Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Este material foi produzido, em caráter experimental, pela Prof.ª Dra. Cláudia Cristina dos Santos Andrade e pela Prof.ª Ma. Natasha Mendes, não podendo ser reproduzido em parte ou em sua totalidade sem autorização. Diálogos entre teoria e prática OBJETIVOS Ao final desta aula, você deverá ser capaz de: identificar estratégias de trabalho pedagógico com gêneros textuais, em perspectiva dialógica; relacionar os conceitos estudados no primeiro módulo da disciplina à prática pedagógica; refletir sobre as ações pedagógicas constitutivas do trabalho com a linguagem. A u la e x tr a 1 ATENÇÃO ESTE MATERIAL TEM CARÁTER PROVISÓRIO E FAZ PARTE DE UM PROCESSO DE REFORMULAÇÃO DA DISCIPLINA, NÃO PODENDO SER REPRODUZIDO OU UTILIZADO SEM A AUTORIZAÇÃO DAS AUTORAS E DO CEDERJ. Língua Portuguesa na Educação 2 | Aula extra 1:Diálogos entre teoria e prática Aula_Extra 1. Material provisório Fev 2018 O texto-base foi produzido pelas professoras Cláudia Andrade e Marliza Bodê, a partir de situações de aula que foram sendo discutidas e planejadas por elas. Os relatos de experiência são artigos, cujo objetivo é compartilhar uma experiência prática considerada relevante . Este relato foi apresentado no VI SIMPOSIO EDUCAÇÃO E SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: DESAFIOS E PROPOSTAS, 2009, realizado no Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira(CAp/UERJ). A referência para citações é: ANDRADE, C.C.S ; BODÊ, Marliza . O TRABALHO COM GÊNEROS TEXTUAIS NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL. In: VI SIMPOSIO EDUCAÇÃO E SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA:DESAFIOS E PROPOSTAS, 2009, RIO DE JANEIRO. ANAIS DO VI SIMPOSIO EDUCAÇÃO E SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA. RIO DE JANEIRO : CEPUERJ, 2009 INTRODUÇÃO Nesta primeira aula-extra de Língua Portuguesa na Educação II, seremos orientados por um artigo que traz um relato de experiência assentado em achados teóricos por nós já estudados. Faremos esse diálogo juntos na forma de um estudo dirigido: a cada parte do texto, uma reflexão será solicitada. Cada parte da aula terá três seções: Lendo, Dialogando e Refletindo. Ao final da aula, não se esqueça de nos enviar seus comentários acerca deste modelo, para nossa avaliação. LENDO O TRABALHO COM GÊNEROS TEXTUAIS NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL Cláudia Cristina dos Santos Andrade Marliza Bodê de Moraes SINAL FECHADO – Olá! Como vai? – Eu vou indo. E você, tudo bem? – Tudo bem! Eu vou indo, correndo pegar meu lugar no futuro... E você? – Tudo bem! Eu vou indo, em busca de um sono tranquilo... Quem sabe? Paulinho da Viola O texto de Paulinho da Viola nos remete a uma conversa comum, possível de ser realizada por qualquer um de nós. Há, inclusive, uma certa ironia atribuída aos cariocas, que reforça o valor (ou nenhum valor) que têm o que dissemos quando nos cumprimentamos: “Carioca sempre nos convida a visitá-los, mas nunca dá o endereço”. São enunciados de valor puramente fáticos, e têm a mesma função que um cumprimento que poderia ser substituído por um aperto de mãos, ou seja, palavras não valem por si, pelo sentido que têm, mas pelo valor social, participam de uma convenção. Poderíamos tecer várias classificações deste texto, dizer que é uma letra de música, um diálogo, uma conversa, enfim, algumas definições construídas sobre diferentes critérios. Se o definíssemos como diálogo, estaríamos nos referindo a uma construção linguística caracterizada pela alternância de interlocutores. Caso propuséssemos letra de música, estaríamos preocupados com o uso social que se dá a este texto, uma vez que Paulinho da Viola associa o diálogo a uma estrutura rítmico-musical. Já poema se refere a um gênero textual com características formais e estéticas definidas. As classificações são diversas, dependendo dos critérios adotados para analisar o texto produzido, e que são baseados em distinções artificiais, pois os diferentes aspectos não aparecerem isoladamente nos textos, mas sim interligados, indicando a