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Questões Literatura e outras séries culturais

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A partir de quais perspectivas a prática literária pode ser compreendida enquanto produção ficcional?
A teoria da literatura há muito já tem discutido, a partir de distintos e nem sempre convergentes referenciais epistemológicos, acerca do que é literatura. Ao pensarmos em textos literários, enquanto produção ficcional, estamos, primeiramente, partindo de determinada perspectiva. Isto é, de um ou mais referenciais teóricos, a fim de compreendermos o que entendemos por ficção. Em debates contemporâneos, entende-se, por exemplo, que toda narrativa de si é uma ficção, portanto, impregnada de “arranjos” (PUCHEU, 2012), isto é, articulações, relações, produzidas por um corpo afetado, tanto por sua subjetividade, quanto por sua vulnerabilidade à “exterioridade do mundo” (BUTLER, 2009). E é a partir de determinados modos de ler ou de saber o mundo que se produzem modos de dizer e de escrever a respeito desse mesmo mundo. Modos de dizer e escrever que produzem sentidos e discursos. Modos que não representam, quer dizer, não reproduzem o mundo tal qual ele é, mas sim indicam uma perspectiva de um sujeito situado historicamente. Uma perspectiva, portanto, parcial, fragmentada, um ponto de vista subjetivo acerca dele. E, sendo a prática literária resultado de um ponto de vista, não corresponde ao “real” e sim o (re)conta, cria, produz mundos ficcionalmente.
Como os textos literários têm sido traduzidos para outras linguagens artísticas?
Inicialmente, precisamos compreender o que vem a ser tradução. De uma maneira geral, costuma-se associar o conceito de tradução somente a uma relação entre línguas. Sendo assim, podemos dizemos que lemos a tradução de um conto de Edgar Allan Poe para a língua portuguesa. Entretanto, ela também ocorre entre linguagens artísticas, ou seja, é possível transformar um texto literário em um filme ou em um espetáculo de dança, de teatro, dentre outras possibilidades. As fronteiras, atualmente, entre as linguagens estão cada vez menos demarcadas. Os videopoemas, por exemplo, são audiovisuais e poesias, e também instalação ou performance. Desse modo, falamos em literatura expandida “que inventa, gera uma nova forma de literatura, não mais circunscrita à palavra, nem exclusivamente à comunicação linguística, mas pluridimensional” (PATO, 2012) ou em intermidialidade para pensarmos essas relações tão imbricadas entre literatura e outras artes. Entendo que as fronteiras estão cada vez menos demarcadas. Mas gostaria de sua opinião.
De que maneira a literatura pode afetar nossos corpos subjetivamente e sociopoliticamente?
Como temos visto aqui, os textos literários produzem sentidos e discursos que, por sua vez, nos afetam tanto na esfera íntima, quanto em uma dimensão sociopolítica. Nossos modos de ler, de saber e de dizer o mundo podem criar tensões com outros modos de estar no mundo. Isso impacta nas relações intersubjetivas, causando, muitas vezes, transformações em nossos modos de ser e de estar, assim como nos modos do outro. Essas tensões podem implicar divergências do ponto de vista político, por exemplo, e terem o poder de ressignificar valores e condutas individuais e coletivamente. Podem, assim, criar novos modos de ver e de estar no mundo. Corpos, portanto, vulneráveis à exterioridade do mundo e que se defrontam, a todo momento, com outros corpos igualmente vulneráveis, reagindo com mais ou menos vigor, com maior ou menor habilidade, com pouca ou muita intervenção no espaço público, abrindo, assim, fendas nas esferas mais íntimas. Em tempos de crise, isto é, de inquietações que repensam modos de saber, as fendas podem provocar rupturas, mudanças e curas, (re)erguendo os corpos em novos saltos e deslocamentos de si e no mundo.
O que é um dispositivo em arte e como ele impacta diferentes modos de escritura?
Pensando acerca de dispositivo em termos filosóficos, já há um relativamente longo percurso na problematização do conceito:
A grande vantagem de se pensar o dispositivo é que se escapa das dicotomias [...]. O dispositivo é, portanto, por natureza rizomático, o que, de certa forma, nos permite dissolver certas clivagens e oposições.
