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Modalidades das Obrigações

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Modalidades das Obrigações (I)
Capítulo 3: Parte 1
Modalidades das Obrigações (I)
Introdução
Agora que você já conhece toda a estrutura da relação obrigacional, chegou o momento de começar a estudar as modalidades das obrigações e quais as implicações práticas de saber as suas classificações.
Esse capítulo apresentará as modalidades das obrigações conforme a natureza da prestação (dar, fazer e não fazer) e quanto ao conteúdo (obrigações de meio e de resultado), demonstrando, por meio de exemplos do dia a dia e de decisões judiciais, a importância da classificação para a correta aplicação do regime jurídico de cada espécie de obrigação.
Objetivos
Compreender o conceito de obrigação de dar coisa certa;
Identificar a responsabilidade pela perda e deterioração do bem na obrigação de dar coisa certa;
Diferenciar a obrigação de dar coisa certa e de dar coisa incerta e aplicar corretamente as regras atinentes aos riscos e responsabilidade pelo perecimento do bem;
Distinguir as obrigações de dar e fazer;
Compreender a tutela específica das obrigações de dar, fazer e não fazer;
Compreender a diferença entre as obrigações de meio e de resultado e a relevância prática da distinção para a averiguação da responsabilidade do devedor.
3.1 Obrigação de dar coisa certa
3.1.1 Conceito, natureza jurídica e características
A classificação tripartite (ou tricotômica) divide as obrigações em dar, fazer ou não fazer é a mais antiga no Direito Obrigacional. Obrigação de dar é espécie de obrigação positiva por meio da qual o devedor tem o dever de entregar uma coisa (bem) ao credor. O verbo dar aqui assume acepção bastante ampla: pode significar entregar a posse ou a detenção de um bem, restituir ou transferir a propriedade.
COMENTÁRIO
A doutrina aponta a existência de ao menos 3 modalidades de obrigação de dar: a que envolve apenas a transferência da posse ou da detenção, a que se refere à restituição de um bem que está em poder do devedor e a que resulta na transferência da propriedade. Renan Lotufo, amparado na doutrina de Agostinho Alvim, ensina que há obrigação de dar na modalidade transferir quando "o credor receber a coisa para instituir um direito real", obrigação de dar na modalidade entregar sempre o alvo quando não for a transmissão da propriedade da coisa, "mas, sim, simplesmente facilitar o uso, conferir posse ou a mera detenção pelo credor", e obrigação de dar na modalidade restituir quando o devedor tiver "o dever de restituir a coisa sobre a qual este último tem direito fundado em título". (Código civil comentado. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 19-20).
 
Há obrigação de dar (obligatio dandi), por exemplo, no contrato de locação, em que o locador tem o dever de entregar a posse do imóvel ao locatário; também no contrato de depósito, em que o depositário tem o dever de restituir ao depositante o bem depositado; no contrato de compra e venda, em que o comprador tem o dever de transferir a propriedade do bem ao comprador. O universo das obrigações de dar é bastante amplo!
 
Vale ressaltar, como leciona Rosa Nery e Nelson Nery, que, em nosso sistema, a obrigação de dar constitui-se num compromisso de entrega de coisa e não a efetiva entrega da coisa. Vale dizer, a obrigação de dar gera um crédito e não um direito real. Esse sistema, inspirado no modelo alemão, diferencia–se do francês, em que o contrato é translativo do domínio.
Isso significa que, no sistema brasileiro, em uma obrigação de dar o credor tem o direito que exigir do devedor conduta voltada à entrega, restituição ou transferência da posse ou propriedade do bem, mas, por si, não gera direito real. A mera celebração de um contrato de compra e venda de um bem móvel, por exemplo, não faz do credor o proprietário da coisa, mas sim credor do direito de exigir que o devedor transfira a coisa à sua propriedade; a transferência da propriedade ocorrerá com a tradição, no caso dos bens móveis, e com o registro no Cartório de Registro de Imóveis, no caso de bens imóveis.