complexidade da produção textual, pois a língua é dinâmica e se transforma a partir do uso. Em decorrência, para que os alunos se tornem usuários competentes da língua escrita, além de assegurar o acesso à diversidade textual, o Língua Portuguesa na Educação 2 | Aula extra 1:Diálogos entre teoria e prática professor precisa propor atividades que favoreçam a reflexão sobre a organização discursiva dos textos tomados como objeto de estudo. Neste texto, nos propomos a discutir os conceitos de gênero do discurso, gêneros textuais, e de tipologia, refletindo sobre as formas de trabalho com a leitura e a escrita nos anos iniciais do Ensino Fundamental e relatando o trabalho com o gênero conto, desenvolvido no 4º ano do EF no ano letivo de 2008. DIALOGANDO Na introdução do texto, as autoras se referem a diferentes critérios de classificação dos textos. E de fato há, como os propostos por Travaglia (2007, p. 40)1 a) o conteúdo temático b) a estrutura composicional c) os objetivos e funções sócio-comunicativas; d) as características da superfície linguística, geralmente em correlação com outros parâmetros; e) as condições de produção. REFLETINDO 1. O texto de Travaglia apresenta cada um dos critérios acima. Procure defini-los com seu grupo de tutoria. conteúdo temático estrutura composicional os objetivos e funções sócio- comunicativas características da superfície linguística condições de produção 2. Qual a importância de se saber as caraterísticas tipológicas e de gêneros dos textos com os quais trabalhamos no ensino da língua? _______________________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________________ 1 Para ler o texto completo: http://seer.fclar.unesp.br/alfa/article/viewFile/1426/1127 Língua Portuguesa na Educação 2 | Aula extra 1:Diálogos entre teoria e prática LENDO 1. Suportes teóricos para a prática pedagógica A ideia de gênero relacionada ao ensino da LP baseia-se nas seguintes formulações teóricas: a teoria de aprendizagem na vertente sócio-interacionista a partir do estudo de Vygotsky; o desenvolvimento da ideia de letramento na prática pedagógica e os conceitos advindos da análise de Bakhtin, que supõe a construção social na base na comunicação verbal. Os conceitos de Vygotsky contribuem para este debate à medida que se inserem em uma vertente de análise que leva em conta as produções sócio-históricas de conhecimento. O que sabemos nasce não só de minha relação com objeto de estudo, mas, principalmente, mediado por Outro e pelo conhecimento produzido pela sociedade. Aqui a linguagem ganha peso especial, por poder atuar diretamente na formação das funções psicológicas superiores, pois enfatiza a importância do signo na formação de conceitos. Todas as funções psíquicas superioressão processos mediados e os signos constituem o meio básico para dominá-las e dirigi-las. O signo mediador é incorporado à sua estrutura como uma parte indispensável, na verdade a parte central do processo como um todo. Na formação de conceitos, esse signo é a palavra, que em princípio tem o papel de meio na formação de um conceito e, posteriormente, torna-se seu símbolo (VYGOTSKY, 1987, p.48). Através da linguagem produzem-se os conceitos que depois são representados pela palavra. Para o autor, não há hierarquia entre os conhecimentos, que se relacionam em uma perspectiva dialética, negando a ideia de que os espontâneos sejam substituídos pelos científicos, ou que esses sejam hierarquicamente superiores àqueles. Para Vygotsky (1987) o adulto tem papel fundamental na formação de conceitos, porque a criança, ao lidar com definições e significados dados por ele, desenvolve a percepção dos processos mentais necessários para a construção e tomada de consciência dos conceitos cotidianos/ espontâneos. Por outro lado, torna mais concretos os próprios conceitos científicos, que cumprem, assim, uma escala descendente, indo a níveis que ele considera mais elementares, graças a maior concretude. Os dois tipos de conceitos passam por processos intimamente relacionados, porém em direções opostas. Para o autor, “é preciso que o desenvolvimento de