[...] O conceito de dispositivo tem uma história filosófica forte na obra dos grandes filósofos pós-estruturalistas, em particular, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jean-François Lyotard. Para eles, o efeito que o dispositivo produz no corpo social se inscreve nas palavras, nas imagens, nos corpos, nos pensamentos, nos afetos. (PARENTE, 2007, p. 10)
Tomando Foucault como um “intercessor”, isto é, como alguém ou algo que faz o pensamento deslocar-se, Agamben (2005) mobiliza seu pensamento para um conceito de dispositivo que funcione ao debate que propõe acerca de um outro conceito, também seu, o de profanação, que restituiria ao uso comum o que antes havia sido segregado a uma esfera sagrada — religiosa, jurídica, econômica —, desativando dispositivos de poder, tornando-os abertos a outros usos (AGAMBEN, 2007, p. 68-79). Agamben atrela, assim, apropriando-se, no que a ele interessa, de Foucault, dispositivos de relações de poder. Os usos e desusos que fazemos de dispositivos é um ato político à medida que nos submetemos à sua sacralização ou os profanamos: “Por isso é importante toda vez arrancar dos dispositivos — de todo dispositivo — a possibilidade de uso que os mesmos capturaram. A profanação [...] tarefa política da geração que vem.” (AGAMBEN, 2007, p. 79).
Por que pensar em literatura expandida?
Segundo o teórico W. J. T. Mitchell (2009), a estrutura de departamentos das universidades costuma separar as mídias visuais e verbais enquanto campos distintos, entretanto, em sua perspectiva de teoria da imagem, todas as artes seriam mistas, combinando diversas discursividades, códigos sensoriais e cognitivos. Historicamente, a poesia já surgiu relacionada com voz e corpo, isto é, com outros meios — música e dança (MÜLLER, 2012). Contemporaneamente, a literatura projeta-se com força no campo audiovisual, em videoinstalações nas ruas, videomappings, em espaços virtuais, em livros de artista, entre outros. Nesse sentido, as fronteiras entre os meios parecem cada vez mais tênues. Por isso, é necessário hoje pensar a literatura em articulação com diferentes meios, mídias, suportes, linguagens artísticas.
Como pode a escritura fazer não adoecer?
Há uma imagem de Herberto Helder em Photomaton & Vox de poema enquanto paisagem, acentuando vulnerabilidade e constante deslocamento, destacando o quanto nossa produção discursiva e leitura acerca do mundo estão atravessadas por nossos corpos. Sendo assim, a escritura pode ser um ato de resistência para não adoecer diante das violências que nos atravessam ao nos depararmos com a exterioridade do mundo, ajudando-nos a atravessar os percalços por meio de um processo de reconstrução de si, de cura, de transformação, de pulsão e de (re)ativação de afetos.
“A crítica, como operação de tensão e desconstrução, de vibração e movimento, é também criação.”. Indique por que esse enunciado se afasta do jeito tradicional de fazer crítica e se aproxima da crítica performativa.
Para o crítico performativo não há diferença entre crítica e o crítico. Na crítica performativa, o crítico está tão implicado na obra quanto o próprio artista-autor do texto. Na crítica performativa nos deparamos com o crítico que não quer julgar/valorar a obra, mas sim colocar-se nela como dois jogadores em um jogo. O crítico torna-se um artista, portanto. Encontramos no enunciado “A crítica, como operação de tensão e desconstrução, de vibração e movimento, é também criação” o vetor que desestabiliza o pensamento de uma crítica como resultado de uma análise descritiva e julgamento valorativo. Essas seriam maneiras de fazer crítica, conforme nos mostra o teórico Massaud Moisés. Para a crítica performativa há um embaralhamento das categorias mapeadas por Jérôme Roger: ressaltam-se a importância do autor na construção do texto literário, o imaginário sensível do objeto a ser criticado, a leitura da obra como produçãosocial e o leitor/crítico como criador. O crítico performativo é como uma pedra que se lança e é lançada nas águas paradas de um lago.
Por que se pode chamar a crítica de Ana Chiara sobre a escritora Carolina de Jesus de escrita performativa?