Isso traz consequências práticas bastante relevantes. Já foi visto que o direito real, diferentemente do direito pessoal, tem oponibilidade erga omnes. Assim, voltando ao exemplo da compra e venda de um imóvel, imagine que A vende a B um apartamento, porém B não realiza o devido registro da aquisição no Cartório de Registro de Imóveis. Alguns dias depois, A vende o mesmo imóvel a C, que promove o registro no CRI. Neste caso, B não poderá opor o seu contrato a C para exigir a propriedade do imóvel, ainda que tenha sido anterior e que A tenha agido de má-fé. Quem adquiriu o direito real de propriedade foi C e B pode apenas exigir de A a reparação pelos danos materiais e morais sofridos. Outra importante consequência é a teoria dos riscos pela perda ou deterioração da coisa, que será estudada mais adiante.
SAIBA MAIS
A obrigação de dar pode ser de dar coisa certa e de dar coisa incerta. Interessa-nos nesse momento as obrigações de dar coisa certa (as obrigações de dar coisa incerta serão estudadas mais adiante).
CONCEITO
Obrigação de dar coisa certa, também chamada de obrigação específica, é aquela em que o objeto da prestação é certo e determinado, individualizado, apresenta peculiaridades próprias que o distingue dos demais do mesmo gênero e espécie.
É o caso, por exemplo, de obrigações envolvendo imóveis (e.g. locação, compra e venda, comodato, doação e troca). Imóvel é bem perfeitamente individuado: apresenta área, localização e vizinhança próprias. Mesmo lotes de terreno, de idêntica área e na mesma rua, em um condomínio fechado podem ser diferenciados pelos vizinhos contíguos, que possivelmente não serão os mesmos.
ATENÇÃO
As obrigações de pagar dinheiro, também chamadas de obrigações pecuniárias ou obrigações de pagar quantia certa são espécies de obrigações de dar. Por opção metodológica de seguir a sequência do Código Civil, as regras específicas sobre as obrigações pecuniárias serão estudadas no capítulo referente ao pagamento.
Na obrigação de dar coisa certa, portanto, o interesse do credor está voltado à prestação de entrega, restituição ou transferência de bem individuado, de existência atual (e.g. compra de uma água de coco na praia) ou futura (e.g. compra da próxima safra de um produtor de grãos). Dessa afirmação é possível fazer uma importante conclusão que permeia toda a teoria do pagamento das obrigações:
O credor não está obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa (art. 313, CC).
As obrigações de dar coisa certa estão disciplinadas nos artigos 233 a 242, CC. Por razões didáticas, estudaremos separadamente as obrigações de entregar/transferir (ou obrigações de dar propriamente ditas), previstas nos artigos 233 a 237, CC, e as obrigações de restituir (artigos 238 a 242, CC).
O art. 233, CC, consagra o princípio da acessoriedade (ou princípio da gravitação jurídica) ao estatuir que "a obrigação de dar coisa certa abrange os acessórios dela, embora não mencionados, salvo se do contrário resultar do título ou das circunstâncias do caso".
Assim, regra geral, a obrigação de dar coisa certa abrange tanto a coisa (bem principal) quanto os seus acessórios (frutos, produtos e benfeitorias). Esse dispositivo deve ser complementado com o do art. 94, CC, que excetua as pertenças do princípio da gravitação jurídica.
Vale rememorar as espécies de bens acessórios previstas no Código Civil: frutos, produtos, benfeitorias e pertenças.
Fruto
É "toda utilidade que um bem produz de forma periódica e cuja percepção mantém intacta a substância do bem que a produziu" (CURIA, Luiz Roberto e RODRIGUES, Thais de Camargo (colaboradores). Direito civil: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 117). Podem ser percebidos (ou colhidos), pendentes, percipiendos, estantes e consumidos.
Produtos
Benfeitoria
Pertenças
Temos, portanto, que:
– Os frutos, produtos e benfeitorias devem ser entregues/transferidos ao credor junto com o bem principal, a não ser que as partes tenham pactuado em sentido contrário
ou que as circunstâncias do caso não permitam (o que deve ser interpretado conforme os usos e costumes do local onde foi celebrado o negócio). Por exemplo, se A adquiriu todo o rebanho de B, estão incluídas as fêmeas prenhes, ainda que as partes não tenham estabelecido isso expressamente.
