos uma nova era de melhor qualidade de vida para a população. As primeiras penicilinas eram somente administradas por via injetável devido às suas estruturas sensíveis ao meio ácido do estômago, onde eram inativadas. Devemos destacar que a descoberta das novas gerações de antibióticos dessa classe ilustra o maravilhoso trabalho dos químicos orgânicos e medicinais. Eles foram capazes de planejar modificações estruturais nas penicilinas e sintetizar compostos mais eficazes, com maior espectro de ação e principalmente que pudessem ser administrados por via oral pela eliminação dos inconvenientes farmacocinéticos. ÁCIDO LISÉRGICO Os alcaloides do Ergot isolados do fungo do gênero Claviceps purpurea são conhecidos desde o século XIX por sua atividade estimulante do miométrio, principalmente atribuída aos compostos semelhantes ao ácido lisérgico. Nesses alcaloides, encontramos também a ergotamina que, por modificações estruturais, deu origem ao fármaco semissintético metisergida (Figura 5) usado para tratar enxaquecas e cefaleias crônicas. Em 1943, quando pesquisava a estrutura do ácido lisérgico, o pesquisador Albert Hoffmann sequer sonhava que descobriria uma das drogas alucinógenas mais fortes, a dietilamida do ácido lisérgico, mais conhecida como LSD (Figura 5). O LSD atua no sistema nervoso central nos receptores da serotonina chamados serotoninérgicos e devemos saber que é uma droga ilícita muito forte e que provoca sérias alterações no funcionamento do cérebro. Figura 5. Estruturas químicas dos alcaloides do Ergot. Uma história de sucesso quando falamos de fármacos campeões de venda no mercado mundial é a atorvastatina, um fármaco antilipêmico que reduz o colesterol pela inibição da enzima α-hidroximetilglutaril Co-A redutase (HMGCoAR). A atorvastatina pertence à classe das estatinas, e a molécula precursora dessa classe foi isolada do fungo Penicillium citrinum e chamada de compactina (Figura 6). Após a constatação da eficácia da compactina na inibição da enzima HMGCoAR, diversos pesquisadores se empenharam por compostos mais ativos identificando a lovastatina de outras espécies de fungo. A lovastatina foi a precursora da sinvastatina (Figura 6), primeira representante das estatinas a ser lançada no mercado, em 1986. Figura 6. Estruturas químicas das estatinas. COMPOSTOS FARMACOLOGICAMENTE ATIVOS ORIGINADOS DE BACTÉRIAS Não somente os fungos, mas também as bactérias são fontes importantes de moléculas bioativas. Temos como exemplo a classe de compostos chamados de epotilonas, que apresentam atividades antitumorais. As epotilonas apresentam estruturas químicas bastante interessantes, pois são macrociclos de 16 membros, mostrando-nos mais uma vez como a natureza é uma incrível criadora de moléculas complexas! A epotilona B, isolada de Sorangium cellulosum, deu origem ao fármaco ixabepilona (Ixempra). Se observamos bem as estruturas dessas duas moléculas, vemos que houve somente uma troca bioisotérica, na qual um grupamento éster foi substituído pela amida. SAIBA MAIS E vocês sabem em que resultou essa “pequena” modificação estrutural? A função amida é mais resistente ao metabolismo do que o éster, dessa forma a ixabepilona apresenta uma farmacocinética muito melhor que o produto natural precursor, além de atuar em muitas linhagens de células cancerosas. Estruturas químicas da epotilona B e ixabepilona. COMPOSTOS FARMACOLOGICAMENTE ATIVOS ORIGINADOS DE ESPÉCIES MARINHAS Além das plantas e microrganismos, o mar é um importante reservatório de moléculas bioativas de enorme diversidade estrutural. Desde a década de 1950, os produtos de origem marinha estão sendo estudados, e podemos mostrar como exemplo inicial a descoberta e o isolamento dos nucleosídeos chamados espongotimidina. Eles foram isolados da esponja marinha Tethya crypta e a partir desses compostos foram planejados os análogos sintéticos chamados adenina-arabinosideo (Ara-A ou vidarabina) e a citosina-arabinosideo (Ara-C ou citarabina). Atualmente eles são usados na terapêutica como antiviral para os vírus da herpes simples e varicela zoster (Ara-A) e no tratamento de alguns tipos de leucemias (Ara-C). Estruturas químicas das substâncias espongotimidina, ara-A e ara-C. A zidovudina (AZT), um dos primeiros fármacos usadosno combate ao vírus HIV, foi desenvolvido a partir de compostos isolados de algas marinhas e inicialmente testado contra o vírus da herpes sem apresentar uma boa