Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
107 Capítulo VI Colagem: uma prática no psicodiagnóstico Ligia Corrêa Pinho Lopes Maria Fernanda Mello Ferreira Mary Dolores Ewerton Santiago Imagens são palavras que nos faltaram. Manoel de Barros 1. Introdução A prática da avaliação psicológica de crianças, que, por definição, é um processo que se propõe chegar a uma compreensão de determi- nado fenômeno, apresentado como “queixa” pelos pais ou responsá- veis que buscam ajuda psicológica para seu filho, coloca o psicólogo diante da tarefa de encontrar sentido no conjunto de informações que lhe são apresentadas e organizá-las. 108 SILVIA ANCONA-LOPEZ Para isso, deve possuir conhecimentos teóricos e dominar pro- cedimentos e práticas com o objetivo último de que, ao entender determinada situação-problema, possa proporcionar, por meio de planejamento e uso de intervenções, benefícios às pessoas envolvidas, criança e seu grupo familiar, promovendo a saúde e o desenvolvi- mento psíquico. A avaliação psicológica ocupa um lugar de destaque na história da psicologia, na consolidação da profissão como campo de conheci- mento e prática, e associou-se, inicialmente, ao trabalho médico, que lhe imprimiu forte influência. Foi: Com o uso de testes, principalmente junto a crianças, que os psicólogos ganharam maior autonomia. Nesse trabalho, esforçavam-se por deter- minar, através dos testes, a capacidade intelectual das crianças, suas aptidões e dificuldades, assim como sua capacidade escolar (Ancona- -Lopez, 1984, p. 5). A utilização de testes psicométricos que, por princípio, visavam identificar, classificar e medir características, foi, e continua sendo, uma prática bastante criticada, uma vez que grande parte das discus- sões entre os profissionais das ciências humanas no país está voltada para a preocupação com processos de exclusão social, ideia subjacen- te aos métodos classificatórios. Desde a regulamentação da profissão de psicólogo no Brasil, na década de 1960, a avaliação psicológica tem sido amplamente deba- tida, passando por reflexões e modificações no que se refere a instru- mentos e recursos utilizados. Mesmo assim, como apontado na revis- ta Diálogos (Ciência e Profissão, n. 3, dez. 2005), há diversidade de compreensões, usos e objetivos. Observamos na experiência e no contato com os supervisores dos Centros de Psicologia Aplicada da Universidade Paulista (Unip), que trabalham com avaliação psicológica, uma postura comum. Ape- sar de partirem de pressupostos e métodos por vezes diferentes para compreender o homem, configurando uma diversidade de abordagens, PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO 109 prevalece a ideia de que se faz necessária a organização de conheci- mentos que se referem à vida biológica, intrapsíquica e social do cliente, como citado por Ancona-Lopez (1984), entre outros. Os encontros e discussões, formais ou informais, visam com- partilhar experiências, falar sobre supostas conquistas e dificuldades do dia a dia no atendimento a crianças e pais. Há uma inquietação que se origina da constatação de que nossos recursos, teóricos ou instrumentais, são limitados diante das diferentes demandas psico- lógicas dos clientes, dadas as múltiplas possibilidades de expressão da subjetividade. Dessa forma, entram em jogo questões a respeito da denomina- ção do que fazemos, de qual seria o melhor termo a empregar: ava- liação psicológica, diagnóstico psicológico ou psicodiagnóstico, sendo que, concretamente, o que buscamos nesse atendimento é chegar a uma compreensão da demanda e à possibilidade de propiciar ao cliente uma compreensão e mudança, que por sua vez permitam melhor qualidade de vida aos envolvidos. Os recursos utilizados, tais como entrevistas com pais (entrevis- ta inicial, entrevista de anamnese, entrevistas devolutivas), observa- ções lúdicas, testes, visita à escola e visita domiciliar, têm como ob- jetivo ajudar no processo de investigação e na consequente compreensão da problemática apresentada pelos pais ou responsáveis pela criança. Essa prática passa por reformulações e adaptações constantes, tanto em função da demanda psicológica dos clientes que buscam os Centros de Psicologia Aplicada, quanto em função das modificações pedagógicas pelas quais o curso de Psicologia passa, tendo em vista as diretrizes do MEC para o ensino superior. Além disso, a Resolução n. 002/2003, do Conselho Federal de Psicologia, acerca