– As pertenças não devem ser entregues/transferidas junto com o bem principal, salvo se a lei, as partes ou as circunstâncias do caso estabelecerem em sentido diverso.
Imagine uma compra e venda de imóvel residencial. Todas as benfeitorias realizadas no imóvel até a data da celebração do negócio devem estar presentes no momento da tradição. Aliás, isso é da própria natureza da obrigação de dar coisa certa, já que as benfeitorias contribuem para a individuação da coisa. Os móveis que guarnecem o imóvel, todavia, não acompanharão o bem principal, a não ser que as partes tenham incluído no contrato também as pertenças.
E se entre a celebração do negócio e a tradição o bem tiver produzido frutos, quem terá direito a eles?
O problema é solucionado por uma regra bastante simples: até o momento da tradição, a coisa pertence ao devedor. Disso infere-se que os frutos colhidos até o momento da tradição são do devedor, ao passo que os frutos pendentes pertencerão ao credor (art. 237, parágrafo único, CC). Também pertencerão ao devedor os frutos percipiendos, estantes e consumidos. Já os frutos colhidos com antecipação deverão ser restituídos ao credor (art. 1.214, parágrafo único, CC).
Situação análoga é aquela em que, entre a celebração do negócio e a tradição, o bem houver sido melhorado ou acrescido. À regra de que até o momento da tradição a coisa pertence ao dono deve ser somado o princípio da vedação do enriquecimento sem causa: o devedor poderá exigir o aumento do preço proporcional à valorização da coisa e, se o credor não concordar em pagar a complementação, a obrigação pode ser resolvida.
SAIBA MAIS
O art. 237, caput, CC, utiliza as expressões melhoramentos e acrescidos para se referir respectivamente a:
"Tudo quanto opera mudança para melhor, valorizando a coisa, dando-lhe mais utilidade, emprestando-lhe maior comodidade, atribuindo-lhe maior beleza ou, por qualquer forma, melhorando suas condições e estado físico" e "tudo quanto se ajunta, acrescenta, aumenta a coisa".
(Carvalho, 2007, p. 505) e (Carvalho, p. 505)
Nesse sentido, as benfeitorias podem ser consideradas melhoramentos e as acessões naturais (aluvião e avulsão) são exemplos de acrescidos.
SAIBA MAIS
3.1.2 Responsabilidade pela perda e pela deterioração da coisa
 
Suponha que você comprou em uma galeria de arte uma tela de um famoso pintor, mas somente poderia levá-la para casa após 3 (três) semanas, quando terminasse a exposição. Poucos dias antes da data marcada para a entrega da obra, porém um incêndio tomou conta da galeria e todas as obras que estavam em exposição, inclusive a que você havia adquirido, foram destruídas.
 
Nesse caso, o que ocorre com a obrigação?
Os artigos 234 a 236, CC, disciplinam a responsabilidade pela perda e pela deterioração da coisa. Perda é a destruição ou inutilização completa do bem, enquanto deterioração consiste na "danificação da coisa, afetando o seu valor econômico". Por ser obrigação de dar coisa certa, o objeto da prestação não pode ser substituído por outro, pelo que a primeira conclusão que pode ser tomada é a de que a obrigação deverá ser resolvida.
As regras atinentes à responsabilidade pela perda e pela deterioração da coisa levam em consideração dois critérios:
a) O momento em que ocorreu a perda ou a deterioração (se antes ou depois da tradição); e
b) A culpa do devedor (tomada a culpa aqui em seu sentido amplo, abrangendo tanto o dolo quanto a culpa em sentido estrito).
Já sabemos que até a tradição a coisa pertence ao devedor e que isso é determinante para identificar a quem pertence os frutos gerados pelo bem. Como outra face da mesma moeda, podemos inferir que, se o devedor lucra com os frutos colhidos, os melhoramentos e acrescidos, ele também assume os prejuízos decorrentes da perda e da deterioração. Por outro lado, a concepção da obrigação como uma relação complexa impõe ao devedor o dever anexo de guarda e conservação da coisa até o momento da tradição.
