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Casos Clínicos em Psiquiatria Sumário Editorial..................................................................................................1 Auto-relatos Minha amiga, a morte ...............................................................................3 Síndrome de Stevens-Johnson com carbamazepina ................................7 Artigos Originais Dependência de álcool por automedicação de substância fitoterápica ..............................................................................10 José Antonio Zago, Sérgio Augusto Monteiro dos Santos, Paulo Ségio Rocha Pereira, Josi Aparecida Sartonelli Miranda de Araújo Esquizofrenia paranoide y trastorno delirante con trastornos sensoriales: dos entidades con límites imprecisos....................................13 P. Álvarez Mas, P. Sierra San Miguel, L. Livianos Aldana, L. Rojo Moreno Arthur Bispo do Rosario – biografia clínica ............................................16 Maria Clara Queiroz Corrêa Psicanálise, neurociências e posição autista-contígua: contribuição para um desenvolvimento na teoria e na técnica psicanalítica ..................26 Sebastião Abrão Salim Sessão Especial de Casos Clínicos XIX Congresso Brasileiro de Psiquiatria...................................................31 Coordenação: Hélio Elkis, Maurício Viotti Daker Apresentação: Valentim Gentil Casos Literários Trovas psíquicas ........................................................................................83 Oswaldo Soares da Cunha O último monólogo de Nietzsche ............................................................86 Ataulpho da Costa Ribeiro Patografia Felipe II, un hombre irresoluto, mágico, coleccionista y depresivo ......91 Francisco Alonso-Fernández Caso Histórico A ilusão de “sósias” em um delírio crônico sistematizado......................96 J. Capgras, J. Reboul-Lachaux Index CCP ............................................................................................97 Normas de Publicação ................................................................99 Casos Clin Psiquiatria 2001; 3(1,2):1-99 UMA PUBLICAÇÃO DO Departamento de Psiquiatria e Neurologia da Faculdade de Medicina – UFMG, da Residência de Psiquiatria do Hospital das Clínicas – UFMG e da Associação Acadêmica Psiquiátrica de Minas Gerais – AAP-MG, federada da Associação Brasileira de Psiquiatria – ABP Editor Geral Maurício Viotti Daker Diretor Executivo Geraldo Brasileiro Filho Comissão Editorial Alexandre Lins Keusen • Alfred Kraus • Antônio Márcio Ribeiro Teixeira • Betty Liseta Marx de Castro Pires • Carlos Roberto Hojaij • Carol Sonenreich • Cassio Machado de Campos Bottino • Cleto Brasileiro Pontes • Delcir Antônio da Costa • Eduardo Antônio de Queiroz • Eduardo Iacoponi • Erikson Felipe Furtado • Fábio Lopes Rocha • Flávio Kapczinski • Francisco Alonso- Fernández • Francisco Baptista Assumpção Jr. • Francisco Lotufo Neto • Hamilton Miguel Grabowski • Hélio Durães de Alkmin • Helio Elkis • Henrique Schützer Del Nero • Irismar Reis de Oliveira • Jarbas Moacir Portela • Jerson Laks • John Christian Gillin • Jorge Paprocki • José Alberto Del Porto • José Carlos Rosa Pires de Souza • José Raimundo da Silva Lippi • Luis Guilherme Streb • Luiz Alberto Bechelli Hetem • Michael Schmidt-Degenhard • Marco Antônio Marcolin • Maria Elizabeth Uchôa Demichelli • Mário Rodrigues Louzã Neto • Miguel Chalub • Miguel Roberto Jorge • Osvaldo Pereira de Almeida • Othon Coelho Bastos Filho • Paulo Dalgalarrondo • Paulo Mattos • Pedro Antônio Schmidt do Prado Lima • Pedro Gabriel Delgado • Ricardo Alberto Moreno • Roberto Piedade • Ronaldo Simões Coelho • Sérgio Paulo Rigonatti • Saulo Castel • Sylvio de Magalhães Velloso • Talvane Martins de Moraes • Tatiana Tscherbakowsky de Guimarães Mourão Editora Cooperativa Editora e de Cultura Médica Ltda (Coopmed) Capa, projeto gráfico, composição eletrônica e produção Folium Comunicação Ltda Periodicidade: semestral Tiragem: 5.000 exemplares Correspondência e artigos Coopmed Casos Clínicos em Psiquiatria Av. Prof. Alfredo Balena, 190 30130-100 - Belo Horizonte - MG - Brasil Fone: (31) 3273 1955 Fax: (31) 3226 7955 E-mail: ccp@medicina.ufmg.br Home page: http://www.medicina.ufmg.br/ccp Capa: Marinha de Arthur Bispo do Rosario, montagem. Desde que a Medicina deixou de ser uma prática mágico- esotérica para se tornar uma atividade lógico-racional, ainda que pré-científica, a necessidade de se limitar o fenômeno mór- bido de que se tratava se impôs. Com efeito, já nos primórdios da Medicina, ainda entre babilônios e egípcios, havia uma preocu- pação com a diagnose, maneira de se delimitar o problema da perda da saúde e do bem-estar. As tábuas cuneiformes e os papi- ros ensinavam como se chegar à diagnose. Claro que de manei- ra muito empírica, pois tudo era baseado apenas na observação e na experiência transmitida. Mas o que importa é que já havia a compreensão mais ou menos estabelecida de que existiam mui- tas espécies de doenças e que era preciso saber de que mal se tra- tava quando diante de um doente. A escola hipocrática de Kós e a escola de Cnidos, entre os gregos, criaram a propedêutica como primeira ação do médico. A propedêutica (“conhecimento pré- vio”) era justamente a prática das técnicas diagnósticas, eviden- temente muito precárias aos olhos de hoje, mas quando manda- va observar a cor da pele ou as características da urina estavam sendo estabelecendos os rudimentos de uma semiologia. Os romanos (Celso, Galeno, Areteu) e os árabes (Avicena, Averróis) continuaram na mesma direção. Quando a Medicina se tornou uma atividade científica, no fim do século XVIII e durante todo o século XIX, a idéia de que a diagnose era parte indissolúvel da prática médica já estava consolidada. A classifi- cação das enfermidades com a decorrente semiologia fazia parte da ideologia taxonomista que criou a Botânica de Lineu e a Zoologia de Cuvier. É oportuno lembrar que a primeira classifi- cação de doenças veio na primeira edição da Enciclopédia Britânica – meados do século XVII – feita por Cullen, o criador do termo “neurose” (doença sine materia). No final da década de 60 do século XX, o movimento da contracultura com sua contestação universal, sua aversão a tudo que era estabelecido, seu horror ao exercício do poder em função de um saber, não poderia deixar de atingir a Medicina. A Medicina como atividade científica e tecnológica e o “poder médico” passaram a ser questionados, por vezes de maneira assaz acirrada. Mas como não se pode anular a Natureza por um ato de vontade, em pouco tempo tais idéias tiveram de se retirar da Medicina. A idéia de que a diagnose era um rótulo, que era expressão do jugo médico, que era uma criação do apa- relho ideológico repressor da Medicina, uma criatura sociocul- tural, não pôde subsistir por muito tempo. Claro, como mostra a história das idéias e das mentalidades, um resíduo bom e útil ficou. O aparecimento da Psicologia Médica, da concepção psi- cossomática das doenças, o advento da Medicina Social e Comunitária, o estudo da ideologia médica muito devem ao ideário da contracultura e do movimento de contestação, ainda que desde o final da Segunda Guerra Mundial tal fermento já existisse na Medicina. Repelidas da Medicina pela própria natureza do fenômeno da enfermidade e do sofrimento físico, tais idéias encontraram enorme guarida na Psiquiatria. A diagnose em Psiquiatria pas- sou a ser violentamente contestada como a mais lídima expres- são de tudo aquilo que oprimia o ser humano e o colocava sob a guante do poder. O diagnóstico em Psiquiatria passou a receber Editorial inúmeros epítetos desairosos: medieval, opressor, desumano (no sentido de não respeitar a individualidade e o sujeito). Como não existiam doenças mentais, não se poderia delimitar as espé- cies patopsíquicas. A doença mentalnão era um fenômeno bio- psicossocial existente na Natureza e na Cultura, mas uma mera criação histórico-cultural e política a serviço da opressão do homem pelo homem. Num primeiro momento, o patrulhamento ideológico daí decorrente foi devastador: os médicos recuaram e quase permitiram às demais profissões de saúde virem para o proscênio. Se a propedêutica não existia e o tratamento nada mais era do que restaurar a dignidade do paciente solapada pela usurpação política de sua condição humana, o médico passava a ser o “trabalhador de saúde”, membro da equipe horizontal de saúde, por vezes até desimportante. A existência em Psiquiatria das “variações anormais do modo de ser”, além das doenças mentais propriamente ditas, corroborava, em parte, tais idéias. Como o modelo médico podia ser aplicado de maneira mais ou menos precisa às demências, às oligofrenias e às psicoses mais importantes – e a Psiquiatria Biológica está, cada vez mais, mostrando isto – tais situações clínicas acabaram sendo preser- vadas na desconstrução geral. Mas algumas psicoses, as neuro- ses e as psicopatias (transmudadas para transtorno de persona- lidade) não escaparam. As doenças viraram “transtornos” e as entidades clínicas “estados”. Tudo isso pode ser aceito desde que alguns postulados imperem: 1) existe um fenômeno ao mesmo tempo biológico e sociocultural que expressa uma alteração do sistema nervoso e um padecimento anímico do homem; 2) essa alteração do sistema nervoso pode ser anatomopatológica ou fisiopatológica; 3) a demonstração de tal alteração não elimina a coexistência com a dimensão histórico-cultural e sociopolítica do homem, ou seja, a Psiquiatria não se reduz a uma Neurologia Cognitiva e do Comportamento; 4) a diagnose é uma peça fun- damental na prática da Psiquiatria, pois delimita o campo onto- lógico onde se passa fenômeno biopsicossocial; 5) essa delimita- ção é condição fundamental para que o fenômeno, que é sempre um padecimento, possa