dos testes psicológicos, trouxe mais um desafio para aqueles que trabalhavam com avaliação psicológica, visto que tais instrumentos não poderiam mais ser utilizados antes de passarem por uma revisão. No artigo 16 da referida Resolução constava: “Será considerada falta ética, conforme disposto na alínea c do art. 1º e na 110 SILVIA ANCONA-LOPEZ alínea m do art. 2º do Código de Ética Profissional do Psicólogo, a utilização de testes psicológicos que não constam na relação de testes aprovados pelo CFP, salvo os casos de pesquisa”. O reflexo dessa medida na prática clínica pode ser considerado a partir de duas perspectivas. De um lado, a suspensão dos proce- dimentos que costumávamos utilizar no processo de avaliação psicológica, como, por exemplo, alguns testes projetivos infantis como CAT-A, resultava não somente num empobrecimento de re- cursos para uma compreensão mais ampla e profunda do cliente, como também na falta de “mediadores” que pudessem facilitar a comunicação devolutiva com a criança. Vale lembrar que, no psico- diagnóstico interventivo, os desenhos e as histórias eram frequen- temente utilizados como “facilitadores” do diálogo com a criança. Por outro lado, essa mesma suspensão nos estimulava a revisar nossa prática clínica e a buscar outros procedimentos que pudessem nos oferecer, de alguma forma, a possibilidade de lidar com estas faltas. A atividade de colagem, proposta por Violet Oaklander (1980) como um recurso a ser utilizado no processo psicoterápico de crian- ças e adolescentes, despertou nossa curiosidade e interesse. Oaklander, que trabalha com referencial teórico da Gestalt, considera que: “A colagem é qualquer desenho ou quadro feito grudando-se ou pren- dendo-se materiais de qualquer espécie a um fundo plano, tal como um pedaço de pano ou papel” (1980, p. 99). Tal descrição remete a uma atividade simples e ao mesmo tempo significativa, dado que “pode ser utilizado como experiência sensorial, e também como manifestação emocional” (p. 101). É interessante notar que Oaklander refere-se à colagem com diversas denominações: “atividade de colagem”, “exercício de colagem”, “técnica de colagem”, “técnica projetiva”. Contudo, é esta última acepção que subjaz a al- gumas de suas afirmativas, tais como: “O processo de fazer a colagem ou relato posterior acerca da mesma pode ser o mais significativo” (idem, ibidem, p. 101; grifo nosso). Ainda no mesmo texto, ela acres- centa: “Muita coisa é revelada através da seleção de figuras. O estado PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO 111 de espírito revelado pelo conjunto escolhido pode contar algo sobre o que a criança está sentindo naquele momento, ou na sua vida em geral” (ibidem, p. 102-3). Parece claro que ela trabalha com a ideia de que a colagem é representativa do mundo interno da criança, de seus sentimentos e pensamentos. Ainda segundo a autora, pode se trabalhar com a colagem in- dividual ou em grupo com diferentes temas e de inúmeras maneiras. Dentre os variados tipos de colagem, Oaklander (1980, p. 100) des- taca que: “Um bom trabalho de colagem pode ser feito simplesmen- te com figuras de revistas, uma tesoura, cola, e algum tipo de fundo”. Foi com essas ideias que começamos a propor aos nossos clientes a realização de uma colagem. Nossa pretensão inicial era apenas ob- servar como eles (os clientes) se comportavam diante dessa tarefa, se ficavam motivados ou não, se rejeitavam algumas figuras, quais co- mentários faziam e qual era sua atitude com relação ao trabalho realizado, istoé, se queriam ou não levar para casa a colagem feita em uma cartolina. Com o decorrer do tempo, percebemos que a atividade de cola- gem se revelava cada vez mais como um recurso riquíssimo, tanto para o conhecimento do cliente quanto para aplicação de intervenções. 