Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Autora: Profa. Mariane Fonseca Petroni Colaboradores: Prof. Juliano Rodrigo Guerreiro Profa. Marília Tavares Coutinho da Costa Patrão Farmacoterapia Professora conteudista: Mariane Fonseca Petroni Formou-se em Física pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (1987) e em Farmácia e Bioquímica pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP) (1999). É mestre em Tecnologia Nuclear: Aplicações na área de Radiofarmácia pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares da USP (Ipen/USP) desde 2003. É professora adjunta na UNIP desde 2004. Possui experiência na área de farmácia hospitalar e farmácia clínica, tendo atuado no Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (ICr/HCFM-USP) e no Hospital Universitário da USP (HU/USP). © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) P497f Petroni, Mariane Fonseca. Farmacoterapia / Mariane Fonseca Petroni. – São Paulo: Editora Sol, 2022. 140 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Farmacoterapia. 2. Farmacocinética. 3. Farmacovigilância. I. Título. CDU 615.03 U514.56 – 22 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Profa. Sandra Miessa Reitora em Exercício Profa. Dra. Marilia Ancona Lopez Vice-Reitora de Graduação Profa. Dra. Marina Ancona Lopez Soligo Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Claudia Meucci Andreatini Vice-Reitora de Administração Prof. Dr. Paschoal Laercio Armonia Vice-Reitor de Extensão Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades do Interior Unip Interativa Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático Comissão editorial: Profa. Dra. Christiane Mazur Doi Profa. Dra. Angélica L. Carlini Profa. Dra. Ronilda Ribeiro Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista Profa. Deise Alcantara Carreiro Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Leonardo do Carmo Jaci Albuquerque de Paula Sumário Farmacoterapia APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 FARMACOLOGIA CLÍNICA E FARMACOTERAPIA .....................................................................................9 1.1 Farmacocinética clínica ..................................................................................................................... 11 1.1.1 Farmacocinética .......................................................................................................................................11 1.1.2 Modelos compartimentais e modelagem farmacocinética ................................................... 14 1.1.3 Esquemas de administração de fármacos .................................................................................... 18 1.1.4 Esquema posológico .............................................................................................................................. 22 1.1.5 Monitoração plasmática de fármacos ............................................................................................ 22 2 INTERAÇÕES MEDICAMENTOSAS ............................................................................................................. 24 2.1 Conceito de interação medicamentosa....................................................................................... 24 2.2 Classificação das interações medicamentosas ......................................................................... 26 2.2.1 Interações farmacocinéticas .............................................................................................................. 28 2.2.2 Interações farmacodinâmicas ............................................................................................................ 31 3 FARMACOVIGILÂNCIA ................................................................................................................................... 32 3.1 Métodos em farmacovigilância ...................................................................................................... 33 3.1.1 Vigilância passiva .................................................................................................................................... 34 3.1.2 Vigilância intensiva ................................................................................................................................ 34 3.1.3 Estudos epidemiológicos ..................................................................................................................... 35 3.2 A pesquisa clínica ................................................................................................................................. 35 3.3 Reações adversas a medicamentos ............................................................................................... 38 3.3.1 Classificação das reações adversas .................................................................................................. 38 3.4 Prevenção de reações adversas oriundas de interações medicamentosas ................... 41 4 FARMACOTERAPIA EM GRUPOS-ALVOS ................................................................................................ 43 4.1 Farmacoterapia em idosos ................................................................................................................ 43 4.1.1 O envelhecimento ................................................................................................................................... 43 4.1.2 Alterações fisiológicas no idoso ........................................................................................................ 46 4.1.3 Idosos — prescrição de medicamentos .......................................................................................... 51 4.2 Farmacoterapia em pediatria .......................................................................................................... 53 4.2.1 Principais diferenças em termos de parâmetros cinéticos nas crianças .......................... 55 4.2.2 Cálculo de doses em pediatria ........................................................................................................... 56 4.3 Gestantes e saúde da mulher .......................................................................................................... 57 4.3.1 Farmacoterapia na gravidez ............................................................................................................... 58 4.3.2 Contraceptivos orais .............................................................................................................................. 60 4.3.3 Terapia de reposição hormonal (TRH) ............................................................................................. 64 Unidade II 5 PROFILAXIA E TRATAMENTO DE DOENÇAS TROPICAIS .................................................................... 75 5.1 Doenças tropicais negligenciadas.................................................................................................. 75 5.1.1 Doenças parasitárias e seus antiparasitários ............................................................................... 76 5.1.2 Outras doenças tropicais de interesse ............................................................................................ 82 6 DOENÇA RENAL E DISTÚRBIOS ELETROLÍTICOS.................................................................................. 90 6.1 Doença renal .......................................................................................................................................... 90 6.1.1 Nefrite ......................................................................................................................................................... 91 6.1.2 Infecção urinária ..................................................................................................................................... 91 6.1.3 Cálculo renal ............................................................................................................................................. 92 6.1.4 Doença renal crônica ............................................................................................................................ 93 6.2 Distúrbios eletrolíticos........................................................................................................................ 94 6.2.1 Sódio (Na+) ................................................................................................................................................. 95 6.2.2 Potássio (K+) .............................................................................................................................................. 96 7 FARMACOTERAPIA DAS DOENÇAS OCULARES E OSTEOARTICULARES ..................................... 97 7.1 Doenças oculares .................................................................................................................................. 97 7.1.1 Principais doenças oculares ................................................................................................................ 98 7.2 Doenças osteoarticulares ................................................................................................................108 7.2.1 Osteoporose ............................................................................................................................................108 7.2.2 Osteoartrite ..............................................................................................................................................111 7.2.3 Artrite reumatoide ................................................................................................................................ 