Buscar

1 EHRLICH, 1986 Conceito prático de direito

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 36 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 36 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 36 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

IV 
A COAÇÃO SOCIAL E A COERÇÃO ESTATAL 
Uma doutrina atualmente muito difundida e cuja origem é diversifi-
cada, procura identificar como fonte das normas jurídicas e às vezes tam-
IJém das outras normas sociais, sobretudo as da moralidade, o poder dos 
círculos dominantes da sociedade, os quais as teriam estabelecido e as 
manteriam por interesse próprio. Mas o poder sobre pessoas só pode ser 
exercido e mantido de maneira duradoura, quando elas são reunidas em 
associações, prescrevendo-se-lhes as regras do agir - portanto, organi-
zando-as. Compreendido assim, esta doutrina coincidiria com a que se 
procura explicitar aqui, isto é, que as normas sociais não são outra coisa 
que a ordem das associações humanas. Quando, porém, se afirma que os 
círculos dominantes das associações estabelecem as regras do comporta-
mento exclusivamente em benefício do "interesse" próprio, isto não diz 
nada ou é incorreto. O homem sempre age no próprio interesse e quem 
conseguisse estabelecer em definitivo os interesses que levam uma pessoa 
a agir não teria solucionado apenas a questão relativa à coação através das 
normas, mas praticam.ente todas as demais questões significativas da ciên-
cia social. No entanto, é totalmente errado contrapor diametralmente os 
interesses dos círculos dominantes das associações humanas ao interesse 
de toda a associação ou ao dos demais integrantes. É imprescindível que o 
interesse dos círculos dominantes coincida ao menos em parte com o de 
toda a associação ou no mínimo o da maioria, pois do contrário os demais 
não se ateriam às normas estipuladas pelos círculos dominantes. Será ex-
tremamente difícil conseguir a adesão de um grupo mais amplo de pes-
soas, sem que estas tenham no mínimo uma vaga impressão de que o obje-
tivo, se alcançado, beneficiará a todos. E esta impressão nunca é total-
mente infundada. A ordem na associação pode - numa análise abstrata 
- ser ruim, beneficiando excessivamente os dirigentes e impondo pesa-
dos encargos aos outros, mas ela sempre será melhor que sua total ausên-
54 Eugen Ehrlich 
eia; a inexistência de uma ordem melhor é prova de que a sociedade, nas 
condições espirituais e morais em que se encontrava e com as reservas eco-
nômicas que possuía, era incapaz de criar uma ordem mais perfeita. 
A questão que se coloca, portanto, é a seguinte: como as associações 
sociais podem levar o indivíduo que delas faz parte a seguir suas normas? 
Não há concepção que contrarie mais frontalmente os princípios da psi-
cologia do que a de que os homens não avança1n sobre a propriedade 
alheia, por temerem as leis penais ou a de que pagam suas dívidas, por 
causa da ameaça do oficial de justiça. Mesmo quando todas as leis penais 
perdem sua eficácia - e isto tem acontecido em períodos de guerra ou de 
convulsões internas -, mesmo nestes casos, somente uma pequena par-
cela da população participa de assassinatos, assaltos, roubos, depredações; 
e em períodos calmos a maioria das pessoas cumpre seus compromissos 
sem pensar no oficial de justiça. Isto evidentemente não prova que a 
grande maioria das pessoas observa as normas exclusivamente por causa 
de um impulso interno; mas o fato sem dúvida indica que o medo da pena 
não é o único fator; além disso é bom lembrar que existe uma grande 
quantidade de normas sociais, por cuja transgressão não se precisa temer 
por qualquer pena e que, mesmo assim, estas normas são observadas. 
A coação não é utna coisa que emane exclusivamente da norma jurí-
dica. As normas da moral, da religião, dos costumes, das boas maneiras, da 
moda, não teriam qualquer sentido, se delas não emanasse uma certa coa-
ção. Também elas constituem uma ordem nas associações humanas; têm a 
tarefa de coagir os indivíduos a observar esta ordem. Qualquer coerção 
através de normas, porém, repousa no fato de que o indivíduo na reali-
dade nunca é um "ser individual"; ele se encontra alínhado, inserido, im-
prensado em un1a série de associações, de modo que a existência à mar-
gem delas se tornaria insuportável para ele. ~frata-se aqui de fatores fun-
damentais relacionados aos sentimentos humanos. Não se deve acentuar 
exageradamente as necessidades espirituais do homem, mas, apesar disso, 
pátria, comunidade religiosa, família, círculo de amigos, militância políti-
co-partidária não são conceitos vazios para ninguéin. Uma pessoa pode 
desprezar isto, outra aquilo, mas certamente poucos não terão um peque-
no círculo, ao qual se atém de todo o coração. É no seu círculo que a pessoa 
procura apoio em caso de necessidade, procura conforto na desgraça, 
procura reconhecimento, honra, prestígio: o seu círculo, assim, lhe dá 
tudo aquilo que te111 valor em sua vida. Mas o significado destas associações 
não se restringe a estes aspectos - elas são decisivas para o sucesso profis-
sional. Por outro lado, a própria profissão nos arrasta para uma série de 
associações profissionais. 
Vivemos todos dentro de uma infinidade de comunidades, mais ou 
Fundan1entos da Sociologia do l)ireito 55 
menos coesas, às vezes até muito difusas e nosso destino dependerá sobre-
tudo da posição que dentro delas conseguirmos conquistar. Dentro das co-
munidades os serviços prestados e os benefícios colhidos aparentemente 
se equilibram. As comunidades não podem beneficiar todos os indivíduos 
que as integram se, simultaneamente, cada um não contribuir com alguma 
coisa. E na verdade todas estas comunidades, estruturadas ou não - pá-
tria, comunidade religiosa, família, círculo de amigos, partido político, as-
sociação profissional, freguesia-, todas elas exigem algo em retribuição 
por aquilo que fazem por nós e as normas sociais vigentes nestas co1nuni-
dades não são outra coisa que o reflexo das exigências feitas ao indivíduo. 