atividade biológica. O AZT foi posteriormente testado para inibição da enzima transcriptase reversa do HIV, apresentando ótima atividade. A trabectedina, isolada de ascidian Ecteinascidia turbinata, é outro exemplo de molécula de origem marinha. Podemos observar que ela possui uma ponte de enxofre, o que não é muito comum nos produtos naturais (Figura 7). A síntese total da trabectedina foi descrita em 2000, e diversos análogos sintéticos e semissintéticos com estruturas mais simples foram obtidos. A trabectedina comercializada com o nome de Yondelis é usada no tratamento de câncer de ovários. Figura 7. Estrutura química da trabectedina isolada de ascidian Ecteinascidia turbinata . A palitoxina foi isolada de corais do gênero Palythoa sp. e apresenta a estrutura química mais fantástica e complexa descrita para um produto natural. Observem o tamanho dessa estrutura, a quantidade de centros assimétricos e grupamentos químicos diferentes! Quase tão fantástico quanto a biossíntese da palitoxina é o fato de o homem ter sido capaz de sintetizá-la em laboratório e sua síntese total foi descrita na década de 1980. A palitoxina é considerada uma das substâncias mais tóxicas conhecidas e em concentrações mínimas, na ordem de picomolar, ela é capaz de inibir a bomba de Na+/K+. Existem diversos casos descritos de contaminação por essa toxina que causam vários sintomas, como, por exemplo, tosse, paralisia crescente dos membros, convulsões, dificuldades para respirar e até morte. Estrutura química da palitoxina e imagem do gênero Palythoa sp. O ziconotido (ziconotideo ou ω-conotoxina) é comercializado com o nome de Prialt e é uma substância do tipo peptídica com 25 aminoácidos em sua estrutura. Ele é a forma sintética do produto natural isolado do caramujo Conus magus, de origem marinha e usado para o tratamento da dor severa ou dor neuropática. Esse fármaco é mil vezes mais forte que a morfina. Para mostrar mais uma vez o incrível poder da natureza, destacamos a quantidade de substâncias ativas produzidas por cada espécie diferente desse caramujo: são mais de 150 substâncias com diferentes seletividades para diversos receptores biológicos. Os produtos naturais marinhos em geral apresentam atividade biológica muito potente, pois uma de suas funções é a de proteção desses organismos do mar. Mas quando vamos transformar esses compostos químicos em fármacos, deparamos geralmente com características indesejáveis como alta toxicidade ou efeitos colaterais. Daí vemos a necessidade do estudo dessas estruturas moleculares e o desenvolvimento de compostos análogos, porém modificados estruturalmente, com o intuito de diminuir a toxicidade e melhorar outros parâmetros como farmacocinética. EXEMPLO Temos como exemplo dessa situação o produto natural chamado de didemnina B, isolado da ascídia Trididemnun solidum, que foi a primeira substância natural marinha que entrou em testes clínicos e apresentou potentes atividades anticâncer, imunossupressoras e antivirais. Infelizmente, ela apresentou-se por demais tóxica e foi retirada dos estudos na fase II dos ensaios clínicos. Um outro problema associado ao uso dos produtos naturais diretamente na terapêutica é a sua quantidade produzida ou que pode ser extraída da natureza. Muitas vezes essa produção é inviável para uma escala de mercado. EXEMPLO Podemos citar como exemplo a halicondrina B, isolada da esponja marinha Halichondria okadai e com grande potencial anticancerígeno. Uma tonelada do organismo marinho produz somente 300 mg de halicondrina B! Daí vemos que é impossível sua extração para produção comercial. Essa molécula foi sintetizada em laboratório, mas devido a sua complexidade estrutural a síntese em larga escala seria muito cara. Após muitos estudos, pesquisadores obtiveram uma molécula análoga a halicondrina B, mas com estrutura mais simples chamada de eribulina (Halaven), usada para tratar câncer de mama metastático. Estruturas químicas da halicondrina B, eribulina e imagem da esponja marinha Halichondria . A contribuição dos produtos naturais na descoberta de novos fármacos é enorme e podemos observar isso pelo grande número de medicamentos que estão no mercado e são de origem natural. Atualmente, existem companhias farmacêuticas voltadas somente para a pesquisa e o desenvolvimento de fármacos tendo os produtos naturais como protótipos. Você sabe o que é um composto protótipo? Já vimos vários exemplos neste