112 8 ATUALIZAÇÃO EM ANTIBIOTICOTERAPIA – RESISTÊNCIA AOS ANTIMICROBIANOS E ÀS AFECÇÕES BUCODENTÁRIAS ..............................................................................................................115 8.1 Resistência bacteriana......................................................................................................................115 8.2 Afecções bucodentárias ...................................................................................................................119 8.2.1 Gengivite ................................................................................................................................................. 120 8.2.2 Periodontite ............................................................................................................................................ 120 7 APRESENTAÇÃO A disciplina de Farmacoterapia tem como principal objetivo oferecer conceitos, ferramentas e uma visão sobre o uso racional dos medicamentos na prática clínica, abordando certas condições fisiopatológicas de interesse. A farmacoterapia permite estabelecer um elo entre os conhecimentos de farmacologia e fisiopatologia, dando destaque aos esquemas posológicos preconizados na atualidade. Assim, o objetivo é oferecer ao aluno um caminho para a obtenção de conhecimentos que permitam a orientação adequada ao paciente, o acompanhamento e seguimento farmacoterapêutico racional e seguro, e também maior integração à equipe multidisciplinar, tanto no momento de uma intervenção farmacêutica como no momento da escolha do fármaco, da forma farmacêutica e do esquema posológico. É importante ressaltar que a prescrição racional e o acompanhamento farmacoterapêutico são fundamentais para a terapêutica racional. INTRODUÇÃO Este livro-texto se inicia com uma discussão sobre a farmacologia clínica, apresentando conceitos fundamentais de farmacoterapia. Isso é fundamental para que possamos nos familiarizar com a linguagem, conceitos e ferramentas empregadas na prática clínica do acompanhamento e seguimento farmacoterapêutico, visando a terapêutica racional e segura. A partir disso, abordaremos as interações medicamentosas, tópico que leva em consideração as possíveis interferências farmacocinéticas e farmacodinâmicas ao se utilizar concomitantemente dois ou mais medicamentos. Também serão observadas possíveis interações entre fármacos e outras substâncias, como nutrientes, tabaco etc. Conheceremos aspectos relacionados à farmacocinética clínica, importante ferramenta empregada na busca da posologia mais adequada ao paciente, e que também permite compreender variações de resposta individual. Além disso, não poderíamos deixar de comentar a farmacovigilância, cujo principal objetivo é a identificação, avaliação e prevenção de efeitos adversos e/ou outros problemas relacionados ao uso de medicamentos. Trataremos de aspectos da farmacoterapia em grupos-alvos, como idosos, crianças e gestantes, cujas características específicas exigem especial atenção e conhecimento dos profissionais de saúde. Aspectos relacionados à saúde da mulher também serão abordados. 8 De posse desses conceitos, discutiremos sobre doenças e distúrbios importantes à prática clínica, como a resistência aos antibióticos e a situação atual do uso de antibacterianos frente à resistência bacteriana, doenças tropicais negligenciadas, parasitárias, distúrbios renais e hidroeletrolíticos, doenças oculares, osteoarticulares e afecções bucodentárias. Bom estudo! 9 FARMACOTERAPIA Unidade I 1 FARMACOLOGIA CLÍNICA E FARMACOTERAPIA Há muito a humanidade busca recursos eficazes para o alívio de diversas condições que afetam o organismo, manifestando-se como doenças. Estas não só comprometem a qualidade de vida e a produtividade, mas podem levar à morte e, inevitavelmente, impactam os sistemas de saúde. Para tanto, medidas farmacológicas e não farmacológicas têm sido empregadas durante um longo período de forma empírica. Com o passar do tempo, a ciência e a tecnologia evoluíram e passaram a oferecer tratamentos e procedimentos mais eficazes, mas também conhecimento e recursos para avaliar e acompanhar os resultados das terapêuticas empregadas. A saúde já foi definida de diversas maneiras. Ausência da doença, falta ou perturbação da saúde. Mas a definição atualmente aceita é muito mais ampla e não separa o indivíduo do meio em que vive. Desde 1948, a Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde como o completo estado de bem-estar físico, mental e social (SOUZA E SILVA; SCHRAIBER; MOTA, 2019). Tendo em mente que a doença pode ser considerada um desequilíbrio entre o ser humano e o ambiente, a qualidade de vida tem um papel extremamente importante no que se refere à saúde, pois depende de condições socioambientais adequadas. Entretanto, como já discutimos, a doença sempre esteve presente e faz parte da história da humanidade. Inclusive, grandes eventos epidemiológicos e doenças de alto impacto têm impulsionado o conhecimento humano em busca de melhor qualidade e expectativa de vida. Desse modo, podemos observar períodos que caracterizam a evolução de uma doença e que justificam o emprego de tratamentos. Lembrando que diversas condições se resolvem espontaneamente, sem o emprego de qualquer tipo de manejo. Entretanto uma parcela significativa das condições fisiopatológicas exige algum tipo de tratamento. Assim, conhecer a história natural da doença permite entender sua evolução e qual conduta deve ser adotada em cada fase, considerando tanto condições agudas como crônicas. As doenças,em geral, apresentam dois períodos característicos: o período pré-patogênico e o período patogênico. Normalmente, os sinais e sintomas aparecem no período patogênico. É nessa fase que costumamos empregar os tratamentos farmacológicos, e o desfecho do tratamento dependerá de uma série de fatores. A farmacologia clínica é uma área da farmacologia que atua como uma interface fundamental com a terapêutica na prática clínica. TatianaG Realce TatianaG Realce 10 Unidade I Observe a figura 1, ela mostra detalhadamente a atual estrutura preconizada da farmacologia, suas correlações e disciplinas afins. Terapêutica na clínica médica Farmacologia clínica Farmacogenética Genética Farmacogenômica Genômica Farmacoepidemiologia Epidemiologia clínica Farmacoeconomia Economia da saúde Psicologia Psicofarmacologia Farmacocinética/ metabolismo dos fármacos Farmacologia bioquímica QuimioterapiaFarmacologia molecular Farmacologia de sistemas Medicina veterinária Farmacologia veterinária Farmácia Ciências farmacêuticas Patologia Toxicologia Química Química médica Biotecnologia Biofármacos Neurofarmacologia Farmacologia cardiovascular Farmacologia gastrointestinal Farmacologia respiratóriaImunofarmacologia Farmacologia Figura 1 – A farmacologia e suas subdivisões Adaptada de: Rang et al. (2007, p. 6). A farmacologia é responsável por estudar as substâncias farmacologicamente ativas em termos de estrutura e relação com os alvos biológicos, ou seja, o mecanismo de ação e como o fármaco se comportará no organismo desde o momento de sua administração até sua eliminação completa. Avaliar, analisar as propriedades físico-químicas, interações com outras substâncias, reações adversas, farmacocinética, farmacodinâmica e, finalmente, o emprego terapêutico compõem o universo da farmacologia clínica. A farmacologia clínica, graças ao amplo espectro de informações, pode avaliar, analisar e acompanhar todos os aspectos relacionados à farmacoterapia, relacionando as informações e parâmetros referentes ao fármaco com a condição fisiopatológica do paciente, visando o uso racional e seguro dos medicamentos. Levando em consideração aspectos técnicos e econômicos relativos aos medicamentos, permite a tomada de decisão no que se refere à escolha mais eficaz e segura em termos de terapia racional. TatianaG Realce 11 FARMACOTERAPIA 1.1 Farmacocinética clínica Atualmente, é fundamental conhecer não apenas o mecanismo de ação de um fármaco, mas também seu comportamento cinético, levando em consideração tanto suas próprias características e comportamento no ambiente biológico como as particularidades genéticas do indivíduo. Estas podem proporcionar respostas diferentes em maior ou menor grau à exposição ao fármaco — é a chamada farmacogenômica. Do mesmo modo, é fundamental a escolha da forma farmacêutica mais adequada às condições do paciente e ao objetivo farmacoterapêutico. Outro ponto fundamental a ser levado em conta é a qualidade do medicamento utilizado. Posto isso, é possível perceber que durante muito tempo falhas terapêuticas, ajustes posológicos e outros aspectos relacionados à resposta farmacoterapêutica não foram devidamente tratados por falta de opção. Atualmente, na farmacoterapêutica racional, consideramos a importância de conhecer não apenas o sítio de ação do fármaco, mas também seus parâmetros farmacocinéticos do sistema Adme (absorção, distribuição, metabolização e excreção). Lembrete Fármacos administrados por via endovenosa não passam pela fase de absorção. Portanto a farmacocinética clínica pode prever a utilização desses parâmetros (possibilitando o ajuste de dose quando necessário) e, de modo mais racional, os aspectos particulares da farmacoterapêutica, principalmente em pacientes crônicos. A farmacocinética clínica permite maior segurança e eficácia, e diminui os riscos inerentes ao processo farmacoterapêutico, sobretudo em tratamentos prolongados. Assim, estudaremos os principais modelos e as principais equações matemáticas que são utilizadas em diversos esquemas posológicos diante de processos farmacocinéticos. Tais conhecimentos e ferramentas propiciam a escolha apropriada de esquemas posológicos adequados. 