Assim é que existe um princípio geral de Direito que diz que a coisa perece para o seu dono (res perit domino). O credor ainda não tem direito sobre a coisa (jus in re), mas tão apenas o direito de vir a ter a coisa (jus ad rem), não podendo, portanto, suportar a perda ou a deterioração. Com base nessa premissa e nas variáveis apontadas acima (momento da tradição e culpa do devedor), é possível compreender as regras constantes dos artigos de 234 a 236, CC, conforme o quadro abaixo:
Perda total (perecimento) da coisa (art. 234, CC):
	
	ANTES DA TRADIÇÃO
	DEPOIS DA TRADIÇÃO
	SEM CULPA DO DEVEDOR
	A coisa perece para o seu dono. Como antes da tradição o dono é o devedor, ele suportará os ônus da perda. Nesse caso, a obrigação é resolvida e as partes retornam ao estado anterior (status quo ante), com a restituição do valor eventualmente já pago pelo credor.
	A coisa perece para o seu dono. Tendo ocorrido a tradição, a coisa passou a pertencer ao credor, que nada pode reclamar. Vale referir que, se a perda decorrer de vícios ou defeitos ocultos, a solução é a encartada no art. 441, CC (se a obrigação for decorrente de contrato comutativo ou doação onerosa).
	COM CULPA DO DEVEDOR
	Além da resolução da obrigação e do restabelecimento do status quo ante, o devedor, que descumpriu culposamente o dever de manter a coisa íntegra, responderá também pelos prejuízos patrimoniais (danos emergentes e lucros cessantes) e extrapatrimoniais, que o credor tiver suportado.
	O art. 234, CC, não disciplina especificamente essa hipótese, mas o princípio da boa-fé objetiva impõe ao devedor a responsabilidade integral por todos os prejuízos sofridos pelo credor. Não se fala em resolução da obrigação porque esta foi extinta com o pagamento; fala-se em reparação dos danos, que, por óbvio, incluem o valor que o credor pagou pelo bem. Se, todavia, nos contratos civis comutativos ou doações onerosas a perda decorrer de vício ou defeito oculto conhecido pelo devedor, o credor poderá exigir, além da resolução do contrato, o ressarcimento das perdas e danos (art. 443, CC).
Deterioração (perda parcial) da coisa (art. 235 e 236 , CC):
	
	ANTES DA TRADIÇÃO
	DEPOIS DA TRADIÇÃO
	SEM CULPA DO DEVEDOR (ART. 235, CC)
	Novamente a regra res perit domino é determinante. O credor terá a alternativa de aceitar a coisa no estado em que se encontra, com abatimento do preço proporcional à deterioração; ou resolver a obrigação, com retorno ao estado anterior e consequente devolução, pelo devedor, do valor eventualmente já pago.
	Embora o art. 235, CC, não cogite esta hipótese, a regra geral de que a coisa perece para o seu dono permite solucionar a questão. Com a tradição, a coisa passa a pertencer ao credor e, por isso, ele terá de suportar a deterioração, sem poder imputar qualquer responsabilidade ao devedor. Se, porém, a deterioração decorrer de vício ou defeito oculto e a obrigação tiver por origem contrato comutativo ou doação onerosa, o art. 442, CC, faculta ao credor permanecer com a coisa, exigindo do devedor o abatimento proporcional do preço.
	COM CULPA DO DEVEDOR (ART. 236, CC)
	Permanece ao credor a opção de escolher entre a resolução da obrigação ou a aceitação da coisa com abatimento proporcional do preço. Todavia, o devedor terá de reparar todos os prejuízos patrimoniais (danos emergentes e lucros cessantes) e extrapatrimoniais suportados pelo credor.
	O art. 236, CC, também não trata especificamente esta hipótese, mas novamente a boa-fé objetiva permite concluir que o devedor terá que responder por todos os prejuízos causados ao credor. Aqui também podem ser aplicados os arts. 441, 442 e 443, CC, já comentados anteriormente.
Compreendidas as regras de imputação de responsabilidade, voltemos à pergunta
formulada no exemplo dado no início deste tópico:
Como fica a obrigação de transferir a propriedade da obra de arte que foi completamente destruída no incêndio?