módulo e vamos nos aprofundar mais nesse assunto no próximo! Além disso, temos disponíveis diversos bancos de dados de produtos naturais contendo várias informações de milhares dessas substâncias. Dentre esses bancos, destacamos: Marine Natural Product Database, Bioactive Natural Product e o NuBBE Database, primeiro banco de dados sobre a biodiversidade brasileira. A NATUREZA E A DESCOBERTA DOS FÁRMACOS O especialista Emerson Peçanha fala sobre exemplos de fármacos de origem natural (plantas, fungos e bactérias), ressaltando a importância deles para os avanços da química medicinal VERIFICANDO O APRENDIZADO MÓDULO 3 Descrever as etapas do planejamento e a cadeia de desenvolvimento dos fármacos ESTRATÉGIAS DE PLANEJAMENTO E DESCOBERTA DE FÁRMACOS Neste módulo, abordaremos as diferentes estratégias do planejamento e descoberta de fármacos, incluindo definições de alguns termos importantes nessa área da química medicinal e alguns exemplos. Também entenderemos a cadeia de processos envolvidos no desenvolvimento de um medicamento. ACASO Não sabemos se podemos chamar de estratégia propriamente dita, mas podemos dizer que o acaso contribuiu e muito para a descoberta de alguns fármacos extremamente importantes. Temos dois exemplos clássicos da valiosa ajuda do “acaso” para a melhoria da qualidade de vida da população. EXEMPLO 1 O primeiro foi a descoberta da penicilina por Alexander Fleming, que ocorreu quando ele, ao sair de férias, esqueceu uma placa de cultura em cima da banca e ao voltar observou uma inibição do crescimento de cepas de Staphillococcus. Posteriormente, ele identificou que a placa estava contaminada por fungos do gênero Penicillium e identificou a substância que estava sendo responsável pela inibição do crescimento bacteriano. EXEMPLO 2 O segundo exemplo se trata do sildenafil (Viagra), usado no tratamento da disfunção erétil, que foi o primeiro fármaco oral para essa indicação. Essa molécula foi inicialmente planejada para ser um anti-hipertensivo, mas apresentou baixa eficácia quanto aos efeitos cardiovasculares esperados, porém os pacientes que o utilizaram relataram efeitos de ereção. Então esse “efeito colateral” observado na fase de testes clínicos foi investigado e identificou-se que essa molécula atuava como inibidora seletiva da enzima fosfodiesterase 5 (PDE-5). SCREENING RANDÔMICO E VIRTUAL Uma outra estratégia de identificação de moléculas bioativas é o chamado screening randômico que, de um modo geral, consiste na testagem de bibliotecas de compostos em diferentes tipos de ensaios farmacológicos. Essa estratégia ganhou maior visibilidade após o surgimento da química combinatória que permitiu a obtenção das chamadas quimiotecas ou coleções de centenas ou milhares de estruturas químicas. Temos como exemplo de sucesso dessa abordagem o resultado de um programa de pesquisas desenvolvido no Estados Unidos na década de 1960. Esse programa visava à identificação de compostos antitumorais. Por meio dele, foram testados diversos extratos de plantas e a atividade antitumoral desejada foi identificada no extrato das cascas de Taxus brevifolia. Os pesquisadores identificaram a estrutura química presente no extrato e responsável pelo efeito farmacológico e chegaram ao paclitaxel (Taxol). O screeningvirtual, também chamado de busca ou triagem virtual, passou a ser amplamente empregado como consequência da introdução de novas tecnologias na procura por novas moléculas. Essa busca se utiliza de bancos de dados virtuais contendo grande número de compostos e faz uma pré-seleção virtual, ou seja, teórica, de estruturas que possam vir a ser testadas in vitro. COMENTÁRIO Porém, não é tão simples como parece porque para que essa busca tenha sucesso é preciso considerar diversos fatores ou características, tais como a solubilidade das moléculas e suas interações com alvos receptores, dentre muitas outras. Dessa forma, é criado um modelo de busca virtual que é aplicado aos bancos de dados virtuais. ABORDAGEM FISIOLÓGICA: DO COMPOSTO PROTÓTIPO AO MEDICAMENTO Umas das abordagens de planejamento de fármacos mais usadas é a chamada abordagem fisiológica. Ela se baseia primeiramente na escolha e no conhecimento do alvo terapêutico (ou alvo biológico), que pode ser uma enzima ou receptor, ou seja, onde queremos que nosso futuro fármaco atue. A abordagem fisiológica se baseia no mecanismo de ação e para isso é necessário entender os processos