Conforme discutido na Unidade I e na Unidade II, além de rarefazer os limites entre a crítica e a própria literatura e outras produções artísticas, o texto performativo trata de entender a crítica como objeto do inapreensível. Em vez de escrever "sobre" Carolina de Jesus, Chiara escreve "com" ou mesmo "em", compondo uma leitura que é uma "sobre-escrita". O texto de Chiara, destinado ao filósofo Gilles Deleuze, se performatiza no indecidível entre o ensaio e a ficção e há uma inseparabilidade entre o ensaio e o gênero textual “carta”, um desguarnecimento de fronteiras entre o ensaio, a ficção e carta, entre o gesto e o conceito, entre o conceito e a imagem. O texto performativo é autoral e se dá no indecidível. No texto performativo, o crítico é tão criador quanto o autor do texto ou da obra criticada. O texto performativo de Chiara é um texto-declaração de amor.
Por que a produção cênica/literária de Regurgitofagia produz fronteiras indecidíveis entre escritura, arte e crítica?
Se a crítica performativa é uma escritura que rasura a obra artística como texto original e a forma fixa da crítica tradicional como resultado, ela se encontro no entrelugar ou no lugar do indecidível. Ela não é estável. Regurgitofagia, de Michel Melamed, é um exemplo pulsante de crítica performativa. A crítica de Melamed aparece dentro da plataforma tradicional do livro e se desdobra em espetáculo teatral. No espetáculo, Melamed se coloca menos como um ator que constrói personagens facilmente identificáveis e mais como um performer ou alterego (um segundo eu) altamente crítico de um pensamento antropofágico elaborado pelo poeta Oswald de Andrade. Regurgitofagia é um neologismo, resultado dos verbos “regurgitar” e do sufixo “fagia” (sufixo que expressa ação de alimentar-se de alguma coisa ou de alguém). Para Melamed, antropafagiamos, durante muito tempo, conceitos, jeitos, literaturas, plasticidades, práticas artísticas e culturais. Agora, faz-se necessário expelir o excesso, ressignificar o que nos alimenta e lançar para fora aquilo que está nos impedindo de produzir identidades insubmissas e criativas.
Como podemos analisar o filme Diários de Motocicleta, longa de Walter Salles?
O sujeito da experiência é algo como um território de passagem. Ele produz afetos, e afetos são produzidos nele. Ele inscreve algumas marcas, e marcas são inscritas nele. Ele deixa vestígios, e alguns vestígios são deixados nele. O filme Diários de motocicleta é uma história de aventura de dois amigos: Che Guevara e Alberto Granado. Ernesto Guevara de La Serna, às vésperas de se formar médico, decide viajar com o amigo e bioquímico Alberto Granado. Na viagem, os dois amigos têm o objetivo de conhecer a fundo a América Latina a bordo da “Poderosa”, a motocicleta de Granado. Esse é um exemplo do gênero fílmico movie road. Nesse tipo de filme, a transformação da vida dos personagens se dá à medida que o percurso do caminho acontece. Os dois amigos são flâuners da estrada — eles erram para descobrir a América e, como sujeitos da experiência, constroem possibilidades de afeto.
A vida pode ser compreendida como obra de arte a se fazer?
A vida como obra de arte a se fazer ecoa na noção de “cuidado de si” do filósofo Michel Foucault. Para o filósofo, sim, a vida pode ser compreendida como obra de arte a se fazer. As práticas de si têm como objetivo alcançar momentos de “liberdade”. Cuidar de si é criar para si, como um artista cria uma obra de arte, uma liberdade para agir, é escolher formas de pensamento que nem sempre obedecem às práticas de controle de nosso corpo. Daí a imagem do flâuner — aquele que caminha para se conhecer.
Como as performances de artista como Eleonora Fabião e André Penteado constroem e interferem em formas de vida e em espaços no tempo presente?
Os dois artistas interseccionam o estético com o ético, o privado e o público. Em Fabião, encontramos a força do encontro, a amizade que se dá no instante, na politização da cidade. Fabião desacelera o olhar e o passo do transeunte sobrevivente da cidade. Como uma costureira que faz a renda, ela recostura o cotidiano de quem sequer trocaria olhares. As performances de Fabião se conectam com a pergunta anterior, e a vida é compreendida como obra de arte a se fazer.
Em Penteado, as práticas da fotografia têm como objetivo alcançar momentos de cura. Cuidar de si é criar para si operações de transformações subjetivas. Penteado traz para a cena contemporânea a discussão de um tema tabu — o suicídio. Vestir as roupas do pai que se matou é fazer um investimento estético como um transformador da dor infinita em potência — vontade de destino.

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