A perda da coisa ocorreu antes da tradição e, a princípio, sem culpa do devedor. Logo, a obrigação será resolvida e o preço que você pagou pela obra de arte será restituído. Se, porém, ficar comprovado que o incêndio foi provocado pelo próprio devedor (para, por exemplo, receber o dinheiro do seguro), além da resolução da obrigação e da devolução do preço pago, o devedor terá que indenizar os danos suportados por você (e.g. se foram adquiridas moldura e proteção de vidro para a tela, o devedor terá que ressarcir o valor gasto por você).
Deve ser ressalvado que, em determinadas situações, a lei determina que, mesmo tendo havido caso fortuito ou força maior, hipóteses mais comuns de perda ou deterioração da coisa sem culpa do devedor, este ainda assim responderá pelos prejuízos, como ocorre, por exemplo, na hipótese do art. 399, CC (o que será estudado mais adiante). Outrossim, as regras atinentes à responsabilidade da perda e da deterioração são dispositivas, ou seja, as partes podem estabelecer critérios e soluções diferentes, conforme seus interesses.
3.1.3 A obrigação de restituir
A obrigação de restituir é uma espécie de obrigação de dar coisa certa por meio da qual o devedor se obriga a devolver ao credor bem que está em seu poder.
EXEMPLO
Por exemplo, no contrato de locação, o locatário tem o dever de restituir o imóvel ao locador no término do prazo; no contrato de depósito, o depositário deve devolver o bem que está sob sua guarda.
O Código Civil reserva os artigos 238 a 242 para tratar das obrigações de restituir.
Tal qual ocorre na obrigação de entregar/transferir, na obrigação de restituir a responsabilidade pela perda e pela deterioração também parte da premissa de que a coisa perece para o seu dono (res perit domino) e as regras variam conforme a culpa do devedor. Observe, porém, que na obrigação de restituir o dono não é o devedor, mas sim o credor.
Na hipótese de perda total, o art. 238, CC, determina que, se o perecimento ocorrer antes da tradição e sem culpa do devedor, o credor suportará o prejuízo, sem que o devedor tenha que reparar os danos. Obviamente, os direitos do credor são resguardados até a data da perda.
Por outro lado, se a coisa se perder por culpa do devedor, ele deverá reparar integralmente os danos sofridos pelo credor, tanto pelo valor da coisa quanto pelos demais prejuízos de natureza patrimonial ou extrapatrimonial, conforme determina o art. 239, CC.
 
Imagine, por exemplo, que Tício precisou fazer uma viagem longa e por isso deixou o seu animal de estimação com Caio. Ao retornar de viagem, Tício descobriu que o cão sofreu um ataque cardíaco fulminante e faleceu. Neste caso, Caio nada terá que reparar a Tício, pois não houve culpa sua na morte do animal. Se, todavia, Caio resolveu passear com o cachorro sem uso de coleira e guia e, por descuido seu, o cachorro morreu atropelado, Caio deverá indenizar Tício tanto no valor do animal quanto nas perdas e danos sofridos.
 
Se ocorrer deterioração do bem, novamente prevalece a regra de que a coisa perece para o seu dono: se não houver culpa do devedor, o credor terá que aceitar a coisa no estado em que se encontra, sem direito a qualquer reparação; se houver culpa do devedor, o credor terá direito à reparação pelos prejuízos patrimoniais e extrapatrimoniais sofridos.
Vale ressaltar que o art. 240, CC, ao determinar que a deterioração da coisa por culpa do devedor seguirá a regra do art. 239, CC, que trata da perda, aparentemente retira do credor a possibilidade de ficar com a coisa deteriorada. Todavia, a omissão da lei não elimina a alternativa de o credor ficar com o bem deteriorado no estado em que se encontrar, mais a indenização pelas perdas e danos.
Com relação aos melhoramentos e acréscimos, os critérios legais são semelhantes aos da obrigação de dar stricto sensu. Assim como o credor suporta a perda e a deterioração não culposa, ele também se beneficia dos melhoramentos e acréscimos feitos no bem. O Código Civil, com vistas a evitar o enriquecimento sem causa, apenas diferencia as hipóteses em que os melhoramentos e acréscimos ocorreram com ou sem despesa ou trabalho do devedor:
O devedor teve despesa ou agrega valor ao bem
Se o devedor teve despesa ou agregou valor ao bem com o seu trabalho (art. 242, caput, CC), o credor deverá ressarcir o devedor conforme as regras relativas às benfeitorias realizadas pelo possuidor de boa-fé ou de má-fé previstas nos arts. 1.218 a 1.222, CC, sintetizadas no quadro abaixo:
	POSSE/BENFEITORIA
	NECESSÁRIA
	ÚTIL
	VOLUPTUÁRIA
	BOA-FÉ
	Ressarcimento do valor da benfeitoria + retenção do bem enquanto não houver o pagamento do valor da benfeitoria.