Quem depende do respaldo de seu grupo - e quem não necessitaria 
dele?- faz bem em observar, ao menos grosso modo, as normas do grupo. 
Todo recalcitrante deve saber que seu comportamento abalará a coesão 
com os seus; quem insiste em resistir, rompe os laços que o unem aos seus 
companheiros e estes começam a evitá-lo, até excluí-lo. É, portanto, das 
associações sociais que emana a força coativa de todas as normas sociais, 
sejam elas jurídicas, morais, religiosas ou outras. No que concerne às boas 
maneiras e à moda, Jhering explicitou sua natureza em dois artigos surgi-
dos há muitos anos na Gegenwart de Berlim ("A função social da moda" e 
"A função social do uniforme"). Boas maneiras e moda são normas de um 
círculo social privilegiado e sinais visíveis de que a pessoa o integra; quem 
quer ser aceito e gozar das vantagens de pertencer a ele, deve conhecê-las e 
observá-las. 
Desta maneira, o homem age de acordo com o direito, acima de tudo, 
porque as relações sociais o obrigam a isto! Neste sentido a norma jurídica 
não se distingue de outras normas. O Estado não é a única associação coa-
tiva; há, na sociedade, inúmeras associações que são muito mais rígidas 
que ele. Uma delas é, até hoje, a família. As legislações modernas tendem a 
restringir cada vez mais a interferência judiciária na comunidade conju-
gal. Mas, mesmo que se abolisse todo o direito familiar estatal, a família 
não seria muito diferente do que é hoje; no direito familiar felizmente a 
coação estatal raras vezes é necessária. O operário, o funcionário público, 
todos eles cumprem seus compromissos contratuais e profissionais, talvez 
não tanto pelo sentimento do dever, mas pelo fato de desejarem permane-
cer em seu posto ou porque querem melhorar sua posição. O médico, o 
advogado, o artesão, o comerciante cumprem à risca seus acordos, a fim 
de deixar satisfeita sua clientela e assim ampliá-la e também para manter o 
crédito. A pena ou a execução judiciária são a última coisa em que pensam. 
Existem grandes casas comerciais que, por princípio, não recorrem à jus-
tiça e procuram evitar que outros recorram contra elas. atendendo,para 
isso, n1uitas vezes, a recla1nações injustificadas. Não pagan1ento e reclarna-
56 Eugen Ehrlich 
ções injustas são respondidas através do rotnpimento das relações comer-
ciais; são tão auto-suficientes em sua posição, que podem desprezar a pro-
teção jurídica. Também pessoas bem posicionadas na sociedade, em geral, 
não recorrem à justiça em suas disputas com empregados e funcionários; 
sua influência social e econômica as inibe. As trade unions inglesas recu-
saram durante decênios o reconhecimento pelo Estado, abrindo, de 
forma consciente, mão da proteção legal; aparentemente não ~e deram 
mal. Os modernos trustes e cartéis possuem uma ampla gama de meios de 
coação para impor seus reclamos justos, e em muitos casos também os in-
justos, a todos os que entram em sua órbita de influência, sem nunca 
apelar ao poder do .Estado ou aos tribunais. En1 uma enqú.fte promovida 
pelo governo austríaco sobre o cartel do ferro, um de seus principais che-
fes, diretor Kestranek, declarou que para ele é secundário se o cartel tem 
caráter legal ou não, já que os compromissos assumidos são cumpridos, 
sejam eles legalmente válidos ou não: "Os industriais do ferro são homens 
que cumprem contratos, mesmo que estes não tenham validade jurídica". 
Ele poderia ter acrescentado que o empresário isolado, na maioria dos ca-
sos, pode ser obrigado a cumpri-los através de mecanismos tão eficientes 
que dificilmente um t'.ibunal estatal poderia fazê-lo melhor. Também 
para os operários a cobertura jurídica das convenções sindicais teria pouco 
significado, já que são observadas como se tivessem esta cobertura, em 
grande parte por motivos semelhantes aos dos industriais. Tanto os ad-
miradores, quanto os detratores da igreja católica admiram a coesão que se 
verifica em sua ordem jurídica. Nos países em que existe separação entre 
Igreja e Estado, esta coesão náo é garantida pela coerção estatal e nestes 
casos toda a estrutura repousa, acima de tudo, e em muitos aspectos exclu-
sivamente, sobre fundamentos sociais. Na França, mesmo após a separa-
ção entre Igreja e :Estado, o católico descrente continua a pagar seus im-
postos eclesiásticos. A execução através de "grupos de interesse" foi abor-
dada por Nothnagel- infelizmente falecido prematuramente- em seu 
livro de estréia. 
Talvez nenhum exemplo seja melhor para aclarar o que foi dito, do 
que as lutas salariais modernas. Durante anos o operário cumpriu à risca 
as determinações do contrato de trabalho. Que o levou a isto? Se não era 
seu sentimento do dever, era o temor da de111issão e do desemprego, a 
perspectiva de melhorar sua posição na empresa em que trabalha ou de 
ser prezado pelos companheiros e chefes. Para ele, cuja única propriedade 
são seus braços, recurso à justiça e execução judicial não são muito mais 
que palavras ocas. l)e repente, se filia à associação operária e esta decide 
que seus membros não podem cooperar com operários não organizados. 