2. Utilização da colagem Descreveremos a seguir o nosso modo de trabalhar com a colagem. Material utilizado: figuras de revistas, tesouras, colas, cartolinas para serem usadas como fundo, incluindo lápis preto e de cor, cane- tinhas e/ou giz de cera, caso haja interesse em complementar a ati- vidade com desenhos ou escrita. As figuras que são oferecidas na ocasião da utilização da colagem são previamente recortadas pelos estagiários e supervisores, e devem abordar diversos temas, como pessoas, situações, animais, objetos, 112 SILVIA ANCONA-LOPEZ alimentos, transportes, móveis, ambientes etc., em quantidade sufi- ciente para permitir que haja uma escolha por parte do cliente. Por se tratar de figuras recortadas de revistas, deve-se prestar atenção ao verso das figuras selecionadas, pois estas podem apresen- tar imagens também interessantes e que por vezes acabam sendo es- colhidas pelo examinando, ou imagens que podem ter uma conotação imprópria, como nus ou insinuações de sexo. Evita-se usar imagens de artistas e personagens, pois estas podem carregar um significado cultural restrito, limitando a análise e as associações do cliente. Na nossa prática, os estagiários chamam esta parte do trabalho de “recortagem”. Ela costuma ser proveitosa para todos, pois o exer- cício desenvolve a capacidade de associações entre as imagens que selecionam e as diferentes representações possíveis. A atividade de colagem pode ser proposta em qualquer momen- to do processo psicodiagnóstico, mas, quando ocorre após alguns atendimentos e procedimentos, deve-se tomar cuidado para que as figuras selecionadas pelos estagiários não sejam apenas de imagens associadas a aspectos já revelados pela criança ou família. Portanto, é preciso verificar a quantidade de figuras selecionadas e a variedade de temas antes de utilizá-las com a criança. Em grupo ou individualmente, é proposto um tema para o tra- balho das crianças considerando aspectos a ser avaliados, tais como: autoimagem, percepção de situações internas, pensamentos e senti- mentos. Assim, pedimos que façam uma colagem representando aquilo de que gostam ou não gostam em si mesmos, ou escolham figuras que indiquem do que têm medo e quais são as suas preocu- pações. Outro tema proposto com frequência é o “Álbum de família”, que convida a criança a utilizar o material disponível para represen- tar as pessoas de sua família. Outras vezes, apenas disponibiliza-se o material sem propor um tema. Neste caso, a criança trabalha livre- mente e ao final dá um título a sua produção. Para a realização da colagem, as figuras recortadas são dispostas de modo aleatório, são escolhidas pelo cliente e coladas em uma PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO 113 cartolina. Durante a escolha, observa-se a forma de exploração, falas, figuras que parecem chamar a atenção, mas não são escolhidas etc. É possível que a criança utilize o material oferecido, por exemplo, ca- netinhas e tesouras, para complementar ou modificar as figuras. Depois de concluída a colagem, pede-se para que atribua um signi- ficado a ela, ou que apresente o seu cartaz o grupo de estagiários e para as outras crianças, o que pode variar, dependendo da relação estabelecida no grupo. Com a prática, notamos que as crianças queriam mostrar para os pais ou para os responsáveis as suas produções. Passamos então a perguntar para as crianças se gostariam que o resultado desta ati- vidade fosse apresentado para eles na presença delas e, em caso afirmativo, ao final do atendimento convidávamos os responsáveis presentes na clínica a entrar na sala para ver os trabalhos. Nessas ocasiões, algumas crianças começaram a sugerir um tipo de “jogo” de adivinhação, que consistia em apresentar aos pais as cartolinas de todas as crianças, questionando-os se identificavam qual era a pro- dução de seus filhos. Nessas situações, os pais se veem diante de uma mensagem simbólica que precisam decifrar, dar um significado, e mostrar ali, diante de todos, o conhecimento que têm do filho. Quando esta es- tratégia é adotada, muitas vezes são necessárias a discussão e a com- preensão conjunta dos “acertos” ou “erros” por parte dos pais e das manifestações de felicidade ou frustração por parte das crianças. Discute-se a compreensão que a atividade lhes proporcionou, observando-se a construção de um significado conjunto, o que per- mite algumas ressignificações. Nota-se que essa atividade de colagem compartilhada com os pais permite maior aproximação afetiva e re- conhecimento por parte dos pais a respeito dos sentimentos e da problemática de seus filhos, além de facilitar a elaboração da avalia- ção e sua compreensão por parte dos avaliados. A colagem também pode ser proposta para os pais ou responsá- veis na presença dos filhos. Neste caso, a instrução dada costuma ser a de representar o “Álbum de família” sem explicitar se devem fazê- 114 SILVIA ANCONA-LOPEZ -lo em conjunto ou individualmente, o que é observado e discutido ao término da atividade. Após o registro (fotos, relatório descritivo e análise) das produções realizadas, as cartolinas são devolvidas para os clientes. Por vezes, ao serem observadas em outro momento, pelos pais e crianças, promovem mais reflexões. 