bioquímicos envolvidos com a patologia escolhida para ser tratada. O alvo terapêutico escolhido pode ou não ter sua estrutura conhecida e já descrita. Podemos dizer que, quando já conhecemos a estrutura tridimensional do alvo escolhido, o planejamento é mais fácil, uma vez que, o estudo será baseado nas principais interações entre as moléculas do alvo e do ligante que está sendo planejado. Essas duas moléculas devem apresentar uma complementariedade adequada para que sua interação seja efetiva, e isso pode ocorrer por diferentes tipos de ligações, reversíveis ou irreversíveis. Um dos objetivos dessa abordagem é planejar/identificar um ligante que possa ser reconhecido pelo seu biorreceptor e que apresente tanto propriedades farmacodinâmicas quanto farmacocinéticas adequadas. Em outras palavras, queremos que ele interaja de forma eficiente no seu sítio de ação, desencadeando a resposta biológica desejada, e que apresente biodisponibilidade resultante das adequadas características de absorção, distribuição, metabolismo e eliminação, mais conhecidas como ADME. Já percebemos que não é uma tarefa das mais fáceis, não é? Falamos anteriormente que o alvo biológico escolhido para o planejamento do ligante pode ter sua estrutura tridimensional (3D) conhecida ou não. Mas como proceder em cada um dos casos? Então, caso a estrutura química 3D do alvo biológico seja conhecida, podemos usar a química computacional para identificar uma molécula adequada que será sintetizada e testada in vitro e, caso apresente boa atividade, será testada em ensaios in vivo. Temos aí uma etapa importante e crucial, pois podemos ter uma molécula superativa in vitro que não apresente o mesmo perfil de atividade in vivo por não apresentar uma farmacocinética adequada. Mas caso ela tenha sucesso nesses ensaios iniciais, teremos um composto protótipo. ATENÇÃO Composto protótipo pode ser definido como o primeiro composto que, após os testes farmacológicos in vivo, apresenta atividade biológica para o alvo escolhido. Caso a estrutura 3D do alvo biológico não seja ainda conhecida, o planejamento da estrutura de uma nova molécula se dá a partir da estrutura do substrato natural do alvo, seja esse alvo uma enzima, seja ele um receptor. Esse planejamento pode ser feito pela modificação na estrutura do substrato natural usando técnicas da química medicinal, como o bioisosterismo, a hibridação e a simplificação molecular, por exemplo. A partir daí a molécula desenhada é chamada de análogo ativo. Caso esse análogo ativo apresente bons resultados nos testes in vivo, ele será o novo composto protótipo. Uma vez identificado o composto protótipo, pelo conhecimento da estrutura 3D do alvo ou não, a próxima etapa é a sua otimização visando melhorias nas propriedades farmacocinéticas e farmacodinâmicas. Então devemos planejar e sintetizar uma série de novos compostos, tendo como base o protótipo já identificado, a partir de modificações em sua estrutura, tendo em mente que devemos preservar os grupamentos farmacofóricos. ATENÇÃO Grupamentos farmacofóricos são aqueles grupos químicos ou parte estruturais presentes em uma molécula que são capazes de interagir com o alvo biológico e desencadear a atividade farmacológica. Existem os outros grupamentos nas moléculas que podem ser classificados como grupamentos auxofóricos. Eles também são reconhecidos pelo alvo receptor, porém podemos dizer que são secundários em relação aos farmacofóricos, que são os principais. Nessa fase de otimização, devemos ter mais duas coisas em mente: uma é tentar planejar as modificações estruturais pensando na melhoria da biodisponibilidade e farmacocinética e a segunda é ter atenção aos grupamentos toxicofóricos. Esses grupos ou subunidades estruturais são responsáveis pela toxicidade. A partir dos estudos descritos de otimização estrutural e avaliação das propriedades farmacológicas e toxicológicas, um novo composto protótipo pode ser identificado e considerado um candidato a fármaco ou nova entidade química (Esquema 1). Esquema 1: Etapas da identificação de um candidato a fármaco. Além da presença dos grupamentos farmacofóricos e auxofóricos, os compostos protótipos e candidatos a fármacos devem apresentar importantes características como: estabilidade química e metabólica, pKa que favoreça sua absorção por via oral, coeficiente de partição lipídeo-água adequado, dentre outras. Após a descoberta do candidato a fármaco