Esta norma, porém, não tem força jurídica diante de tribunais e outras 
Fundan1entos da Sociologia do l)ireito 57 
instâncias governamentais; o operário, no entanto, a acatará sem se opor, 
pois ela parte de uma associação a que está intimamente ligado. E, no mo-
mento em que seus companheiros, com base nesta resolução, entram em 
greve, ele não vacila um minuto para aderir, rompendo assim o contrato 
de trabalho que por anos cumpriu tão rigorosamente, expondo-se e aos 
seus a riscos do desemprego; a miséria que segue à demissão perdeu agora 
seu caráter intimidador, a força da norma contratual -que é uma norma 
jurídica com potencialidade coativa - é totalmente neutralizada pela ou-
tra norma. A greve dividiu os operários do setor atingido em dois exércitos 
inimigos e nos dois campos as ordens dos líderes são obedecidas cega-
mente, apesar de que essa obediência não poderia_ ser garantida por via 
judicial. No fim vem o tratado de paz, o acordo tarifário. Se este acordo é 
passível de ação judicial, é assunto no mínimo controvertido; na maioria 
dos casos o direito vigente não permitiria que tribunais o reconhecessem 
como documento com validade jurídica. Mas isto não tem importância. 
Apesar de sua debilidade jurídica, ambas as partes o cumprirão à risca, 
mesmo os empresários que não o assinaram e também os operários que 
ingressaram mais tarde no serviço. Pois de agora em diante o acordo tari-
fário é o fundamento da ordem de trabalho no respectivo setor econômico 
e mesmo que as partes estejam descontentes com ele, sabem que esta or-
dem imperfeita é melhor que a luta permanente. 
Há, no entanto, formas de coerção que derivam sobretudo de normas 
jurídicas; são, por exemplo, a pena e a execução judicial. Que significado 
têm estas duas formas? São, de fato, elas que dão força à norma jurídica, 
como em geral se supõe? O direito sem coerção ou, em outras pàlavras, 
sem pena e sem execução judicial, de fato seria apenas um fogo que não 
queima, como pensa Jhering? (A propósito, há muitos tipos de fogo que 
não queimam.) Para responder em definitivo a estas perguntas, seria ne-
cessária uma pesquisa sobre os efeitos da pena e da execução judicial; mas 
uma análise superficial do dia-a-dia é suficiente para comprovar que o sig-
nificado de ambas é restrito. Abstraindo-se daqueles casos em que os tribu-
nais e outras instâncias são invocados, em virtude de litígio quanto à inter-
pretação a ser dada à lei ou a um fato - e nesses casos não se trata de 
impor o direito, mas de determinar o que é direito -, excetuando estes 
casos, vê-se que a pena e a execução judicial são fenômenos que não ocor-
ren1 en1 massa e só ocorren1 quando os outros meios de coação das asso-
ciações sociais, por qualquer motivo, falharam. 
Quanto à pena, as estatísticas são significativas para mostrar o seu sig-
nificado. Há casos de imposição de pena em todos os círculos sociais. Mas o 
direito penal é aplicado quase exclusivamente àqueles que estão excluídos 
da sociedade humana, quer em virtude de sua origem, quer em virtude da 
58 Eugcn Ehrlich 
miséria econômica, da educação desieixada ou do descalabro moral; evi-
dentemente há exceções, como os casos que envolvem pessoas transtorna-
das que não conhecem limitações sociais e os casos em que a posição social 
é de influência secundária (como ofensas, duelos, crimes políticos). Assim 
é quase só a estes excluídos da sociedade que a associação mais abrangente, 
o Estado, atinge com seu poder de impor penas. Aqui o Estado, como ór-
gão da sociedade, protege a sociedade daqueles que estão fora dela. O su-
cesso com que isto ocorre está demonstrado pela experiência de milênios. 
Cada vez mais se impõe a convicção de que o único remédio eficaz contra o 
crime consiste em reintegrar o criminoso na comunidade humana, para 
submetê-lo novamente·à pressão social. 
E que ocorre com a execução judicial? Já se acentuou que nos casos de 
prestação de serviço personalizado praticamente não tem qualquer in-
fluência; significado social ela só possui nos casos em que estão em jogo 
valores monetários, portanto, em apenas uma pequena fração da vida ju-
diciária. E mesmo neste caso cabe a pergunta se demandas que envolvem 
dinheiro são fundamentadas com a possibilidade da execução judiciária. 
Pois é evidente que o credor, ao conceder o crédito, leva em conta todos os 
fatores que poderiam mover um devedor a pagar sua dívida. Uma breve 
análise da organização do crédito, porém, nos ensina quão secundária é, 
neste ramo dos negócios, a coação jurídica. Pode-se afirmar sem medo de 
errar que em nenhuma economia mais ou menos desenvolvida a credibili-
dade repousa na possibilidade de uma execução judiciária. A credibili-
dade do cliente é estabelecida através de informações sociais e psicológicas 
a seu respeito e, neste caso, num estágio menos desenvolvido, a experiên-
cia diária é básica como fonte de informação, num estágio de maior desen-
volvimentocomercial recorre-se a organizações especializadas. Se as infor-
mações indicam que existe a probabilidade de ocorrer uma disputa jurí-
dica ou a necessidade de se recorrer a uma execução judicial, a credibili-
dade do cliente normalmente já está decidida· negativamente. 
A probabilidade <le obtenção de crédito está condicionada pelas pos-
ses, pela posição social, pelas necessidades econômicas, pelas relações so-
ciais e pela mentalidade do solicitante; todos estes dados devem fornecer a 
garantia de que o solicitante se aterá e cumprirá o combinado. É exata-
mente o crédito menos organizado e mais arrq_jado - e que em geral co-
bra os juros mais elevados para garantir-se contra eventuais perdas- que 
mais confia em que o sentimento do dever e as condições em que vive, le-
varão o devedor a saldar seus compromissos. Em todos estes casos trans-
parece a importância das associações sociais que são pressuposto da ativi-
dade creditícia. Nos casos em que se concede crédito a uni desconhecido, 
seu comportamento deve ter dado a impressão de que sua posição e suas 
Fundarnentos da Sociologia do l)ireito 59 
posses são uma garantia para sua credibilidade. Em Roma, onde a com-
pra. em virtude da penhora que ela implicava, na realidade era uma 
operação de crédito, dificilmente se comprava de um desconhecido, como 
mostram as fontes. 