um conceito espontâneo tenha alcançado um certo nível para que uma criança possa absorver um conceito científico correlato” (1987:93), o que aprofunda a relação de interdependência entre as duas formas de conceitos. Para muitos teóricos da linguagem, como Kleiman (1992) e Smolka (1991), a análise da linguagem feita por Bakhtin (1997) amplia a discussão de Vygotsky (1987), pois explica como as construções sociais participam da constituição do signo, ou seja, como as intervenções ideológicas são apropriadas pelo sujeito através do uso que este faz da linguagem. Para Bakhtin, ao falarmos nos colocamos no lugar de quem vai nos ouvir, assim as diferentes vozes passam a fazer parte do nosso enunciado. E, desta forma, se comportam todas as ações humanas de comunicação. Sinteticamente, podemos dizer que a formação das funções psíquicas superiores é mediada por signos, sendo estes constituídos por várias vozes que se originam nas relações sociais. Como aponta Smolka (1991, p.56) Com base no conceito de internalização de Vygotsky e no conceito de diálogo de Bakhtin, podemos dizer que estamos em um terreno onde não só as relações sociais são, antes de tudo, linguagem (Maingueneau, 1984), mas onde linguagem/relações sociais constituem a atividade mental. Neste sentido, sendo a atividade mental constituída de linguagem/relações sociais, compreendemos a formação do leitor/escritor a partir de uma prática pedagógica que garanta intervenções docentes de forma que o contexto da sala de aula seja propício ao intercâmbio de ideias, de informações e ao trabalho em parceria. Por outro lado, esta perspectiva vai ao encontro da ideia de letramento, como práticas plurais, sociais e culturalmente determinadas (STREET apud KLEIMAN, 1995, p.19), nomeado pelo autor como modelo Fabio e Quezia Highlight Fabio e Quezia Highlight Fabio e Quezia Highlight Fabio e Quezia Highlight Língua Portuguesa na Educação 2 | Aula extra 1:Diálogos entre teoria e prática ideológico. Neste sentido, Kleiman (1995, p.19) define letramento como “conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos” Tradicionalmente, a prática escolar apoia-se em um modelo de letramento denominado autônomo por Street, que pressupõe a escrita como fim em si mesma, dissociada dos contextos nos quais está inserida; enquanto a prática preocupada com os contextos sociais participa do modelo ideológico, levando em conta os propósitos da leitura e da escrita dos textos. O conceito de gêneros do discurso nos permite perceber como as práticas sociais são constitutivas da linguagem, ou ainda, como as construções sociais estão na origem dos enunciados. Segundo Bakhtin (1997), gêneros são formações relativamente estáveis que orientam nossa compreensão e nossa produção textual. Para isso, é preciso ter uma intencionalidade, uma forma e um conteúdo. A variedade dos gêneros do discurso pressupõe a variedade dos escopos intencionais daquele que fala ou escreve. O desejo de tornar seu discurso inteligível é apenas um elemento abstrato da intenção discursiva em seu todo. O próprio locutor como tal é, em certo grau, um respondente, pois não é o primeiro locutor que rompe pela primeira vez o eterno silêncio de um mundo mudo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que utiliza, mas também a existência de enunciados anteriores - emanantes dele mesmo ou do outro - aos quais seu próprio enunciado está vinculado por algum tipo de relação (fundamenta-se neles, polemiza com eles), pura e simplesmente ele já os supõe conhecidos do ouvinte. Cada enunciado é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados (Idem, p.291). Os gêneros não são estáticos, pois sendo a base dos enunciados verbais, modificam-se do mesmo modo que os diferentes produtos da cultura. Tal discussão teórica encontra eco nos procedimentos de ensino da língua que se utilizam do trabalho com gêneros textuais, pois permite estabelecer relações mais produtivas entre as atividades sociais e a sala de aula. Há intensa produção nesta área, com nomenclatura diversa para se referir aos diferentes tipos de textos. De forma a tornar a