1.1.1 Farmacocinética Didaticamente, as duas principais abordagens da farmacologia são: a farmacocinética e a farmacodinâmica. A farmacocinética tem como objetivo estudar todos os aspectos relacionados ao “caminho” do fármaco no organismo, sendo responsável pelo estudo e a compreensão das fases de absorção, distribuição, metabolização e excreção de um fármaco. TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce 12 Unidade I Já a farmacodinâmica estuda e descreve o local e o mecanismo de ação — e, por consequência, os efeitos farmacológicos das substâncias farmacologicamente ativas. Todavia, há uma correlação entre a dose que foi administrada, as concentrações plasmáticas e o sítio de ação do fármaco. Para que possamos ter a terapia farmacológica adequada, devemos considerar não só a farmacocinética e a farmacodinâmica do fármaco, mas também a fase farmacotécnica ou biofarmacêutica, conforme demonstra a figura 2. Fármaco disponível para absorção Fármaco disponível para ação EfeitoDose I – Fase farmacêutica II – Fase farmacocinética III – Fase farmacodinâmica Disponibilidade farmacêutica Disponibilidade biológica Desintegração da forma farmacêutica Dissolução da substância ativa Absorção Distribuição Metabolismo Excreção Interação fármaco-receptor no tecido-alvo Figura 2 – Fases de ação dos fármacos Adaptada de: Korolkovas e Burckhalter (1988, p. 8). Para que o fármaco atinja concentrações plasmáticas adequadas, antes ele precisa alcançar a corrente sanguínea. A fase farmacêutica ou biofarmacêutica avalia e acompanha a liberação do fármaco de seu “aprisionamento”, ou seja, a liberação da forma farmacêutica. Essa fase é de suma importância quando tratamos de formas farmacêuticas sólidas, pois pode sofrer interferência de diversos fatores relacionados às características da forma farmacêutica e aos aspectos físico-químicos do ambiente no qual deve ocorrer a absorção, bem como de fatores relacionados à fisiologia e à fisiopatologia do paciente. Dependendo da interferência, pode haver comprometimento importante nas fases subsequentes e, com isso, alterações na resposta farmacológica. Considerando um esquema posológico adequado e a adesão apropriada por parte do paciente, a correlação entre os fenômenos farmacocinéticos e farmacodinâmicos permite que a meta farmacoterapêutica seja alcançada. Assim, qualquer comportamento ou resposta não esperada podem ser compreendidos por meio desse conhecimento, permitindo, quando necessário, o ajuste do esquema posológico do paciente. É sabido que o efeito farmacológico proporcionado por um fármaco tem relação direta com sua concentração no sítio de ação. Entretanto, devido à distribuição e localização dos alvos farmacológicos, não podemos chegar diretamente a esses pontos para verificar a concentração do fármaco no local de ação, por serem inacessíveis. Por exemplo, pensemos num fármaco cujo alvo molecular localiza-se no TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce 13 FARMACOTERAPIA coração: não é possível coletar amostras do músculo cardíaco para verificação das concentrações dessa substância no sítio de interesse. É possível determinar a concentração do fármaco no plasma e, a partir desse dado, prever sua presença no sítio de ação, em concentrações adequadas para que o efeito terapêutico seja observado. Dessa maneira, qualquer alteração nas concentrações plasmáticas do fármaco leva a alterações nas concentrações dessa substância nos diversos tecidos e órgãos, incluindo no sítio receptor. Contudo, é preciso destacar que a distribuição dos fármacos nos diversos territórios tem relação com características físico-químicas do ambiente biológico e do fármaco, e a necessidadeou não de o fármaco atravessar barreiras. Mas, em linhas gerais, é possível considerar que, ao aumentar a concentração plasmática de um fármaco, aumentaremos sua concentração nos tecidos. O mesmo raciocínio é aplicado ao se observar a diminuição em suas concentrações. A figura 3 apresenta essa correlação. Nela, é possível observar a relação entre a concentração do fármaco no compartimento principal (sangue/plasma) e nos tecidos, incluindo-se os alvos moleculares nos tecidos. Concentração do fármaco nos tecidos Co nc en tr aç ão d o fá rm ac o no p la sm a Figura 3 – Correlação entre as concentrações do fármaco no sangue e nos tecidos Adaptada de: Storpirtis et al. (2008, p. 281). Dessa forma, parâmetros importantes, como concentração plasmática terapêutica e tóxica, são estabelecidos a partir desse raciocínio. Prevendo a correlação direta entre dose, concentração plasmática do fármaco e resposta/efeito terapêutico, é possível também determinar a concentração (C) de um fármaco em função do tempo (T) em diversos fluidos biológicos, como sangue, urina e saliva, após a administração de uma dose. A figura 4 apresenta a curva de concentração versus tempo (C × T), mostrando basicamente a variação na concentração de um fármaco em função do tempo após a administração deste. Essa curva é a chamada “curva de decaimento”. TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce 14 Unidade I 0 0 25 50 75 100 (%) C (mg/L) 8 Tempo (unidade arbitrária) Fármaco no tecido EV = via endovenosa VO = via oral Fármaco excretado Metabólito excretado Co nc en tr aç ão Po rc en ta ge m d a do se a dm in ist ra da Fármaco no sangue (VO) Fármaco no sangue (EV) 4 12 16 Figura 4 – Curva de decaimento de um fármaco Adaptada de: Storpirtis et al. (2008, p. 281). Um ponto importante que deve ser levado em consideração é a via de administração do fármaco. No caso de fármacos administrados por via oral, é possível notar que a velocidade de absorção será maior que a velocidade de eliminação. Assim, a concentração plasmática do fármaco aumentará em função do tempo. Tem-se, então, um valor de concentração máxima no plasma (Cmáx) e o tempo necessário para atingir a concentração máxima (Tmáx). Após essa fase, os valores relacionados às taxas de eliminação são predominantes até a eliminação completa do fármaco. Levando-se em conta as propriedades de homogeneidade cinética, é possível observar que a curva cinética do fármaco no sangue será semelhante à curva cinética do fármaco no tecido. 1.1.2 Modelos compartimentais e modelagem farmacocinética Existem modelos matemáticos capazes de descrever os parâmetros cinéticos, nos quais o organismo é representado por um sistema compartimentalizado que leva em consideração suas características intrínsecas. É claro que esse sistema é uma representação simplificada que permite a compreensão e o estudo do comportamento cinético dos fármacos, uma vez que o sistema biológico vivo é extremamente complexo. Dessa forma, o modelo de compartimentos oferece uma aproximação da realidade, mas trata-se de uma importante ferramenta em termos de estudos farmacocinéticos. TatianaG Realce TatianaG Realce 15 FARMACOTERAPIA O modelo monocompartimental (um compartimento) considera o organismo de forma única e com características homogêneas. Nesse modelo, considera-se que ao se administrar um determinado fármaco, este é imediatamente distribuído pelos mais diversos territórios orgânicos, não considerando condições físico-químicas, anatômicas ou travessia de barreiras. A finalização do processo se dá por eliminação/excreção. Observe a figura 5, ela apresenta uma representação esquemática do modelo de um compartimento. Administração do fármaco Distribuição (compartimento) Eliminação/excreção Figura 5 – Representação esquemática do modelo monocompartimental No modelo de dois compartimentos (bicompartimental) é possível observar a divisão do organismo em central e periférico. O compartimento central é representado pelo sangue (plasma) e territórios nos quais se observa elevada perfusão, como cérebro, coração, rins, pulmões, fígado e as glândulas endócrinas. Nestes, são observadas altas concentrações do fármaco logo após sua administração. O segundo compartimento é representado pelo tecido adiposo, a pele e a musculatura estriada. Nesses territórios, observa-se que o fármaco chega mais lentamente. A figura 6 traz uma representação esquemática do modelo bicompartimental. Administração do fármaco Compartimento central (plasma) Compartimento periféricoEliminação/excreção Figura 6 – Modelo bicompartimental TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce 16 Unidade I Nesse modelo é possível avaliar a distribuição do fármaco do sangue para os tecidos e também seu retorno para o compartimento central (principal), o sangue. Um ponto interessante desse modelo é a possibilidade de se observar a diferença entre tecidos com mais perfusão sanguínea e tecidos com menos. Observe a figura 7, nela é possível conferir uma representação gráfica do comportamento cinético de um fármaco após administração em dose única em bolus. Observação “Em bolus” é uma expressão muito utilizada na prática clínica. Trata-se de uma forma de administração endovenosa de um medicamento injetável de modo rápido, aumentando sua concentração rapidamente no sangue. Fase alfa (distribuição) Concentração inicial (pico) Fase beta (eliminação) C0 Tempo após a administração Co nc en tr aç ão p la sm át ic a Figura 7 – Representação esquemática da concentração plasmática de um fármaco administrado por via endovenosa, em dose única (modelo bicompartimental) Fonte: Fuchs e Wannmacher (2017, p. 77). Nesse gráfico é possível observar que, no início, tem-se alta concentração do fármaco no compartimento principal (sangue). Em dado momento observa-se o declínio rápido devido à distribuição do fármaco no compartimento periférico. Por definição, esse período é designado como “fase alfa” (distribuição). A duração da fase de distribuição está diretamente relacionada à meia-vida (T1/2) de distribuição. Assim que se estabelece o equilíbrio entre os compartimentos central e periférico, a queda da concentração plasmática do fármaco estará ligada à eliminação/excreção da substância. TatianaG Realce TatianaG Realce 