A credibilidade, portanto, não resulta da perspectiva de que se possa 
recorrer à execução judiciária. Ela é muito antes a expressão econômica 
das relações sociais em que o credor se baseia ao conceder o crédito. Quem 
não tem uma posição que dê alguma gãrantia, não recebe crédito; com 
este só se realizam negócios à vista ou em troca de um penhor. Negócios à 
vista ou com penhora constituem um intercâmbio de posses e, em conse-
qüência, não pressupõe a possibilidade da execução judicial nem a ordem 
jurídica; negócios à vista ou com penhora se realizam até com primitivos 
que nunca viram um homem branco - basta proteger-se contra sua fero-
cidade. Numa sociedade civilizada, a posse é garantida pela ordem interna 
das associações e, em última instância, pelo Estado, a associação mais 
abrangente que a sociedade conhece. Negócios à vista e com penhora po-
dem realizar-se com qualquer pessoa, justamente porque, como simples 
troca de posses, não pressupõem uma coação jurídica, tornando-a, pelo 
contrário, supérflua. O direito de exigir penhora que possui o locador 
tem, assim, o efeito benéfico de possibilitar a qualquer um alugar uma 
moradia, independente de sua credibilidade; o locador pode apossar-se 
do objeto penhorado, caso não seja pago e poderá contar, neste caso, com 
a conivência da comunidade. Como na Inglaterra o locador não tem direi-
to de exigir penhora, exige-se na hora de alugar lease references, ou um 
atestado sobre a posição pessoal do locatário, sobre sua credibilidade. Ape-
nas o hoteleiro, que não tem possibilidade de verificar a credibilidade do 
cliente (who has no option as to the customer with wlwm he will deal), tem um 
direito legal à penhora (lien). Em vez do crédito, portanto, mais uma vez 
temos a segurança garantida pela posse. 
Superestima-se, como se nota, o valor da execução judicial, quando se 
vê nela o fundamento da ordem jurídica, como tantas vezes acontece, em 
especial entre juristas. De antemão, ela se restringe a uma fração da vida 
jurídica, isto é, aos casos em que há dinheiro em jogo e mesmo nestes casos 
ela perde muito em eficácia, se comparada à força das rel~ções sociais que · 
nos obrigam ao cumprimento de nossos compromissos. Não há dúvida de · 
que em geral o credor pode calcular com ampla m<rrgem de segurança a 
credibilidade do devedor; assim, os motivos que o levam a conceder o cré-
dito coincidem amplamente com os que levam o devedor a saldar seus 
compromissos. E, na realidade, quem der algum valor à sua imagem, a 
seus contatos sociais, a suas relações econômicas, em suma, quem der ai~ 
gum valor a seu crédito, não pensará em permitir que uma cobrança lhe 
60 Eugen Ehrlich 
seja feita por via judiciária; todos estes aspectos da vida são por demais 
importantes para serem perdidos em troca de uma vantagem temporária. 
Quem foi derrotado no jogo paga, mesmo que este pagamento não possa 
ser exigido por via judicial, mas por causa da pressão social; e a média das 
pessoas tem no mínimo tanta sensibilidade para a coação social, quanto a 
tem a média dos jogadores. Mesmo dívidas decorrentes de especulação fi-
nanceira e que não podem ser cobradas judicialmente via de regra são pa-
gas, apesar de que neste caso as conseqüências sociais e econômicas do 
não-pagamento são muito menores que en1 caso de dívidas comerciais. A 
comprovada ineficiência das leis de usura mostra claramente que os usuá-
rios podem ser levados a pagar sem execução judiciária. Os relatórios das 
organizações creditícias ligadas ao comércio provam que os meios de coa-
ção puramente econômicos (listas negras) têm mais efeito que a execução 
judicial; Nothnagel em seu livro citado apresenta, neste sentido, material 
já relativamente antigo, mas ainda não ultrapassado. Portanto, a execução 
judicial, assim como a pena, só existe para os degradados e excluídos da 
sociedade: para o devedor imprudente, o peculatário, ou o que está im-
possibilitado de pagar em conseqüência de uma desgraça. Mesmo que es-
tas pessoas representem um ônus para a vida econômica, sua importância 
relativa é muito pequena para que se possa dizer que o valor da ordem 
jurídica consiste nos meios que proporciona para o combate a tais ele-
mentos. 
Fundamentalmente, a abrangência da ordem jurídica coativa do Es-
tado, assim, se restringe à proteção de pessoas e posses contra os que se 
encontram fora da sociedade. O que o Estado realiza, além disto, para a 
manutenção do direito, é de significado secundário e pode afirmar-se que 
sem estas medidas a sociedade também não sucumbiria. Negócios reali-
zam-se, mesmo que precariamente, na velha repllblica polonesa e conti-
nuam a realizar-se no 01~iente atual, apesar de que o direito, por causa da 
corrupção e da ineficiência, ali praticamente não merece este nome. Antes 
que se realizasse a reforma judiciária na Inglaterra nos anos 30 do século 
passado, os benefícios do caro e moroso processo civil não atingiam mais 
que a camada superior da burguesia inglesa; isto, porém, não se constituiu 
em empecilho para que os ingleses se transforn1assem num povo rico e 
altamente civilizado. E mesmo na Alemanha e na Áustria a proteção jurí-
dica não era muito mais eficiente enquanto vigorava o antigo sistema judi-
ciário. Em condições assim restringe-se o crédito e procura-se inventar ou-
tros meios de segurança, o resto, porém, pern1anece por conta das associa-
ções sociais. Goethe, que notou claramente os limites da contribuição da 
suprema corte para o exercício do direito, colocou o problema de máneira 
muito correta. As coisas se complicam quando também falha a administra-
Funda111entos da Sociologia do !)ireito 61 
ção do direito penal. Mas a Hungria, o sul da Itália, a Espanha provam que 
um povo até pode suportar a rapinagem durante séculos. 