ser debelado. Assim, podemos entender plenamente o que é um “caso” em Psiquiatria. O caso clínico nada mais é do que a reunião de uma série, maior ou menor, de fenômenos, uns anatômicos, fisiológicos, citológicos, moleculares ou genéticos, outros histó- ricos, sociais, culturais e políticos, que confluem na produção de uma situação humana de sofrimento e menos-valia. A diagnose psiquiátrica nos aponta qual a confluência que está diante de nós dentre as confluências possíveis e conhecidas. Miguel Chalub Professor de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Psicanalista. Since Medicine became a logic-rational practice, even though pre-scientific, and no longer an esoteric-mystic practice, the need to limit the morbid phenomenon has been imposed. Thus, in the beginning of Medicine, even among Babylonians and Egyptians, there was concern about diagnosis as a way of limiting the problems of health and well-being losses. The cuneiform tables and the papyrus taught how to reach the diag- nosis. Of course, it was very empirical based only on observa- tion and gained experience. However, the important point was the understanding already established that there were many types of diseases and that it was necessary to identify them in the patient. The Kós Hippocratic and Cnidos’ schools, among the Greeks, created the propedeutic as the physicians’ first action. Actually, propedeutic (“previous knowledge”) was the practice of the diagnostic techniques, evidently very precarious in comparison to today’s view. By asking the physicians to observe the color of the skin or the characteristics of the urine it was establishing the basis of semiology. The Romans (Celsus, Galenus, Areteu) and the Arabs (Avicenna, Averroës) followed the same direction. In the end of the 18th century and during the 19th century, when Medicine became a scientific activity, the idea that diagnosis was a non-dissociated part of the med- ical practice was already consolidated. The classification of the diseases that occurred due to semiology was part of the taxono- mist ideology that gave origin to the Linnaus’ Botanic and Cuvier’s Zoology. It is interesting to remember that the first classification of diseases appeared in the first edition of the British Encyclopedia- middle of 17th century – proposed by Cullen, the creator of the term “neurosis” (disease sine materia). In the late 60s of the 20th century, the contra-culture movement with its universal contestation, its aversion to every- thing that was established, its horror to the power as result of knowledge, affected also the Medical field. The medicine, as a scientific and technological activity and the “medical empower- ment” were questioned, sometimes very severely. But, as it is not possible to deny Nature at one’s free will, soon such ideas were banned from Medicine. The idea that diagnosis was a label, the expression of medical yoke, the creation of an ideolog- ical repressor apparatus of the Medicine, a sociocultural crea- ture, was unable to stay on for a long time. Of course, as shown by the history of ideas and mantalities, good and useful compo- nents remained. The appearance of Medical Psychology, the conception of psychosomatic diseases, the beginning of the Social and Community Medicine, the study of medical ideology came from the ideas of the contra-culture and contestation movement, although this ferment in Medicine already existed since the end of Second World War. Rejected from the Medicine by the nature of the illness phe- nomenon and physical suffering such ideas met enormous sup- port in Psychiatry. A diagnosis in Psychiatry rendered an intense disapproval as being the most genuine expression of everything that oppressed the human being by keeping them under stringent control. Diagnosis in Psychiatry rendered numerous awkward epithets: medieval, oppressor, inhuman (in the sense of no respect to the individuality and subject). As mental diseases did not exist, it would not be possible to delim- it the pathopsychic syndromes. The mental disease was not a biopsychosocial phenomenon existent in Nature and in Culture, but a mere historic-cultural and political creation to the service of opression from the man to the man. Initially, the resulting ideological control was devastating: the physicians withdrew and almost allowed the rest of the health professions to come to the proscenium. If the propedeutic did not exist and the treatment was merely to restore the pacient dignity under- mined by political seize from the human condition, then the physician turned to be a “health worker”, member of the hori- zontal health team, sometimes not important. The existence in Psychiatry of “abnormal variations of the way of being”, besides the mental diseases themselves, corroborated, in part, such ideas. As the medical model could be applied in a kind of precise way to the dementias, oligophrenias and to the most important psychosis – and the Biological Psychiatry has shown this more often - such clinical situations have been preserved from the general de-construction. But, some psychoses, the neu- roses and the psychopathies (changed to personality disorder) did not escape. The diseases became “disorders” and the entities “estates”. This all can be accepted as long as some postulations prevail: 1) there is a phenomenon that is at the same time bio- logical and sociocultural that expresses an alteration of the nervous system and the suffering of the soul; 2) this nervous system alteration may be anatomopathological or physiopatho- logical; 3) the demonstration of such alteration does not rule out the co-existence with the historic-cultural and sociopolitical dimension of man, that is, Psychiatry is not to be reduced to Behavioral and Cognitive Neurology; 4) the diagnosis is a fun- damental tool in the practice of Psychiatry as it delimits theontological field where the biopsychosocial phenomenon takes place; 5) this delimitation is a fundamental condition to efface the phenomenon which is always painful. Thus, we can understand completely what is a “case” in Psychiatry. The clinical case is nothing but the gathering of a series of phenomena, some anatomic, physiologic, cytological, molecular or genetic, others historical, social, cultural and political, which join together to produce a suffering disadvan- tageous human condition. The psychiatric diagnosis points out to which confluence is ahead of us within the known and possi- ble confluences. Miguel Chalub Professor in Psychiatry – Federal and Estate University of Rio de Janeiro, Psychoanalyst. 3 Casos Clin Psiquiatria 2001; 3(1,2):3-6 Joana Lúcia (nome fictício) Introdução Cleonides Martins de Oliveira* Francisco das Chagas Valle** Regina Celsa de Souza e Silva Martins Oliveira*** Maria Fernanda Attie Cury**** Flávia Bonsucesso Teixeira***** Trata-se de história de moléstia atual relatada por uma paciente de nível escolar técnico em Contabilidade. Ela convive com o marido que possui diagnóstico de “psicose”, após aciden- te vascular cerebral (AVC). A paciente teve que abandonar seu emprego de contabilista para assistir o esposo nos seus momentos mais difíceis. Quando casaram, ambos não apresentavam trans- torno mental. O casal não tem filhos. Do temor da morte do mari- do a paciente desenvolveu verdadeira admiração pela morte. Auto-relato Assim começou a minha história. Peço que a leia atentamen- te até meu sonho de ter uma cozinha, sonho que está gravado em meus devaneios. Sou casada e não tenho filhos. Tive com meu marido uma vida de muita paz, saúde, alegria, passeios e festas. Era uma vida invejável, eu e ele sempre trabalhamos juntos e todos os finais de tarde nos fazíamos presentes na igreja, para a missa das 18 horas. De tão assíduos, o padre nos apelidou de casal vinte. Até que em outubro de 1997 tudo foi renunciado. Meu mari- do, que jamais bebeu ou fumou, foi vítima de acidente vascular cerebral. Fiquei surpresa desde esse momento, ou seja, quando ele disse que estava passando mal e já começou com delírios, dizendo nomes e fatos estranhos. Ele foi conduzido a um hospital e lá foi atendido por um médico de plantão. Sua pressão arterial (PA) estava muito eleva- da e fui informada que de ele estava desenvolvendo um AVC muito grave. Fiquei muito aflita em ver tantos médicos, muitos aparelhos, nunca tinha visto tal quantidade de profissionais correndo por todos os lados. Naquela noite entrei em desespero total por medo do meu marido morrer, ele era saudável. Eu estava completamen- te despreparada para tal situação, chorava e agarrava loucamente todas as pessoas que passavam ou chegavam perto de mim, prin- cipalmente aquelas de trajes brancos. Durante essa madrugada entrei em desespero, cada minuto parecia horas, até que um médico neurologista me abraçou com um semblante de vitória. Ele disse: acalme-se senhora, a PA já normalizou e ele está consciente, agora é só observação. Isso intensificou minha emoção e alegria, junto com o medo dele morrer. Por um instante senti que o chão do corredor do hospital estava cheio de aparelhos de pressão e tudo encostado no meu rosto, inclusive o piso. Depois de vários dias de desespero e medo, o meu marido obteve alta hospitalar. No entanto, eu sofria intensamente com o medo dele morrer, durante 24 horas consecutivas. Ele conversava durante todas as noites, já com sintomas de desequilí- brio mental. Continuei freqüentando o meu trabalho com muito sono e ainda com medo. Sentia o drama de ter que trabalhar e ficar tele- fonando para minha casa, preocupada com possíveis notícias advindas de minha sogra, de que ele estava morto. O meu pai tinha falecido em junho de 1997. Após vários dias, a minha sogra foi embora e eu quase enlou- queci, na tentativa de conciliar o emprego e ajudar o marido com doença mental. Ele