nomenclatura usada mais clara, nos apoiamos em Marcushi (2002), que diferencia tipo textual, gênero textual e domínio discursivo. Para o autor, tipos textuais são definidos pela natureza linguística de sua composição, pela estrutura formal. São os tipos narrativo, descritivo, argumentativo e dissertativo, que podem ser encontrados de forma predominante em gêneros determinados. Gêneros textuais seriam sua utilização concreta, em que são preponderantes o suporte e os objetivos postos dentro das situações de comunicação. O conto, por exemplo, tem predominância narrativa, mas pode ter trechos descritivos. Para o autor, é preciso diferenciar ainda os domínios discursivos, esferas ou instância de produção, como o discurso jornalístico, por exemplo, que define determinados gêneros que usam determinados tipos. Então, nesta perspectiva, toda ação enunciativa humana, de fala, de escrita, de leitura ou de compreensão leva em conta as construções que temos em torno dos tipos de texto, dos gêneros textuais e dos domínios discursivos. DIALOGANDO Muitas pessoas confundem gênero textual, gênero literário e tipo textual. Agora, depois de conhecer melhor esses conceitos, você já consegue diferenciá-los? Discuta com seu grupo e não deixe de tirar as dúvidas no plantão da tutoria à distância. Língua Portuguesa na Educação 2 | Aula extra 1:Diálogos entre teoria e prática REFLETINDO Agora é sua vez! Vamos sistematizar essas classificações? Observe o texto abaixo e pense em que gênero discursivo, tipo textual e gênero literário ele se encaixa. Vamos lá? De tudo ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eupossa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. Vinicius de Moraes, "Antologia Poética", Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1960, pág. 96. GÊNERO LITERÁRIO: ________________________________________________________________________ GÊNERO DISCURSIVO (TEXTUAL): _____________________________________________________________ TIPO TEXTUAL PREDOMINANTE:_______________________________________________________________ LENDO 2. O trabalho com gênero conto em turmas de 4º ano de escolaridade O trabalho na área de Língua Portuguesa nos anos iniciais do Ensino Fundamental do CAp-UERJ tem como objetivo central a formação de alunos leitores e bons usuários da língua escrita e da língua oral. Entretanto, o alcance desse objetivo não é tarefa simples, requer um trabalho sério e sistemático haja vista que o desenvolvimento da compreensão leitora e da competência textual constitui um processo complexo. Para tanto, organizamos uma rotina de trabalho que privilegia as situações de leitura, produção de texto, análise linguística, bem como situações de uso formal da língua oral em situações públicas, aquelas às quais os alunos têm menos acesso espontaneamente. No que diz respeito à leitura, nossa rotina de trabalho, ao longo do ano letivo, se organiza em torno de algumas atividades permanentes, entre as quais incluímos as rodas de leitura. Essas rodas são realizadas diariamente, em geral, no início da aula. É uma situação de escuta de leitura, ou seja, a leitura de um livro em capítulos ou de outros textos realizada pelo professor. Em geral, Língua Portuguesa na Educação 2 | Aula extra 1:Diálogos entre teoria e prática privilegiamos a leitura de livros que a maioria dos alunos, no momento, não leria sozinha com autonomia. Com essa atividade, temos buscado, sobretudo, ampliar o universo literário e textual de nossos alunos, bem como lhes garantir situações de acesso a textos bem escritos que servirão de referência e modelo às suas futuras produções. A compreensão teórica usada como base para a prática pedagógica que desenvolvemos leva-nos a observar alguns aspectos: a escolarização dos gêneros e o trabalho de leitura e análise como fundamentos da escrita. Dolz e Shneuwly (1999) chamam a atenção para o fato de a apropriação didática de um gênero ser a proposta de criação de um novo gênero, dito escolar, pois tem sua função voltada para as ações de ensinar e aprender, um meio artificial em relação ao uso do gênero em situações