	Ressarcimento do valor da benfeitoria + retenção do bem enquanto não houver o pagamento do valor da benfeitoria.
	Direito a levantar a benfeitoria (jus tollendi), sem direito de retenção.
	MÁ-FÉ
	Apenas restituição do valor gasto pelo possuidor.
	---
	---
Assim, se durante a vigência de um contrato de comodato o comodatário vier a realizar benfeitorias úteis e/ou necessárias no imóvel, terá direito à indenização pelo valor das benfeitorias, bem como poderá reter o bem até que a indenização seja paga; se, todavia, as benfeitorias úteis e necessárias forem realizadas após o término do prazo, momento em que cessou a boa-fé do comodatário, o comodatário terá direito ao ressarcimento do valor dispendido apenas nas benfeitorias necessárias, sem poder reter o bem.
Melhoramento e acréscimo sem interferência do devedor
3.2 Obrigação de dar coisa incerta
3.2.1 Conceito, natureza jurídica e características
A obrigação de dar coisa incerta é aquela em que a coisa objeto da prestação de dar é indeterminada (porém sempre determinável), genérica, definida apenas pelo gênero e pela quantidade (art. 243, CC). Na formação da obrigação, a coisa é meramente determinável por critérios elencados pelo credor e devedor; apenas em um momento posterior é que o bem será individualizado por meio de um ato de escolha entre todas as coisas do mesmo gênero das quais dispõe o devedor. Como afirma Caio Mário da Silva Pereira, o caráter de indeterminação do objeto da prestação é transitório e finda uma vez feita a escolha. Se não houvesse possibilidade de determinação da prestação, o negócio jurídico seria inválido (art. 104, II, CC).
Assim como a obrigação do locador de entregar a posse do imóvel é de dar a coisa certa (imóvel é bem determinado e individuado), a obrigação de entregar 3 (três) dúzias de rosas vermelhas é de dar a coisa incerta, eis que esta é identificada pelo gênero (rosas vermelhas) e pela quantidade (3 dúzias).
Perceba que, no primeiro exemplo, só serve ao credor (locatário) aquele determinado imóvel. Já no segundo exemplo, o credor (comprador) não quer uma rosa específica, mas sim qualquer rosa vermelha, desde que em quantidade suficiente para solver a obrigação; depois de ajustada a obrigação, caberá a alguém (credor, devedor ou terceiro, dependendo da situação) selecionar quais serão as rosas a serem entregues ao devedor.
A redação do art. 243, CC, por estipular que a coisa incerta é indicada pelo gênero e pela quantidade, não está imune a críticas. Alguns doutrinadores, como Álvaro Villaça de Azevedo, afirmam que o que é fundamental para identificar a coisa incerta é a espécie e não o gênero. Nessa linha de raciocínio, no exemplo anterior as rosas vermelhas seriam a espécie de flor (gênero) que interessa ao credor; o devedor não se desobrigaria entregando outro tipo de flor, mas tão somente as rosas vermelhas.
Essa, no entanto, não é a opinião que parece prevalecer na doutrina. Nesse ponto, Flávio Tartuce esclarece que:
"Não há problemas na atual redação dos textos, que devem ser mantidos pelo costume doutrinário de trabalho quanto à obrigação genérica".
(Tartuce, p. 60)
COMENTÁRIO
Entendemos aqui que a redação do art. 243, CC, não
merece reparos, eis que o dispositivo em comento fala que a coisa incerta será indicada ao menos pelo gênero e pela quantidade. Em algumas obrigações, o gênero e a quantidade podem realmente serem suficientes para identificar a coisa, dependendo do acordo de vontade feito entre credor e devedor.