Não só nos primórdios da humanidade, quando toda a sociedade se 
compunha exclusivamente de pequenas associações, mas mesmo muito 
mais tarde e até no presente não faltam exemplos de sociedades que se 
mantêm com base exclusivamente na ordem interna de suas associações. 
Onde a força do Estado é muito fraca, a rigor, não há outra ordem; 
mesmo na era moderna sociedades européias se constituíram sobre a base 
da ordem interna de suas associações; como exemplos pode citar-se a ve-
lha república polonesa, a Hungria dos séculos XVII e XVIII, os reinados 
de Nápoles, da Sicília e o mesmo ocorre hoje no Oriente. Na Idade Média 
a fraqueza do Estado conduziu ao surgimento de associações específicas 
para a defesa do direito; na era moderna pode-se encontrar fenômenosparecidos nélS confeder.:t.çües da antiga Polônia, na can1orra e na Máfia em 
Nápoles e na Sicília. Por fim, pode-se citar as informações de Nõldeke a 
respeito dos árabes no século VI como prova de que um grande povo e até 
uma grande e rica cidade comercial podem persistir baseados exclusiva-
mente na força interna de suas associações. "É de salientar sobretudo que 
em lugar nenhum entre os árabes se encontra uma formação estatal. A 
gens, a tribo são unidades morais de grande autoridade, mas sem poder de 
coação ... Quem não participa de um empreendimento da tribo ou da gens 
expõe-se ao escárnio e ao desprezo, mas não há meio de coação contra ele. 
Somente a vingança de morte garante a segurança em determinados ca-
sos. Não tenho conhecimento de que qualquer crime seja castigado por 
outro meio que não seja a vingança privada. Roubar algo de um compa-
nheiro da tribo ou de um hóspede era moralmente condenado, mas orou-
bado não tinha outro meio a não ser procurar reaver por meios próprios o 
objeto que lhe fora tirado. Estas condições não só imperavam entre os be-
duínos, mas também nas cidades, até em Meca. Quase não se pode acredi-
tar que um lugar, cujos habitantes mantinham extensas relações comer-
ciais muito superiores aos beduínos - pouco tempo depois foram con-
quistadores e dominadores de meio mundo-, não possuísse uma autori-
dade. Mas deve-se acentuar que a autoridade moral das pessoas mais des-
tacadas compensava plenamente esta deficiência. Quando os cabeças de 
uma gens - que por sua vez também exerciam apenas uma autoridade 
moral - chegavam a um acordo sobre determinado assunto, era difícil 
que um indivíduo ou uma família se opusessem; apesar de que havia casos 
em que isto ocorria". Estas observações de Nõldeke mostram que a exis-
tência de tal sociedade só era possível em virtude da coesão extremamente 
forte e duradoura da parentela árabe e do respaldo. que cada um tinha 
entre os seus. 
62 Eugen Ehrlich 
Quando se recua aos primórdios da civilização humana, vê-se que a 
força da norma jurídica, que ainda náo se distingue das normas religiosas, 
morais e con1portamentais, repousa quase exclusivamente sobre a in-
fluência que os companheiros de cada associação têm sobre o companhei-
ro individual. Em geral todos se submeten1 sem resistência à ordem de sua 
família ou de sua parentela. J\ coerção jurídica ou a pena contra o compa-
nheiro pratican1ente inexistem; contra a resistência continuada usa-se o 
remédio da exclusão da comunidade e esta é considerada como a 111aior 
desgraça que pode atingir uma pessoa (en1 J-Iornero: cxqi/;'f]TW/;, aveuLoc;, 
'ÔeµicrTo<;). Aplicação coercitiva do direito e defesa violenta só se aplicam 
t.ontra o estranho, e1n relação ao qual as nortnas da própria con1unidade 
não têm validade. Estaríamos equivocados, se julgássemos estes fatos 
como pertencentes ao passado ren1oto. li<~e, con10 no início da evolução 
do direito, sua força repousa acin1a de tudo sobre a ação lerita~ 1nas ininter-
rupta das associaçües a que o indivíduo pertence. Neste sentido, n1esn10 
hc~je e111 dia, o direito se asse111elha nn1ito ;:\s outras nor111as sociais relativas 
à religi~1o, à 111oral, às boas 111aneiras, à 1noda. ·1·a1nhé111 hoje a exclusão da 
comunidade (na igr~ja, no clube), a perda do crédito, a perda da posiçt10 
ou da clientela constituen1-se e1n n1eios eficazes ao co111hate de oposiç~1o 
continuada. ·ran1bén1 hc~jc a pena e a exccuçf10 judicial, nas quais o jurista 
costun1a ver o flindan1ento de qualquer ordc111j11rídica, representa1n ape-
nas os n1ecanisn1os extren1os, utilizados contra os que são excluídos da so-
ciedade, assim corno antigan1ente a justiça pelas próprias tnãos era utili-
zada contra os que pertencia111 a uina con1unidade estranha. 