reais. Consideramos que, para a apropriação dos gêneros que Bakhtin chama de secundários, ou seja, aqueles que já possuem uma forma mais definida, menos sujeita às transformações, como os contos, romances, poemas, artigos acadêmicos, é preciso um trabalho de análise. Propomos então, projetos didáticos em que há a escolha de um gênero de texto combinado com o grupo e pode garantir ações de apropriação das marcas formais sem a criação de um uso puramente formal, voltado o mais possível para as situações reais de uso. Apesar de estarmos nos detendo sobre a produção textual e sua aprendizagem, não podemos nos furtar a falar da formação do leitor, pois não há como tratar da produção sem tratar da recepção, ou seja, acreditamos que a autoria depende da experiência de leitor, visto que “escrever é criar uma mensagem suscetível de funcionar para um leitor, ou seja, é antecipar esse funcionamento para torná-lo possível e essa antecipação apoia-se numa experiência pessoal de leitor” (FOUCAMBERT, 1994, p.76). Nesse sentido, ler é “ingressar na funcionalidade de um modo de comunicação escrita, é entrar, portanto, nas razões e redes dessa comunicação” (FOUCAMBERT, 1994, p.70). Logo, se desejamos estender a todos a possibilidade de incluir a escrita como meio de pensar o mundo e sobre ele agir, precisamos nos preocupar com a leitura, pois, do contrário, condenamos a produção textual à ineficácia. Existem diversas maneiras de ler e de escrever que atendem a diferentes propósitos. Não lemos um jornal ou uma receita do mesmo modo que lemos um romance, nem tampouco usamos os mesmos conhecimentos e tomamos as mesmas decisões quando escrevemos um texto científico e uma narrativa de ficção. Ler para buscar uma informação é muito diferente de ler por prazer. Escrever um texto ditado por outro não é a mesma coisa que escrever um texto de própria autoria. Desse modo, os alunos devem fazer uso da língua escrita em diversos contextos comunicativos, assumindo diferentes posições enunciativas. Ou seja, é fundamental que leiam e escrevam (ou estejam na posição de leitores ou escritores, mesmo que ainda não o façam convencionalmente) com diferentes propósitos e em situações distintas. É por meio da leitura que “se internalizam, além do registro padrão da Língua, estruturas linguísticas mais complexas, desenvolvendo de modo globalizado o desempenho linguístico do falante” (VILLARDI, 1999, p.07). Além disso, na medida em que os alunos leem diferentes escritos, em contextos reais de uso, compreendem sua função social e tornam-se capazes de reconhecer sua organização discursiva, de diferenciá-los e também de produzi-los, embora não necessariamente com a devida “destreza” no que tange a seus aspectos formais. No entanto, é preciso que possam ir além desse reconhecimento e que sejam capazes de produzir textos em diferentes contextos comunicativos. Neste ano, investimos na leitura de contos poucos conhecidos pelo grupo, buscando articular as rodas de leitura com as atividades de produção de texto e análise linguística que, a princípio, não aconteceram dentro de um projeto específico. Relemos alguns contos conhecidos e lemos tantos outros até então inéditos para todos como “O Rouxinol”, de Hans Christian Andersen. Já no segundo bimestre, além dos contos lidos pelos professores, os alunos, reunidos em dupla, se prepararam para ler em voz alta um conto retirado do livro “Volta ao mundo em 52 histórias”. Prepararam- se em casa com ajuda de um adulto da família e leram aos poucos para a turma. Neste caso, cada aluno da dupla lia um trecho do conto, em voz alta, diante da turma. Os alunos que estiveram presentes no “Café Literário” realizado pela escola, numa manhã de sábado, também leram seus contos para os familiares. Língua Portuguesa na Educação 2 | Aula extra 1:Diálogos entre teoria e prática Pretendemos fazer uma compilação desses textos em um livro que será doado para a biblioteca de uma escola localizada em São João de Meriti - a Escola do CAC. Para a organização dessa coletânea, cada dupla ficou responsável pela ilustração e pela pesquisa sobre o país de origem do