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Currículo Escolar: Algumas Reflexões

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24 - outubro de 2008 11111
SSSSS
Ano IX nº 24 - outubro 2008
A história da educação e o currículo escolar
este Suplemento,
optamos pela reflexão
sobre o Currículo
Escolar, por entender que, no
momento atual da educação
paulista, ela é oportuna e necessária.
Contamos com os artigos A história
da educação e o currículo escolar, de
José Luís Sanfelice;Políticas para o
Currículo Escolar: Significados e
“... As disputas pelo currículo – sobre quais experiências serão representadas como válidas ou qual língua
ou história será ensinada – são inquestionavelmente permanentes.” (Michel W. Apple*)
Currículo Escolar: algumas reflexões
José Luís Sanfelice (*)
NNNNN
enti a necessidade de relacionar o
tema central – currículo escolar-
com a história da educação, em
especial a história da educação
brasileira, para não perder a dimensão de
historicidade que a abordagem exige. Minha
preocupação estará centrada no entendimento
do currículo escolar como uma produção
histórica intencional.
Desde as origens da educação, entendida
sob a ótica da prática formal escolar, discutiu-
se, mesmo que sob outras nomenclaturas e
não necessariamente usando um conceito de
currículo, quais conhecimentos, valores,
comportamentos e habilidades aquela
instituição deveria disponibilizar (impor?) aos
educandos. Então, através do percurso
histórico, é possível constatar-se como as
propostas curriculares foram se alterando nos
seus fundamentos filosóficos, quanto aos
ideais pedagógicos, em relação à concepção
de homem e, principalmente, no que diz
respeito aos conhecimentos a serem
socializados. Bastaria lembrar, sem ter que
entrar em detalhes, quanto é antiga a discussão
travada entre os defensores de uma orientação
curricular voltada para a formação mais
humanística e os adeptos de uma formação
mais de caráter científico. Quanto já não se
escreveu, também, sobre uma formação mais
generalista ou uma formação mais
especializada dos educandos? E a educação
religiosa? Deve ou não fazer parte do currículo
escolar (em especial da escola pública)? Desde
quando esse debate está em pauta? Hoje se
discute formação profissional, formação
técnica, tecnológica e formação para o
mercado. E qual currículo?
É razoável lembrar também que os jesuítas,
ardorosos combatentes da Reforma Protestante
e ativos participantes da empresa colonial
portuguesa no Brasil, discutiram durante
muitos anos o conjunto das suas ações
pedagógicas, o eixo do seu currículo de ensino,
até que universalizaram seus procedimentos
pela edição do Ratio Studiorum. Pode-se dizer
Implicações para a Escola, de Mara
Regina Martins Jacomeli; Reforma
do Estado e política educacional: o
contexto para a reforma curricular em
tempos neoliberais, de Lalo Watanabe
Minto; Currículo e Histórias de Vida,
de Belmira Oliveira Bueno, Daiane
Antunes Vieira Pincinato, Márcia
Maria Brandão Santos; Escola e
Currículo - A Discussão Necessária, de
AbordagemAbordagemAbordagemAbordagemAbordagem
EditorialEditorialEditorialEditorialEditorial
*APPLE, Michael W. e colaboradores – Currículo, Poder e Lutas Educacionais, Porto Alegre: Artmed, 2008.
que os jesuítas tinham bastante clareza do que
queriam na educação e na catequese, dentro
do processo da Contra-Reforma e de conquista
européia sobre a América e os povos indígenas:
formar cristãos, quadros da própria ordem
religiosa e ilustrar parte das elites. Os propósitos
jesuíticos junto à Coroa portuguesa, em certo
momento, não foram mais partilhados
integralmente pelo ministro Pombal (ilustração
abaixo). Pombal não só expulsou os jesuítas
do reino, mas também fundou escolas
renovadas, reformulou outras, mudou
currículos, tornou obrigatória a língua
portuguesa e, no Brasil, instaurou as Aulas-
Régias. Pode-se dizer que os objetivos do
déspota esclarecido não visavam mais somente
à formação de um homem cristão, mas sim do
nobre de Estado, pelo menos na Metrópole.
Em última instância era o Estado e a
nacionalidade que deveriam sair fortalecidos,
sob o comando das classes dominantes.
Mais um exemplo e sem ser exaustivo: na
história bem recente da educação brasileira, a
ditadura civil-militar do capital, que ocupou o
poder de Estado com o movimento golpista
de 1964, fez profundas incursões na legislação
e organização escolar, nos currículos e nos fins a
serem alcançados pelos diferentes níveis e
modalidades de ensino. Daquelas ações
resultaram a Reforma Universitária de 1968
(Lei 5540/68) e a Lei de Diretrizes e Bases de
n. 5692/71, dentre outras iniciativas. Os
currículos de profissio-
nalização com-
pulsória, por
e x e m p l o ,
foram logo
Helena Machado de Paula
Albuquerque; que abordam
variadas questões sobre o currículo.