ou nova entidade química, a próxima etapa são os testes pré-clínicos. Essa etapa engloba os testes in vivo em modelos animais para ajustar o potencial terapêutico, a segurança para uso em relação a toxicidade, efeitos colaterais, ou seja, garantir o emprego seguro do candidato. Sendo aprovado nos testes pré-clínicos, o candidato passa para os estudos clínicos de fase 1, 2, 3 e 4. Veja algumas características de cada uma dessas fases: FASE 1 Esta fase de estudos clínicos é feita com pequeno número de voluntários saudáveis para verificar se o composto terá o mesmo comportamento em humanos. FASE 2 Nesta fase, o número de participantes voluntários aumenta e já entram pessoas que tem a doença definindo, nessa fase, questões relacionadas à segurança, dosagem e apresentação. FASE 3 Esta fase envolve um número bem maior de pessoas e compara o novo medicamento, que já está finalizado, com outros de mesma ação. Nessa etapa, é gerada a documentação necessária a ser enviada para o órgão de aprovação e regulamentação; aqui no Brasil, esse órgão é a ANVISA. FASE 4 Nesta fase, o medicamento já está no mercado e é feito um acompanhamento do seu uso por meio de testes com milhares de pessoas que são elaborados visando a conhecer mais detalhes sobre a segurança e eficácia do medicamento. É nesta fase que são detectados efeitos colaterais que não eram conhecidos ou que foram parcialmente qualificados nas fases anteriores de estudos clínicos, além de fatores de risco relacionados ao uso do medicamento. Esta fase é denominada de farmacovigilância. Podemos observar que essa longa trajetória desde o início, a partir da escolha do alvo terapêutico e identificação do composto protótipo até o lançamento do medicamento no mercado, pode demorar muitos anos e custar até bilhões de dólares! Vejamos, a seguir, exemplos de fármacos planejados racionalmente pela abordagem fisiológica. CIMETIDINA A descoberta da cimetidina (Tagmet) é um exemplo clássico do planejamento de um fármaco sem o conhecimento da estrutura 3D do alvo biológico. Esse fármaco foi o primeiro antagonista seletivo para os receptores histamínicos H2 descoberto para combater a úlcera estomacal. Como a estrutura do receptor não era conhecida, os pesquisadores partiram da estrutura da histamina que é o substrato natural. Eles observaram que a introduçãode uma metila (-CH3) na posição C-5 do anel imidazol presente na estrutura da histamina fazia com que o tautômero, desenhado na Figura 8, fosse a forma majoritária e necessária para se ter uma seletividade para os receptores H2. A função tioéter foi introduzida para uma adequada hidrofobicidade e para manter a presença do tautômero desejado. A porção amina terminal da histamina foi modificada com a introdução de diversos grupamentos tais como N-metilureia, guanidina, ureiaguanidina, nitroguanidina e finalmente cianoguanidina presente na estrutura da cimetidina. A cimetidina se tornou o composto protótipo para o desenvolvimento de novos fármacos de classe de compostos como veremos a seguir sobre fármacos me-too. Figura 8. Desenvolvimento da cimetidina e sua estrutura 3D. ACICLOVIR E OUTROS ANTIVIRAIS Outro exemplo do planejamento de um fármaco baseado na estrutura do substrato natural da enzima foi a descoberta do aciclovir (Zovirax). O substrato nucleosídeo das enzimas quinases usadas no ciclo reprodutivo do vírus teve sua estrutura modificada por meio da estratégia de simplificação molecular. Os carbonos estereogênicos presentes no heterociclo do tipo tetraidrofurano do nucleosídeo foram eliminados simplificando a estrutura da molécula e dando origem ao aciclovir. Após a descoberta do aciclovir vieram outros fármacos antivirais como o pró-fármaco fanciclovir que é metabolizado in vivo, sofrendo oxidação da purina e hidrólise dos grupos acetil, formando o penciclovir. O penciclovir, que também é um pró- fármaco, é o verdadeiro substrato das enzimas virais que fosfatam uma das suas hidroxilas originando a estrutura realmente ativa. Estruturas e desenvolvimento de antivirais. SÍNDROME DA IMUNODEFICIÊNCIA ADQUIRIDA O aparecimento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, AIDS, na década de 1980, causada pelo vírus HIV, provocou uma corrida pela busca de medicamentos para essa doença até então desconhecida e que, infelizmente, foi responsável por milhões de mortes no mundo todo. A partir de 1996, o Brasil começou a distribuir por meio do SUS o tratamento