conto. Após a encadernação do material, o encaminharemos para a Escola do CAC com uma carta dirigida aos alunos desta instituição. Quanto à produção de textual, temos a clareza de que não é possível abordar igualmente todos os tipos de texto que circulam socialmente em apenas um ano de escolaridade, portanto, priorizamos alguns gêneros textuais para uma intervenção mais sistemática. Desde o início do ano letivo, investimos no trabalho com as narrativas, por meio das atividades de reescrita, escrita de continuidade de história, apreciação de texto bem escrito e revisão textual. Tais atividades buscam, em consonância com o que propõem Dolz e Shneuwly (1999) “busca de intervenções no meio escolar que favoreçam a mudança e a promoção dos alunos a uma melhor mestria dos gêneros e das situações de comunicação que lhes correspondem.” Cada turma elegeu um aspecto específico para o trabalho de análise. Em uma turma buscou-se chamar a atenção dos alunos para as estratégias adotadaspelos escritores para caracterizar os personagens e os ambientes onde as histórias acontecem. Durante a apreciação dos textos, fizemos algumas intervenções para ajudá-los a perceber que o escritor tem objetivos com as descrições que inclui no texto, que tudo depende desses objetivos e das sensações que ele quer provocar no leitor. Vocês conseguiram imaginar o ambiente descrito ? E o tal ambiente? Quem se lembra de como era? Vamos voltar a este trecho para relembrar? Por que o autor do conto detalhou tanto esta parte? Que sensação isso provocou na gente? Em geral, priorizamos os textos conhecidos e, no caso de contos novos, fazemos a apreciação na segunda leitura. As situações de análise linguística estiveram, na maioria das vezes, relacionadas às atividades de produção textual. São atividades em que refletimos sobre a forma e as características da língua escrita nas situações de revisão textual. Por meio da análise da primeira reescrita que realizaram no início do ano letivo, pudemos conhecer os aspectos que precisariam ser tomados como objetos de estudo pela turma para que avançassem no domínio da língua escrita. Identificamos problemas que apareciam somente em algumas produções e outros que eram comuns a quase todas. Deste modo, optamos por focar a revisão em um aspecto de cada vez. Os problemas que mais nos chamaram atenção nessa primeira produção foram a omissão de informações relevantes para a compreensão do texto pelo leitor, a repetição desnecessária de algumas palavras ou expressões e a ausência de pontuação adequada para marcar os discursos direto e indireto. A partir da identificação destas questões, realizamos algumas atividades de revisão para refletir sobre tais aspectos com o grupo. Focalizamos, prioritariamente, nessas atividades, a pontuação usada para marcar a fala do personagem e do narrador. É importante ressaltar que compreendemos a revisão textual como uma situação privilegiada de aprendizagem da língua escrita e como um procedimento complexo que precisa ser ensinado. Em outro grupo, preocupamo-nos com a análise dos elementos constituintes da narrativa: os personagens e sua função, o enredo, o tempo e o espaço. Assim, ao tornarmos visíveis para os alunos a constituição da narrativa, permitimos que haja a apropriação dos recursos autorais disponíveis. Após o encaminhamento das atividades mencionadas anteriormente, resolvemos propor aos alunos o desafio de escrever um conto com mudança de foco narrativo, em um grupo, e de outro elemento da narrativa no outro grupo. A tarefa era escrever uma nova história baseada num conto antigo, produção inspirada nos contos de Flávio de Souza publicados nos livros “Que história é essa?” e “Que história é essa? 2”. Nestes livros, o escritor escreveu novas histórias baseadas em contos antigos. Em geral, ele transforma um personagem secundário de um conto antigo em protagonista da nova história e, ao longo do texto, usa algumas passagens que fazem referência ao conto de origem para ajudar o leitor a descobrir qual é a história. Em alguns textos é difícil para o leitor descobrir qual o conto de origem antes