Ainda, temos uma entrevista com
Supervisor de Ensino sobre suas
concepções de currículo e seu
importante trabalho na Diretoria de
Ensino. Finalmente, as resenhas de
três obras sobre o assunto e sugestões
de livros. Boa leitura!
Comissão organizadora:
Albino Astolfi Neto
Eliene Bonetti
Jairo de Carvalho
Maria Antonia de O. Vedovato
Maria Cecília Melo Sarno
Maria de Lourdes de Cápua
Maria José A. Rocha R. da Costa
Rosângela Aparecida Ferini
24 - outubro de 200822222
impostos. Teríamos ainda como sinaliza-
dores mais próximos de nós, todas as
alterações curriculares feitas no transcorrer
dos governos dos presidentes Fernando
Henrique Cardoso e Lula.
Não é necessário continuar apontando,
portanto, as inúmeras situações históricas em
que as sociedades modernas, nas quais a
educação formal se institucionalizou nas
instituições escolares, repensam, reformulam,
substituem, radicalizam em diferentes direções
a orientação dos seus currículos escolares. Mas,
já podemos expressar uma consideração: o
currículo escolar é sempre produto de um
contexto histórico determinado que,
tendencialmente, será alterado quando as
conjunturas sócioeconômicas e político-
culturais se transformarem, dentro de um
processo mais geral de permanências e
mudanças da sociedade como um todo.
É preciso ter clareza que, no desenrolar da
construção histórica das sociedades capitalistas,
sob o comando da revolução burguesa e já
quando com a burguesia no poder, que a
educação foi sendo pensada para esse tipo de
sociedade que se caracteriza por determinado
modo de produção, bem como para tudo que
decorre de tal especificidade. O Estado, em
tais circunstâncias, tornou-se estratégico.
Com a produção histórica da escola estatal,
no âmbito das sociedades capitalistas, desde os
meados do século XVI, o Estado foi moldado,
em especial pelo ideário burguês, para
constituir-se no principal articulador da
educação para o povo. Nesse empenho teve
que superar as influências até então
hegemônicas da Igreja Católica. Não obteve
sucesso, por exemplo, na universalização da
escola estatal primária com facilidade, sem
contestações ou sem superar adversidades e
contradições intrínsecas, produzidas por outros
interesses de ideologias, grupos ou classes sociais.
Mas, pode-se dizer que o Estado consolidou-
se no papel de educador do povo, usando a
educação formal da instituição escolar como o
veículo de execução da referida tarefa.
Consagraram-se, naquele contexto, os
princípios da laicidade, da gratuidade, da escola
única e gratuita para todos. É claro que não foi
esse o único mecanismo utilizado para se
proceder à sujeição do povo à nova ordem
sócioeconômica e cultural. Em última
instância: era preciso encontrar as formas pelas
quais as classes trabalhadoras seriam preparadas
para atenderem de forma pacífica e disciplinada
às determinações do mundo do trabalho, sob
a égide do capital.
Tornou-se uma necessidade histórica
pensar a escola estatal e o currículo escolar de
forma intencional. Não se pode acusar a
burguesia de ter agido com má-fé, pois ela tão
somente foi, no limite, em busca dos seus
interesses de classe e que não são exatamente
os interesses de toda a sociedade ou de todas as
classes. Veja-se, como um dos exemplos
possíveis, o denominado Movimento da Escola
Nova nos países centrais do movimento
capitalista mundial. A educação foi
“revolucionada”nos seus pressupostos e
métodos, na busca de cientificidade, na
concepção em torno da criança, no papel do
professor, na organização escolar e, muito, mais
muito mesmo, nos seus conteúdos curriculares
disciplinares. Era, de certa forma, a busca de
superação da considerada educação tradicional
sob a influência religiosa, fosse ela católica ou
reformada. Mas não se tratava de continuar a
revolução rumo à liberdade, igualdade e
fraternidade universais, pois era preciso, na ótica
burguesa, consolidar a sociedade capitalista,
cuja essência estrutural está baseada na
exploração do trabalho pelo capital. A educação
formal escolar e os currículos escolares
precisavam atrelar-se a tais propósitos.
Sabe-se dos reflexos do Movimento da
Escola Nova no Brasil e, com grande freqüência,
o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova,
de 1932, é considerado um marco da expressão
daquele novo ideário educacional por estas
terras. Sabe-se também que a realidade brasileira
não era exatamente a realidade européia e que,
conseqüentemente, os desfechos práticos do
Movimento da Escola Nova por aqui e por lá,
foram bem distintos.