Mesmo assim. o fato de que a fOrça das normas sociais geraln1ente é 
atribuída à força coercitiva do Estado, merece uma explicaçào. ··roda falsa 
doutrina repousa sobre fatos que se observan1 na realidade; nossas per-
cepções e sensaçôes sen1pre são verdadeiras, incorretas só podem ser as 
conclusões que delas firn1amos. En1 primeiro lugar, é verdade que uma 
parte do direito, de fato, se n1antém efetiva através da coerção estatal. Esta 
parte não é grande nen1 muito importante, mas é justamente aquela que 
mais interessa aos juristas, pois eles começarn a lidar com o direito justa-
n1ente no ponto em que existe a n(:'.cessidade da coação. Além disso, exis-
tem normas que, sern a aineaça da pena ou da execução judicial, não 
seriam observadas pela maioria. Apesar de tere1n significado secundário, 
enquadram-se neste caso as norn1as policiais (Max Ernst Mayer), que não 
são aplicadas exclusivamente pela polícia. São normas de decisão, c~ja ori-
gem é o Estado, mas que são estranhas à vida social, tornando-se conheci-
das e transformando-se em regras do agir so1nente quando formalmente 
se toma conhecimento delas. Este conhecitnento ocorre con1 a publicação 
das e transforn1ando-se e1n regras do agir son1ente quando forn1aln1ente 
Funda1nentos da Sociologia do l)ireito 63 
importante é o fato que de toda a organização militar e toda a estrutura 
tributária do Estado moderno - exatamente o que se costuma ver con10 
fundamento da vida estatal-dificilmente sobreviveria, por um mon1ento 
sequer, sem a coação estatal. Isto, porém, significa que o Estado e uma 
grande parte da sociedade se encontratn em oposição mútua. Em conse-
qüência desta oposição à organização, militar e tributária do Estado pern1a-
necem estranhas à sociedade, permanecendo como instituições restritas 
ao Estado. Creio que isto, no entanto, é apenas un1a f3se intermediária na 
evolução histórica. Nas antigas cidades-estado não acontecia isto. Todo o 
exército e a parte das contribuições para o Estado que provinha dos cida-
dãos eram socialmente organizados; em estados pequenos o mesmo ocor-
re até h~je. 
A concepção do direito co1no ordem coercitiva, portanto, Tepousa no 
fato de que estas partes constitutivas do direito, cuja força emana do Es-
tado, recebem un1 destaque unilateral. Mas isto não é tudo .. Etn parte esta 
concepção ten1 sua origem não somente na maneira de se encarar o direi-
to, n1as na maneira de se encarar toda a vida social. Vê-se a enorme oposi-
ção entre ricos e pobres na sociedade, vê-se que repousa sobre o pobre 
todo o peso do trabalho social; vê-se que os pobres não recebem pelo seu 
trdbalho nem o estritamente necessário para viver; vê-se que são pressio-
nados pela ordem jurídica a dar à sociedade muito 1nais do que dela rece-
bem. Que esta situação fosse suportada indefinidatnente pelos desprivile-
giados, só parecia possível 1nediante a arneaça da coação estatal. Esta idéia 
fOi levada às últin1as conseqü~ncias na filosofia da histó~ia dos socialistas. 
Ela parte da organização econômica pritnitiva da sociedade - da ordem 
fauniliar e de parentela, da econo1nia don1éstica fechada, da atividade arte-
sanal-, onde havia uma distribuição n1ais ou nienos eqüitativa dos resul-
tados do trabalho con1um (Engels, Rodbertus); ela 1nostra, depois, con10 
esta situação fOi-se n1odificando sob a influênciá do capitalismo em prejuí-
zo do cada vez nlaior número de despossuídus e e1n benefício do cada vez 
n1enor número de proprietários (f\lfarx). A velha ordem econômica era 
sustentada por todos que dela se beneficiava1n; a nova, a capitalista, seria 
sustentada exclusívan1ente pelo Estado e este é uma organização artificial-
mente fortalecida para defender a ordem jurídica baseada na proprie-
dade, no contrato e no direito hereditário. Coerenten1ente os socialistas 
conclamatn os despossuídos a contrapor a organização da grande massa à 
organização dos proprietários, para conseguir criar u1na ordem jurídica 
n1ais favorável a eles. 
Se estivesse correto que toda a ordem jurídica atual repousasse exclu-
sivamente sobre o Estado e que este não fosse outra coisa que a organiza-
ção da minoriacada vez mais restriia de proprietários em detrimento da 
64 Eugen Ehrlirh 
grande massa dos despossuídos, o futuro da orde1n jurídica e do próprio 
Estado estariam decididos. No entanto, a presente pesquisa já demonstrou 
que os meios de coação do Estado para a defesa da ordem jurídica de fato 
não se voltan1 contra a grande n1assa do povo, n1as somente contra uma 
pequena minoria, contra os excluídos, os que romperatn suas relações 
com a sociedade. A grande n1assa do povo não precisa ser domesticada 
pelo Estado, pois ela se submete voluntariarnente, por sentir que está em 
jogo sua própria ordem, a ordem das associa\:ües econômicas e sociais em 
que cada un1 está inserido. Por isso não pode ser correto que através destas 
associaçües uma ínfin1a 111inoria explore uma enorn1e maioria. A expe-
riência histórica e a psicologia de massas ensinan1 que isto, a longo prazo, 
seria impossível sem irrupçôes de violência. "I'oda grande greve-que im-
plica o rompimento de un1 acordo - prova que os meios de coerção do 
Estado não são suficientes para impor o direito a centenas e milhares de 
pessoas que a ele resiste1n. Se, portanto, a grande maioria das pessoas- e 
nela se inclui, con10 se sabe, todo o operariado - observa a ordem jurí-
dica, é porque tem, senão uma visão clara, ao n1enos uma sensação vaga de 
que a observação da ordem jurídica reverte em seu próprio benefício. Esta 
sensação tambén1 se manifesta en1 toda revolta que não visa objetivos polí-
ticos, mas apenas econômicos; a grande n1aioria coloca-se ao lado do po-
der estatal e nunca un1a revolta destas alcançou sucesso suficiente para im-
por-se duradouramente sobre u1na extensão significativa do território de 
um Estado. 