3. Análise De modo geral, consideram-se: • Tempo de reação. • Postura e modo de reação — observação a distância, ou im- pulsividade, descuido etc. • Figuras escolhidas, figuras coladas, figuras abandonadas. • Tema preferido. • Tamanhos das figuras. • Uso do espaço da cartolina. • Uso do verso da cartolina. • Localização das figuras na cartolina, coladas de forma aleató- ria ou ligadas, apresentando uma organização ou aglutinação. • Sentimentos expressos, impressões que a colagem causa ao ser observada. • Figura central e/ou localização • Recortar a figura já cortada — para caber na cartolina, ou para separar, excluir elementos. • Associações, explicações, falas durante a atividade. • Uso do lápis de cor, canetinhas — para molduras, ligações, complementos, abandono da colagem para fazer desenhos. • Modo de utilização da cola — em excesso, colocada cuidado- samente, pouca quantidade. PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO 115 Quando a colagem é realizada por pais e filhos, no momento da análise levamos em conta todos os aspectos anteriormente descritos, sendo o mais importante aquele que se refere à interação entre pais e crianças e as significações dadas por eles às figuras escolhidas. Ci- tamos dois exemplos esclarecedores. A colagem de “tema livre” realizada por pai e filho adolescente de 12 anos, que apresentava mau comportamento em casa e na es- cola, mostrou aspectos significativos da interação entre ambos. Ape- sar de previamente à realização da tarefa terem combinado que di- vidiriam igualmente o espaço disponível e que cada um deles realizaria a atividade que quisesse, o pai, no decorrer do trabalho, foi gradativamente ampliando “sua área”, restando ao filho apenas um pequeno espaço na cartolina para colar as suas figuras. A atitude do pai contribuiu para maior compreensão da problemática do ado- lescente, uma vez que ele não respeitava os limites acordados com o filho. Outra colagem conjunta realizada por mãe e filha também re- sultou muito interessante. A criança de 8 anos foi levada a atendi- mento psicológico por apresentar dificuldades de aprendizagem e atitude de dependência em relação à mãe. Durante a colagem com “tema livre” cada escolha da criança era acompanhada de um co- mentário da mãe: “Não, essa é feia”, “Nossa! Muito triste”, “Não, essa não” etc. Ao final, nenhuma figura inicialmente escolhida pela criança foi incluída, mas somente aquelas aprovadas pela mãe. Des-se modo, apesar de a mãe ter mostrado disposição para colaborar com a filha no desempenho da tarefa, ela não permitiu que a crian- ça realmente se expressasse. Ficou evidente que o comportamento da mãe intensificava a atitude de dependência da filha com relação a ela. A observação da qualidade da interação entre pais e filhos pos- sibilita tanto uma maior compreensão diagnóstica das dificuldades de ambos, quanto nos permite fazer intervenções que ampliem o entendimento que cada integrante do grupo familiar tem sobre elas. 116 SILVIA ANCONA-LOPEZ A seguir apresentaremos outros exemplos, acompanhados de imagens. menina, 9 anos de idade Figura 1. Autorretrato. Figura 2. Álbum de família. PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO 117 Os pais, embora separados, compareceram juntos para a primei- ra entrevista, preocupados com o fato de a filha de 9 anos apresentar falta de apetite. Ela foi encaminhada para o atendimento psicológico pela Unifesp — Ambulatório de Distúrbios do Apetite —, pois fazia acompanhamento no local há um ano. Apesar de não comer adequa- damente, o seu desenvolvimento decorreu dentro do que era espera- do, em termos de idade, peso e altura. Apresentava somente proble- mas intestinais. A mãe enfatizou sua preocupação com a alimentação e o pai relatou que observava dificuldades gerais, dando como exem- plos a determinação da filha na escolha de roupas, a teimosia e o fato de não ceder facilmente. Ela residia com a mãe e a irmã de 17 anos de idade, e as meninas ficavam com o pai a cada 15 dias. Quanto à alimentação, a mãe contou que costumava oferecer refeições variadas, como torta de ricota com espinafre, berinjela à parmegiana e saladas, buscando todas as formas para que as filhas se alimentassem bem. Acrescentou que a menina não demonstrava interesse por qualquer tipo de