para a doença com os chamados medicamentos antirretrovirais e atualmente temos um longo histórico de desenvolvimento dessa classe de fármacos usados para combater o HIV; graças a isso, a pessoa infectada pode ter uma vida normal seguindo o tratamento correto. Para o planejamento de um fármaco antirretroviral, existem diferentes alvos farmacológicos para os quais a busca pode ser direcionada, dentre esses alvos estão as enzimas presentes no vírus HIV importantes para o seu desenvolvimento e replicação. Uma das primeiras enzimas a serem estudadas foram as proteases do vírus que apresentam dois resíduos do aminoácido aspartato em seu sítio ativo e, por isso, pertencem à classe das proteases aspárticas. A inibição da HIV PR inibe o ciclo evolutivo viral, pois ela é responsável pela formação de proteínas essenciais a ele. A partir de estudos de cristalografia, foi possível o conhecimento e a determinação da estrutura 3D da HIV PR e, como consequência, o planejamento e a descoberta de eficazes inibidores desse alvo biológico, que temos como exemplos os fármacos indinavir, saquinavir, amprenavir, ritonavir, lopinavir e nelfinavir. A descoberta do indinavir (Crixivan) ocorreu por meio de modificações na estrutura de uma molécula inicialmente identificada como ligante da HIV PR, mas que, por ter uma estrutura peptídica, não apresentou farmacocinética adequada. LOSARTANA Temos também como exemplo do planejamento racional de fármacos o desenvolvimento da losartana, que foi o primeiro fármaco a atuar pelo antagonismo seletivo dos receptores I da angiotensina II, receptores AT1. A losartana apresenta dois anéis heterocíclicos, o imidazol e o tetrazol, e vale destacarmos que foi o primeiro fármaco a apresentar esse último heterociclo. A losartana foi descoberta a partir de um composto protótipo identificado por ensaios do tipo HTS com uma biblioteca de compostos do tipo imidazol. Esse protótipo inicial não apresentava seletividade para os receptores AT1 da angiotensina II, então modificações estruturais na parte benzílica da molécula levaram ao derivado com um nitro na posição orto que apresentou uma “tímida” seletividade. Outras modificações foram realizadas com o objetivo de otimizar essa seletividade e obter compostos mais potentes. Assim, o grupo nitro foi substituído pela função ácido carboxílico e, posteriormente, pelo anel tetrazol, que é um bioisóstero do ácido carboxílico. Outra modificação importante foi a introdução de um fenil entre o anel imidazol e o benzeno substituído com o tetrazol. Estudos de metabolismo com a losartana indicaram que ela sofre efeito de primeira passagem no fígado através do anel tetrazol que forma conjugados com ácido glicurônico, mesmo assim esse fármaco pôde ser administrado com tempo de meia-vida adequado. Esses estudos ainda identificaram que mais ou menos 15% da dose de losartana é biotransformada por oxidação da cadeia lateral hidroxilada, formando um metabólito que pode ser até 40 vezes mais ativo que a losartana, pelo antagonismo dos receptores AT1 . Planejamento estrutural da losartana. ESTRATÉGIA DOS FÁRMACOS ME-TOO Você já ouviu falar em fármacos me-too? Essa expressão, que em português significa “eu também”, engloba os fármacos que apresentam uma estrutura química muito parecida com algum fármaco já conhecido no mercado. Os fármacos me-too são considerados “cópias terapêuticas” e atuam pelo mesmo mecanismo de ação do fármaco conhecido que lhe deu origem. Essa estratégia é muito empregada na indústria farmacêutica e representa uma economia bastante grande em termos financeiros e de tempo quando comparadas ao desenvolvimento de fármacos com estruturas totalmente originais. SAIBA MAIS O primeiro fármaco do tipo me-too desenvolvido foi a ranitidina, considerada um campeão de vendas na época que ultrapassou mais de 1 bilhão de dólares em vendas somente no primeiro ano de comercialização. A descoberta da ranitidina teve como composto protótipo inovador a cimetidina, cujo desenvolvimento racional já mostramos no início deste módulo. Podemos observar na Figura 9 que as modificações do tipo bioisostérica aplicadas na estrutura da cimetidina que levaram ao desenho da ranitidina foram a troca do anel heterocíclico imidazol, que já estava presente desde a estrutura da histamina, pelo anel furano, além da porção cianoguanidina substituída pela nitrovinila. Essas mudanças resultaram em uma maior potência e seletividade