17 FARMACOTERAPIA Temos então a chamada “fase beta” (eliminação). Nesse caso, ela é medida pela meia-vida (T1/2) de eliminação. É possível observar que, em geral, as concentrações plasmáticas do fármaco caem abaixo do nível considerado terapêutico justamente nessa fase, pois trata-se de uma fase mais lenta se comparada à distribuição (FUCHS; WANNMACHER, 2017). Dessa forma, a partir da curva de concentração plasmática (figura 7), podemos calcular matematicamente os volumes de distribuição, também denominado volume de distribuição aparente, nos diversos compartimentos utilizando expressões matemáticas. O volume de distribuição (Vd) estabelece uma relação entre a quantidade de fármaco no organismo e sua concentração (C) no sangue. O volume de distribuição pode ser calculado por meio da seguinte expressão: d Quantidade de fármaco no organismo V C = Também é possível calcular o volume de distribuição nos compartimentos. Assim, temos o volume de distribuição no compartimento central (Vc). Este pode ser calculado por meio da fórmula: Volume de distribuição central = Dose Concentração inicial Após a fase de distribuição entre os compartimentos central e periférico, temos o volume de distribuição no equilíbrio (Ve). Esse parâmetro é calculado por meio da fórmula: Volume de distribuição de equilíbrio = 0 Dose C Onde: C0 = concentração plasmática do fármaco. Essa é considerada uma concentração hipotética, por refletir uma distribuição imediata do fármaco. Na realidade, temos o processo de eliminação ocorrendo concomitantemente com o processo de distribuição do fármaco. Entretanto esse raciocíniopermite “compensar” a perda na concentração do fármaco durante esse processo. Assim, o volume de distribuição no equilíbrio equivale ao volume de distribuição aparente. Observamos que, após a fase de equilíbrio, a queda da concentração do fármaco está relacionada com as taxas de eliminação, ou seja, com a depuração (eliminação) plasmática ou clearance. Existe uma expressão matemática que permite o cálculo da depuração de um fármaco por um determinado compartimento. Tal expressão leva em conta o fluxo plasmático do órgão e a capacidade de extração. TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce 18 Unidade I Depuração = Q . E Onde: Q = fluxo plasmático do órgão E = capacidade de extração Para fármacos cuja velocidade de metabolização é diretamente proporcional à concentração do fármaco livre, a capacidade de extração de um determinado órgão expressa a capacidade desse órgão de extrair todo o fármaco presente na corrente sanguínea. Os rins e o fígado são os órgãos com maiores taxas de extração, contribuindo de forma importante na depuração dos fármacos. A depuração renal é a mais fácil de ser determinada. Ela pode ser feita por meio da análise da concentração plasmática do fármaco presente no plasma ou na urina. A meia-vida de eliminação, que expressa o tempo necessário para reduzir pela metade a quantidade do fármaco no organismo durante o processo de eliminação, apresenta relação direta e proporcional com o volume de distribuição de equilíbrio, sendo inversamente proporcional à depuração do fármaco. Ela pode ser calculada a partir da seguinte expressão: ( )1 eliminação 2 0,693 . Vd T depuração = Onde: Vd = volume de distribuição Essas expressões matemáticas permitem os cálculos necessários para o planejamento racional de diversos esquemas posológicos, como dose única, infusão contínua e múltiplas doses. 1.1.3 Esquemas de administração de fármacos Dose única Dependendo do objetivo terapêutico estabelecido, o tratamento consiste na administração do fármaco em esquema de dose única. Eventualmente, se faz necessária a repetição da dose devido à situação clínica em questão. Entretanto, diante da necessidade de repetição, é preciso fazer uma estimativa de quanto da dose inicial ainda permanece no organismo. Para tanto, deve-se considerar que a cada T1/2 (meia-vida), a concentração do fármaco reduz em 50%. Portanto, se considerarmos de 4 a 5 meias-vidas após a administração da dose, é possível considerar que o fármaco foi eliminado. Para o cálculo de dose única, utiliza-se a seguinte fórmula: Dose única = concentração eficaz . VAD TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce 19 FARMACOTERAPIA Onde: VAD = volume aparente de distribuição Essa expressão é utilizada considerando a administração por via endovenosa, na qual o fármaco não passa por absorção. No caso do emprego de outra via, como a oral e outras pelas quais o fármaco passa pela fase de absorção, devemos levar em consideração a sua biodisponibilidade. A biodisponibilidade é um termo empregado para expressar a fração do fármaco administrado que alcança a circulação sistêmica na sua forma inalterada. Nesse caso, utiliza-se a seguinte expressão matemática para o cálculo da dose: Dose única = ADConcentração eficaz . V f Onde: f = biodisponibilidade VAD = volume aparente de distribuição A administração do fármaco por vias nas quais ocorre absorção exigem, normalmente, doses mais elevadas, uma vez que o fármaco tem que atravessar barreiras até atingir o compartimento principal. Cabe destacar que o emprego de fármacos em esquema de dose única deve ser cuidadoso no caso de fármacos de baixo índice terapêutico, em função do risco de ocorrência de reações adversas e toxicidade. O índice terapêutico (IT) estabelece uma relação entre a dose letal de um fármaco para 50% dos indivíduos (DL 50%) e a dose eficaz de um fármaco para 50% dos indivíduos (DE 50%). Observe a expressão a seguir que apresenta a forma de calcular o IT: Índice terapêutico (IT) = DL 50% DE 50% Assim, o índice terapêutico indica a margem de segurança no emprego de um fármaco por estabelecer uma relação entre a dose eficaz e a dose tóxica. Desse modo, para esses fármacos é interessante optar por outra forma de administração parenteral, como a infusão lenta ou contínua. Diferentemente da administração em bolus, as infusões lenta e contínua atenuam o pico plasmático do fármaco, minimizando o risco de toxicidade e reações adversas. Na figura 8, é possível observar o comportamento da concentração plasmática de um fármaco após ter sido administrado por via endovenosa em esquema de dose única. TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce 20 Unidade I Injeção lenta Injeção em bolo Com absorção Tempo Co nc en tr aç ão p la sm át ic a Figura 8 – Perfil da concentração plasmática de um fármaco administrado em dose única de três maneiras: em bolus (bolo), endovenosa lenta e uma via com absorção Fonte: Fuchs e Wannmacher (2015, p. 100). Múltiplas doses De modo geral, o esquema de administração em múltiplas doses é o mais empregado na prática clínica. Nesse esquema, observa-se o acúmulo do fármaco de tal maneira que seja alcançado o chamado “estado de equilíbrio”. No estado de equilíbrio, a quantidade do fármaco que “entra” no organismo é igual à quantidade de fármaco que “sai”, ou seja, quantidade metabolizada e eliminada. O estado de equilíbrio depende do cumprimento adequado do esquema posológico — ou seja, que as doses e o intervalo entre as doses sejam respeitados. Caso contrário, flutuações importantes nas concentrações do fármaco impedem o estabelecimento do equilíbrio cinético. A concentração que reflete o estado de equilíbrio depende da dose, do intervalo estabelecido entre as doses e das taxas de eliminação. A principal fórmula que permite o cálculo estimado da concentração de equilíbrio é: E f . D C T . Cl = Onde: f = biodisponibilidade D = dose T = intervalo entre as doses Cl = clearance (depuração) TatianaG Realce 21 FARMACOTERAPIA Uma vez que o clearance (depuração) está envolvido no cálculo, é possível fazer ajustes de doses adequados caso haja alguma alteração na eliminação do fármaco. Levando-se em consideração o estado de equilíbrio do fármaco, ao aumentar o intervalo de tempo entre as doses, se faz necessário aumentar a dose para que sejam mantidas as concentrações de equilíbrio. A figura 9 mostra uma representação gráfica das relações farmacocinéticas fundamentais para a administração de múltiplas doses de um fármaco. Estado de equilíbrio • Atingido depois de cerca de quatro meias-vidas • O tempo decorrido até o estado de equilíbrio não depende da dose Concentrações no estado de equilíbrio • Proporcionais à dose/intervalo entre as doses • Proporcionais à F/CL Flutuações • Proporcionais ao intervalo entre as doses/meia-vida • Atenuadas pela absorção lenta 0 0 1 2 2 41 3 Tempo (múltiplos da meia-vida de eliminação) Co nc en tr aç ão 5 6 CSS CL: clearance; Css: concentração média; F: biodisponibilidade Figura 9 – Relações farmacocinéticas fundamentais para a administração de múltiplas doses de um fármaco Fonte: Hilal-Dandan e Brunton (2015, p. 62). Infusão contínua Essa modalidade de infusão é empregada na administração de fármacos que apresentam meia-vida curta, ultracurta ou com índice terapêutico estreito. Dessa maneira, evita-se as altas concentrações de pico características de administrações repetidas. Alguns fármacos são administrados necessariamente por infusão contínua; podemos citar norepinefrina, epinefrina, dopamina, dobutamina, dentre outros. Esquemas de analgesia e sedação com midazolam e fentanila também são administrados dessa maneira, para garantir o efeito contínuo de depressão do sistema nervoso central de forma eficaz e segura. TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce 22 Unidade I Dose de ataque Em algumas circunstâncias, se faz necessárioatingir rapidamente altas concentrações plasmáticas do fármaco; geralmente, são empregadas antes dos esquemas de múltiplas doses ou infusão contínua. Assim, a dose de ataque consiste na administração de uma dose inicial mais elevada em relação às demais doses, com o intuito de alcançar mais rapidamente as concentrações plasmáticas do fármaco dentro da faixa terapêutica desejada. 