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CONFEITARIA Kelly Ferreira Piasentin Chocolate: história e características Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Relembrar a origem do chocolate. � Classificar os chocolates de acordo com seu percentual de cacau. � Explicar a temperagem do chocolate. Introdução Trabalhar com o chocolate requer muita prática. Devido a sua composição, o chocolate fica vulnerável à temperatura e à umidade, portanto, requer atenção e precisão em todos os detalhes. Contudo, existem materiais e equipamentos específicos que podem auxiliar no controle e desenvol- vimento das técnicas, diminuindo o risco de erros. Neste capítulo, você aprenderá sobre a origem do chocolate, assim como aprimorará seus conhecimentos quanto às características e pro- priedades dos chocolates ao leite, branco e amargo. Além disso, você irá compreender a importância da temperagem, fundamental no processo de cristalização para que não haja interferência nas características de cada chocolate. Breve história do chocolate O chocolate é feito com as sementes do cacaueiro, apresentado na Figura 1, também conhecido como theobroma cacao (palavra grega que significa “ali- mento dos deuses”). O cacaueiro é nativo do nordeste da América do Sul e da América Central. A origem exata do chocolate é incerta, mas existem relatos que datam de 200 a.C. Antes de 600 d.C., na América Central, os povos maias e astecas passaram a consumir o fruto. Figura 1. (a) Cacaueiro; (b) fruto aberto. Fonte: nnattalli/Shutterstock.com; Photoongraphy/Shutterstock.com. (a) (b) Naquela época, os povos consideravam o fruto símbolo de devoção e ferti- lidade. Inicialmente, transformavam-no em uma bebida amarga e fermentada, misturada a especiarias. Essa bebida passou a ser consumida diariamente, somente pelos nobres e, gradualmente, o cacau passou a ser utilizado como moeda de troca (COSTA, 2018a; SUAS, 2011). Após o descobrimento das Américas e a colonização do continente ameri- cano, os espanhóis descobriram o fruto e levaram suas mudas para a Europa. Aproximadamente 80 anos depois do descobrimento, outros ingredientes foram adicionados ao chocolate, tornando-o uma bebida mais doce, difundida entre a elite europeia. No entanto, a bebida de chocolate se tornava granulosa e espessa quando esfriava, devido à gordura presente no cacau. Em 1828, o químico holandês Coenrad Van Houten inventou uma máquina que prensava os grãos de cacau, separando-os em manteiga e pó. A partir disso, o chocolate deixou de ser consumido somente como bebida, passando a ser consumido também em sua forma sólida (COSTA, 2018a). Com a Revolução Industrial, o chocolate passou a ser produzido em larga escala, devido ao desenvolvimento de novas máquinas, tornando seu valor mais acessível. Chocolate: história e características2 O chocolate é um produto versátil, utilizado na gastronomia tanto em preparações doces quanto salgadas. Com a variedade dos tipos de chocolates e os percentuais de cacau é possível que o profissional elabore produções desde um sabor marcante até o mais suave. Quando o chocolate é misturado a outros ingredientes surgem novas criações. O ganache, por exemplo, é uma mistura cremosa, criada com o chocolate derretido combinado a um líquido, comumente o creme de leite. Este serve para coberturas de sobremesa e recheios, dependendo da textura desejada. A trufa, ilustrada na figura a seguir, é um ganache de textura mais densa que pode ser moldado e saborizado, como um bombom. Fonte: Alexey Borodin/Shutterstock.com. Variedades do cacau O fruto possui três variedades, que foram desenvolvidas a partir do cruzamento entre plantas. Segundo Costa et al. (2018b), estas são suas variedades. � Forasteiro: Mais amargo e ácido, cultivado na África e na América do Sul. Representa 70% de todo o cacau produzido no mundo. � Crioulo: Possui aroma delicado e é cultivado na América Central. 