ficava sozinho e trancado em casa, vivi esse trágico pesadelo durante durante quatro meses. Foi a pior tortu- ra psicológica que já conheci. Em fevereiro de 1998 renunciei ao trabalho, pois não tinha condições para suportar tal situação. Decidi ficar só em casa cui- dando dele. Parecia que eu estava mais doente do que o meu marido. Estava desfigurada por medo dele morrer. Procurei tratamento psiquiátrico; a profissional passou a ser mito e ídolo do meu marido, que passou a acreditar, incondicio- nalmente, nos remédios por ela prescritos. Todas orientações advindas da médica eram aceitas pelo mesmo. Sempre fui uma pessoa dócil e sensível, nunca acreditava que tudo teria um fim. De acordo com minhas idéias, as pessoas deve- riam se perpetuar, sofri muito por isso. Certa vez, perguntei à psi- quiatra se o estado do meu marido era reversível. Ela respondeu: não, mas isso não quer dizer que ele vai morrer pelo AVC. Fiquei com muitos traumas psicológicos na minha cabeça, durante todos os dias, além de pavor do meu marido morrer. Certa manhã eu estava muito deprimida e impressionada com aparelho de pressão, era outro suplício que não saía da minha cabeça. Auto-relatos MINHA AMIGA, A MORTE MY FRIEND THE DEATH *Professor Adjunto Livre-Docente em psiquiatria na Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro. Membro da Associação Acadêmica Psiquiátrica de Minas Gerais **Professor Titular Doutor do Departamento de Ciências Básicas da Faculdade de Medicina de Pouso Alegre e Universidade São Judas Tadeu ***Psicóloga Clínica ****Médica no setor de Psiquiatria e Psicologia Médica do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia *****Terapeuta Ocupacional no Setor de Psiquiatria e Psicologia Médica do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia Endereço para correspondência: Coopmed Casos Clínicos em Psiquiatria Av. Prof. Alfredo Balena, 190 30130-100 - Belo Horizonte - MG E-mail: ccp@medicina.ufmg.br Foi tanto tormento que minha boca e mãos estavam sempre dormentes, tive uma perda de vista à esquerda, por uns 20 minu- tos, além de minha cabeça ter ficado inerte por determinado tempo. Preciso esclarecer que o meu marido teve uma crise pare- cida com esquizofrenia, em abril de 1999, o que piorou a minha depressão. Em maio desse mesmo ano, comecei a sentir que den- tro de mim vinha se desenvolvendo uma outra pessoa. Eu sentia medo daquilo e comecei a ir até a psiquiatra na tentativa de me livrar deste problema, mas não tive cura. Foi então que pensei em suicídio, planejando acabar com aquela situação. Também planejei matar o meu marido e suicidar logo após. Tudo isso para acabar definitivamente com aquilo que me consumia a cada minuto. Eu estava sozinha, sem uma palavrinha sequer. Os amigos e parentes me abandonaram, eu sentia falta de pessoas para conversar, mesmo que fosse por pouco tempo. Nesse dia planejei matar o meu marido e suicidar, na parte da tarde. Realmente a vida já não me interessava. Mas uma amiga me ligou chorando para contar que seu marido tinha morrido por AVC hemorrágico. Fui até sua casa para lhe dar apoio. Chegando na casa da minha amiga, fiquei muito surpreendi- da, porque tive a sensação de estar em uma festa e não em um velório. Tudo ali era bom e maravilhoso. O falecido estava lindo, senti um profundo desejo de acariciá-lo. Acabei me controlando, aquela foi a minha primeira atração por cadáveres. Naquela noite começou minha confusão mental, não conse- gui dormir porque aquele profundo desejo ficou impregnado em meus pensamentos. Por mais que eu quisesse, não conseguia me livrar desse fato. Quando aquele homem era vivo, jamais senti por ele qualquer atração sexual ou interesse afetivo. Quando o dia amanheceu, comecei a me identificar com a morte e ter afinidade só por assuntos relacionados a ela. Em alguns instantes eu me rejeitava, pois sabia que tal comportamen- to era anormal. Mas meu desejoera maior que a rejeição. Aquele terrível sofrimento de medo do meu marido falecer, durante um ano e meio, apaguei por completo e passei a procu- rar mais mortos e só quero conviver com eles. O vício se tornou tão forte que comecei a procurar serviço nos cemitérios da cida- de, mas não consegui o emprego. Iniciaram-se os preconceitos e a discriminação das pessoas que me conhecem. Fico muito nervosa e freqüentemente brigo com elas, pois quero fazer valer o meu direito de gostar de defun- to. Não entendo porque discriminar uma coisa que é meramente bela e verdadeira. Também procurei emprego no serviço médico legal da minha cidade, para estar perto dos cadáveres. Tenho inveja dos profis- sionais que atuam neste setor, porque eles têm contato mais dire- to, único e profundo com quem já morreu. Matar alguém não é o meu forte, gosto de aplaudir o que faz a minha amiga morte, vejo o desempenho de sua função com elo- gios. O importante é que fiquei tão amiga da morte que temos confissões de absoluto sigilo. Antes de todos esses acontecimentos, quando viajava com o meu marido, por medo dele morrer, não conhecia a morte e fui enlouquecendo por medo dela. Hoje ela é minha melhor amiga, sei que tenho privilégios, posso escolher como e quando morrer. Tenho contatos diretos e secretos com a morte. Esta quer que eu trabalhe em um cemitério, onde se tornam mais fáceis nossos con- tatos. Até o momento, não consegui. Fui pretensiosa e quis ganhar aqueles 65 milhões de reais ou metade deles na mega-sena. Eu sabia os números do prêmio que, no entanto, saiu para o Estado da Bahia. Dei os números para algumas pessoas, mas elas não acreditaram em mim e não fizeram o jogo. Pedi dinheiro para jogar apenas um jogo, elas não me emprestaram. Não vou desistir de jogar. Vou de novo saber os números e não contarei para ninguém, ganharei sozinha e vou para um lugar onde serei desconhecida. Lá vou montar um cemi- tério só para mim. É estranho e interessante que eu não consigo discernir como mudei a minha preferência da noite para o dia. Talvez pelo fato de ter vivido o medo do meu marido morrer durante um ano e meio. Eu ficava acordada para vigiar sua respiração e seus bati- mentos cardíacos, acreditava que se dormisse ele morreria. Eu não tinha apoio de ninguém, exceto nas consultas ambu- latoriais mensais, ou no pronto socorro nas situações de crises. Não passeava e não tinha relações sexuais desde o AVC do meu marido. Enfim, nem televisão assistia porque ele cismou que os apresentadores estavam dentro da nossa casa. Ele arrumava uma gritaria total com os programas de televisão e quando ouvia músi- ca, gritava sem parar. Acreditava que os cantores tinham que pagar um percentual para ele, nos momentos em que estavam cantando. Era um situação insuportável quando o marido assistia a programas musicais. Depois de longo tempo encarcerada em casa e vivendo os problemas do marido esquizofrênico e com AVC, os meus pas- seios são apenas nos velórios. Lá encontro várias pessoas, das quais gostaria de receber pelo menos um telefonema de apoio. É evidente que nos velórios tem gente triste. Às vezes, fico chocada por não estar preparada para vivenciar tanta tristeza em um mesmo lugar. Para mim o velório é uma festa deliciosa. Gosto e insisto nesta minha tarefa de falar somente sobre morte e andar, por onde quer que seja, procurando defunto pelas ruas da cida- de. Eu preciso dessa busca, este é o meu refúgio, minha festa e meu prazer. Ainda tenho sonhos a serem realizados: 1) conhecer o meu ídolo que é o Dr. Morte e beijar o solo que ele pisa, como símbo- lo do meu fanatismo e 2) um dia fazer a cozinha dos meus sonhos, mas não tenho dinheiro. O retrato da cozinha que idealizei para a minha casa não sai da minha cabeça. Um amigo me ofereceu esta cozinha, só que em troca queria sexo. Ele falava que eu era bonita e cheirosa, mas não aceitei a barganha, não me interesso mais por sexo. Eu gostaria de participar de um grupo de médicos em que todos me permitissem contar o prazer que tenho de falar sobre defuntos. Por que me refiro a médicos? Porque são eles que conhecem e tocam nos cadáveres, os meus pratos preferidos. Certo dia fui questionada sobre a diferença entre morte e defunto, respondi que a morte desfigura o defunto, que é o resul- tado eficiente da morte. Entendo que quase não existe diferença entre um e outro, só posso, no momento, afirmar que ambas as situações são maravilhosas. Quanto a minha memória, deixo claro que tenho algumas dúvidas se me comporto bem, pois noto que as pessoas se afastam de mim porque só falo da morte com elogios e aplausos. Só me Casos Clin Psiquiatria 2001; 3(1,2):3-6 4 Minha amiga, a morte interesso por isso, mas é verdade que tento me prender, mas é uma tentativa inútil. Inútil sim, frustrada não, porque só quero isso. Por uma vez fiquei tão brava que joguei um homem na fren- te de um ônibus, sem sucesso porque o motorista o freou rapida- mente. Isso ocorreu porque o homem estava me incomodando, tentando falar comigo. Meus estímulos nervosos surgem forte- mente, quando sinto que estão me fazendo de boba. Minha cabe- ça fica desorientada quando escuto contestações. Eu não tenho senso de qualquer gravidade, foi assim que ocorreu no ponto de ônibus. Preconceitos, discriminações, rejeições ou conselhos não impedem meus compromissos com a morte e meus defuntos. Estou me especializando só nesse assunto. Por isso estou escre- vendo este depoimento com plena liberdade. Se alguém quiser marcar uma reunião comigo, para falar de morte e defunto, terei um prazer imenso. Um dia serei famosa e conhecida mundialmente; aí os psiquiatras terão orgulho de mim, me aguardem. Pretendo e vou lutar pela minha fama, talvez um especial na televisão. Também quero falar das minhas sete cabeças. Quando comecei a desenvolver essa quantidade de cabeças, confesso que fiquei revoltada, mas aos poucos fui acostumando. Também não é todos os dias que tenho de