É preciso considerar que desde sempre, após
o processo de colonização portuguesa, o Brasil
atrelou-se à economia capitalista mundial, quer
como colônia ou após sua “autonomia” política,
mais formal do que real. No campo econômico,
as determinações externas sobre o país e a
sociedade foram e são ainda infinitas. A nossa
História da Educação, portanto, aconteceu quer
em decorrência das determinações externas,
bem como das determinações postas pelas
especificidades locais. Os currículos escolares
aqui ministrados, por sua vez refletem, não de
forma mecânica, mas sim tendencialmente, esta
situação histórica. A escola estatal brasileira teve
que responder às necessidades que foram se
impondo para um país de economia subalterna,
história da educação e constatar que se torna
inevitável formular indagações. Por que temos
currículos escolares considerados abrangentes,
sólidos em conteúdos, alicerçados em bases
filosóficas e científicas para as escolas
consideradas formadoras de parte das elites?
Escolas que circulam nos noticiários como
sendo as melhores do país? E, por que temos
currículos de aligeirado treinamento para uma
precária formação profissional de jovens que
irão, ainda muito jovens, ao mercado de
trabalho? É porque as relações do capital com
o trabalho, mediadas pelo Estado, determinam
em última instância, os conteúdos curriculares
voltados à formação de cidadãos que, sendo
considerados formalmente iguais perante a lei,
estão “destinados” socialmente a ocuparem
diferentes postos, funções e papéis numa
sociedade que, na ótica dos mais privilegiados,
deve permanecer como está.
Na história da educação brasileira mais
recente, desde a ditadura civil-militar de 1964
até os dias de hoje, diferentemente do que
imaginam alguns educadores, os mecanismos
de controle sobre a escola estatal foram cada
vez mais ampliados. Os discursos oficiais
podem não revelar ou não referendar a
constatação, mas ela é um fato. Depois da
ditadura e, com o pretexto de se superar a
legislação do arbítrio, se alterou profundamente
o quadro institucional da escola estatal.
Para não arrolar todos os indicadores que
levam à constatação acima, aponto apenas
alguns: o golpe dado para a aprovação da LDB
de 1996, que usurpou e ignorou a proposta
de projeto de lei que se produzia na sociedade
civil; a municipalização do ensino estatal que
sem ter apenas o propósito de deslocar a
vigilância para o poder mais local, visa também
outros objetivos de controle sobre o próprio
município; o FUNDEF/FUNDEB; a reforma
do ensino profissional; os PCNs; os Temas
Transversais; os múltiplos sistemas de avaliação
do aluno, da escola, do professor, dos gestores;
as classificações comparativas de desempenho
entre as unidades escolares; a anuência para
que se adquira e consuma apostilas produzidas
pelas empresas de ensino privado; os bônus
salariais vinculados à produtividade; as metas
“sugeridas” pelas agências multilaterais de
financiamento e a imposição unificada de
que vivenciou três séculos de práticas
escravistas, que desenvolveu uma sociedade
patriarcal, influenciado pela religião católica e,
sempre, de profundas desigualdades sociais. Os
currículos escolares, por exemplo, “teimaram”
durante muito tempo em diferenciar as
disciplinas e os conteúdos ofertados
(impostos?) aos meninos e meninas que
passaram a freqüentar escolas, mesmo que os
representantes de ambos os gêneros
pertencessem às elites. E diferenças curriculares
muito mais profundas marcaram sempre a
separação entre a “escola para os pobres” e “a
escola para as elites”.
Os exemplos retirados da História da
Educação mostram, claramente, que os cur-
rículos escolares não são desinteressados. É
sempre possível dizer que não poderia ser de
outra forma. O empenho do Estado em prover
a educação formal de escolas estatais, com
grande ônus de custos/investimentos em
prédios, salários, formação de pessoal e gastos
de consumo não pode limitar-se a um mero
processo civilizatório. O Estado tem seus
interesses para além disso, pois
civilizar as novas gerações é o mínimo
que se espera em termos de sobre-
vivência da própria sociedade.
O Estado não é uma instituição
que se confunda com o governo
de plantão. Ele é uma instituição
mais permanente e de grande
alcance sobre a sociedade. O
Estado educa, vigia, julga, pune e,
por complexos mecanismos
histórico-sociais, ganhou legi-
timidade para praticar a violência
em certas situações, em especial
quando defende a propriedade privada dos
meios de produção em mãos do capital.
Evidentemente, os aparelhos do Estado não
se movem em abstrato, pois eles são acionados
por seres humanos com identidade. Os
governos, mais passageiros do que o Estado,
instalam-se nele por caminhos considerados
democráticos ou não e aí, o Estado que não
existe em abstrato, atende aos interesses das
pessoas, dos grupos ou das classes sociais que,
conjunturalmente estiverem na hegemonia
da sociedade. Em muitas situações há
confrontos e, também por um processo de
contradições intrínsecas, grupos não
hegemônicos acabam por alcançar alguns
dos seus interesses. Resta constatar que uma
sociedade com tais características é
incompatível com um regime político de
democracia plena e menos ainda para a
justiça social.