de chegar ao final da nova história. Além disso, a trama dos novos contos é recheada de passagens bem-humoradas, um estilo adotado pelo escritor em quase todas as histórias. Uma outra estratégia adotada pelo autor é a Língua Portuguesa na Educação 2 | Aula extra 1:Diálogos entre teoria e prática de embaralhar as letras do título do conto antigo para formar o título do novo conto. Iniciamos o trabalho com a apresentação dos livros de Flávio de Souza aos alunos e com a leitura de alguns contos. A princípio, lemos para os alunos as histórias com pistas menos óbvias sobre o conto de origem. Os textos agradaram a todos, quase sempre, queriam que lêssemos mais de um conto a cada roda. Durante essas leituras, levantávamos hipóteses a partir das pistas dadas pelo escritor e analisávamos as estratégias adotadas por ele para fazer referência ao conto antigo. Lemos várias histórias em Rodas de Leitura e reproduzimos outras para os alunos lerem e analisarem individualmente. Antes de apresentar a proposta de produção de um conto seguindo o estilo de Flávio de Souza, retornamos a alguns contos para apreciá-los. Exemplo de perguntas feitas pelo professor durante a apreciação dos contos de Flavio de Souza: Em que trecho você encontrou a primeira pista dada pelo autor para descobrir qual é a história? Que outros elementos da história original aparecem no texto de Flávio de Souza? Por que no conto de Flávio de Souza sabemos tantas informações sobre o caçador? (referência a um personagem secundário que se tornou o protagonista na nova história) Na história original quem era o personagem principal? E nesta? Após o trabalho de análise, passamos a estruturar a história de cada aluno, escolhendo o conto original sobre o qual iriam construir o novo, que elementos seriam modificados e quais personagens comporiam a trama. Os textos passaram por revisões e foram apresentados na mostra de trabalhos ao final do ano letivo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em todos os campos, culturais, documentais, informativos, políticos, didáticos, ela [a escrita] é o meio privilegiado do intercâmbio, da partilha, da reflexão, da disponibilidade, da rapidez, da faculdade de estudo e opção. (...) Não existe um só campo em que a verdadeira prática da democracia não passe pelo acesso do maior número de pessoas à escrita. Não há partilha possível de poder sem a partilha do acesso à escrita... Foucambert Se a verdadeira prática democrática depende da possibilidade de que um maior número de pessoas tenha acesso à escrita, destacamos então a escola como um espaço privilegiado na conquista desta prática, uma vez que a imensa maioria da população depende dela para ter acesso a este objeto de conhecimento. No entanto, não basta que tal acesso se restrinja aos rudimentos da escrita, como tem acontecido ao longo dos anos, mas é indispensável que abranja os diferentes usos da língua em sua modalidade escrita. Nessa perspectiva, a escola precisa assegurar aos alunos o acesso às condições adequadas ao domínio dos modos de funcionamento da cultura letrada. Assim, é fundamental organizar contextos de aprendizagem em que a leitura e a escrita não se descaracterizem como práticas sociais de uso da língua, de modo que os diversos gêneros textuais possam circular no espaço da sala de aula como objeto de aprendizagem, pois “o mundo da cultura escrita, no qual cabe à escola introduzir todos os seus alunos, é um mundo intertextual que se organiza em gêneros com linguagem própria, muito diferente da linguagem que se usa para falar” (PCN, 1997, p.23-27). Todavia, não se pode desconsiderar a necessidade de ações específicas para que a língua escrita se converta em objeto de aprendizagem dos alunos, o que não significa, em nenhuma hipótese, artificializá-la ou simplificá-la. Pelo contrário, o que se deve buscar, tal como afirma Lerner (2002), é a máxima aproximação entre a “versão social” e a “versão escolar” das práticas de leitura e escrita que ocorrem em sala de aula. Língua Portuguesa na Educação 2 | Aula extra 1:Diálogos entre teoria e prática DIALOGANDO Você já ouviu falar