suportar isso, elas não me atrapalham em nada, só que cada uma delas pensa uma coisa, e como tenho sete cabeças e dois corpos, é claro que acabo fazen- do um pouquinho de confusão mental. Peço ao leitor que leia e releia este meu depoimento e, quem sabe, isso sirva como lição de vida ou exemplo às famílias que tenham doente mental. Não devem deixá-lo sob a responsabilida- de de uma única pessoa, como aconteceu comigo. Se você está achando anormal o novo comportamento e pre- ferência que adotei, saiba então que eu também era supersaudá- vel e normal. Sou contadora formada, de família humilde, porém educada. Eu tinha uma vida normal, participava de churrascos, festas e clubes com o meu marido, que também era saudável. Tudo mudou rapidamente, tive que renunciar até ao meu traba- lho e ficar trancafiada dentro de casa, cuidando do meu marido doente mental. Tenho a impressão de que fui para o mesmo cami- nho, mas não faço queixas e estive muito infeliz com medo dele morrer. Hoje estou feliz, porque faço contato direto com a morte, tenho vários tipos de privilégios com ela, inclusive foi minha amiga que me fez ver que tenho sete cabeças e dois corpos. Só fico com uma enorme confusão mental quando as sete cabeças começam com os pensamentos desiguais, cada uma quer uma coisa. Fico muito nervosa na hora em que fico louca para ver um defunto e alguém tenta me impedir. Se teimar comigo, eu bato e não tenho medo de ninguém. Tornei-me insensível, como se eu estivesse infeliz, chorando com aquele terrível medo do meu marido morrer. Ninguém veio passar a mão na minha cabeça. Anteriormente eu gostava muito disso, hoje as coisas mudaram, eu gosto só de defunto e não se discute, é melhor assim. Tenho ainda o gosto de limpar a minha casa e sonho, até hoje, com a cozinha e a área de serviço que não pude fazer, sofro muito com isso. Tenho dificuldade financeira e não consigo serviço, por- que não tenhocontrole para sair à procura de defunto, nem por isso eu deixo de ser amiga da morte. O dia vem amanhecendo e não tenho dormido, meu marido usa indutor de sono e dorme igual um anjo, enquanto eu fico andando dentro de casa ou andando pela rua, procurando defun- to. Só aceito contato com outras pessoas se for para falar de morte e defunto. Talvez eu não esteja em condições de continuar o relatório com perfeitas explicações, estou transtornada, minha filha sumiu.a Eu a procuro em cada rostinho infantil, tenho a sensação de que estou anormal. Esta busca, este resgate me tem feito mal, pois tenho visto que tem sido inútil. Consolo-me ainda com alegria porque, mesmo com a barrei- ra do preconceito social, sou amiga assídua da morte. Tento me identificar com outra ocupação, por exemplo a música “natália”, o que me envolve em parte, só um pouquinho, é claro. Logo corro para os braços que me fazem realmente feliz, que é meu verdadeiro ídolo, a morte e seus maravilhosos resultados que são cadáveres lindos, silenciosos, pálidos e imóveis. Desperta-me uma certa admiração pelo médico anestesista, pois entendo que ele leva o paciente à meia morte. Porém, ele perde o encanto ao ser o homem que tem o conhecimento por intermédio da ciência de devolver a vida. Estou com dor de cabeça e tenho que ir ao dentista, existe um dever humano que é cuidar da faixada, que é a tal da aparên- cia. Cumprido isso, volto às atividades normais e rotineiras, ou seja, visitar velórios e cemitérios. Quero lhes pedir uma alma branda que saiba julgar, instruir a medicina humana e discernir a força bruta de vocês. Em se tra- tando de humanidade, vocês (introdutores conhecedores deste relato) ministram verdadeiras aulas inspirados na mesma jurisdi- ção para com os pacientes, diante da infinita misericórdia divina. Perdoem aqueles que ora erram, são doentes e desvirtuados da consciência humana e espiritual, usem da legítima medicina que se faz presente nos pólos mais distantes do universo. Orem por todos que não tiveram a mesma sorte e agora apodrecem seus corpos carnais nas celas das enfermarias psiquiátricas. Velem pelas suas consciências, amando e servindo sempre, mas não se esquecendo do dever bem cumprido. Não julguem ao livre arbí- trio sem merecimento. Lembrem-se, acima da medicina dos homens existe a medicina de “Deus”, que é imortal. Peço que a força do conhecimento para o bem inspire os jovens nos seus trabalhos, acima do conhecimento da medicina. A honestidade está atravessando uma fase difícil, dolorosa e cheia de indagações por causa deste meu comportamento. Parece que sofri um choque delicioso ao sentir que meu mundo se transformou. Asseguro-lhes que tenho um profundo respeito, amo-os e respeito na condição física e espiritual. Só quero que esse sol forte lhes dê força e tenham fé em seus corações. Bons dias, boas tar- des, boas noites e que o ser invisível zele por vocês. 5 Casos Clin Psiquiatria 2001; 3(1,2):3-6 a) A paciente não possui ou teria possuído filha (nota dos autores da introdução). Discussão Sérgio Kehdy* Como se trata de relato de uma paciente, feito de forma livre e espontânea, também me permitirei pensar e escrever da mesma forma. Esse relato me fez pensar na tragédia humana. Kohut1, psicanalista do self, falecido em 1970, aponta a dimensão trágica do homem e distingue o homem culpado (freudiano) do homem trágico. No primeiro, predominam os conflitos psíquicos e a culpa, ou seja, a luta entre os desejos proibidos por um superego cruel e a culpa intensa desencadeada por esses desejos. No segun- do, a questão é mais definitiva, pois trata-se do ser ou não ser, do existir ou desintegrar-se. Lendo o relato de Joana, penso num ser humano que luta com todas as forças para se manter vivo e, por incrível que pareça, consegue a vida através da adoração da morte, de cadáveres e dos velórios. Tentarei explicar o que estou dizendo. Joana sofre um duro golpe com a doença do marido, que representa um corte brutal em sua “continuidade do ser”. Winnicott2 nos mostra que as ameaças à “continuidade do ser” são vividas de forma tão catastrófica que é algo inominável e cer- tamente desperta uma angústia pior que o medo da morte, mui- tas vezes o próprio suicídio pode significar uma “defesa” para essa sensação indescritível e intolerável. Joana vivia “feliz” como membro de um “casal vinte”, sendo o marido a referência para sua existência, um amálgama que a mantinha inteira e lhe garan- tia o seu “ser”. Não estou falando de amor romântico ou algo parecido entre duas pessoas adultas, mas sim de algo mais primi- tivo e arcaico no desenvolvimento emocional, estou falando de fusão, ou seja, “uma unidade de dois”, semelhante ao estágio ini- cial quando entre a mãe e o bebê existe uma “simbiose”. O mari- do sofre um “derrame cerebral” com sintomas psiquiátricos (qua- dro psicótico), deixa de “ser” e Joana perde seu espelho e sua referência, ficando sem saída para sua angústia, com medo de se desintegrar psiquicamente, como se fosse um bebê sem cuidados. A primeira descrição sugere um quadro dissociativo típico, quan- do fica tonta, vê aparelhos de pressão por toda parte e passa a viver na “corda bamba”, com ameaças freqüentes de despersona- lização. Fica confinada, cuidando do marido delirante e se iden- tifica, ou melhor, se “mistura com ele”, numa tentativa de resga- tar sua própria integridade. Como ele estava “psicótico”, o qua- dro aparente é uma “folie a deux”, com sua composição típica, histérico com um psicótico. O medo da morte do marido e da ruptura da fusão simbiótica é de tal monta que, para se sentir viva, busca de forma desesperada defesas com características maníacas, que se caracterizam por negação, onipotência e triun- fo, e tenta com elas um controle sobre a morte, transformando a dor da perda numa “festa” e conseguindo assim um certo grau, mesmo que precário, de integração. Assim, aparentemente, “resolve” a dor insuportável da perda de seu “objeto sustenta- dor” e de sua ameaça de desintegração. Nunca é demais lembrar que não estou falando da perda de seu marido amado e sim de um “objeto” cuja representação psíquica significa um pedaço dela mesma e que é fundamental para a existência mental, como se fosse um pulmão sem o qual não se respira. Kohut1 denomina esse objeto de “self objeto”, que mostra um nível primitivo de desenvolvimento emocional. No auto-relato, a primeira cena de adoração à morte, cadá- ver do marido da amiga, sugere uma perversão típica, necrofilia, mas com o desenrolar do relato fica claro não tratar-se de desejo sexual por cadáveres e sim de um fascínio pela morte, o que tem a função de fazê-la suportar a vida. Algo já morto não ameaça, nem à sua “continuidade do ser”. Ela tenta através da adoração um controle sobre a morte e diminui o terror da desintegração; algo que adora e não teme, inerte e imutável, torna-se uma boa referência, visto que deixa de ser um objeto “abandônico”. O fator onipotência das defesas maníacas faz com que apareçam manifestações “deliróides”, pois não se trata de produção deli- rante primária e sim função da onipotência maníaca. Nada mais claro para exemplificar isso do que “as sete cabeças e as sete vidas”. A adoração e a dedicação exclusiva à morte provavelmen- te a fazem sentir-se a própria morte, numa relação de tal intimi- dade que sugere uma exaltação narcísica, pois se é possível domi- nar a morte, estou perto da situação de imortalidade, busca inces- sante do narcisismo humano desde os primórdios do homem. Volto à dimensão trágica do homem, à questão do ser ou não ser, do existir e se manter vivo ou não, sendo essa a última defesa con- tra a hecatombe psíquica. Além disso, só resta o caos e o pó. Do ponto de vista psicodinâmico, de uma forma mais ampla, fala-se de psicose mais como um funcionamento psíquico em que não se é capaz de continência dos conteúdos internos, daí resul- tando alucinaçõese delírios, do que de algo estrutural ou etioló- gico. Desse ponto de vista, os transtornos dissociativos não se diferenciariam muito dos quadros delirantes. Mas, do ponto de vista de diagnóstico fenomenológico, vale a pena arriscar: penso num transtorno dissociativo, tipo histeria dissociativa, com alguns sintomas maniformes e idéias deliróides. Deixo a questão da perversão para outra oportunidade, visto que do nosso ponto de vista os atos perversos desse tipo, sem consistência, têm antes uma função integradora e não uma estrutura fixa. O ser humano é maior do que todas as teorias. Ajudar os pacientes através da possibilidade de propiciar novas identifica- ções e com uma escuta atenta e respeitosa, deixando de lado os rótulos e preconceitos, é dever de todos que lidam com o ser humano doente, principalmente com aqueles que estão no limite de sua existência. Referências Bibliográficas 1. Kohut H. Formas e transformações do narcisismo. In. Psicologia do self e a cultura humana. Porto Alegre, Artes Médicas; 1988 (original de 1966). 