alimento, nem mesmo por doces. Na atividade de colagem, pudemos constatar junto com os pais alguns dos desejos e interesses da menina que não eram reconhecidos por eles, como, por exemplo, gosto por doces, preocupação com a apa- rência, desejo de ver os pais juntos etc. 118 SILVIA ANCONA-LOPEZ menina, 11 anos de idade Figura 3. Autorretrato. Figura 4. Álbum de família. PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO 119 Os pais procuraram atendimento psicológico por indicação da escola em função do comportamento da filha descrito por eles, que era diferente do das outras crianças da sua idade. Contaram que ela era muito quieta, introvertida e sem iniciativa. Disseram também que ela apresentou desenvolvimento geral mais lento, quando comparado com o desenvolvimento do filho mais velho, de 17 anos de idade. Na ocasião da atividade de colagem, a menina revelou interesses variados relacionados a artes, pinturas, relação com a mãe, atividades físicas etc. O resultado final, bastante colorido e diversificado, quando apresentado junto com os trabalhos das outras crianças do grupo, com o consentimento delas, foi reconhecido pela mãe, porém não pelo pai, que parecia não conseguir percebê-la com tal capacidade de expressão. Quando solicitamos aos pais e à criança que realizassem a ativi- dade de colagem do “Álbum de família”, a postura da menina chamou atenção. Na presença dos pais, ela mostrou-se assustada, afastando-se deles e se aproximando de uma das estagiárias, como se quisesse evitar ser exposta ou questionada. Percebemos que não houve uma atitude autoritária ou exigente explícita por parte dos pais naquela situação, mas parecia haver um tratamento de cobrança sútil, implí- cito, como se ela não pudesse “errar” ao responder aos questiona- mentos deles relativos a quem era quem na família de figuras coladas. Ela se comportava como se tivesse algum tipo de “retardo”. Figura 5. Álbum de família dos pais. 120 SILVIA ANCONA-LOPEZ menino, 13 anos de idade Figura 6. Autorretrato. Figura 7. Álbum de família. PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO 121 A mãe procurou atendimento psicológico por encaminhamento da escola, pois o filho apresentava dificuldades de aprendizagem. Apesar de a criança ter feito anteriormente uma avaliação psicope- dagógica, os pais não compreendiam o que acontecia em relação à aprendizagem. De acordo com a mãe, o filho não era uma criança agitada ou agressiva, e sim dispersa; não demonstrava interesse e não prestava atenção nas aulas, e também não fazia suas tarefas. Parecia estar sempre “no mundo da lua”, não respondendo aos questiona- mentos dos professores. A mãe referiu-se a ele como “cabeção”. Na atividade de colagem, o menino mostrou dificuldade para escolher as figuras que o representassem, sendo que o resultado final evidenciava um vazio na cartolina. A figura do avô apareceu como sendo de grande importância para ele, e, na representação da família, projetou a situação para o futuro, indicando desejar crescer logo. Na presença da mãe, permaneceu calado, e ela aparentemente não reco- nheceu o trabalho realizado por ele, ou por não percebê-lo, ou por não querer aceitá-lo como se mostrava. O menino não expressou sentimentos, demonstrando também uma autoimagem empobrecida, pois não soube falar de si e de suas próprias características. 122 SILVIA ANCONA-LOPEZ menino, 12 anos de idade Figura 8. Autorretrato. Figura 9. Álbum de família. PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO 123 A mãe procurou atendimento psicológico por indicação da esco- la, com a queixa de dificuldade de aprendizagem. Na ocasião, contou que o filho sempre foi uma criança “atrasada em tudo”, que aprendeu a andar no “último prazo”, falou com quase três anos, junto com sua irmã de dois anos. Embora fosse descrito pelos professores como uma criança inteligente, entregava sempre as provas “em branco”, mas em prova oral respondia a tudo. Sua caligrafia era feia e escrevia em letra bastão. Na atividade de colagem com o tema “Autorretrato”, notou-se que o menino representou a si mesmo com uma grande quantidade de figuras de objetos de seu interesse, indicando possivelmente ca- rência afetiva revertida em característica consumista. A única repre- sentação humana foi por meio da figura de um exército, que poderia simbolizar a falta de identidade somada a aspectos de repressão e de controle. Fez posteriormente “Álbum de família” utilizando muitas figuras de prédios, que refletia a sua vivência familiar, visto que a mãe como arquiteta desenvolvia seus projetos em casa; além disso, a ausência de figuras humanas remetia, mais uma vez, a dificuldades afetivas. Quando a produção da criança foi apresentada à mãe, o menino ficou aparentemente amedrontado com a decepção que ela mostrou em relação ao seu trabalho. 