1.1.4 Esquema posológico O esquema posológico é a expressão usada para descrever como um fármaco será administrado, levando em conta a dose e a duração do tratamento. Este esquema deve considerar também a meta farmacoterapêutica. 1.1.5 Monitoração plasmática de fármacos Observamos que os níveis séricos dos fármacos permitem estimar as concentrações deles no sítio de ação. Isso permite estabelecer e/ou acompanhar a resposta farmacoterapêutica. A monitoração plasmática torna-se extremamente útil nos casos em que há suspeita de falha terapêutica em função de subdosagem, bem como nos casos suspeitos ou confirmados de sobredosagem, ou seja, doses potencialmente tóxicas. Eventualmente, a monitoração plasmática permite o acompanhamento das concentrações plasmáticas com o intuito de garantir que as concentrações do fármaco estejam dentro da faixa terapêutica adequada e segura. Pode ser útil também, no ajuste posológico. Principalmente no ajuste de doses de fármacos de índice terapêutico estreito, ou seja, que apresentam baixa margem de segurança. Essa medida garante que o ajuste de dose não levará as concentrações plasmáticas a níveis tóxicos ou a níveis subótimos. A figura 10 mostra as faixas de concentração plasmática de um fármaco e o efeito esperado. Considerando a concentração plasmática do fármaco em função do tempo, é possível calcular a área sob a curva (ASC), também conhecida por curva AUC, do inglês area under the curve. Essa medida aponta a extensão da absorção de um fármaco. TatianaG Realce 23 FARMACOTERAPIA Potencialmente tóxico Tóxico Terapêutico Subótimo Tempo PO IV Co nc en tr aç ão p la sm át ic a IV: intravenosa; PO: por boca, equivale à via oral (VO) Figura 10 – Relação entre concentração plasmática do fármaco e efeitos terapêuticos e tóxicos Fonte: Silva (2010, p. 64). No caso de fármacos administrados por via oral, a biodisponibilidade é a relação da ASC após a administração oral e a ASC após administração endovenosa, conforme se observa na figura 11. Fármaco administrado por via IV Fármaco administrado por via oral ASC (injetada) ASC (oral) Tempo Fármaco administrado Biodisponibilidade = ASC oral ASC injetada x 100 Co nc en tr aç ão p la sm át ic a do fá rm ac o ASC: área sob a curva; IV: intravenosa (o mesmo que endovenosa) Figura 11 – Determinação da biodisponibilidade de um fármaco Fonte: Whalen, Finkel e Panavelil (2016, p. 8). 24 Unidade I Não se deve levar em consideração apenas as informações obtidas a partir da monitoração plasmática, uma vez que essas informações serão, provavelmente, utilizadas para ajuste do esquema posológico. Portanto, devem ser contextualizadas levando em consideração aspectos relacionados ao processo fisiopatológico, características do paciente e sinais e sintomas referidos e/ou manifestados pelo paciente. A meta farmacoterapêutica deve ser bem estabelecida, de modo que a monitoração plasmática seja uma ferramenta útil no acompanhamento e seguimento farmacoterapêutico. O quadro 1 apresenta alguns critérios que podem justificar a monitoração dos níveis séricos dos fármacos, segundo Fuchs e Wannmacher (2017). Quadro 1 Critérios que justificam a determinação de níveis plasmáticos de fármacos 1 Concentrações mínima eficaz e tóxica muito próximas 2 Necessidade de estabelecimento de concentrações de equilíbrio em tratamentos com doses repetidas 3 Efeito farmacológico proporcional à concentração plasmática 4 Efeito farmacológico de difícil mensuração (uso profilático) 5 Existência de significativas diferenças individuais em absorção, distribuição ou eliminação 6 Existência de conhecimentos farmacocinéticos padrão 7 Disponibilidade de método de dosagem confiável Fonte: Fuchs e Wannmacher (2017, p. 80). 2 INTERAÇÕES MEDICAMENTOSAS Como já discutido, o conhecimento das propriedades de um fármaco e sua ação farmacológica são fundamentais para a farmacoterapêutica racional. Para isso, é preciso considerar a complexidade do organismo em termos estruturais, físico-químicos e bioquímicos. Nesse contexto, cabe evidenciar que inúmeras substâncias endógenas e exógenas se relacionam no ambiente biológico. Portanto, é necessário conhecer todos os aspectos referentes aos fármacos para se alcançar o sucesso farmacoterapêutico, prever e/ou evitar interações que possam comprometer o resultado da terapêutica empregada e diminuir riscos potenciais à integridade física do paciente. 2.1 Conceito de interação medicamentosa O conhecimento das propriedades básicas dos fármacos e de sua ação farmacológica é de fundamental importância para a realização de uma terapêutica adequada, considerando que o corpo humano é um sistema complexo formado por uma infinidade de substâncias que, inevitavelmente, entrarão em contato com os fármacos ingeridos no ambiente biológico. 25 FARMACOTERAPIA Além disso, é preciso estar ciente da farmacodinâmica dos fármacos envolvidos na terapêutica para se evitar interações prejudiciais e possíveis efeitos adversos dos fármacos que aumentem os riscos ao paciente. Interação medicamentosa pode ser definida como a influência recíproca de um medicamento sobre outra substância. Ou seja, quando um medicamento é administrado isoladamente, produz um determinado efeito. Porém, quando este é associado a outro medicamento, a alimentos ou a outras substâncias (como tabaco, drogas de abuso ou substâncias diversas com que o paciente possa entrar em contato, como inseticidas, produtos de limpeza, cosméticos etc.), ocorre um efeito diferente do esperado, o que caracteriza uma interação — e pode apresentar efeitos nocivos, diminuindo ou eliminando a ação dos medicamentos. De acordo com a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) n. 140, de 29 de maio de 2003, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), temos a seguinte definição de interação medicamentosa: Interação medicamentosa: é uma resposta farmacológica ou clínica, causada pela combinação de medicamentos, diferente dos efeitos de dois medicamentos dados individualmente. O resultado final pode aumentar ou diminuir os efeitos desejados e, ou, os eventos adversos. Podem ocorrer entre medicamento-medicamento, medicamento-alimentos, medicamento-exames laboratoriais e medicamento-substâncias químicas. A confiabilidade dos resultados dos exames laboratoriais pode ser afetada por sua interação com medicamentos (BRASIL, 2003b). Quando há uma interação farmacológica entre dois ou mais fármacos, pode ocorrer a interferência de um dos fármacos sobre os outros, alterando o efeito esperado, qualitativa ou quantitativamente. Assim, pode-se obter um sinergismo de ação ou um antagonismo (parcial ou total) desses efeitos. Muitos pacientes utilizam dois ou mais medicamentos diariamente. Portanto a possibilidade de interação medicamentosa tende a ser mais frequente, favorecendo o aparecimento de problemas relacionados aos medicamentos (PRM) (RIBEIRO NETO; COSTA JUNIOR; CROZARA, 2017). Cabe destacar que a polifarmácia — caracterizada pelo uso de quatro ou mais medicamentos — aumenta o risco de reações adversas e interações medicamentosas. Estudos apontam que pacientes que recebem dois medicamentos apresentam risco de 13% de ter interações medicamentosas. Em pacientes que recebem quatro medicamentos, esse número passa a ser de 28%, e em pacientes que recebem sete medicamentos ou mais, o número eleva-se para 82% (GALLAGHER, 2007 apud RIBEIRO NETO; COSTA JUNIOR; CROZARA, 2017). Tais dados permitem a percepção do impacto das interações medicamentosas na farmacoterapia. Entretanto as interações medicamentosaspodem apresentar efeitos benéficos para o organismo, e até mesmo ser utilizadas para aumentar os efeitos terapêuticos ou reduzir a toxicidade de um determinado fármaco, em função da dose necessária para atingir a resposta terapêutica adequada. Temos, então, a adição ou a somação dos efeitos. TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce 26 Unidade I Na adição, a resposta farmacológica é obtida como resultado dos efeitos combinados de cada fármaco. Nesse caso, os fármacos apresentam o mesmo mecanismo de ação. Por exemplo, podemos citar a associação de dois anti-inflamatórios não esteroidais (Aines), como o ácido acetilsalicílico e a dipirona, que apresentam o mesmo mecanismo de ação — ambos são inibidores da ciclo-oxigenase. No caso da somação, temos a associação de dois fármacos com mecanismos de ação diferentes, mas que levam ao mesmo efeito farmacológico. Por exemplo, podemos citar a associação de codeína com paracetamol. A codeína, um opioide, apresenta ação central, enquanto o paracetamol, um inibidor da ciclo-oxigenase, tem ação predominantemente periférica. Observe que nos dois casos há a combinação dos efeitos analgésicos dos fármacos associados. 