2. Winnicott, D.W (1963). O medo do colapso. In. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre, Artes Médicas, 1994 (original de 1963). Casos Clin Psiquiatria 2001; 3(1,2):3-6 6 *Psicanalista didata da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro – SPRJ e do Núcleo Psicanalítico de Belo Horizonte - NPBH. Preceptor da Residência em Psiquiatria do HC-UFMG. Membro da Associação Acadêmica Psiquiátrica de Minas Gerais. E-mail: sergio@kehdy.com 7 Casos Clin Psiquiatria 2001; 3(1,2):7-9 SÍNDROME DE STEVENS-JOHNSON COM CARBAMAZEPINA STEVENS-JOHNSON SYNDROME WITH CARBAMAZEPINE Bruna Maria Dante (nome fictício) Nos meus relatos “Dunas de Girassóis e Outros Delírios”a omiti que fui acometida de grave síndrome. Ocorre que em 1996 estava me sentindo acelerada porque meu filho sofrera um aci- dente grave no carnaval e fui eu quem o socorreu. Neste aciden- te uma jovem mãe perdeu seu bebê, de apenas seis meses de ges- tação. Ela era "carona" no carro, juntamente com seu marido. Conclusão: procurei um psiquiatra e contei a história. Deu-me um ansiolítico e disse que voltasse em três dias. Assim o fiz. Prescreveu então carmabazepina, para tomar indefinidamente, todos os dias, mas não me explicou o porquê. Comecei a tomar e em questão de uma semana já sentia “estado febril” e os gânglios aumentados pelo corpo todo. Liguei para ele e me disse que era “virose”, que deveria continuar tomando a tal medicação e que procurasse um "clínico". O clíni- co, no dia em que me atendeu, disse também ser uma "virose" e que procurasse um infectologista... Todo esse tempo eu sabia que todos estavam errados e que eu tinha algo grave. Procurei o infec- tologista, mas antes fiz um hemograma por minha conta. Cheguei ao consultório, disse que estava com "Stevens-Johnson", mostrei o exame e a bula. Ele, prof. titular de universidade federal, gritou que "o médico era ele!" Não fez exame clínico, solicitou exames para "lúpus", "rubéola" e "mononucleose". O kit iria para São Paulo, demoraria mais de 15 dias para saber o resultado... Disse que ele estava errado e que eu morreria por isso. Ao chegar em casa notei que já haviam se formado pequenas manchas rosas em meu corpo, como início de "catapora". No dia seguinte, ainda tomando carmabazepina, virei um monstro. Edemas intensos de mãos e pernas, vermelhidão, rosto deforma- do pelo inchaço e onde eu encostava os vasos capilares rebenta- vam e eu ficava "preta". Começou um ardor, dor e coceira inten- sos pelo corpo todo e as manchinhas já eram enormes, com bolhas cheias de líquido amarelo e isso só aliviava um pouco com banho gelado acompanhado de "bolsas de gelo". Liguei para ele, relatei como estava e me mandou tomar composto de betameta- sona com anti-histamínico à noite, dois comprimidos. Estava desesperada e cada vez mais monstruosa. Chegando a noite tomei apenas um comprimido e depois de certo tempo senti "baixa res- piratória", acompanhada de "rash cutâneo" intenso. Pedi a meu marido que ligasse para ele, pois estava morrendo e ninguém acreditava em mim por ter doença mental (que não sabia qual, mas, na época, tomavam-me por esquizofrênica). Ele disse que se eu piorasse me internaria no dia seguinte. Mais um Ph.D. imbe- cil na minha vida! Amanheceu e logo falei com a pediatra da minha filha, des- crevendo como estava. Na mesma hora ela disse que ligaria para um infectologista infantil e que eu fosse para o hospital de doen- ças contagiosas. Não tinha nem o que vestir de tão inchada e da dor e prurido intenso que sentia. Fui. O médico, ao me ver, man- dou entrar com urgência. Examinou-me por inteiro e disse: é, você tem razão, é mesmo “Stevens-Johnson” e é muito grave. Nesta altura descompensei. Mandei todos à.... e disse que morre- ria em casa, uma vez que era (e é) fatal. Ele suplicou para que eu deixasse ajudar, que me internaria e mandou chamar uma derma- tologista, que também confirmou o diagnóstico. Foram momen- tos de horror e dor absolutos. Meus anéis haviam ficado presos nos dedos e estes estavam totalmente pretos. Meus lábios eram pretos. O Hospital era de ortopedia, sem recursos, nem UTI. Fui internada assim mesmo, pois não havia vaga noutro lugar. Perguntei a ele se poderia ir em casa, falar com meus filhos e ele disse que não havia tempo. No caminho do Hospital peguei um celular de minha amiga, casada com o Secretário de Saúde do município, e disse que fossem (os médicos que conhecia) se des- pedir de mim, inclusive o psiquiatra. Em pouco tempo foram chegando ao hospital: pediatras, sanitarista, psiquiatra, clínicos gerais, enfim uma gama de "especialistas" que nunca "aprende- ram" em suas faculdades de medicina sobre essa doença. Piada. Dei-lhes uma aula, bem eloqüente, taxando-os de incompetentes e que iriam aprender “ao vivo” comigo. A dermatologista man- dou fazer medicação em farmácia de manipulação (cortisona) e prescreveram dose altíssima, acompanhada de ranitidina, por causa de possível hemorragia. Fizeram punção do líquido das bolhas e ao final de alguns dias deu: "stafilococcus áureos". Entrei em delírio absoluto pela dosagem alta de cortisona. Foram 10 dias e noites sem dormir, delirando sem parar e com dores horrí- veis na pele. Meus médicos vinham me ver logo cedo. À noite, davam-me uma injeção que me deixava pior. A pele parecia que- rer sair do corpo e ardia por demais. Só me aliviava tomando banho gelado, arrastando o suporte do soro e medicação para o chuveiro. Foi aí que surgiu "a bolha". Uma enorme bolha sob o meu braço, que corria feito mercúrio, e eu, sabendo que não era "soro vazando", chamei a enfermeira (?). Ela disse: é da doença. Mandei que chamasse um médico. Após umas duas horas vem um ortopedista, todo amarfanhado (estava dormindo) e pergun- tou: “quem é a nervosinha do apartamento nove?” Identifiquei- me e ele, áspero, disse: “é da doença, vá dormir!” Pasme... Bom, pensei, se vou morrer (e nem sei se posso abaixar o braço), vou tirar todos da cama (era madrugada). Peguei o celular e liguei para todos os médicos novamente. Às 05:30h da manhã a derma- tologista veio me ver e trouxe outra médica para conhecer "meu caso". Fiquei possessa. Eu não era “um caso”, sim um erro médi- co. Expulsei a médica do quarto (a estranha). Disse o que bem entendi. Ela tentou me acalmar e falou que eu estava melhoran- do, que era da doença (mistério...). Logo depois chega o infecto- logista infantil e a história se repete. Ele me salvou a vida, por acreditar em mim. Tirou-me do hospital mais cedo porque minhas defesas imunológicas estavam muito baixas e continuei a) Casos Clínicos em Psiquiatria 2000; 2(2):58-61. Endereço para correspondência: Coopmed Casos Clínicos em Psiquiatria Av. Prof. Alfredo Balena, 190 30130-100 - Belo Horizonte - MG E-mail: ccp@medicina.ufmg.br em tratamento de consultório e exames, principalmente de fun- ção do fígado, pâncreas, entre outros.Voltei para casa delirante e assim fiquei por bom tempo. Tornei-me alérgica a inúmeras medicações em decorrência dessa doença (sulfa, penicilina, dipirona, antiinflamatório, ácido acetilsalicílico, a própria carmabazepina, certos corantes, etc), fiquei com manchas escuras pelo corpo, proibida de tomar sol e tendo de usar "protetor solar" dentro de casa. Hoje tenho apenas pequenas manchas leves que me lembram do susto, da falta de preparo dos médicos e de humanidade. Fui tratada com prepo- tência por aquele Ph.D. em infectologia que disse que eu tinha mononucleose ou rubéola. Espero que ele nunca sinta "na pele" o que aconteceu comigo. Por ser bipolar, surtei com gosto, para a mania. Escrevo a vocês para que, por meio desta carta, possam aprender com minha experiência e repassá-la a outros que se dedicam à área médica, evitando que muitas pessoas venham a ter óbito por "despreparo" médico, falta de humanidade e humilda- de. Posso dizer que, no meu caso, esses dois médicos que acredi- taram em mim, mesmo sendo doente mental, que me viram como ser humano e notaram as evidências clínicas do caso, salvaram a minha vida. A eles sou grata até hoje. Souberam honrar o jura- mento feito em suas formaturas e continuam praticando a medi- cina "humanizada", em que a relação médico-paciente deve sem- pre ser preservada. Discussão Leandro Augusto Paula da Silva* Júnia Bicalho de Sousa** Eduardo Antônio de Queiroz*** Balint e Norell, logo na introdução do conceituado livro “Seis Minutos para o Paciente”1, chamam-nos a atenção para ouvir o paciente. Ele nos está dizendo o diagnóstico, informando- nos a respeito. Kaplan e Sadock, no primeiro capítulo sobre rela- ção médico-paciente no “Synopsis of Psychiatry”2, recomendam- nos aprender a ouvir, uma habilidade que pertence à arte da comunicação, exemplarmente desenvolvida nos humanos. Na relação com o paciente nunca apresentar “ar de superioridade”, controlar a pressa, respeitar o paciente, estar