no termo escolarização da leitura? Leia esse trecho do artigo “A ESCOLARIZAÇÃO DA LEITURA NO BRASIL: UMA VISÃO HISTÓRICA”2 Dessa forma, consideramos que a escolarização da leitura é bem mais do que estimular a simples habilidade de ler, é uma experiência de dar sentido ao mundo por meio de palavras. A leitura, nesse sentido, pode suscitar reações diversas que vão desde o prazer emocional ao intelectual.Além de fornecer informações sobre diferentes temas - histórias sociais, existências e éticas -, a leitura na escola também pode oferecer outro tipo de satisfação ao leitor, como viver situações existenciais e entrar em contato com novas ideias. REFLETINDO Após a leitura deste material, como podemos relacionar a escolarização da leitura à importância do estudo de Língua Portuguesa na perspectiva discursiva? Reflitam e discutam com seus colegas, pois este é um tema que acompanhará todo o nosso curso e já está presente na AD1. REFERÊNCIAS DO TEXTO 1 BAKHTIN, Mikhail (V.N. Volochinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem. 8a. ed. São Paulo, Editora Hucitec, 1997. FOUCAMBERT, Jean. A Leitura em Questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. LERNER, Delia. É possível ler na escola?. In:______. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto Alegre: Artes Médicas, 2002 KLEIMAN, Angela B. Modelos de Letramento e as Práticas de Alfabetização na Escola in KLEIMAN, Angela B. (org) Os Significados do Letramento. Campinas, SP, Mercado das Letras,1995, pp. 15-64. PASQUIER, Auguste, DOLZ, Joaquim. Un decálogo para ensenar a escribir. Cultura y Educación, 2: 31-41. Madri: Infância y Aprendizaje, 1996. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In DIONISIO, A. P. et AL (orgs). Gêneros Textuais e Ensino. 2ed Rio de Janeiro: Lucerna, 2002 MORAES, Marliza Bodê de. A aprendizagem da escrita por crianças de classes populares: Discutindo uma prática pedagógica. Rio de Janeiro, Faculdade de Educação da UERJ, 2002. Dissertação de mestrado. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1997. SCHNEUWLY, Bernard, DOLZ, Joaquim. Os gêneros escolares: das práticas de linguagem aos objetos de ensino. Revista Brasileira de Educação, ANPed. Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação.São Paulo, nº 11 : 5-16, mai/jun/jul/ago, 1999. 2 Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/LeC/article/view/23799/14007 Língua Portuguesa na Educação 2 | Aula extra 1:Diálogos entre teoria e prática SMOLKA, Ana Luiza B. A prática discursiva na sala de aula: uma perspectiva teórica e um esboço de análise. In: Caderno CEDES no. 24, Campinas, SP, 1991, pp. 51-65 SOUZA, Flávio de. QUE HISTÓRIA É ESSA?: novas histórias e adivinhações com personagens de contos antigos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1995. SOUZA, Flávio de. QUE HISTÓRIA É ESSA? 2: novas histórias, adivinhações, charadas, enigmas, curiosidades, diversões e desafios com personagens de contos antigos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2005. TEBEROSKY, Ana. Aprendendo a escrever: perspectivas psicológicas e implicações educacionais. São Paulo, Ática, 1994. _______________. Compor textos. In: TEBEROSKY, Ana e TOLCHINSKY, L.L.(org). Além da alfabetização. São Paulo: Ática, 1996. TOLCHINSKY LANDSMAN, Liliana. Aprendizagem da linguagem escrita: processo evolutivo e implicações didáticas. São Paulo: Ática, 1995. Weisz, Telma. Relações entre aspectos gráficos e textuais: a maiúscula e a segmentação do texto na escrita de narrativas infantis. Tese de Doutorado (Doutorado em Psicologia), Instituto de Psicologia da USP, 1998, mimeo. TRAVAGLIA, Luiz Carlos. A caracterização de categorias de texto: tipos, gêneros e espécies. Alfa, São Paulo, 51 (1): 39-79, 2007. Disponivel em http://seer.fclar.unesp.br/alfa/article/viewFile/1426/1127. Acesso em fev 2018. VIGNER, Gerard, Vigner. Intertextualidade, norma e legibilidade. In: Charlotte, G, Orlandi, E e Otoni, P.(org.). O Texto: Leitura e Escrita. Campinas: Pontes, 1988. VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem . São Paulo, Martins Fontes, 1987.
Compartilhar