pelo receptor H2 histamínico, alvo biológico desses fármacos. Após a ranitidina, vieram outros fármacos do tipo me-too dessa classe como a famotidina e a nizatidina. Figura 9. Estruturas dos fármacos me-too e seus protótipos inovadores. O fármaco celecoxibe, lançado em 1999, é um anti-inflamatório da classe dos não esteroidais inibidores seletivos da enzima ciclo-oxigenase 2 (COX-2) e serviu como pioneiro para outros inibidores me-too da classe dos chamados “coxibes”. O primeiro a ser descoberto a partir do celecoxibe foi o etoricoxibe e podemos observar pelas suas estruturas químicas as modificações bioisostéricas que foram feitas. Ambos possuem um mesmo padrão de três anéis aromáticos, sendo que o celecoxibe tem um pirazol como anel central que foi substituído por uma piridina no etoricoxibe, assim como um benzeno com uma metila que também foi substituído por outra piridina. Ainda houve uma terceira troca, sendo a amina do grupo sulfona substituído por uma metila. Dentro dessa classe dos coxibes ainda encontramos o rofecoxibe, valdecoxibe e parecoxibe. Vale ressaltar que tanto o rofecoxibe quanto o valdecoxibe foram retirados do mercado por causa dos efeitos adversos graves, principalmente riscos cardíacos. Vimos que o sildenafil (Viagra), usado no tratamento da disfunção erétil e considerado uma inovação terapêutica, foi descoberto ao acaso pela farmacêutica Pfizer. Como toda inovação terapêuticade sucesso, tornou-se um fármaco protótipo para que outras empresas farmacêuticas buscassem moléculas semelhantes com o mesmo perfil farmacológico. O primeiro me-too dessa classe de inibidores da enzima fosfodiesterase (PDE-5) foi o vardenafil (Levitra), desenvolvido pela Bayer e Glaxo Smith Klyne, que apresentou uma seletividade entre as isoformas da enzima PDE-5 e PDE-6 muito maior que o sildenafil. Essa alta seletividade podemos traduzir como uma atividade inibitória da PDE-5 pelo vardenafil muito maior do que o protótipo, que ainda apresenta alguma inibição sobre a PDE-6 e se traduz pelos efeitos adversos de perturbações visuais. ATENÇÃO Comparando as estruturas dos dois compostos, podemos observar que foram poucas as modificações estruturais realizadas usando técnicas do bioisosterismo, que não será foco do nosso estudo. O átomo de carbono sp2 foi trocado por um nitrogênio na junção entre os dois anéis e, dessa forma, o sistema de anéis condensados pirazolopirimidina foi substituído pelo imidazotriazina. Uma última diferença que podemos observar é a substituição no nitrogênio do anel piperazina, em que a metila foi trocada pela etila. Após o vardenafil, vieram outros fármacos atuando pelo mesmo mecanismo de ação como o tadalafil, avanafil e lodenafil. Podemos dizer que, em geral, os fármacos me-too são “inovações” e por isso apresentam melhorias em diversos aspectos farmacodinâmicos e farmacocinéticos. Podem apresentar mudanças nas suas formas farmacêuticas, otimização da solubilidade, biodisponibilidade e estabilidade, além de, em geral, apresentar melhor perfil de segurança. METABOLISMO NA DESCOBERTA DE FÁRMACOS Sabemos que uma das etapas da fase farmacocinética de um fármaco quando ele é administrado é o metabolismo. Não só o metabolismo, mas todas as etapas da fase farmacocinética são de extrema importância pois podem afetar muito o efeito farmacológico do fármaco. Vejamos alguns exemplos de como o metabolismo pode influenciar no planejamento e na descoberta de novas moléculas bioativas: ETAPA 1 ETAPA 2 ETAPA 3 ETAPA 1 O metabolismo de um fármaco gera moléculas chamadas metabólitos que podem ser ativas ou inativas. Cada fármaco é metabolizado de forma diferente e a partir do estudo dessas formas é que podemos identificar se ele é mais ou menos estável frente ao metabolismo. Dessa maneira, o quanto antes pudermos estudar e identificar as partes estruturais ou os sítios do fármaco que poderá sofrer modificações metabólicas e aqueles que serão resistentes a ela, mais chances de sucesso teremos. ETAPA 2 Devemos ter em mente que aumentando a estabilidade metabólica de um fármaco podemos obter diversas vantagens, como: melhora da biodisponibilidade e maior tempo de meia-vida (t1/2), o que permite a administração de doses com maior intervalo de tempo e menores, diminuição do número de metabólitos ativos, dentre outras. ETAPA 3 Geralmente, o que é feito para melhorar a estabilidade de uma molécula frente ao metabolismo é reduzir a quantidade