124 SILVIA ANCONA-LOPEZ outras análises Alguns comentários poderiam ser acrescentados com a finalida- de de ressaltar a riqueza expressiva da colagem. Como nos referimos anteriormente, o uso do espaço também é um indicador importante. Algumas vezes, a criança utiliza todo o espaço, ou cola as figuras umas sobre as outras, resultando em uma produção caótica que pode refletir tanto aspectos emocionais como comprometimentos de outra ordem. Outras vezes, a imagem escolhi- da tem maior significado, dependendo da posição que ocupa na cartolina, central ou não, invertida ou não. Um exemplo curioso deste fato ocorreu na colagem de um menino de 8 anos de idade, que apresentou refluxo no início da vida e, por vomitar na perua escolar, foi apelidado de “mister vômito” por seus colegas. A primeira figura escolhida por ele foi de uma mãe amamentando um bebê colocada de ponta-cabeça no centro da cartolina. A escolha de figuras para realização da colagem também pode ser utilizada pela criança para revelação de segredos familiares, tais como situações que envolvem uso de drogas, prisão e alcoolismo por parte de algum membro da família. Tais imagens oferecem a possibi- lidade de incluir esses assuntos nas intervenções a serem realizadas, tanto com as crianças, quanto com os pais. Outra conduta da criança que merecedestaque é a de recortar uma figura já cortada com o objetivo de separar ou excluir alguns de seus elementos ou, simplesmente, para fazê-la caber na cartolina. A imagem fica destituída então de uma parte, o que indica que a criança não quer aceitar o significado a ela atribuído. Por exemplo, excluir um dos mem- bros da figura de uma família, sendo que, no material oferecido, cons- tam diversos tipos de configurações familiares. O ato de recortar, ex- cluindo ou dividindo as partes constitutivas do todo de uma figura, parece obedecer à necessidade da criança de explicitar seu desejo. Raramente ocorre de a criança abandonar a colagem para fazer desenhos utilizando o material gráfico oferecido. Tal comportamento pode ser entendido como uma oposição ao psicólogo ou como uma PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO 125 resistência em realizar a tarefa, que, na concepção de Oaklander (1980), a colagem remete a criança a experiências sensoriais primitivas base- adas no tato e na visão. Vale lembrar que desenhar ou escrever, como também ocorre às vezes, são habilidades que surgem em etapas pos- teriores do desenvolvimento da criança. Menos frequente ainda é a criança assinar ou escrever o seu nome ao término da colagem. Exceções ocorrem quando ela teme que sua produção não seja identificada pelos pais no “Jogo de adivinhação”, anteriormente mencionado, ou quando ela tem necessidade de rea- firmar sua identidade. Alguns indícios de criatividade podem ser observados quando a criança integra em um todo harmônico o uso dos materiais dispo- níveis, completando com desenhos as imagens escolhidas. Sakamoto e Bacchereti (2007) abordam a utilização da técnica de recorte-colagem na psicoterapia, orientação profissional e psicodiag- nóstico de adolescentes e de adultos, porém não trazem detalhes de suas experiências clínicas. Enfatizam, contudo, sua importância para viabilizar a expressão de pacientes muitos ansiosos ou com dificul- dades de comunicação. 4. Considerações finais Notamos que a realização da colagem é, de modo geral, de fácil aceitação por parte do cliente, seja criança, seja adolescente, ou dos pais. Enfim, pessoas de diferentes faixas etárias e de diferentes con- dições socioeconômicas costumam realizar tranquilamente a tarefa proposta, por se tratar de uma atividade conhecida por todos que um dia frequentaram a escola. Do ponto de vista psicológico, consideramos que a atividade de colagem tem um caráter projetivo na medida em que expressa senti- mentos e conflitos, ou seja, aspectos do mundo interno das crianças e também de seus pais que são desconhecidos para eles. 126 SILVIA ANCONA-LOPEZ Naquele momento em que nos vimos sem a possibilidade de utilizar os testes projetivos antes usados nos