2.2 Classificação das interações medicamentosas As interações medicamentosas são classificadas, quanto à origem, em dois tipos: interações farmacêuticas e interações terapêuticas. • Interações farmacêuticas: — São interações físico-químicas que ocorrem “fora” do paciente, pois entre fármacos diferentes podem ocorrer numerosas incompatibilidades, que levam a reações quando estas são misturadas em infusão intravenosa, frascos ou seringas, podendo ocasionar a inativação dos fármacos em questão. Um exemplo é a precipitação da anfotericina B coloidal quando colocada em solução fisiológica. • Interações terapêuticas: — As interações terapêuticas ocorrem no ambiente biológico, após a administração do medicamento, e podem ser farmacocinéticas ou farmacodinâmicas. – As interações farmacocinéticas ocorrem durante os processos de absorção, distribuição, biotransformação e excreção dos fármacos. Por exemplo, a cimetidina (anti-histamínico H2), que inibe a biotransformação do paracetamol. – As interações farmacodinâmicas ocorrem nos sítios de ação dos fármacos, envolvendo os mecanismos pelos quais os efeitos farmacológicos se processam. Esse processo pode ser de dois tipos: interações farmacodinâmicas sinérgicas (como ocorre com a ação analgésica do paracetamol e da codeína) ou antagônicas (antitussígeno com um xarope expectorante). Outra classificação importante das interações medicamentosas leva em consideração a gravidade das interações. O quadro 2 apresenta de forma sucinta essa classificação. TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce 27 FARMACOTERAPIA Quadro 2 – Classificação das interações medicamentosas segundo a gravidade Gravidade alta A interação pode oferecer ameaça à vida, sendo necessário tratamento ou intervenção médica para minimizar ou prevenir os efeitos adversos graves Gravidade moderada A interação pode piorar o quadro clínico do paciente, sendo necessária a alteração da terapia Gravidade baixa A interação pode comprometer os efeitos clínicos esperados. As manifestações podem aumentar a frequência ou a gravidade dos efeitos adversos, mas geralmente não é necessária a modificação na terapia Adaptado de: Ribeiro Neto, Costa Junior e Crozara (2017). A combinação das formas de classificar e observar as interações possíveis ou em andamento nos permite condutas mais apropriadas em termos de acompanhamento e seguimento farmacoterapêutico e de estabelecimento de relações de causa e efeito. A prescrição racional também se beneficia bastante dessa conduta. Segundo Pivatto Junior, Bernardi e Barros (2010), há outras maneiras de classificar as interações medicamentosas. São elas: • Conforme o início: — Rápido: até 24 horas após a administração do fármaco. — Tardio: mais de 24 horas após a administração do fármaco. • Conhecimento sobre a interação medicamentosa: — Excelente: estudos fornecem dados confiáveis e estabelecem adequadamente a interação. — Bom: os dados disponíveis sugerem fortemente a existência da interação. Entretanto são necessários estudos controlados mais apropriados. — Razoável: poucos dados, mas as informações farmacológicas apontam para a suspeita de existência da interação. — Pobre: a documentação é pobre e limitada, levando em consideração apenas relatos de casos, entretanto, pode ser possível. — Improvável: documentação é pobre e carece de mais estudos com embasamento farmacológico. As interações medicamentosas também podem ser classificadas conforme o mecanismo que as originaram. O quadro 3 contém essa classificação. TatianaG Realce 28 Unidade I Quadro 3 – Exemplos de interações maiores, moderadas ou menores Interações Maiores Ácido acetilsalicílico + heparina Pode resultar em um aumento do risco de sangramento Captopril + cloreto de potássio Pode resultar em hipercalemia Codeína + morfina Pode resultar em depressão respiratória aditiva Moderadas Ácido acetilsalicílico + insulina Pode resultar em hipoglicemia (depressão do sistema nervoso central, convulsões) Carbamazepina + sinvastatina Pode resultar em redução da concentração sérica da sinvastatina, pela indução enzimática provocada pela carbamazepina Digoxina + furosemida Pode resultar em toxicidade digitálica (náuseas, vômitos, arritmias) Menores Ciprofloxacino + propranolol Pode resultar em bradicardia, hipotensão Furosemida + hidralazina Pode resultar em aumento da resposta à furosemida Omeprazol + vitamina B12 Pode resultar em diminuição da absorção da vitamina B12 Adaptado de: Pivatto, Bernardi e Barros (2010, p. 105). 2.2.1 Interações farmacocinéticas Como pudemos observar, as interações farmacocinéticas ocorrem num ponto do processo cinético do fármaco no ambiente biológico — ou seja, na absorção, distribuição, metabolização ou excreção. Durante o processo de absorção de um fármaco administrado por via oral, é possível que ocorra alteração na velocidade de absorção e, consequentemente, na concentração plasmática de um fármaco na presença de outros. A absorção de um fármaco está diretamente ligada a características físico-químicas intrínsecas desse fármaco, do ambiente físico-químico e da porção do trato gastrintestinal no qual o fármaco é absorvido. Dessa maneira, alterações no pH do digestório podem influenciar os processos de dispersão da forma farmacêutica e a dissolução do fármaco no ambiente estomacal ou intestinal. Cabe destacar que, de acordo com os parâmetros cinéticos do fármaco — como pKa, lipossolubilidade e o pH do ambiente gastrintestinal —, ele estará predominantemente em sua forma ionizada ou na forma não ionizada (neutra). Para ser absorvido adequadamente, ele precisa estar na forma não ionizada, de modo que seja possível a travessia das barreiras de natureza lipofílica. Assim, substâncias que alterem as condições físico-químicas do sítio de absorção podem comprometer a absorção de outros fármacos, quando associados. Como exemplo, podemos citar o uso de antiácidos, inibidores da bomba de prótons ou bloqueadores H2, que podem interferir na absorção de fármacos de caráter ácido, que são, preferencialmente, TatianaG Realce TatianaG Realce 29 FARMACOTERAPIA absorvidos no estômago. É o caso do cetoconazol, cuja absorção será reduzida quando associado à cimetidina, pois o aumento do pH gástrico leva a uma diminuição da absorção do cetoconazol. Outro exemplo é o hidróxido de magnésio, que reduz a absorção estomacal do pentobarbital, que apresenta caráter ácido. Além das condições físico-químicas, temos que considerar a motilidade do trato gastrintestinal. Assim, o tempo do trânsito pode interferir na absorção dos fármacos. Dependendo da substância utilizada, podemos ter aumento ou diminuição da motilidade, e o resultado dessa interação dependerá de quais substâncias estãoassociadas. Como exemplos, podemos citar a associação de metoclopramida e paracetamol numa terapêutica combinada. A metoclopramida aumenta a velocidade de esvaziamento gástrico e, por consequência, aumenta a absorção do paracetamol, que é absorvido predominantemente no intestino. Outro caso que pode ser observado é o uso de metoclopramida e digoxina, em que o aumento da velocidade do processo de esvaziamento gástrico leva à redução da absorção da digoxina. Outro mecanismo digno de nota é a formação de complexos insolúveis. Esse fenômeno não tem relação com a ação farmacológica dos fármacos envolvidos, mas sim com as características químicas das substâncias. Nesse caso, dois fármacos interagem um com o outro de tal forma que ocorre comprometimento e, até mesmo, inibição da absorção dessas substâncias. É o clássico caso da administração de tetraciclina com leite. Na presença de metais bivalentes — no caso, o cálcio (Ca2+) —, ocorre a formação de um complexo insolúvel que diminui a absorção de ambos. Outro exemplo é a ciprofloxacina na presença de cálcio ou ferro, também ocorre a formação de um complexo insolúvel que reduz a absorção do fármaco e dos metais. Isso explica por que muitos medicamentos precisam ser administrados em horários distantes das refeições — por exemplo, uma hora antes ou duas horas depois —, ou esquemas que determinam intervalos de tempo específicos entre a administração de duas ou mais substâncias. Em relação à distribuição, há a preocupação no que se refere à ligação com as proteínas plasmáticas, principalmente a albumina. Para que o fármaco proporcione a resposta farmacológica, este deverá estar na sua forma livre para que possa atravessar barreiras e também interagir com seu alvo molecular. Entretanto é fundamental que as proporções entre fármaco livre e fármaco ligado às proteínas plasmáticas devem ser adequadas para que não haja aumento ou diminuição da fração livre do fármaco, alterando o efeito farmacológico desejado ou aumentando sua toxicidade. Podemos observar que fármacos distintos podem competir pelas proteínas plasmáticas e, dependendo da maior ou menor afinidade pelas proteínas, alterar as proporções individuais de fármaco livre e fármaco ligado à proteína plasmática. Observe o equilíbrio cinético entre as concentrações de fármaco livre (Flivre), proteína plasmática (Pplasmática) e fármaco ligado à proteína plasmática (FP). [ FP ] ↔ [Flivre] + [Pplasmática] TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce 30 Unidade I Nota-se que fármacos que se ligam extensamente e apresentam baixo volume de distribuição podem levar ao deslocamento da ligação às proteínas. É o caso, por exemplo, da varfarina ou da fenitoína. A varfarina, quando utilizada com a fenilbutasona, sofre deslocamento e, por consequência, tem sua fração livre aumentada; o resultado é o aumento do risco de hemorragia. Quando associadas ao metotrexato num esquema terapêutico, as sulfonamidas deslocam o metotrexato; nesse caso, pode ocorrer aumento da toxicidade atribuída ao metotrexato. Ao se estudar o metabolismo, é possível observar uma parcela importante das interações medicamentosas, uma vez que a maioria dos fármacos são metabolizados no fígado. Um fármaco pode interferir na metabolização de outro, aumentando ou diminuindo sua taxa de metabolização. Isso pode acontecer por indução enzimática ou inibição enzimática. No caso da indução enzimática, observa-se aumento da atividade do citocromo P-450. O citocromo P-450 ou CYP-450, localizado no retículo endoplasmático do hepatócito, caracteriza-se por uma superfamília de enzimas envolvidas no metabolismo de uma grande variedade de substâncias, inclusive fármacos. Dessa forma, o aumento da atividade enzimática pode levar à metabolização mais rápida e comprometer as concentrações adequadas do fármaco que permitem a resposta farmacoterapêutica apropriada. Como indutores enzimáticos, podemos citar os barbitúricos, carbamazepina ou rifampicina. Como exemplos de interações podemos citar o fenobarbital, que por indução enzimática