Na realidade, a atual ordem jurídica, por ser ao mesmo tempo u-n1a 
organização da produção e da distribuição de bens, não pode ser elimi-
nada, sem que co1n isto se elinline a possibilidade de sobrevivência tanto da 
grande massa quanto das pequenas minorias. Deste n1odo, para que a ci-
vilização continue a existir, a ordem jurídica não poderia simplesmente ser 
eliminada, mas deveria ser substituída de in1ediato por uma outra ordem 
jurídica, a socialista. Mas nenhuma pessoa racional, nem mes1no um socia-
lista, negará que hoje isto não é possível sem mais, a qualquer momento. 
Os socialistas inteligentes desde há muito tempo falam apenas de uma gra-
dativa absorção da economia capitalista pela socialista; que mesmo esta 
perspectiva não tem possibilidade de concretização dentro de um prazo 
previsível, penso ter demonstrado e1n outro lugar (Sürlrieutsche Mo-
natshefte, ano Ili). Se, portanto, a atual ordem social, apesar dos grandes 
sacrifícios que impõe à maioria da população, continua a apresentar uma 
estrutura sólida, isto se deve ao fato de que, no momento, não há outra que 
pudesse ser melhor ou ao menos igual, tanto para os proprietários quanto 
para os despossuídos. A questão do "objetivo final" pode ser colorada de 
lado; mesmo o operariado socialista da Europa contemporânea visa ape-
Funda111entos da S<>Ci<>i<>gia do l)ireito 65 
nas uma melhoria da atual ordem jurídica, para possibilitar-lhe um pro-
gresso social efetivo, mesmo que modesto. 
Na pressão exercida pelas associaçôes· sociais para conseguir a obser-
vância das norn1as, o indivíduo, aparentemente, sempre é um elemento 
ativo e ao 1nesmo tempo sofre seus efeitos; o 1nen1bro da associação tem 
parte ativa no exercício da pressão, mas ao mesmo tempo se sente cons-
trangido a subn1eter-se a ele. A coação das nor1nas é u1n fenômeno per-
tencente ao campo da psicologia das massas, mas ao 1nesmo ten1po ela pro-
duz o fenômeno da sua observância que pertence ao campo da psicologia 
individual. i\tfas seria errado insistir neste aspecto. Para a grande massa das 
pessoas que durante toda a vida se adaptam sen1 resistência à enortne en-
grenagem, não se trata do resultado de un1a elaboração mental cons-
ciente, n1as de un1a adaptação inconsciente aos senti1nentos e às idéias do 
contexto, que os acon1panha do nascimento até a morte. As normas mais 
in1portantes só agem por sugestão. Apresentam-se ao homem como or-
dens e proibiçôes, setn que fossen1justificadas, e ele as observa sen1 pensar 
muito sobre elas. As normas não coagem o hon1e1n, mas o educam. Ainda 
criança lhe são gravadas na mente; a criança ouve por toda parte: "isto não 
se faz!", "isto não é bom!", "é Deus que quer assim!". E a pessoa humana se 
inclina a obedecer com certa facilidade,justan1ente porque conhece muito 
bem as vantagens da obediência e as desvantagens da rebeldia. As vanta-
gens e desvantagens não são apenas sociais, mas também pessoais, pois 
quen1 obedece a uma orden1 poupa o serviço, às vezes árduo, de pensar 
por conta própria e evita a tarefa, às vezes ainda 1nais árdua, de tomar urna 
decisão. Liberdade e independência são ideais do poeta, do artista, do 
pensador; o home1n rnédio é um filisteu que não tem muita con1preensão 
para estas coisas, ele gosta do usuat do instintivo e odeia o esf(>rço intelec-
tual. É por isso que as mulheres se entusiasn1am tanto com homens enérgi-
cos; eles tomam as decisões no lugar delas e sufocam qualquer idéia de 
resistência no nascedouro. São muito agradecidas aos seus homens pelos 
esforços de que estes as poupam. 
Assim a adequação às normas leva à estruturação interna do homem; 
elas não só orientam a ação isolada, mas o transformam em um ser moral, 
crente, comportado, hábil, honroso, moderno. Ele se subtnete às normas 
por convicção e isto concede persistência às suas açôes; a pressão social 
exercida pelas normas sobre o indivíduo não pode mais ser superada por 
outras influências. As normas sociais 1noldam a individualidade. 
Talvez não seria de todo insensato se todo aquele que se dedica a pes-
quisar a influência das normas jurídicas procurasse responder primeira-
mente à pergunta, bem mais simples, relativa ao fato de não se encontrar 
na rua homem bem-vestido sem uma ~ravata. Não se pode tratar apenas 
66 Eugen Ehrlich 
de uma questão de elegância; não há dúvida de que existe um bom nú-
mero de pessoas que não dão qualquer importância à roupa e mesrno estas 
não aparecerão em público sen1 gravata. Para facilitar um pouco a pesqui-
sa histórica, observo que este elemento supérfluo e de gosto duvidoso da 
nossa indumentária tem sua origem no uniforme dos regin1entos croatas 
em Paris sob Luís XIV, ele onde també1n provém seu nome. E é exata-
mente pelo fato de que atualmente não é evidente a função da norma so-
cial que obriga a todo europeu civilizado que se preze a usar urna gravata, 
que a ocupação com o teina traria uma série de esclarecimentos também 
ao jurista. 
Normas sociais, sejam elas normasjurídicas ou outras, sen1pre têm sua 
origem numa associação; elas são obrigatórias somente para os ·membros 
desta associação e a obrigatoriedade se refere somente à relação do mem-
bro com a respectiva associação. Elas não têm validade füra do âmbito da 
associação. Se estas frases tivessem sido escritas na Antigüidade, teriam sido 
claras para todo n1undo e não requereriam qualquer comprovação. Na 
época ninguém tinha dúvidas de que o direito, a religião, a moral eram váli-
dos apenas para o próprio povo que freqüentemente não ultrapassava os 
limites dos muros da cidade e nunca atingia a outra tribo ou a outro g?-upo 
lingüístico. Com outro povo só se estabeleciam vínculos após o estabeleci-
mento de tratados de amizade ou comércio. () mesmo acontece ainda hoje 
entre os povos não pertencentes à civilização européia. É verdade que em 
geral a hospitalidade tem caráter sagrado, mas o hóspede, no momento em 
que entra na Glsa, é incluído na comunidade familiar e a proteçào que lhe é 
garantida em geral cessa no momento em que abandona a casa. 