EXEMPLO
Suponha, por exemplo, que Tício deseje adquirir bovinos de um criador que tem em seu rebanho animais da raça Hereford e da raça Nelore. Tício e o criador podem ajustar a compra de 20 animais, sem identificar a raça, assim como podem combinar a aquisição de 10 bovinos da raça Hereford e 10 da raça Nelore. O que é realmente relevante é que haja elementos suficientes para que o objeto possa ser determinado no futuro. Veja que a obrigação de entregar 10 animais da raça Hereford e 10 da raça Nelore não faz do negócio uma obrigação de dar coisa certa, pois alguém terá que identificar quais animais serão separados do rebanho para serem entregues ao credor.
Em todo caso, tramita atualmente no Congresso Nacional o PL nº 699/2011, de autoria do deputado Arnaldo Faria de Sá, que, dentre outras propostas, sugere a alteração do art. 243, CC, para a coisa incerta será indicada, ao menos, pela espécie e pela quantidade.
CURIOSIDADE
Vale ressaltar que o que é incerto (determinável) é a coisa (objeto mediato da obrigação) e não a prestação (objeto imediato da obrigação). Paulo Lôbo leciona que "a certeza e a incerteza são relativas à coisa e não à dívida ou à obrigação decorrente. O objeto da dívida (e da obrigação) é a prestação de dar, e, portanto, certa; o objeto da prestação pode ser coisa incerta. A incerteza nunca é total porque a coisa será indicada ao menos pelo gênero (exemplo, papel) e a quantidade (exemplo, x resmas de papel)".
SAIBA MAIS
3.2.2 A concentração do débito
CONCEITO
Na obrigação genérica (dar coisa incerta) haverá sempre um ato de escolha, de seleção da coisa que, dentre todas as outras que atendam aos critérios de determinação estabelecidos pelas partes, será entregue ao credor. Essa escolha é chamada de concentração. A concentração do débito na obrigação genérica, portanto, é um ato unilateral voltado à individualização da coisa.
Aqui vale lembrar a noção de obrigação como um processo: na obrigação de dar coisa incerta, a concentração é apenas um ato típico concatenado aos demais para atingir a satisfação do credor. A incerteza, portanto, é apenas um dos estágios de desenvolvimento da relação obrigacional.
As partes devem determinar a quem caberá fazer a concentração da dívida. No silêncio das partes, o art. 244, CC, estatui que a concentração ficará a cargo do devedor. A regra do art. 244, CC, é supletiva: no título da obrigação constará se a escolha cabe ao credor, ao devedor ou mesmo a um terceiro e, se nada tiver sido ajustado nesse sentido, a concentração deverá ser feita pelo devedor.
Quem quer que tenha o dever de escolher, no entanto, não poderá agir sem limites. A lei exige que a concentração atenda a um padrão mínimo de razoabilidade na medida em que estabelece que o devedor não poderá dar ao credor a coisa pior, nem poderá ser obrigado a dar a melhor (art. 244, CC). A obrigação recai sobre a qualidade média dos bens disponíveis do devedor (princípio do meio termo ou da qualidade intermediária).
Digamos que uma fábrica de polpa de frutas congelada (credor) adquira duas toneladas (quantidade) de acerola (gênero) de um determinado produtor (devedor). O produtor não poderá entregar à fábrica aqueles frutos que já estiverem impróprios para consumo, mas também não será compelido a entregar as melhores frutas. Cumpre ressaltar que essa é uma norma dispositiva e nada impede que as partes estipulem padrões de qualidade que devem ser observados no momento da concentração.
Enquanto não houver a concentração, a obrigação ainda é incerta. Todavia, uma vez procedida a escolha e cientificado o credor desta, a obrigação passa a ser de dar coisa certa (art. 245, CC) e será regida pelas regras constantes dos artigos 233 a 242, CC (antes estudadas).
Há três teorias para determinar o momento em que a obrigação deixa de ser genérica e passa a ser específica:
Teoria da escolha
Em que a concentração se consuma no momento em que a seleção da coisa foi feita.