Em educação, gradativamente, o Estado
passou a discursar em prol da formação de um
cidadão. E, qual seria o currículo escolar mais
adequado para se formar um cidadão?
Cidadãos considerados iguais perante a lei, mas
de uma realidade sócio-econômica e cultural
desigual. É só olhar pela janela que dá acesso à
,
24 - outubro de 2008 33333
material didático-pedagógico produzido pelas
Secretarias Estaduais de Educação. O controle
está agora induzindo que cada docente da
escola estatal seja um vigilante da
produtividade e do desempenho dos demais
docentes da sua unidade escolar. E por que
aumentou o controle?
Mostra a história que os Estados nacionais
periféricos da globalização econômica ficaram
menores e mais frágeis perante o movimento
do capital transnacional, desde as últimas
décadas do século XX. Nesse sentido os
Estados cumprem agendas às quais aderem,
sem grandes chances de resistências e com o
consentimento das elites locais que se
beneficiam do processo. O fenômeno da
privatização dos serviços públicos, por
exemplo, é um bom indicador. A perda dos
direitos sociais conseguidos com muita luta
dos trabalhadores no passado, seria outro
indicador. A educação, por sua vez, tornou-
se uma pauta presente nas discussões das
cúpulas que comandam a nova organização
mundial do trabalho.
Do ponto de vista interno, ou seja, da
atuação do Estado sobre a sociedade local,
passou a ser necessário um maior controle. O
Estado, precisa gerenciar, por exemplo, a
miséria, o aumento do desemprego estrutural,
o primeiro emprego e o acesso à escolaridade,
dentre outras mazelas, com ações e programas
que, mesmo sendo paliativos, tendem a
diminuir o poder das tensõessociais geradas
pelo desespero.
Educar a mão-de-obra potencial que
transita pela escola estatal, com uma oferta
crescente de mão de obra feminina e juvenil,
passou a ser uma meta. Os países periféricos da
globalização econômica se tornam praticamente
obrigados a formar muitos trabalhadores para
o trabalho simples e que se constituirão em
mão-de-obra barata para o capital transnacional
que aqui implanta suas indústrias ou
subsidiárias. Uma escolarização básica e uma
(*) Prof. Titular em História da Educação no
 DEFHE/FE/UNICAMP. Pesquisador do
Grupo de Estudos e Pesquisas “História, So-
ciedade e Educação no Brasil - HISTEDBR.
e-mail: sanfelice00@hotmail.com
formação profissional média respondem a isso.
Uma parte infinitamente menor dos traba-
lhadores chegará à formação técnica e
tecnológica para o trabalho mais complexo. E
a orquestração de todo o propósito do capital,
na educação, se realiza, em grande parte, pelo
controle da escola estatal e pelo controle do
currículo de toda a educação nacional.
Finalmente cabe indagar: como, no Brasil,
o Estado vem executando a sua tarefa? Bem,
na conjuntura atual, por não se viver sob um
mandato governamental resultante de
nenhuma ditadura política, mas sim da
ditadura do capital, busca-se o consentimento
da sociedade para as ações que são
empreendidas. O trabalho solidário, o
voluntariado, os Amigos da Escola, a Escola
Aberta, o Adote uma Escola, os estágios não
remunerados pontuados nos currículos e outros
mecanismos estão demonstrando sua eficiência.
Participar de tais programas virou sinônimo de
cidadania e conscientização política. Enquanto
Políticas para o Currículo Escolar: Significados e
Implicações para a Escola
Mara Regina Martins Jacomeli (*)
MMMMM
uito oportuna a iniciativa
do Sindicato-APASE em
problematizar a temática do
currículo escolar. Em tempo
de ventos neoliberais, é urgente a articulação
de um amplo movimento dos educadores para
entender as propostas de determinadas
políticas educacionais que chegam nas escolas,
via currículo escolar. É com esse objetivo que
debaterei com essa categoria profissional, no
intuito de colaborar com a questão.
No meu entendimento, as políticas para
o currículo escolar são mecanismos
fundamentais para a construção do consenso
e da hegemonia do projeto de sociedade sob
o capitalismo. Se fizermos uma análise mais
detida sobre a legislação e os documentos que
legitimam, por exemplo, os PCNs
implementados nos anos seguintes após a
promulgação da LDBEN de 1996,
perceberemos uma reorganização do discurso
liberal, ou neoliberal, em educação. Essa
reorganização é que está por trás de propostas
como aquela expressa por um “novo” currículo
para o ensino fundamental, fortemente
impregnado de conhecimentos valorativos, os
Temas Transversais, dentre eles: Ética, Saúde,
Meio Ambiente, Orientação Sexual, Trabalho
e Consumo e o da Pluralidade Cultural, que
é a adoção das perspectivas e bandeiras do
multiculturalismo pela escola.