disponível e acessí- vel de modo oportuno e dar informações sempre. Lembrar que paciente psiquiátrico também adoece fisicamente, não tratá-lo com preconceito! É fundamental acompanhar, assistir e orientar o paciente após um acidente ou insucesso, recomenda-nos Gonçalves.3 E que nos perdoem os pacientes pelos nossos erros! Isso posto, falaremos sobre a síndrome de que a paciente foi acometida. Inicialmente descrita em 1922 pelos autores que lhe deram nome, a síndrome de Stevens-Johnson (SSJ) ou eritema multiforme maior é uma forma mais grave do eritema multiforme. Resulta de uma reação imunológica na pele e nas mucosas media- das freqüentemente por imuno-complexos circulantes desenvol- vidos em resposta a vários possíveis estímulos antigênicos (infec- ções, mais freqüentemente drogas, doença do tecido conectivo).4 São numerosos os medicamentos correlacionados com a SSJ, em especial as sulfas, as drogas anticonvulsivantes (ácido valpróico, carbamazepina, fenitoína, fenobarbital, lamotrigina – não há rela- to com a oxcarbazepina) e os antiinflamatórios não esteroidais.5,6 A SSJ é rara, com incidência anual de 1-2/1.000.000 na população geral.7 Sintomas prodrômicos, incluindo mal-estar, febre, cefaléia, faringoalgia, tosse, dor no peito, vômitos, diarréia, mialgias e artralgias precedem a aparição de lesões na pele em 1 a 14 dias. A erupção dermatológica caracteriza-se por acometi- mento cutâneo-mucoso múltiplo. A área mais acometida é a boca, com lesões labiais, linguais e da mucosa oral, surgindo bolhas hemorrágicas ou purulentas. Lesões oculares são também fre- qüentes, podendo ser intensas a ponto de resultarem em seqüelas graves e até cegueira. A mucosa anogenital pode também ser atin- gida. As lesões cutâneas iniciam simultaneamente ou após o aco- metimento das mucosas. Um rash macular, às vezes morbiliforme, aparece primeiro na face, pescoço e tronco, podendo espalhar-se para as extremidades e o resto do corpo. Pode haver confluência das lesões na face, pescoço e tórax, formando um eritema difuso. Na periferia, as lesões permanecem como máculas individuais. Dentro das lesões, a epiderme se torna frouxa e facilmente desta- cável, seguindo mínimo trauma. Há formação de bolhas flácidas, sero-hemorrágicas, que podem evoluir para necrose. A expressão máxima da doença é usualmente alcançada em quatro a cinco dias, mas novas lesões podem aparecer até semanas depois, se a droga causadora é de longa duração. Sintomas gerais incluem febre, artralgia, fraqueza e prostração.5 Aproximadamente 3% dos pacientes que tomam carbamaze- pina desenvolvem rashes, geralmente de menor importância.6 Até 10% a 15% dos pacientes tratados com carbamazepina podem desenvolver uma erupção pruriginosa benigna nas primeiras semanas de tratamento.8 Parte destes pacientes podem sofrer sín- dromes dermatológicas ameaçadoras à vida, incluindo dermatite esfoliativa, eritema multiforme e necrólise epidérmica tóxica. Alguns clínicos sugerem a interrupção da medicação se qualquer rash ocorre. Estudo multicêntrico europeu observou risco aumentado de desenvolvimento de SSJ nas primeiras oito sema- nas de uso de anticonvulsivantes, sendo que nos casos do feno- barbital e do ácido valpróico se especula sobre um risco aumen- tado também com o uso a longo prazo.6 O tratamento inclui hospitalização, limpeza cuidadosa das lesões, manutenção do equilíbrio hidro-eletrolítico (o doente tem grandes perdas através da pele e há dificuldade de ingestão de ali- mentos e líquidos). Uma das complicações mais freqüentes e gra- ves são as infecções, que devem ser prontamente identificadas e tratadas. A utilização de corticosteróides é atualmente controver- sa, predominando entre os autores a recomendação de sua não utilização, por contribuírem para diminuição das defesas antiin- fecciosas. A única justificativa para sua utilização seria quando introduzido em fases precoces, em que ainda se observa o apare- cimento de novas lesões. Nestes casos, preconiza-se o uso de doses altas pelo menor tempo possível. A droga causadora deve ser retirada e nunca mais administrada ao paciente.5 Casos Clin Psiquiatria 2001; 3(1,2):7-9 8 * Residente do segundo ano da Residência de Psiquiatria do HC-UFMG. ** Residente do primeiro ano da Residência de Dermatologia do HC-UFMG. *** Professor Adjunto do Departamento de Psiquiatria e Neurologia da Faculdade de Medicina da UFMG, membro da Associação Acadêmica Psiquiátrica de Minas Gerais. Síndrome de Stevens-Johnson com carbamazepina B.M.D. iniciou com sintomas de febre e linfadenomegalia uma semana após o uso de carbamazepina. Progressivamente, em poucos dias, evoluiu com o aparecimento de lesões bolhosas e edema, além de rash cutâneo e "baixa respiratória". Foi tratada com cortisona. Desenvolveu hipersensibilidade a uma gama de medicamentos. Os autores não encontraram, na literatura revista, dados sobre o desenvolvimento de hipersensibilidade a outros medicamentos a que a paciente se refere. Também não observa- ram na literatura a descrição do quadro inicial com linfadenomegalia. A SSJ é uma síndrome potencialmente letal, com mortalida- de de até 50% quando ocorre necrose epidérmica extensa. Não há como prever qual paciente poderá apresentar o quadro. O psi- quiatra deve estar atento a possíveis efeitos cutâneos adversos e sempre considerar a suspensão da medicação nesses casos.9 Referências Bibliográficas 1. Balint E, Norell JS. Seis minutos para o paciente. São Paulo: Manole, 1978. 2. Kaplan HI, Sadock BJ, Grebb JA. The doctor-patient rela- tionship and interviewing techniques. In: Synopsis of Psychiatry. Baltimore, Philadelphia, Hong Kong, London, Munich, Sydney, Tokyo: Williams & Wilkins; 1994:1-15. 3. Gonçalves MM. Relação médico-paciente: profilaxia da denúncia contra o profissional. In: Relação médico / paciente. Profilaxia da denúncia contra o profissional. Belo Horizonte: CREMEMG; 1997:7-9. 4. Parker F. Skindiseases. In: Bennet JC, Plum F. eds. Cecil text- book of medicine. Philadelphia, London, Toronto, Montreal, Sydney, Tokyo: WB Saunders; 1996:2206. 5. Sampaio SAP, Rivitti EA. Dermatologia 2a ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 2001:613-615. 6. Rzany B, Correia O, Kelly JP, Naldi L et al. Risk of Stevens- Johnson syndrome and toxic epidermal necrolysis during first weeks of antiepileptic therapy: a case-control study. The Lancet 1999; 353:2190-2194. 7. Fitzpatrick TB. Dermatology in general medicine. Stevens Johnson syndrome – toxic epidermal necrolysis. In: Freedberg IM, Eisen AZ, Wolff K et al. eds. Dermatology in general medicine. 5th. McGraw–Hill; 1999:644-652. 8. Fawcet RG. Erythema multiforme major in a patient treated with carbamazepine. J Clin Psychiatry 1987; 48:416-417. 9. Roujeau JC, Kelly JP, Naldi L et al. (1995). Medication use and the risk of Stevens Johnson syndrome or toxic epidermal necrolysis. New England Journal of Medicine, december 14,1995; 333 (24):1600-1608. 9 Casos Clin Psiquiatria 2001; 3(1,2):7-9 José Antonio Zago* Sérgio Augusto Monteiro dos Santos** Paulo Sérgio Rocha Pereira*** Josi Aparecida Sartorelli Miranda de Araújo**** Resumo É relatado o caso de paciente do sexo feminino, brasileira, 35 anos, solteira, farmacêutica, católica. Aos 33 anos começou a se automedicar com produto fitoterápico para aliviar sintomas de estresse do trabalho. A princípio utilizava a dose terapêutica diária recomendada (15 ml), mas com o tempo foi aumentando a freqüência e a quan- tidade de uso. O produto era um alcoolato de ervas medicinais, o que resultou em transtornos de comportamento. Chegou a con- sumir, em média, 150 ml da substância diariamente ou cerca de 11,2 unidades (112 gramas) de álcool. É enfatizado o risco de dependência de substância psicoativa, mesmo por profissional de área da saúde, por automedicação com produto fitoterápico. Palavras-chave: Dependência de Álcool; Automedicação; Medicina de Ervas; Fitoterápico. Introdução O DSM-IV apresenta uma série de medicamentos capazes de causar transtornos relacionados a substâncias. Embora não cite substância fitoterápica, alerta que esses medicamentos não se limitam aos ali listados.1 Já apresentamos a história clínica de um paciente que substituiu a bebida alcoólica por um produto fitoterápico. Ele desconhecia que tal produto era um alcoolato de ervas medicinais, cujo uso foi inicia- do indevidamente para aliviar sintomas digestivos. A rigor, o pacien- te recaiu, pois apresentava histórico de dependência de álcool e se encontrava, havia quatro anos e sete meses, em abstinência.2 O presente estudo de caso chama a atenção por se tratar de paciente sem história pregressa de uso, abuso ou dependência de substância, que, dada sua profissão de farmacêutica, possui conheci- mento dos riscos da automedicação, mesmo de produto fitoterápico. Descrição do Caso Identificação Paciente do sexo feminino, brasileira, 35 anos, solteira, farmacêu- tica, católica. HMA Admitida na Clínica Mirante do Instituto Bairral de Psiquiatria – Itapira – SP no final de junho de 2001. Veio em companhia dos pais e aceitando a internação. Esta era a quarta internação em clínicas psiquiátricas, sendo que as anteriores foram involuntárias por apresentar agitação e comportamento agressivo. Iniciara o uso de substância psicoativa havia dois anos, embora na adolescência fizesse uso ocasional de bebida alcoólica em comemorações ou saídas com amigos. Nessa época considerava o consumo de alcoólicos como uso social e controlado, informação esta ratificada pelos genitores. Havia dois anos começara com dificuldades no trabalho, por não sentir-se bem com o ambiente competitivo e tenso de laboratório far- macêutico. A fim de superar essas dificuldades e manter-se em condi- ções de exercer seu trabalho e coordenar os funcionários sob sua res- ponsabilidade, em vez de pedir demissão, como em situações anterio- res, teve