leva à diminuição das concentrações séricas da varfarina, ou o caso da carbamazepina e da fenitoína, que reduzem os níveis séricos de corticoides, também por indução enzimática. A rifampicina, também um indutor enzimático, diminui os níveis séricos dos contraceptivos orais. Em contrapartida, temos a inibição enzimática. Nesse processo, observa-se a redução da metabolização de um ou mais fármacos e, como resultado, o aumento do tempo de meia-vida plasmática do(s) fármaco(s) cuja biotransformação foi inibida. A cimetidina e a eritromicina são inibidores enzimáticos, assim como cloranfenicol, corticoides, fluconazol, cetoconazol, ciprofloxacina, inibidores da monoaminaoxidase (MAO), entre outros. O cetoconazol, por exemplo, por inibição enzimática, aumenta os níveis plasmáticos de bloqueadores de canis de cálcio, carbamazepina e ciclosporina. Interações também podem ocorrer no processo de excreção. Nesse caso, a interação se dá predominantemente nos rins, principal órgão de eliminação. Observa-se que a competição pela secreção tubular representa o principal mecanismo em termos de alterações por interação na eliminação de fármacos. TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce 31 FARMACOTERAPIA O verapamil inibe a secreção tubular da digoxina; como consequência, ocorre aumento das concentrações séricas da digoxina, podendo aumentar sua toxicidade. No caso do lítio, sua excreção estará aumentada na presença de diuréticos osmóticos; já na presença de inibidores da enzima conversora de angiotensina (ECA) ocorre aumento na reabsorção tubular, com aumento das concentrações séricas do lítio. 2.2.2 Interações farmacodinâmicas As interações farmacodinâmicas caracterizam-se por modificação na resposta farmacológica do fármaco. Podem ser consideradas diretas (a interação ocorre no alvo molecular, ou seja, no sítio receptor) e indiretas (a interação ocorre entre fármacos que apresentam mecanismos de ação distintos). Em geral, a maioria das interações farmacodinâmicas se dão de maneira indireta. Nas interações farmacodinâmicas diretas, os fármacos envolvidos estão competindo por determinados receptores. Um exemplo é a interação entre salbutamol (agonista β2) e os β-bloqueadores não seletivos, como o propranolol ou timolol. Cabe considerar, então, que a administração de fármacos com mecanismo de ação e efeitos farmacológicos semelhantes pode resultar em diversos tipos de respostas. Isso pode ser útil ou deletério em termos farmacoterapêuticos. A resposta farmacológica será considerada aditiva quando o efeito da combinação dos fármacos for igual à soma dos efeitos proporcionados por cada substância, quando comparada com as respostas proporcionadas pelos fármacos empregados isoladamente, podendo ser terapêutica ou tóxica. Nas interações farmacodinâmicas em que se observa uma resposta farmacológica potencializada, temos um efeito final maior que a somatória dos efeitos farmacológicos esperados das substâncias envolvidas. Como exemplo podemos citar a interação do álcool com benzodiazepínicos. Nesse caso, pode-se observar maior efeito depressivo sobre o sistema nervoso central, se comparado ao efeito esperado das substâncias utilizadas isoladamente. A potencialização pode ser interessante no planejamento racional de um esquema farmacoterapêutico combinado, pois permite que a dose do fármaco considerado mais tóxico seja reduzida sem que haja comprometimento no resultado terapêutico do paciente. Em contrapartida, alguns fármacos, ao serem empregados em combinação, podem comprometer de forma negativa a resposta farmacológica deles próprios e de outros fármacos. Destaca-se o caso do uso concomitante de fármacos hipoglicemiantes e glicocorticoides. Observa-se, nesse caso, o bloqueio dos efeitos hipoglicemiantes. Ou, então,a diminuição dos efeitos opioides do tramadol. TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce TatianaG Realce 32 Unidade I Desse modo, os profissionais de saúde precisam conhecer e ter acesso às informações sobre interações medicamentosas, pois isso permite acompanhar e planejar adequadamente a terapêutica medicamentosa. Também é fundamental informar o prescritor sobre o uso concomitante de fármacos que possam causar problemas clínicos ou ser potencialmente perigosos. O paciente também deve participar de maneira ativa, relatando todo e qualquer sinal e sintoma que aponte para uma reação adversa. Outro ponto fundamental é o acompanhamento e seguimento farmacoterapêutico, que propicia uma intervenção de tal forma que medidas de contenção e controle sejam instituídas com a maior brevidade, minimizando danos e riscos ao paciente. Mas o planejamento racional permite antever as possíveis interações, o que proporciona uma farmacoterapia mais segura. Saiba mais Leia este interessante artigo sobre o uso de fitoterápicos e os potenciais riscos de interações medicamentosas: DIAS, E. C. M. et al. Uso de fitoterápicos e potenciais riscos de interações medicamentosas: reflexões para prática segura. Revista Baiana de Saúde Pública, Salvador, v. 41, n. 2, p. 297-307, abr./jun. 2017. Disponível em: https://cutt.ly/RUHWNYU. Acesso em: 7 dez. 2021. 3 FARMACOVIGILÂNCIA Segundo a OMS (WHO, 2002), a farmacovigilância tem por objetivo atividades ligadas a detecção, avaliação, compreensão e prevenção de reações adversas ou outros problemas relacionados ao uso de medicamentos. O Terceiro Consenso de Granada define problemas relacionados a medicamentos (PRM) como situações nas quais o uso de medicamentos pode provocar resultados deletérios durante seu uso, interferindo de diversas formas no resultado farmacoterapêutico esperado (FORO, 2006 apud COMITÊ DE CONSENSO, 2007). O mesmo Consenso propõe uma classificação dos PRM que leva em consideração os principais requisitos para a utilização racional dos medicamentos, como: ser necessário, efetivo e seguro. Atualmente, o campo de atuação da farmacovigilância é mais amplo e inclui também fitoterápicos, vacinas, produtos para a saúde, produtos biológicos, hemoterápicos, medicamentos tradicionais e complementares. Dessa maneira, a farmacovigilância visa melhorar os cuidados destinados aos pacientes em relação ao uso de medicamentos, mas também procedimentos médicos e outros aspectos relacionados aos cuidados à saúde. 33 FARMACOTERAPIA As informações geradas pelos programas de farmacovigilância permitem não apenas monitorar a ocorrência de problemas relacionados aos medicamentos, mas, principalmente, melhorar a saúde pública e a segurança sobre o uso de medicamentos, avaliar o equilíbrio risco/benefício, risco/efetividade dos medicamentos, promover educação, treinamento sobre o tema e proporcionar efetiva comunicação com a população. Mas, para que a farmacovigilância seja efetiva, é fundamental a participação dos profissionais de saúde. O envolvimento contínuo e ativo desses profissionais, por meio dos mecanismos de notificação voluntária de suspeita e/ou sinais de reações adversas, garante a dinâmica apropriada dos sistemas de farmacovigilância. Entretanto, para que seja possível o cumprimento dessa tarefa, é necessário um sistema de notificações bem estruturado e que permita a análise criteriosas dessas informações. No Brasil, o VigiMed é o sistema nacional em vigor para notificações de eventos adversos relacionados ao uso de medicamentos e vacinas. Foi instituído em 2018 pela Anvisa em parceria com o Uppsala Monitoring Centre (UMC). Esse centro é responsável mundialmente por todos os aspectos tecno-operacionais do Programa Internacional de Monitoramento de Medicamentos (PIMM) da OMS. Também auxilia a implantação e desenvolvimento de programas de farmacovigilância nos países que fazem parte desse programa. O Brasil faz parte do PIMM desde 2001, e é representado pelo Centro Nacional de Monitorização de Medicamentos com sede na Anvisa. O VigiMed conta com três versões de ferramentas para notificação destinadas a cada tipo de usuário. Uma versão é dedicada a cidadãos e profissionais liberais de saúde, ou seja, sem vínculo com uma instituição. Uma segunda versão é voltada a serviços de saúde e a órgãos de vigilância sanitária locais. A terceira é destinada a detentores de registro dos medicamentos. Saiba mais Para que você entenda melhor o Programa Internacional de Monitoramento de Medicamentos da OMS, recomendamos que consulte: UPPSALA MONITORING CENTRE. The WHO Programme for International Drug Monitoring. [s.d.]. Disponível em: https://cutt.ly/5UHEqjE. Acesso em: 8 dez. 2021. 3.1 Métodos em farmacovigilância De acordo com a literatura, as práticas em farmacovigilância podem ser realizadas por meio de três métodos: vigilância passiva, vigilância ativa e estudos epidemiológicos. 34 Unidade I 3.1.1 Vigilância passiva Esse método consiste, basicamente, nos relatos de casos a partir de notificações espontâneas de eventos adversos a medicamentos realizadas por profissionais de saúde. A OMS preconiza esse método por ser de baixo custo, fácil acesso aos sistemas de notificação e os profissionais notificadores estarem próximos ao evento. Entretanto o método passivo de farmacovigilância apresenta uma limitação que pode comprometer o real impacto relacionado às reações adversas — trata-se da subnotificação. Diversos são os motivos que podem levar à subnotificação, entre eles, podemos destacar: o desinteresse ou a falta de conhecimento sobre processos de notificação e sobre a importância da notificação, além de dúvidas pessoais quanto à necessidade ou não de notificar, diante da incerteza sobre a relação de causa e efeito. O profissional pode sentir-se responsável por prescrever, dispensar ou administrar o medicamento que causou a reação adversa. Para minimizar esse problema, educação, treinamento e conscientização dos profissionais de saúde são fundamentais. É muito importante que esses profissionais tenham sempre em mente suas responsabilidades em relação ao paciente e ao sistema de saúde. As notificações espontâneas funcionam como um “termômetro” em termos de problemas relacionados aos medicamentos. A percepção desses problemas pelas agências reguladoras é essencial para acompanhar as necessidades de intervenção e tomada de decisão. Outro problema relacionado às notificações espontâneas e que pode comprometer as informações tem relação com erros no preenchimento da notificação e falta de dados. Desse modo, a qualidade da notificação também é muito importante para que os dados relevantes não sejam perdidos. 