3Chocolate: história e características � Trinitário: Proveniente do cruzamento entre os tipos crioulo e foras- teiro, é rico em gordura e possui aroma similar ao crioulo. É cultivado na África e nas Américas Central e do Sul. Para que possamos consumir o chocolate, o fruto passa por diversas etapas, desde a colheita até o produto final, como mostra a Figura 2. Figura 2. Etapas da produção do chocolate. Fonte: Adaptada de Suas (2011). Na produção do chocolate, alguns elementos são extraídos do cacau, como a massa ou pasta do cacau, que é a semente torrada e triturada com todos os seus componentes; o cacau em pó, feito do torrão de cacau moído; e a man- teiga de cacau, que é a gordura extraída no processo de prensagem (COSTA et al., 2018b). Chocolate: história e características4 O termo terroir é utilizado para demonstrar as propriedades do chocolate, dependendo da região onde o cacau é cultivado. Com a alta procura de cacau pelos fabricantes de chocolate, o cultivo se disseminou, mas somente algumas regiões se destacam por seu terroir adequado, o que garante a qualidade do cacau em sabor e textura, livre de agrotóxicos. Essa terra de cultivo depende de múltiplos fatores, como a drenagem, a adubação e o clima, que deve ser quente e úmido (COSTA, 2018a; COSTA et al., 2018b). Tipos de chocolate Os tipos de chocolate são classificados de acordo com os elementos do cacau utilizados em diferentes proporções, também podendo ser acrescidos de outros ingredientes. Dentre seus tipos, os mais conhecidos são o chocolate branco, o chocolate ao leite, o chocolate meio amargo e o chocolate amargo, ilustrados na Figura 3. Quanto maior o percentual de cacau, mais escuro será o chocolate. Figura 3. Tipos de chocolate. Fonte: Kjolak/Shutterstock.com. O Quadro 1 apresenta a composição de cada tipo de chocolate. 5Chocolate: história e características Fonte: Adaptado de Costa (2018a). Tipo Características Chocolate branco Possui característica delicada e muitos não o consideram chocolate, pois não contém sólidos de cacau. É composto por uma mistura de, pelo menos, 20% de manteiga de cacau, 14% de leite em pó e açúcar. Chocolate ao leite Mistura de manteiga de cacau, massa de cacau (20 a 39%), leite em pó integral e açúcar. Chocolate meio amargo É composto por uma mistura de massa de cacau (40 a 55%), pouco açúcar e manteiga de cacau. É um chocolate mais escuro por não conter leite. O açúcar suaviza seu sabor. Chocolate amargo Sua composição varia de 56 a 99% de massa de cacau e pouca manteiga de cacau. A cor bastante escura e o sabor amargo são características do chocolate pouco refinado. Quadro 1. Tipos de chocolate Existem, ainda, outras variações dos tipos de chocolate, como vemos a seguir. � Chocolate em pó: Proveniente das amêndoas do cacau processadas sem a manteiga, podendo variar o percentual de cacau. � Blend: Mistura de chocolate ao leite e chocolate amargo. Além disso, segundo Costa (2018a), existem os chocolates para coberturas, os fracionados e hidrogenados. � Fracionado: A manteiga de cacau é substituída pela gordura de palma, podendo ser utilizado no preparo de cascas de bombons, banhar doces etc. A textura e o sabor do fracionado são melhores que o hidrogenado. � Hidrogenado: A manteiga de cacau é substituída por óleo de soja. São utilizados para decorações que não derretem com o calor. Não é considerado um chocolate nobre, pois possui textura inferior e sabor marcante de gordura vegetal. Chocolate: história e características6 Esses dois tipos de chocolate não necessitam de temperagem (choque térmico), o que facilita o manuseio em determinadas preparações. Ainda, temos como novidade a descoberta do chocolate Rubi, ilustrado na Figura 4, que possui um diferencial em sua cor e é composto por 50% de cacau. É naturalmente rosa, portanto, não se trata de uma mistura de chocolate branco com corante. Figura 4. Chocolate Rubi. Fonte: Lonati (2017, documento on-line). Segundo Costa (2018a), os defeitos que o chocolate pode apresentarsão o fat bloom e o sugar bloom. O fat bloom ocorre por fatores como erro na cristalização, estocagem em ambientes quentes ou recheio muito frio, fazendo com que os cristais de gordura migrem para a superfície, deixando o chocolate com manchas acinzentadas e falta de brilho. O sugar bloom ocorre por fatores como umidade, armazenamento frio ou mudança brusca de temperatura fria para quente, fazendo com que a umidade presente derreta o açúcar. Ao evaporar, formam-se cristais que comprometem a textura do chocolate, deixando-o rugoso, aerado e cinzento. 