a iniciativa de fazer uso de calmante fitoterápico industriali- zado, à base de erva cidreira. Por ser farmacêutica, ela mesma escolheu o produto, automedi- cando-se inicialmente com a dose terapêutica recomendada: 5 ml três vezes ao dia. Aumentou gradativamente a freqüência e a quantia de uso da substância, chegando a consumir 150 ml do produto por dia. Durante um ano utilizou somente a substância fitoterápica e depois, devido ao preço do produto, passou também a consumir outras bebi- das alcoólicas destiladas. Ao aumentar a dosagem de consumo da substância fitoterápica, cerca de dois anos antes, começou a apresentar alterações de compor- tamento. A princípio euforia e conduta facilitada, posteriormente irri- tabilidade, agressividade e esquecimento de atos que cometera. A partir dessas alterações os pais forçaram-na às internações. Com exce- ção da primeira internação ocorrida havia cerca de dois anos, em que Artigos Originais DEPENDÊNCIA DE ÁLCOOL POR AUTOMEDICAÇÃO DE SUBSTÂNCIA FITOTERÁPICA ALCOHOL DEPENDENCE BY SELF-MEDICATION OF PHYTOTHERAPIC SUBSTANCE Casos Clin Psiquiatria 2001; 3(1,2):10-12 10 *Psicólogo do Instituto Bairral de Psiquiatria – Itapira – SP **Psiquiatra do Instituto Bairral de Psiquiatria – Itapira – SP ***Psicólogo do Instituto Bairral de Psiquiatria – Itapira – SP ****Farmacêutica do Instituto Bairral de Psiquiatria – Itapira – SP Endereço para correspondência: Rua Padre José Maurício, 11 Itapira – SP 13974-040 E-mail: joseantoniozago@ig.com.br ou bairral@bairral.com.br Dependência de álcool por automedicação de substância fitoterápica 11 Casos Clin Psiquiatria 2001; 3(1,2):10-12 se manteve abstêmia por quatro meses com naltrexone, nas outras duas internações, também involuntárias, as recorrências ao produto fitoterápico foram imediatas à saída hospitalar. Quando sob efeito da substância, relata apresentar medo de ficar sozinha e de sentir pânico. Tem apresentado transtornos orgânicos como desconforto abdominal. Alternam-se períodos de humor depressivo e mais exaltado, com o discurso voltado para lembranças de fatos passados ligados à insatisfação na vida amorosa e rompimen- tos afetivos. É de opinião que começou a beber “porque no fundo é carente”. Já fez uso de paroxetina e fluoxetina, concomitante ao uso do fitoterápico, sem resultados. Antecedentes pessoais e dados familiares Apresentou terror noturno na infância. Teve bom desempe- nho escolar e é formada em Farmácia. Sempre foi responsável no trabalho e nas empresas onde passou chegou a cargos de chefia. Reside com os pais. Tem irmão mais velho com 38 anos, defi- ciente físico por acidente automobilístico, sem antecedentes de dependência de substância. Refere problemas familiares, isola- mento social. Exame psíquico Ao exame psíquico a paciente apresentava-se com vestes e higiene pessoal cuidadas. Orientada globalmente. Contato pes- soal adequado. Insone. Inapetente. Não se observavam alterações sensoperceptivas. Crítica parcialmente prejudicada. Memórias preservadas. Hipóteses Diagnósticas – Eixo I: Dependência de álcool: uso contínuo F 10.25 Transtorno misto de ansiedade e depressão F 41.2 – Eixo II: Transtorno de personalidade dependente F 60.7 Provas psicológicas – Escala Reduzida de Autoconceito: escore 91 (autoconceito desvalorizado). – Psicodiagnóstico de Rorschach: produção razoável em quantidade, porém a qualidade não é boa pela dificuldade de julgamentos mais precisos e objetivos. Dedica-se de forma exagerada às coisas mais palpáveis e rotineiras, evitando assim tomar contato com seu mundo interno. Neste sentido mostra aumento excessivo do racional e conseqüente repressão dos afetos e emoções, temendo expressão dos impulsos incontro- láveis, com os quais não sabe lidar. Sua vivência é introverti- da, com certo embotamento afetivo decorrente de forte con- trole voluntário que nem sempre é eficiente. Experimenta for-ças e vivências que considera hostis e estranhas a si, criando áreas de conflito e, portanto, causando angústia. No contato com as pessoas adota postura submissa, tentando ser agradá- vel, com medo de que apareçam suas reais características. Como o índice de impulsividade é alto, diante das vivências negativas pode buscar fugas para amenizá-las. Tratamento Psiquiátrico, apoio psicológico individual e grupal e terapia ocupacional, conforme o programa terapêutico da Clínica Mirante.3 Medicada com ansiolítico e antidepressivo. Após quatro semanas, sem intercorrências clínicas ou psi- quiátricas, e cumprindo o programa terapêutico, recebeu alta (melhorada). Foi indicado seguimento ambulatorial psiquiátrico e psicológico. Dados sobre o produto fitoterápico O produto fitoterápico em questão, da Farmacopéia Brasileira, é um alcoolato obtido a partir da dissolução em álcool de sete essências de ervas medicinais, destacando a Melissa offici- nalis (erva cidreira). De acordo com a bula, é indicado como “Calmante nas depressões nervosas e angústias. Antiflatulento”. Na análise da fórmula do produto observa-se que a soma da quantidade dos princípios ativos é de 0,027 ml para cada 5 ml do fitoterápico e a quantidade de álcool para essa dose corresponde a 3,75 ml. Portanto, 0,54% do produto corresponde aos princí- pios ativos, 75% correspondem a álcool e 24,46%, a água.4 Discussão O transtorno misto de ansiedade e depressão como hipótese diagnóstica em comorbidade com a dependência de álcool deveu- se ao fato de que tais queixas eram recentes na história da pacien- te, provavelmente reativas às situações de estresse no ambiente de trabalho e em outras situações na vida. É prudente considerar que muitos pacientes procuram ajuda terapêutica com queixas de ansiedade e depressão, as quais devem ser avaliadas – se são sin- tomas atuais ou do modo de ser do paciente no decorrer da vida.5 Após duas semanas de tratamento em ambiente protegido, a paciente não mais apresentava sinais ou sintomas de ansiedade ou depressão, nem transtorno de conduta. Foi constatado que o fun- cionamento da paciente durante a vida era de personalidade dependente, cujas características persistiram. Conforme os dois tipos dominantes de alcoolistas descritos por Vallejo-Nagera, a paciente é do tipo sensível - ao contrário do tipo social, ativo e expansivo - com sentimentos de insuficiência e inferioridade, com amplas dificuldades para o relacionamento interpessoal. As pessoas desse tipo são tímidas e carentes de afei- ção e de amizade. O álcool proporciona-lhes autoconfiança; sob seu efeito se sentem capazes de superar a timidez e a rígida auto- crítica e a estabelecer relações sociais.6 A paciente começou a apresentar uso, abuso e posteriormen- te dependência de substância a partir dos 33 anos, sendo que aos 35 já se encontrava em sua quarta internação em clínica psiquiá- trica. Isso chama a atenção porque geralmente o curso do alcoo- lismo tem início com episódios de intoxicação na adolescência; a dependência atinge o pico no período que vai dos 20 aos 35 anos de idade, sendo que a maioria dos indivíduos manifesta distúrbio relacionado ao álcool aproximadamente aos 40 anos.1 Apesar das dificuldades da paciente devido ao transtorno de personalidade dependente, as alterações de comportamento somente surgiram depois do consumo da substância fitoterápica, Casos Clin Psiquiatria 2001; 3(1,2):10-12 12 além de frustração provocada por rompimento de relacionamen- to amoroso de sete anos. A paciente tivera bom desempenho escolar. Trabalhou em algumas empresas, porém deixava o traba- lho quando dela era exigida maior liderança. Em seu emprego atual, ao invés de pedir demissão, resolveu fazer uso de um “calmante natural para suportar o estresse do tra- balho” (sic). Passou então a automedicar-se com o produto fito- terápico descrito. Iniciou com a dose terapêutica recomendada, ou seja, 5 ml três vezes ao dia, aumentando com o tempo a fre- qüência e a quantidade de uso do produto. Conforme aumentava a dosagem de uso, começaram a aparecer alterações de compor- tamento, tais como euforia, conduta facilitada e, posteriormente, irritabilidade e agressividade. Estes, provavelmente, sintomas de abstinência. Com o tempo, a paciente passou a usar, em média, cerca de 150 ml do produto por dia. A concentração de álcool da substân- cia fitoterápica utilizada é de 75%. Isso significa que estava con- sumindo aproximadamente 112 gramas de álcool (150 ml x 75% = 112,50) ou 11,2 unidades por dia. Para mulheres, em relação aos riscos à saúde pelo consumo de álcool, o uso de menos de 14 unidades por semana oferece baixo risco para a saúde; de 15 a 35 unidades por semana tem risco moderado e mais de 36 unidades por semana tem alto risco à saúde.7 A paciente estava consumindo em torno de 11 unidades de álcool por dia, ou seja, cerca de 77 unidades por semana, por- tanto mais que o dobro da quantidade considerada de alto risco à saúde, que é de 36 unidades por semana. Vale salientar que a paciente é farmacêutica e com recursos para saber da composição da medicação e dos efeitos colaterais. Pôde-se constatar que a profissional da área da saúde tinha a crença de que a autoprescrição estava correta e que teria o con- trole no uso da medicação, talvez um modo de demonstrar a si mesma autonomia numa área de seu conhecimento. Entretanto, aspectos emocionais envolvidos pareceram embotar a autocrítica da paciente, impedindo-a de utilizar adequadamente seus conhe- cimentos farmacêuticos. Além disso, houve o fato de o produto não ter sido usado conscientemente com o objetivo de consumir o álcool nele contido (75%), mas de obter melhora do quadro de depressão e ansiedade por meio do princípio ativo das ervas con- sideradas calmantes (0,54%). Situações de crises emocionais, dificuldade emocional de buscar ajuda especializada e segurança nos conhecimentos farma- cêuticos, por exemplo não observar com rigor os possíveis efeitos colaterais de um produto fitoterápico, pareceram ser cruciais para o caminho da automedicação e, conseqüentemente, da dependência. Conclusão O caso apresentado evidencia os riscos da automedicação, mesmo em profissional da área de saúde. Também, demonstra que medicamentos compostos de ervas medicinais, usados sem prescrição e supervisão médicas , podem ser de alto risco à saúde. Summary This is a case report of an unmarried woman of 35 years old, Brazilian, pharmaceutical and catholic. She started self-medica- tion with a phytotherapic substance to alleviate stress work symptoms. At first, she took the recommended daily therapeutic dose (15 ml), but she progressively increased the frequency and amount of the substance and consequently the amount used. Since it is a for- mulation of medicinal herbs diluted in alcohol, behavioral disor- ders occurred. She consumed 150 ml/day of the phytotherapic substance or approximately 11,2 units (112 gr.) of alcohol. This study emphasizes on the risk of psychoactive substance dependence for self-medication of a phytotherapic product even for health professional. Key words: Alcohol Dependence; Self-medication; Herbal Medicine; Phytotherapic Substance. Referências Bibliográficas 1. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e esta- tístico de transtornos mentais, DSM-IV. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995: 171, 196. 2. Zago JA, Santos SAM, Salzani JC, Araújo JASM. Dependência de álcool por uso indevido de substância fitoterápica. Psiquiatria na Prática Médica 2000, 33: 84-87. 3. Zago JA, Salzani JC, Santos SAM et al. Programa terapêutico para dependentes de drogas e álcool do Instituto Bairral de Psiquiatria. Jornal Brasileiro de Psiquiatria 1999, 48: 563-571. 4. Teske M, Trentini AMM. Compêndio de fitoterapia. Curitiba: Laboratório Herbarium; 1994: 45. 5. Ventura PR. Transtornos de personalidade. In: Rangé B. org.Psicoterapia comportamental e cognitiva de transtornos psiquiá- tricos. Campinas: Livro Pleno; 2001: 199-218. 6. Vallejo-Nagera JA. Introducción a la psiquiatría. Barcelona: Editorial Cientifico-Medica; 1976: 322. 7. Laranjeira R, Pinsky I. O alcoolismo; mitos & verdades. São Paulo: Contexto; 1997: 13-14. 13 Casos Clin Psiquiatria 2001; 3(1,2):13-15 ESQUIZOFRENIA PARANOIDE Y TRASTORNO DELIRANTE CON TRASTORNOS SENSORIALES: DOS ENTIDADES CON LÍMITES IMPRECISOS PARANOID SCHIZOPHRENIA AND DELUSIONAL DISORDER WITH SENSORIAL MANIFESTATIONS: TWO DISORDERS WITH IMPRECISE LIMITS P. Álvarez Mas* P. Sierra San Miguel** L. Livianos Aldana*** L. Rojo Moreno*** Resumen Los límites entre la esquizofrenia paranoide y el trastorno delirante que presenta trastornos sensoriales continúan siendo imprecisos. Todavía no se ha resuelto la clásica controversia entre los autores que plantean una clara separación entre la psicosis esquizofrénica y los trastornos delirantes, y aquellos que tienden a englobar los trastornos delirantes dentro del contexto nosológi- co de la esquizofrenia. Enmarcada en esta discusión nosológica presentamos el caso de una paciente de 54 años ingresada en tres ocasiones en la sala de psiquiatría de nuestro hospital. Finalmente, analizamos el diagnóstico diferencial desde la pers- pectiva de diferentes autores y de los manuales diagnósticos actuales (DSM IV y CIE 10). Palabras-clave: Esquizofrenia Paranoide; Trastorno Delirante; Trastornos Sensoriales. Introduccion Pese a los sucesivos esfuerzos de autores como Kahlbaum1 Kraepelin2, Bleuler3 o Meyer4, los límites entre la esquizofrenia paranoide y la paranoia que presenta trastornos sensoriales conti- núan siendo imprecisos. Cabe destacar dos posturas contrapues- tas clásicamente, por una parte la escuela francesa que plantea una clara separación entre la psicosis esquizofrénica y los trastor- nos delirantes y por otra, la escuela alemana y americana que tien- den a englobar todos los delirios de evolución crónica dentro del contexto nosológico de las esquizofrenias, considerándolos como un subtipo más. Ya Kraepelin intentó ubicar nosológicamente los cuadros paranoides, modificando la clasificación en las sucesivas ediciones de su Tratado, bien incluyéndolos o excluyéndolos den- tro del concepto de demencia precoz. Así en la octava edición, trazó el cuadro sintomático de la paranoia definiéndolo como el desarrollo insidioso de un sistema delirante inconmovible y per- sistente, condicionado internamente, que transcurre con comple- ta conservación de la claridad y orden en el pensar, querer y obrar. Por el contrario, las formas de “demencia precoz” condu- cirían a un estado de defecto con pérdida de la capacidad de jui- cio, alteraciones en el afecto y disminución de la energía.5 Sin embargo, Bleuler no consideró una distinción tan marcada entre ambos trastornos y definió la paranoia del siguiente modo: “Aparte del sistema delirante y de todo cuanto se refiera a éste, su lógica y el curso de sus ideas aparecen intactas ante nuestros medios de investigación. Sensación y percepción se mantienen también intactas. Faltan casi siempre las alucinaciones, pero no puede decirse que se hallen completamente excluidas. Éstas pue- den aparecer en intensos estados de exaltación o incluso éxta- sis…” Para Bleuler la esquizofrenia no tiene necesariamente un curso deteriorante, a diferencia de lo expuesto por Kraepelin para la demencia precoz.2 En el contexto de esta interesante discusión nosológica se sitúan casos como el de la paciente que presentamos. Caso clínico Mujer de 54 años, divorciada, con antecedentes de tres ingre- sos involuntarios en una sala de psiquiatría y seguimiento ambu- latorio desde que finalizó el primer ingreso. Como personalidad premórbida destaca una tendencia a la suspicacia y desconfianza desde la juventud, que a los 30-35 años comenzó a agravarse y traducirse en conductas extrañas (entre ellas proteger toda su casa con rejas por temor a los vecinos al darse cuenta de que “pasaban cosas raras”). La paciente ingresó por primera vez en la sala de psiquiatría de nuestro hospital a los 49 años. Presentaba pseudoalucinacio- nes auditivas, ilusiones perceptivas, falsos reconocimientos, ideas delirantes de perjuicio y de contenido extravagante, interpreta- ciones delirantes de la realidad, miedo intenso e insomnio. Pasados tres días del inicio de la toma de neurolépticos, desapa- reció la certeza de persecución o conspiración y se redujeron las alteraciones perceptivas. Al finalizar el ingreso comenzó a ser atendida de forma regular en el centro de salud mental. Durante seis años, hasta el momento en el que se produjo el segundo ingreso, permaneció asintomática realizando crítica del delirio. En el nuevo ingreso presentaba trastornos de la conducta derivados de las ideas delirantes y negativa a ingesta de medica- *Psicólogo Interno Residente del Hospital Universitario La Fe. Valencia. **Psiquiatra del Centro de Salud Mental de Catarroja. Valencia. ***Psiquiatra del Servicio de Psiquiatría del Hospital Universitario La Fe. Valencia. ****Profesor titular de psiquiatría. Endereço para correspondência/dirección: Paloma Álvarez Mas C/ Poeta Querol nº 10, puerta 10. Valencia C.P.: 46002 España. ción. La psicopatología difería del anterior internamiento, ya que no presentaba falsos reconocimientos, ni ideas delirantes de carácter extravagante. En cambio, aparecían alucinaciones audi- tivas funcionales, gustativas y olfativas junto con ideas delirantes de filiación y referencia. Con la medicación neuroléptica, al fina- lizar el ingreso, habían desaparecido los trastornos de conducta y las alteraciones sensoperceptivas, pero persistía la ideación deli- rante sin modificar. Tras unos meses de abandono de la medicación, a los 54 años, se produjo el tercer y último ingreso de la paciente, hasta el momento. Volvieron a aparecer pseudoalucinaciones auditivas, ideas delirantes de filiación y perjuicio. Presentaba así mismo, dos nuevos fenómenos psicopatológicos, vivencias de influencia y de imposición del pensamiento. Para finalizar hay que señalar que durante los años transcur- ridos desde el primer ingreso, no ha existido un deterioro impor- tante en el funcionamiento sociolaboral de la paciente. Discusión Como hemos señalado en la introducción, a lo largo de la his- toria ha existido una interesante controversia en torno a la deli- mitación entre los cuadros esquizofrénicos y los cuadros de para- noia. Remitiéndonos al concepto original de la esquizofrenia, Kraepelin en su Tratado de las enfermedades mentales, introdujo el término “demencia precoz”, expresión que ya había utilizado Benedict Morel (“démence précoce”) para describir a los pacien- tes que habían enfermado en la adolescencia y se habían deterio- rado con el paso del tiempo.6 Kraepelin la consideró una psicosis funcional junto con la paranoia y la psicosis maníaco-depresiva. Reunió el patrón hebefrénico, junto con el catatónico y el para- noide y destacó la extravagancia de las ideas delirantes presentes. Una de las características fundamentales sería que conduciría a un estado de defecto, lo que la diferenciaría de la psicosis manía- co-depresiva, con un curso deteriorante a largo plazo y síntomas clínicos frecuentes del tipo alucinaciones y delirios.3 Por su parte Bleuler, quien acuñó el término esquizofrenia, aportó una visión distinta de la enfermedad, buscó criterios psicológicos comunes y trastornos elementales de las grandes funciones mentales (asocia- ción de ideas, afectividad, contacto con el mundo exterior y ambivalencia) que se encontrarían en la base de la demencia pre- coz llegando a la noción de esquizofrenia, a su vez defendió una evolución más variable, con casos residuales próximos a la cura- ción. Además Bleuler, diferenciándose también en este punto de Kraepelin, señaló que las
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