de grupos ou sítios instáveis/vulneráveis pela incorporação de grupos estáveis metabolicamente, desde que não altere a atividade farmacológica. Outras estratégias com esse objetivo de melhorar a estabilidade são descritas a seguir: Modificação de parâmetros físico-químicos como log P reduzindo a lipofilicidade das moléculas; Bloqueio de posições específicas passíveis de sofrerem oxidação, principalmente nos anéis aromáticos. Prevenção de uma reação de N-desalquilação pela introdução de um grupo N-t-butil; Troca de funções lábeis por outras mais estáveis, como por exemplo um éster por uma amida; Proteção ou bloqueio de grupos lábeis pela introdução de grupos que impeçam estericamente o acesso a eles, desfavorecendo uma conformação da molécula para o metabolismo. Temos como exemplo de fármacos desenvolvidos a partir do estudo do metabolismo o ritonavir, um inibidor da HIV PR. Analisando a estrutura de um composto protótipo ativo, porém com t1/2 pequeno, foi observado que a presença dos dois anéis piridina era responsável por reações de N-oxidação durante o metabolismo. Assim, esses anéis foram substituídos pelo heterociclo tiazol, o que levou à redução do metabolismo e excreção da molécula, porém ela ainda apresentava problemas de solubilidade em água. Esse problema foi resolvido pela substituição do grupo carbamato pela N-metilureia que é mais solúvel melhorando a disponibilidade para administração oral. A introdução da unidade isopropil também ajudou a melhorar a potência do fármaco em relação ao seu protótipo inicial chegando-se à estrutura do ritonavir. Estruturas do ritonavir e seu protótipo. PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO DE FÁRMACOS O especialista Emerson Peçanha, por meio de exemplos, apresentará as principais etapas de descoberta e desenvolvimento dos fármacos VERIFICANDO O APRENDIZADO CONCLUSÃO CONSIDERAÇÕES FINAIS Visitamos os principais marcos históricos da química medicinal farmacêutica, conhecendo os pesquisadores e filósofos que contribuíram para o desenvolvimento dessa área multi, inter e transdisciplinar. Vimos a origem dos fármacos e suas descobertas a partir dos produtos naturais de origem vegetal, animal e marinha e sua utilização e importância como protótipos a novos candidatos a fármacos. Além disso, abordamos as principais estratégias utilizadas no planejamento de moléculas bioativas, desde o seu desenho até a transformação em medicamentos que chegam às nossas prateleiras. PODCAST Agora, o especialista Emerson Peçanha encerra o tema fazendo um passeio no tempo para entendermos o histórico e a importância da química medicinal, bem como sua origem nos produtos naturais relevantes na descoberta de novos fármacos. AVALIAÇÃO DO TEMA: REFERÊNCIAS BARREIRO, E. J.; FRAGA, C. A. M. Química medicinal: as bases moleculares da ação dos fármacos. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2015. BARREIRO, E. J.; FRAGA, C. A. M. A questão da inovação em fármacos no Brasil: proposta de criação do Programa Nacional de Fármacos (PRONFAR). In: Quím. Nova, v. 28, Suplemento, S56-S63, 2005. NOGUEIRA, L. J.; MONTANARI, C. A.; DONNICI, C. L. Histórico da Evolução da Química Medicinal e a Importância da Lipofilia: de Hipócrates e Galeno a Paracelsus e as Contribuições de Overton e de Hansch. In: Revista Virtual de Química, Rio de Janeiro, v. 1, n. 3, p. 227-240, jul./set. 2009. PATRICK, G. L. An Introduction to Medicinal Chemistry. 5. ed., Reino Unido: Oxford University Press, 2013. VIEGAS JUNIOR, C.; BOLZANI, V. S.; BARREIRO, E. J. Os Produtos Naturais e a Química Medicinal Moderna. In: Química Nova, v. 29, n. 2, p. 326-337, jan. 2006. EXPLORE+ Para conhecer melhor sobre a pesquisa e inovação de fármacos no Brasil, leia o artigo A Questão da Inovação em Fármacos no Brasil: Proposta de Criação do Programa Nacional de Fármacos (PRONFAR), publicado na Revista Química Nova em 2005. Aprofunde-se no conhecimento sobre fármacos originados de organismos marinhos lendo o artigo Organismos marinhos como fonte de novos fármacos: Histórico & perspectivas, publicado na Revista Química Nova, no ano de 2009. Saiba mais sobre a origem e os desenvolvimentos dos fármacos a partir do livro Fundamentos de Química Medicinal, dos autores Elenilson Figueiredo da Silva, Carlos da Silva e Lucimar Filot da Silva Brum, publicado em 2018 pela editora SAGAH. CONTEUDISTA Estela Maris Freitas Muri CURRÍCULO LATTES javascript:void(0);