Teoria do envio
Teoria da entrega
ATENÇÃO
O Código Civil adotou a teoria da escolha, acrescentando um requisito: o credor tem que ser cientificado da concentração. É desnecessário que os bens tenham sido enviados e, consequentemente, irrelevante que tenham sido entregues ao credor. Basta que o devedor os selecione e comunique, mesmo que verbalmente, ao credor. Na prática, essa comunicação pode ocorrer por envio de fatura, notificação por escrito etc.
3.2.3 Responsabilidade pela perda e pela deterioração da coisa incerta
Diferentemente da obrigação de dar coisa certa, em que a perda ou a deterioração da coisa resulta em resolução da obrigação ou abatimento proporcional do preço, na obrigação de dar coisa incerta, o perecimento total ou parcial da coisa não interfere no vínculo jurídico.
Em se tratando de obrigação genérica, a regra de que a coisa perece para o seu dono soma-se à regra de que o gênero não perece (genus nunquam perit). Significa dizer que, enquanto durar o período de incerteza (ou seja, enquanto o credor não houver sido notificado da concentração), a obrigação tem que ser cumprida, mesmo tendo ocorrido perda ou deterioração da coisa, culposa ou não culposa.
Explica-se. Imagine que o produtor de acerola que foi referido no item anterior colha mensalmente cinco toneladas da fruta. Se, por razões climáticas, a produção do mês tiver sido inferior à esperada, ainda assim ele terá que entregar as duas toneladas vendidas à fábrica de polpa de frutas congelada. O produtor não poderá eximir-se de realizar a prestação, mesmo tendo ocorrido força maior, uma vez que ele poderá concentrar o débito no que restou de sua produção. E ainda que o comprometimento de sua safra tivesse sido maior do que o débito, ele poderia adquirir acerola de outro produtor para entregar à fabrica, eis que o gênero não perece.
Perceba que o devedor arca com o prejuízo da perda ou da deterioração (res perit domino) e permanece obrigado a satisfazer o interesse do credor, ainda que o perecimento total ou parcial tenha decorrido de caso fortuito ou força maior (art. 246, CC). Essa regra, porém, não é absoluta e deve ser entendida com algum temperamento. Isso porque há obrigações genéricas que são restritas e, por isso, fogem à regra de que o gênero não perece. É o caso, por exemplo, de safras especiais de azeites ou de vinhos.
 
Digamos que o comprador encomende 15 (quinze) garrafas de um vinho de safra especial em que foram produzidas apenas 100 (cem) garrafas no total. Se houver perda ou deterioração antes da concentração, a regra de que o gênero não perece deve ser limitada à quantidade máxima de 100 (cem) garrafas, de modo que, se as outras 85 (oitenta e cinco) já tiverem sido consumidas ou vendidas, o objeto tornar-se-á impossível.
 
Essa hipótese não é contemplada pelo art. 246, CC, no entanto o PL nº 699 tenta suprir essa lacuna, propondo nova redação ao dispositivo com o seguinte teor: "antes de cientificado da escolha o credor, não poderá o devedor alegar perda ou deterioração da coisa, ainda que por força maior ou caso fortuito, salvo se se tratar de dívida genérica limitada e se extinguir toda a espécie dentro da qual a prestação está compreendida".
Vale, no ponto, conferir trecho do fundamento do PL 699/2011:
"A distinção entre obrigação genérica e obrigação genérica restrita, embora seja desenvolvida pelos modernos obrigacionistas, já havia sido estudada entre nós por Teixeira de Freitas (...) Nesse mesmo sentido, é também a lição do mestre lusitano Antunes Varela: a determinação do gênero pode ser limitada, sem que a obrigação deixe de ser genérica. Pode a obrigação, por exemplo, incidir sobre o livro de determinada edição, sobre o trigo existente em certo celeiro, sobre o vinho de certa adega,
etc. Quanto maior for o número de elementos ou qualidades escolhidas para identificar o gênero da prestação, maior será a sua compreensão e menor, por conseguinte, a sua extensão".
Por derradeiro, repise-se que uma vez feita a concentração a obrigação deixa de ser genérica e passa a ser específica. Significa dizer que depois da concentração, os riscos pela perda e pela deterioração seguem as regras 234 a 236, CC, já estudadas anteriormente.
CAPÍTULO 3
Modalidades das Obrigações (I)

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