Na atualidade não é mais exatamente assitn. Mas está claro que as nor-
mas referentes à n1oral, às boas maneiras, à moda tê1n sua validaderestrita 
a determinado círculo. Mas as normas do direito valen1, ao menos em 
parte, para todos e em relação a qualquer urr:, Três ou quatro religiões 
universais proclamam suas verdades a toda a humanidade. A moralidade 
moderna igualmente nào conhece mais os antigos limites tribais. A ques-
tão é determinar o que isto significa. 
No que tange às religiões, de anten1ão tanto a sua dogmática quanto 
suas normas rituais se restringem aos seus adeptos. Quando se apresen-
tam como religiões universais, isto apenas significa que suas portas estão 
abertas para todos os que aceitam suas verdades. Neste aspecto se diferen-
ciam das religiões nacionais da antigüidade, mas a diferença está num ou-
tro nível. 
De maneira diferente se apresenta a moderna moralidade, tenha ela 
fundam~ntos morais ou filosóficos. Ela quer impor os mandamentos 
morais a todos e a tudo. No entanto, deve-se acentuar com ênfase que isto 
Funda1nentos <la Sociologia do I)ireito 67 
nunca foi n1ais do que pura pregação ou doutrina e que esta moralidade 
nunca se transformoú em regra do agir para a grande massa das pessoas. 
l'\tfandamentos morais continuam a ser cumpridos à risca somente no cír-
culo familiar ou de amigos; à medida que os círculos se ampliatn, sua fOrça 
diminui e etn relação ao estranho o homem médio atual praticamente não 
conhece uma moralidade que o comprometa a mais do que a uma simples 
gentileza que não implica etn qualquer esforço maior. O ódio ao inimigo 
da pátria continua a ser louvado con10 o era na tnais retnota Antigüidade. 
O nível que a n1oralidade alcançou no hon1en1 n1oderno, quando se ron1-
pen1 todos os laços sociais, pode1nos aquilatar pelos relatos dos horrores 
praticados nas colônias e estes r~latos certan1ente aprese11tan1 apenas unia 
fraç<lo do que integrantes cios povos n1ais civilizados da terra pensan1 po-
der btzer con1 autóctones indefesos. 
Utna série de nor1nas jurídicas, porén1, vale para todos e diante de 
todos. Wias estas pertencem ao direito estatal ou então são puras normas 
de decisão, isto é, um direito válido para tribunais e órgãos estatais, mas 
náo são regras do agir. Inclusive o assitn chamado direito internacional 
privado e penal contén1 apenas nor1nas de decisão; destina-se somente aos 
órgãos governan1entais, não ao povo. O direito vivo, mestno quando tenha 
origem estatal, restringe-se, quanto ao seu conteúdo, a uma associação. Os 
direitos e deveres emanados do direito estatal pressupõem o direito de ci-
dadania, o direito familiar pressupôe pertencimento a uma comunidade 
fan1iliar, o direito corporativo pressupôe a participação numa corporação, 
o direito contratual pressupõe o contrato, o direito hereditário mais uma 
vez pressupõe o pertencin1ento a uma comunidade familiar ou a aceitação 
de um benefício testamentário. Outros direitos e deveres decorren1 da 
condição de funcionário público, de servidor do Estado. A situação, hc~e 
em dia, apenas tnuda em relação ao direito à vida, à liberdade e à posse, 
pois este, ao tnenos no âmbito incontestado da civilização européia, não 
pode ser negado a ninguém, independentemente de seu pertencimento 
étnico ou racial. Esta é uma conquista relativamente moderna; ainda no 
século XVI o estrangeiro não tinha garantidas a vida e a posse. Nas regiões 
limítrofes da civilização ainda hoje não há esta garantia, como o demons-
tram a história colonial e o destino dos negros na América. A legislação 
antiescravocrata do século XIX cotnprova quão difícil fOi ensinar aos po-
vos mais ci,1lizados da terra o respeito pela vida e pela liberdade dos ne-
gros indefesos. Mas, apesar de todas estas restrições de ordem temporal e 
local, o respeito pela vida, pela liberdade e pela posse de todos os homens 
hoje não é mais somente uma questão de norma de decisão ou de regula-
mentação estatal, mas transforma-se, de fato, ·em fundamento do direito 
vivo. Neste âmbito acanhado a humanidade hoje pertence a uma grande 
68 Eugen Ehrlich 
associação jurídica. Isto, porém, não vale para outras áreas do direito; so-
bretudo não é válido para o direito contratual. A insegurança na área do 
crédito - um fato pern1anente em relatórios con1erciais - é prova disto. 
Apesar de tudo isso, permanece de pé o fato de que na atualidade per-
siste a ética religiosa e filosófica que não restringe sua n1oralidade a apenas 
uma associação humana. Este fato, no entanto, requer un1a explicação. Ele 
indica que entre os espíritos n1ais destacados do inundo já despontou a 
concepção de uma moralidade universal, de un1 direito que não conhece 
limites. Esta idéia hoje ainda não é mais do que uni sonho que existe ape-
nas na cabeça dos n1ais nobres e dos melhores, rnas pro1nete un1 futuro 
melhor e se tornou realidade no direito vivo, ao n1enos en1 tal medida que 
nas regiôes em que reina a ci\·ilização n1ais adiantada se garante a toda pes-
soa a vida, a liberdade e a posse.

Outros materiais