Vale a pena enfatizar que o discurso
“oficial” brasileiro está em sintonia com as
políticas mundiais adotadas em âmbitos
sociais, econômicos e culturais do presente
momento histórico, em que, na área
educacional, se enfatiza que o papel da
escola deve ser o de formar o “cidadão”
para atuar numa sociedade democrática
e globalizada.
Esse “novo” momento social, segundo
muitos de seus defensores, pede um novo
conjunto de conhecimentos que ex-
pressem a complexidade da sociedade
globalizada. Entretanto, apesar da ênfase
na concepção de que estamos compar-
tilhando políticas educacionais extre-
mamente “novas”, ou “pós-modernas”, como
é o caso da proposta dos PCNs, elas são
meramente uma adequação do que já foi
discutido, no âmbito das ideologias
educacionais liberais, por exemplo, pelos
escolanovistas. Fazer esse tipo de afirmação e
análise não implica assumir uma visão
anacrônica de história. Implica entender, sim,
que a “base” teórica é dada pelo liberalismo,
mas essa “base” sempre foi reorganizada, a
partir de questões e características próprias
de cada tempo histórico e demandas sociais.
A análise das aproximações dos PCNs e
Temas Transversais, ou dos temas sociais, com
as propostas escolanovistas, elucida como o
liberalismo sempre utiliza a retórica
salvacionista da sociedade por meio da escola.
Em todos os momentos de crise do
capitalismo, o discurso de transformação da
escola como forma de mudar os homens e,
conseqüentemente, a sociedade foi acionado,
revivendo o mito da escola redentora e
salvadora da humanidade. Nessa retórica,
chamada por mim de liberal-escolanovista,
as conquistas e o desenvolvimento da
sociedade não se dariam pelas trans-
formações das formas de produzir, mas sim,
pela promoção via escola. Na abordagem
liberal-escolanovista, a função da escola é de
redistribuir os indivíduos, conforme o
talento de cada um, não pelo privilégio de
sangue ou outros, mas pela competência. A
supervalorização do indivíduo escamoteia o
fracasso, sendo que suas causas não teriam
raízes nas questões de classes sociais, mas, sim,
na capacidade de “vencer” de cada um.
Para tanto, é fundamental a formação de
“valores”, já que primeiro o indivíduo deve
ser “convencido” de que não há nada mais
possível e melhor de se fazer e acreditar, a
não ser aquilo que é veiculado pela escola. E
isso pode ser verificado nas propostas
escolanovistas do começo do século XX.
Como isso está se dando hoje? Como
podemos entender as políticas em educação
adotadas aqui para nossas escolas? No caso
do Brasil e no caso da maioria dos países
ocidentais, diretrizes das políticas
educacionais, sob a égide do neoliberalismo
e do discurso de globalização da sociedade
capitalista, estão sendo ditadas por
organismos multilaterais, como já dito. O
marco da articulação de tais agências
internacionais, como Banco Mundial, FMI,
UNESCO etc., na explicitação de tais
políticas, foi dado pela Conferência Mundial
de Educação para Todos, realizada em
Jomtien, na Tailândia, em 1990, que foi
reproduzida pelo documento conhecido
como Relatório Delors. A Conferência de
Jomtiem teve como resultado a assinatura da
Declaração Mundial sobre Educação para Todos
e o Marco de Ação para a Satisfação das
Necessidades Básicas de Aprendizagem. O
Brasil foi signatário desses documentos e está
isso, os currículos escolares vão se esvaziando
em conteúdos, substituídos por práticas e
saberes que cada vez auxiliam menos a pensar,
entender e explicar a própria realidade, para
nela se posicionar como um sujeito da história.
Que fique claro: O Estado capitalista-
burguês não nos ajudará a sairmos de tal
situação. A principal prova contra ele é a
precarização que vem fazendo das políticas de
formação de professores. Estamos diante de
um desafio; não é chegada a hora de educarmos
o Estado e de tornarmos realmente pública,
de interesse publico, a escola estatal? O Estado
sabe muito bem o que está fazendo, e nós?
Campinas, inverno de 2008
24 - outubro de 200844444
claro que o Banco Mundial foi o grande
financiador das propostas educacionais para
os países em desenvolvimento, entre os quais
se encontra o Brasil.