psicodiagnósticos de crianças, a colagem foi introduzida como um novo recurso e tem-se mostrado muito valiosa para a observação e compreensão não só dos aspectos intrapsíquicos, como também das interações familiares quan- do a tarefa é conjunta. Constatamos com a prática que as intervenções do psicólogo durante o psicodiagnóstico interventivo são facilitadas por meio da colagem. O aspecto lúdico dessa atividade parece também atuar como motivação para sua realização e para compreensão de aspectos sub- jetivos, expressos de forma simbólica. Concluímos que o uso da colagem como material expressivo na clínica de crianças contribui sobremaneira para a compreensão diag- nóstica que ultrapassa a individualidade da criança e oferece efetiva- mente material de intervenção que está além dos limites de uma comunicação verbal. Referências bibliográficas ANCONA-LOPEZ, M. Contexto geral do diagnóstico psicológico In: TRINCA, Walter (Org.). Diagnóstico psicológico: a prática clínica. São Paulo: EPU, 1984. DIÁLOGOS CIÊNCIA E PROFISSÃO, n. 3, dez. 2005. OAKLANDER, V. Descobrindo crianças: abordagem gestáltica com crianças e adolescentes. Tradução de George Schlesinger; revisão científica da editora e direção da coleção de Paulo Eliezer Ferri de Barros. São Paulo: Summus, 1980. PSICOLOGIA. Legislação, Resoluções e Recomendações para a Prática Pro- fissional. Publicação do Conselho Federal de Psicologia, 2011/2012. SAKAMOTO, C. K.; BACCHERETI, L. F. A técnica de recorte-colagem e suas aplicações nas práticas psicológicas. In: (Org.). O olhar criativo sobre a prática em psicologia. São Paulo: Mackenzie, 2007. Sobre os Autores 7 Apresentação Capítulo I Um pouco de história O psicodiagnóstico O processo psicodiagnóstico fenomenológico‑existencial com crianças e seus pais Psicodiagnóstico interventivo, na abordagem fenomenológica‑existencial: uma mudança de atitude O estilo das intervenções do psicólogo A utilização dos testes psicológicos Outros recursos utilizados: a visita domiciliar e a visita à escola As repercussões deste trabalho sobre os pais Referências bibliográficas Capítulo II 1. Psicodiagnóstico como processo de intervenção 2. Psicodiagnóstico como prática colaborativa 3. Psicodiagnóstico como prática compartilhada 4. Psicodiagnóstico como prática de compreensão das vivências 5. O psicodiagnóstico interventivo como prática descritiva 6. O psicodiagnóstico interventivo e o papel do psicólogo e dos clientes Descrição Do atenDimento em PsicoDiagnóstico interVentiVo 1. Entrevista inicial 2. História de vida da criança 3. Contato inicial com a criança 4. Sessões devolutivas com os pais 5. Encontros com a criança: uso de testes psicológicos 6. Visita escolar e vista domiciliar 7. Últimas sessões com os pais 8. Relatório final 9. Devolutiva final para a criança Referências bibliográficas Capítulo III As devolutivas para as crianças em forma de narrativas Referências bibliográficas Capítulo IV Referências bibliográficas Capítulo V I. Apresentação II. Religião e o psicólogo clínico III. O psicodiagnóstico interventivo IV. Considerações sobre procedimentos que possibilitam a compreensão da religiosidade no psicodiagnóstico interventivo V. O modelo investigativo para compreensão da religiosidade no psicodiagnóstico interventivo fenomenológico‑existencial VI. Considerações finais Referências bibliográficas Capítulo VI 1. Introdução 2. Utilização da colagem 3. Análise 4. Considerações finais Referências bibliográficas Capítulo VII Referências bibliográficas Capítulo VIII Referências bibliográficas Capítulo IX Introdução A experiência do psicodiagnóstico no Centro de Psicologia Aplicada da Unip A interdisciplinaridade como prática colaborativa Referências bibliográficas Capítulo X Mary Dolores Ewerton Santiago I. Introdução II. Fundamentos da devolução psicodiagnóstica III. A técnica de devolução e suas possibilidades IV. O uso de histórias na psicoterapia de crianças V. A utilização do livro de história como procedimento devolutivo no psicodiagnóstico interventivo de crianças Referências bibliográficas Capítulo XI Introdução Alguns aspectos sobre a produção de documentos escritos no campo da Psicologia Sobre o prontuário e registro documental Da supervisão e sobre a discussão dos relatos Considerações a respeito dos relatos da primeira entrevista, da hora de jogo e do uso de teste Considerações finais Referências bibliográficas Capítulo XII Referências bibliográficas
Compartilhar