3.1.2 Vigilância intensiva Esse método compreende três técnicas: busca sistemática ou ativa, rastreadores de reações adversas e sistema de mineração de dados. Busca sistemática ou ativa Consiste na investigação e no monitoramento de pacientes internados em unidades hospitalares. O objetivo é identificar reações adversas nesses pacientes provenientes da farmacoterapêutica empregada durante o tratamento hospitalar. A busca se dá por meio da avaliação de prontuários e a análise de prescrições e exames realizados. São observados também relatos da própria equipe de saúde e conversas com o paciente. Esse método é considerado um pouco mais custoso em função da necessidade de contratação de profissionais treinados e qualificados, ou de proporcionar o treinamento adequado à equipe. 35 FARMACOTERAPIA Rastreadores de reações adversas (trigger tools) Essa técnica consiste em utilizar indicadores de eventos-sentinela (eventos graves indesejáveis que ocorrem em ambientes hospitalares selados e exigem investigação criteriosa). Observação A expressão hospital selado refere-se ao selo do Compromisso com a Qualidade Hospitalar (CQH). O modelo degestão do CQH tem como objetivo contribuir para a melhoria da qualidade das instituições hospitalares. Sistema de mineração de dados (data mining) Nesse sistema, são aplicados algoritmos capazes de identificar padrões não detectados em bases de dados e estabelecer correlações entre os parâmetros ou variáveis que estão sendo analisadas. A OMS dispõe da maior base de dados de relatos de reações adversas a medicamentos, e emprega essa técnica para poder detectar novos sinais em termos de farmacovigilância. 3.1.3 Estudos epidemiológicos Trata-se de um método observacional para detecção de eventos adversos a medicamentos. Nesse método, um grupo de pacientes é exposto a um certo fármaco e é acompanhado durante determinado período, a fim de se verificar a ocorrência de reações adversas. Esses pacientes são divididos em dois grupos: o grupo daqueles que manifestam uma reação adversa e o grupo sem manifestações. Nesse tipo de estudo, não há interferência do pesquisador. É importante destacar que a amostra para esses estudos deve ser estatisticamente significativa, de modo que seja possível extrapolar os resultados para a população geral. Para que esse método seja bem-sucedido, é necessário estabelecer protocolos clínicos adequados e criteriosos para acompanhar os pacientes e uma equipe clínica qualificada e capacitada para trabalhar com essa metodologia. Embora o método permita estudar apenas um evento adverso, variados fatores de risco podem ser identificados e avaliados. 3.2 A pesquisa clínica Sabemos que, atualmente, antes de um medicamento ser efetivamente disponibilizado ao mercado, este é submetido a um processo de pesquisa e desenvolvimento envolvendo etapas in vitro e in vivo. 36 Unidade I Nas etapas in vivo são utilizados modelos animais e humanos. A partir das informações previamente obtidas dos estudos in vitro e in vivo (ainda com modelos animais), e comprovando-se a eficácia e a segurança, iniciam-se as pesquisas em seres humanos: é a chamada pesquisa clínica. Essa pesquisa é realizada em algumas fases, conforme expõe a figura 12. Voluntários sadios/estáveis Tolerabilidade Segurança Farmacocinética Eficácia Fase I Fase II Fase III Fase IV População-alvo Estudos randomizados, multicêntricos Novas indicações Farmacovigilância Estudos de vida real Figura 12 – Fases da pesquisa clínica Disponível em: https://cutt.ly/pUHEybE. Acesso em: 15 dez. 2021. De acordo com a Resolução n. 251, de 7 de agosto de 1997, do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 1997), e a Resolução n. 129/1996 do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL, 1996), essas fases se organizam da seguinte maneira: Fase I Nessa fase, observamos os primeiros estudos em seres humanos, geralmente realizados em um número pequeno de voluntários sadios (eventualmente, indivíduos portadores de determinadas patologias). Esses estudos têm por objetivo estabelecer, preliminarmente, a segurança do fármaco, seu perfil farmacocinético e, quando for possível, o perfil farmacodinâmico. Fase II (estudo terapêutico piloto) Os estudos dessa fase têm por objetivo demonstrar a atividade e a segurança do fármaco em curto prazo. Participam dessa fase um pequeno número de indivíduos voluntários, portadores de determinada 37 FARMACOTERAPIA patologia ou processo fisiopatológico. São definidos os intervalos de doses e busca-se estabelecer a relação dose-resposta. Fase III (estudo terapêutico ampliado) Os estudos de fase III são realizados em um grupo maior e variado de pacientes voluntários, portadores da patologia para a qual o medicamento foi desenvolvido. Nessa fase, o objetivo é determinar o risco/benefício em curto e longo prazo do medicamento e, de forma geral, o valor terapêutico relativo. Também são avaliadas as reações adversas mais frequentes e características específicas do medicamento e/ou especialidade farmacêutica (como interações importantes), fatores que podem interferir no efeito (como idade) etc. Fase IV (pesquisa pós-comercialização) Os estudos realizados nessa fase ocorrem após o medicamento ter sido aprovado, registrado e já estar sendo comercializado no mercado. Todo e qualquer estudo nessa fase deve seguir os mesmos preceitos éticos e científicos adotados nas fases anteriores. Nessa fase temos os estudos de vigilância pós-comercialização, objetivando estabelecer o valor terapêutico, detectar e compreender novas reações adversas, confirmar as reações adversas já conhecidas em relação a frequência de ocorrência e estratégias terapêuticas. Incluem-se aqui estudos de farmacoepidemiologia, farmacovigilância e bioequivalência. Cabe destacar que, após a comercialização de um medicamento, todos os estudos com o objetivo de estabelecer novas indicações, formas de administração etc. são considerados como estudos de um novo medicamento. Assim, sendo o medicamento aprovado nas fases I, II e III da pesquisa clínica, é possível observar evidências de que o medicamento traz benefícios à população-alvo. Ou seja, as vantagens farmacoterapêuticas superam os riscos como reações adversas. Assim, o produto recebe o registro do órgão regulador — que, no Brasil, é a Anvisa — e passa a ser comercializado. Contudo, por mais bem estruturada e conduzida que seja a pesquisa clínica (estudos clínicos), não é possível elucidar todos os pontos relacionados a eficácia e segurança. Devemos lembrar que as fases da pesquisa clínica são conduzidas com um número específico de sujeitos de pesquisa e com características específicas — ou seja, são grupos controlados. Dessa maneira, apresentam baixo grau de variabilidade estatística. Infelizmente, os ensaios de pesquisa clínica não permitem detectar, identificar e compreender todas as possíveis reações adversas, devido a certas limitações do método, encaradas como desvantagens. Por exemplo, o período de condução dos ensaios e a exclusão de determinados grupos (como gestantes, crianças e idosos) que apresentam características fisiológicas particulares e podem interferir em parâmetros farmacocinéticos e farmacodinâmicos. Tal exclusão leva em conta a exposição não justificada 38 Unidade I desses grupos a riscos ainda não conhecidos do medicamento. Outro ponto que deve ser considerado é a polifarmácia (ou polimedicação), que, durante os ensaios clínicos, é extremamente controlada para minimizar o risco de mascaramento de resultados farmacoterapêuticos ou reações adversas. Uma vez que o medicamento passa a ser comercializado em escala global, observamos a exposição do medicamento aos mais diversos grupos humanos e nas mais diversas condições. Passamos, então, a levar em consideração variabilidade genética, hábitos alimentares, estilos de vida, perfil de prescrição, condições fisiopatológicas, entre outros fatores. Portanto passamos a atentar também à variabilidade estatística, devido ao aumento substancial no número de indivíduos expostos ao medicamento. Dessa maneira, fica evidente a importância da monitoração contínua dos medicamentos disponibilizados no mercado, em especial os medicamentos novos. Isso faz da fase IV (pós-comercialização) uma etapa extremamente importante, por ser caracterizada pela farmacovigilância. 3.3 Reações adversas a medicamentos É possível afirmar que os principais problemas observados em farmacovigilância são: • reações adversas a medicamentos; • inefetividade terapêutica (falha terapêutica); • desvios de qualidade de medicamentos; • erros de medicação. De acordo com a OMS, as reações adversas aos medicamentos podem ser definidas como qualquer evento nocivo e não intencional que ocorreu na vigência do uso de medicamentos em doses normalmente usadas em humanos com finalidade terapêutica, profilática ou diagnóstica (WHO, 1969). Elas também são conhecidas como efeito indesejável ou doença iatrogênica (iatrogenia). Sobredose (overdose) e abuso de drogas ilícitas não fazem parte desse conceito, assim como reações indesejáveis determinadas por falha terapêutica, erros de administração e não adesão ao
Compartilhar