Se as agências internacionais ditam o quê
e como devem os países em desenvolvimento
investir para oferecer educação básica a
todos, por outro lado, as reformas
curriculares aplicam-se para todos, sem
distinção de países desenvolvidos ou em
desenvolvimento. A “nova” visão de currículo
e, conseqüente, conhecimento que deve ser
ministrado pelas escolas estão presentes em
reformas educacionais pelo mundo afora. A
impressão que nos causa é a de que há uma
proposta comum de conhecimento que deve
ser divulgada em todas as escolas, prin-
cipalmente as do Ocidente. Do ponto de
vista ideológico, é a conformação de todos
para uma mesma realidade, sem
discordâncias, já que, segundo o discurso
neoliberal, não existe mais história, não há
mais a possibilidade de uma sociedade
socialista, a partir do fim da “guerra fria” e
do “fim” dos embates ideológicos. Segundo
essa mesma falácia, vivemos a supremacia da
sociedade capitalista e com ela háde se
ministrar os conhecimentos de valores para
(con) formar os homens. Está configurado,
portanto, uma das estratégias de
consolidação da hegemonia burguesa,
através das políticas educacionais brasileiras.
De acordo com um dos mais importantes
documentos sobre a política educacional
mundial, como é o caso do “Relatório
Delors”, da Unesco, o atual momento da
sociedade expresso pela globalização, pede
um “novo” conjunto de conhecimentos,
principalmente conhecimentos com ênfase
na formação social e ética e que prepare o
indivíduo para ser “cidadão do mundo”.
A questão que se coloca quanto ao
conhecimento que deve ser ministrado na
escola hoje, tem por pressuposto que o
modelo de ciência até então vigente na
sociedade está superado. Esse debate faz
parte do embate posto pela chamada “crise
de paradigmas”, em que se defende uma
“nova” forma de conhecer e “construir”
conhecimentos. Tal postura é referendada
por adeptos da chamada pós-modernidade,
os quais afirmam que, em função das grandes
transformações econômicas, tecnológicas,
culturais etc., as ciências e o conhecimento
decorrentes estão passando por um processo
de superação. A sociedade capitalista, agora
sob a égide da globalização do mundo, da
economia, da cultura e dos valores dos
homens, evidencia que o conhecimento
especializado não serve mais como referencial
de aprendizagem. Afirmando que nós somos
herdeiros da “racionalidade” e da cultura
grega clássica, alguns defensores dessa
perspectiva acreditam que tal herança deve
ser repensada. Os conhecimentos advindos
de conteúdos da Biologia, da Matemática,
da Física, da História, por exemplo, fazem
parte de uma seleção curricular que atendia
aos interesses de uma pequena classe social
da Grécia: os cidadãos gregos. Não atendiam
aos interesses do homem comum, como
os conhecimentos ligados ao trabalho
manual, ao cotidiano, às mulheres. Não
atendem hoje, também, por seu caráter
extremamente elitista, aos interesses
cotidianos da maioria da população. É
isso que just i f ica a necess idade de
“inversão” de valores e conteúdos a serem
ministrados pela escola, com forte ênfase,
agora, nos vários conhecimentos das
chamadas “competências”.
A pós-modernidade é entendida como
um “paradigma” que reflete os anseios de
“todos” na sociedade globalizada. Pós-
modernidade e globalização, dessa forma, são
faces de uma mesma moeda representativa
da sociedade capitalista. A necessidade de
uma nova forma de entender o
conhecimento produzido pelas ciências é
usada como justificativa para o
empreendimento das reformas educacionais
que vêm ocorrendo por todo o planeta,
principalmente a necessidade de
reformulação dos currículos.
A proposta teórica de Edgar Morin,
conhecida como teoria da complexidade1,
tem encontrado grande simpatia nos meios
acadêmicos, especialmente na área
educacional. Sua perspectiva é uma das
fontes teóricas inspiradora da visão de
conhecimento, divulgada pelos PCNs, por
exemplo. Nas análises desse autor
vislumbramos muitas das justificativas do
movimento da pós-modernidade, que
expressam a dis-
cussão de rom-
pimento para-
digmático das
ciências, pro-
blemática
presente nas nossas reformas curriculares.
A noção de “complexidade” discutida
aqui no Brasil, a partir de teorizações de
Morin, resumidamente, parte do princípio
de que os conhecimentos produzidos pelas
ciências modernas, com sua necessidade de
explicações lógicas e certas, não dão conta de
explicitar a “complexidade do real”. Lima
(2003, p. 73) apresenta um quadro
explicativo das relações do pensamento de
Morin, em que aponta: a) as expressões/frases
associadas com a abordagem: complexidade,
incertezas, incompletude, acaso,
transpenetração (relação todo parte segundo
Pascal), junção/ligar/religar; b) os conceitos
chaves associados com o paradigma: ordem,
desordem, organização, transdisci -
plinaridade, multidimensional, pensamen-
to complexo, auto-eco-organização, an-
tropossociologia; c) a filiação teórica:
princípio dialógico e translógico (“integração
da lógica clássica levando-se em conta os seus
limites”), princípio da Unitas Multiplex
(“escapando à Unidade abstrata do alto
(holismo) e do baixo (reducionismo)”), teoria
dos sistemas, teoria da informação, conceito
de auto-organização. Morin teria como
objetivos: “romper com o conhecimento
parcelar, reducionista e simplificador e
promover uma via que considera a confusão,
a incerteza no pensar e fazer científico de
maneira multidimensional”.