7Chocolate: história e características Processo de temperagem A temperagem do chocolate, também chamada de cristalização, consiste na reorganização dos cristais de manteiga de cacau. Envolve o procedimento de derreter e pré-cristalizar a manteiga de cacau para que fique de forma compacta e organizada. Este processo produz um chocolate resistente, brilhoso e crocante. Derretimento Para iniciar a técnica de temperagem é necessário, primeiramente, entender o processo de derretimento do chocolate, ou seja, mudar o estado do chocolate de sólido para líquido. Diversas técnicas são utilizadas para o derretimento, como vemos a seguir. � Banho-maria: Colocar uma panela com água para ferver. Sobre a panela, sem contato com a água, um bowl é colocado e o chocolate é derretido com o vapor. � Micro-ondas: O chocolate deve ser derretido de tempo em tempo, sempre cuidando para não queimar. � Derretedeira: Máquina com temperatura controlada que facilita o derretimento, sem o risco de queimar. Existe divergências entre os autores quanto à temperatura ideal de derre- timento para cada tipo de chocolate. O Quadro 2 mostra essas temperaturas, de acordo com cada autor. Autores Temperatura de Derretimento (°C) Amargo Ao leite Branco Suas (2011) 49°C 43°C 43°C Sebess (2014) 50-55°C 45-50°C 45-50°C Costa et al. (2018b) 45-50°C 45-50°C 45-50°C Costa (2018a) 49°C +- 1 42°C +-1 39°C Quadro 2. Temperatura de derretimento por tipo de chocolate Chocolate: história e características8 É possível perceber que a temperatura de derretimento do chocolate branco é menor que a dos demais chocolates. Isso ocorre em razão de ele não possuir massa de cacau, ou seja, é um chocolate rico em manteiga de cacau, não sendo necessária uma temperatura muito alta para o seu derretimento. Ainda assim, o açúcar em alta temperatura acaba por caramelizar, formando grumos, tornando o chocolate impróprio para uso. Este chocolate é classificado como delicado durante o manuseio. A manteiga de cacau possui um ponto de fusão de 36°C, quando passa de sólida para líquida, sem passar pelo estágio intermediário pastoso, como a manteiga comum. O chocolate ao leite também é delicado, pois contém manteiga e açúcar. No entanto, devido à massa de cacau, sua temperatura de derretimento se torna mais elevada. Por fim, como o chocolate amargo não possui açúcar nem leite em sua composição, a temperatura para que a massa de cacau passe pelo derretimento completo é mais elevada. O chef Bertrand Busquet mostra a técnica de temperagem do tipo tablagem para a pré-cristalização do chocolate Rubi. Acesse o link a seguir para ver o processo completo. https://qrgo.page.link/STFe5 O respeito à temperatura garante a qualidade do chocolate, pois quando a eleva demais, o chocolate queima e fica espesso. Outro aspecto importante é verificar se o recipiente utilizado para o derretimento está limpo e seco, pois a mínima quantidade de água causará o seizing, que é a contaminação com água, tornando o chocolate uma pasta (SUAS, 2011). Temperagem Segundo Costa et al. (2018b), o termo temperar o chocolate está relacionado à temperatura, ou seja, às moléculas de gordura que estão em desordem e começam a se organizar em camadas, umas sobre as outras, modificando as características do chocolate, tornando-o brilhoso e de textura adequada. 9Chocolate: história e características Segundo Gisslen (2011, p. 639): [...] a manteiga de cacau é composta por vários ácidos graxos. Alguns deles derretem em temperaturas baixas, outros em temperatura alta. As gorduras que derretem em temperaturas mais altas são, obviamente, as que se solidificam primeiro quando o chocolate esfria. São elas que dão qualidade e brilho ao chocolate, além de deixá-lo estaladiço. O objetivo da temperagem é criar uma estrutura de cristais de gordura bem pequenos no chocolate. No chocolate derretido e temperado, as gorduras que derretem em temperaturas mais altas começam a se solidificar em cristais minúsculos, que ficam distribuídos por toda a mistura. Quando o chocolate esfria, endurece mais rapidamente por- que esses cristais menores atuam como polos ao redor dos quais o chocolate restante se cristaliza. Algumas observações são essenciais durante este processo, como descreve Costa et al. (2018b). ■ A temperatura ambiente deve estar em aproximadamente 21°C, ou seja, trabalhar com chocolate requer um ambiente climatizado. ■ O uso do termômetro é imprescindível para controlar a temperatura no derretimento e na temperagem. ■ Ao mexer o chocolate, utilize espátulas. Não utilize o fouet para não incorporar ar. ■ Para evitar o seizing, certifique-se de que tudo esteja limpo e seco. As técnicas descritas a seguir podem ser utilizadas na temperagem, de acordo com Costa et al. (2018b) e Sebess (2014). Chocolate: história e características10 � Tablagem ou marmorização: Deve-se derreter todo o chocolate, colo- car 2/3 do chocolate no mármore (não pode ser granito, pois ao passar a espátula na pedra, soltará cristais, o que inutilizará o chocolate), e mexer com auxílio de espátulas, até que a temperatura diminua para 27°C. Colocar o chocolate que foi temperado ao 1/3 restante e misturar até que a temperatura fique uniforme. Reaquecer novamente o chocolate até que atinja a temperatura de trabalho. A Figura 5 ilustra a técnica. Figura 5. Tablagem. Fonte: Harald (2019, documento on-line). 11Chocolate: história e características � Difusão ou semeadura: Deve-se derreter 3/4 do chocolate e incorporar 1/4 restante do chocolate picado ou callets (gotas), mexer vigorosa- mente, fazendo com que o chocolate resfrie, aproximadamente a 27°C e, depois, reaquecer até atingir a temperatura de trabalho. A Figura 6 ilustra a técnica. Figura 6. Difusão. Fonte: Harald (2019, documento on-line). Chocolate: história e características12 � Banho-maria invertido ou sobre o gelo: Deve-se derreter todo o chocolate e, em seguida, colocar o bowl em banho-maria com água fria, até resfriar. Após, reaquecer até a temperatura de trabalho. A Figura 7 ilustra a técnica. Figura 7. Banho-maria invertido. Fonte: Michelle (2016, documento on-line). 13Chocolate: história e características � Por adição de manteiga de cacau: Deve-se derreter o chocolate e, quando atingir a temperatura de 35°C, adicionar 1% de manteiga de cacau. Após, misturar até atingir a temperatura de trabalho. A Figura 8 ilustra a técnica. Figura 8. Adição de manteiga de cacau. Fonte: Noce (2019, documento on-line). De acordo com Costa (2018a), a temperatura de trabalho dos chocolates são: � chocolate meio amargo: 32ºC +– 1ºC; � chocolate ao leite: 30ºC +– 1ºC; � chocolate branco: 28ºC +– 1ºC. Após temperados, os chocolates estarão prontos para o uso. Deve-se lembrar que as embalagens de diversas marcas de chocolates possuem orientações quanto às temperaturas de derretimento e temperagem. Caso o chocolate resfrie em excesso durante a temperagem, deve-se aquecê-lo até atingir a temperatura de trabalho. Se porventura ultrapassar essa temperatura, deve-se refazer a temperagem. Chocolate: história e características14 COSTA, D. R. et al. Manual prático de confeitaria Senac. São Paulo: Senac, 2018b. COSTA, L. Confeitaria básica. Porto Alegre: SAGAH, 2018a. GISSLEN, W. Panificação e confeitaria profissionais. 5. ed. Barueri: Manole, 2011. HARAL. [Site]. 2019. Disponível em: https://harald.com.br/tecnicas/tempera-do-cho-colate/. Acesso em: 10 nov. 2019. LONATI, A. C. Il cioccolato Ruby. 2017. Disponível em: https://www.amica.it/2017/09/06/ il-cioccolato-ruby/. Acesso em: 10 nov. 2019. MICHELLE, K. Aprenda a fazer temperagem do chocolate no gelo. 2016. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/bomgourmet/aprenda-fazer-temperagem-do- -chocolate-gelo/. Acesso em: 10 nov. 2019. NOCE, D. Tudo sobre Mycryo. 2019. Disponível em: https://www.daninoce.com.br/gastro- nomia/segredos-e-dicas-sobre-produtos/tudo-sobre-mycryo/. Acesso em: 10 nov. 2019. SEBESS, M. Técnicas de confeitaria profissional. Rio de Janeiro: Senac, 2014. SUAS, M. Pátisserie: abordagem profissional. São Paulo: Cengage Learning, 2011. Leitura recomendada SANTANA, F. C. O. Rotulagem para alergênicos: uma avaliação dos rótulos de chocolates frente à nova legislação brasileira. Brazilian Journal of Food Technology, Campinas, v. 21, e2018032, 2018. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/bjft/v21/1981-6723-bjft- 21-e2018032.pdf. Acesso em: 10 nov. 2019. No link a seguir, você pode acompanhar uma avaliação dos rótulos de chocolates frente à nova legislação brasileira, que demanda advertência sobre alergênicos. https://qrgo.page.link/nXbds 15Chocolate: história e características Os links para sites da Web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu fun- cionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Chocolate: história e características16