Noronha (2002, p.35) afirma que o
paradigma da complexidade, tendo como
pressuposto uma realidade complexa, na
qual se convive com processos dinâmicos
reversíveis e irreversíveis, com determi-
nações e indeterminações, precisa, portanto,
de uma abordagem metodológica que
abarque tanta complexidade. É aí que se
encontra, de acordo com a autora, um
grande problema, pois muitos pesqui-
sadores correm o risco de fragmentar a
realidade em vários aspectos particulares e
isolados. Isso pode gerar, na interpretação
teórica, a eliminação do entendimento das
“relações sociais que individualizam e
integram a chamada “complexidade”,
negando que a totalidade histórica possa ser
apreendida e que o conhecimento desta
totalidade possa ser construído.
Tanto os PCNs como as teorizações de
Morin estão em sintonia, no meu
entendimento, com o universo de
interpretação dos ideólogos da sociedade
capitalista. A presença de um discurso
próximo das abordagens pós-modernas é
bastante evidente. Uma das características
das teorizações pós-modernas é a valorização
do conhecimento que está mais próximo de
nosso viver, de nosso cotidiano. Também
estão presentes nas suas interpretações as
assertivas que a pós-modernidade utiliza para
referendar o “novo” momento da sociedade,
que vivencia uma “viragem paradigmática”:
a falência das grandes narrativas; a
substituição do “antigo” conceito de
totalidade defendida por teorias como o
marxismo; a defesa de um conhecimento
parcial e relativo; a crítica feita às ciências
modernas que são responsabilizadas por
todos os “males” sociais e ambientais
verificados ao longo do século XX; a
valorização do subjetivo, dos sentimentos
humanos e outros. Cremos, portanto, que
esse tipo de interpretação acaba por esconder
as verdadeiras causas da crise que assola o
capitalismo no atual momento histórico da
sociedade, já que por trás de tais defesas está
o que se camufla: entre outras coisas, e
principalmente, o fato da sociedade ser
estruturada em classes sociais distintas e
antagônicas, em que poucos detêm o controle
econômico, concentrando a maior parte das
riquezas produzidas e relegando a maioria
dos homens a uma miséria material extrema.
Também as reformas educacionais, via
alteração curricular, de uma maneira
geral, têm enfatizado que um dos seus
maiores objetivos é preparar o trabalhador
para que ele saiba atuar num mundo
marcado pelas transformações econômicas
e sociais da atual fase de globalização do
capitalismo. As transformações que estão
ocorrendo no mundo do trabalho, com a
mudança de paradigma organizacional do
taylorismo/fordismo para o toyotismo, no
nosso entendimento, têm influenciado as
políticas educacionais, já que o discurso
de expansão e de alteração do currículo
da educação básica parte do pressuposto
de que a escola precisa acompanhar tais
mudanças para oportunizar escolarização
adequada aos t raba lhadores . A
reestruturação produtiva part iu da
neces s idade de ins taurar mode los
organizacionais alternativos que dessem
respostas satisfatórias para superar a crise
financeira, de mercado (de expansão e
concorrência intercapitalista) e a crise
social (conflitos políticos e capital-
trabalho), verificadas nas décadas de 60
e 70 do séc. XX.
Ao enfatizar o modelo japonês de
trabalho como orientador das reformas
curriculares, as políticas educacionais acabam
cumprindo com um papel de desserviço na
preparação do trabalhador, posto que não
dá para conciliarem realidades sócio-
econômicas e culturais tão diferentes.
O discurso liberal dessas políticas
educacionais acaba utilizando-se da antiga
idéia de progressoeconômico e social pela
via de acesso à escola para todos os
1 Outros autores que comungam do entendimento sobre o “paradigma da complexidade”: L. H. O. Carvajal – Historia de las civilizaciones -, D. Bohm – A ordem implícita e a ordem superimplícita -, I. Prigogine
e I. Stengers – A nova aliança: metamorfoses da ciência.
24 - outubro de 2008 55555
trabalhadores, pois, ao não ter as condições
objetivas para se projetar na divisão
internacional do trabalho como país
produtor de tecnologias em larga escala, tal
qual os países mais desenvolvidos
economicamente, incorpora o discurso
salvacionista da sociedade via escola.
Entretanto, o entrave para a realização
desse novo projeto de formação para o
trabalhador, de acordo com muitas falas do
empresariado nacional, justamente se
encontra, numa questão que faz parte da
configuração cultural do povo brasileiro, ou
seja, a grande diversidade cultural, que
obstaculiza essa nova “visão de mundo” do
sistema produtivo. Daí a importância da
escola em passar determinados valores e
comportamentos que ressignificariam o
sentido de uma coesão social e cultural,
quebrando as resistências dos traba-
lhadores. Explicitando a afirmação acima,
o Instituto Euvaldo Lodi (IEL), da
Confederação Nacional das Indústrias,
afirma que é via escola e via Pedagogia da
Qualidade que serão repassados os novos
valores e atitudes pelo Brasil, expandindo
a aceitação dessa cultura, que para esses
expoentes só pode ser entendida em relação
ao mundo do trabalho.
E quais são esses valores e
comportamentos ligados a uma nova
perspectiva cultural? Aqueles que
desenvolvam laços de solidariedade, de
respeito e de valorização do sentimento de
pertencimento de grupo. Para isso, o mesmo
documento do IEL aponta que é
fundamental o conhecimento da cultura
oriental, em que estão presentes esses
ingredientes na formação do indivíduo (Cf.
ANDRADE, In: NEVES, 2000, p.72).
A mesma idéia está presente no Relatório
Delors, e não poderia ser de outro jeito, já
que esse documento é o norteador das
políticas educacionais pensadas para o século
XXI. Ao abordar os quatro pilares da
educação, quanto ao terceiro pilar, aprender
a viver juntos, o documento afirma que ele
representa um dos maiores desafios para a
educação. Nele está posto que o mundo atual
convive com a esperança no progresso da
humanidade e com seu oposto, a violência.
O século XX apontou em sua história um
potencial destruidor sem precedentes, bem
como conflitos por toda parte. Como então
fazer que a educação seja capaz de evitar os
conflitos e resolvê-los pacificamente? E a
Comissão responde que é por meio de
projetos comuns, pois assim as diferenças e os
conflitos tendem a desaparecer. Surge então
a idéia da diversidade cultural, essa sim deve
ser conhecida para que acabem as
intolerâncias entre os homens. À educação
fica a responsabilidade de transmitir
conhecimentos sobre a diversidade cultural
humana e, ao mesmo tempo, fazer com que
as pessoas compreendam suas semelhanças e
a interdependência de todos os seres do
planeta. É o que diz o Relatório Delors,
ensejando a questão da tolerância,
mecanismo interessante para não se discutir
as diferenças sócioeconômicas.
Sendo assim, a compreensão teórica dos
PCNs e de outras várias reformas curriculares
que “pipocam” pelo Brasil, ajuda os
educadores a “desvelar” as retóricas oficiais e
fazer com que os mesmos percebam o fato
de que muitas “novidades” no âmbito da
educação não passam de “velhas e gastas”
ideologias, travestidas e cumprindo com o
papel de hegemonizar a sociedade capitalista.
Marilena Chauí nos ajuda a entender essa
discussão quando aponta a necessidade de
“desmascarar” a ideologia burguesa, pois...
... primeiro, tal ideologia afirma
que a educação é um direito de todos,
mas, na realidade, as contradições do
Capitalismo não permitem a
realização dessa “idéia”, ao separar
trabalho intelectual do manual.
Segundo, a idéia burguesa afirma que
o Estado é um consenso da
comunidade, da sociedade civil para
garantir unidade e harmonia entre as
classes sociais, enquanto se oculta que
ele é um instrumento de uma classe
particular (a dominante), uma forma
de manutenção da divisão e das
contradições de classe. O terceiro, a
idéia burguesa de trabalho afirma que
este dignifica o homem, escondendo
que as condições reais de trabalho,
na sociedade capitalista, desu-
manizam, brutalizam, entorpecem o
homem. (...) Haveria ainda nu-
merosas outras “máscaras” (a
democracia, por exemplo) a encobrir
a realidade, e seria necessário
desmantelar a ideologia por uma
prática política nascida dos próprios
explorados. E em uma prática desse
tipo seria fundamental a crítica da
ideologia, preenchendo os silêncios e
as lacunas do discurso ideológico
(CHAUÌ, apud SILVA E SILVA,
2005, p. 207).
Para pensar as políticas educacionais no
Brasil e em São Paulo
É importante ressaltar que as medidas
legais adotadas para a educação brasileira,
desde a década de 1990, visam configurar e
rearranjar o modelo de sociedade a uma
pedagogia de hegemonia e de consenso em
torno do ideário neoliberal de homem. Sendo
assim, muitas ações foram efetivadas, como:
reformas curriculares, formação de
professores, processos de avaliação dos
sistemas de ensino, entre outros.
Dentre tais iniciativas, uma que tem
chamado muito a atenção de educadores das
redes públicas de ensino, ou melhor das redes
estatais de ensino, é aquela que afirma um
novo modelo de gestão escolar. Tal modelo,
em consonância com a minimização do Estado
no que diz respeito ao repasse de recursos
financeiros, tem apostado em parcerias com a
sociedade civil, na administração da escola,
entre outras medidas que mostram a relação
pervertida que se estabeleceu entre o que se
entende por política pública e setor privado.
É o caso, por exemplo, de parcerias
estabelecidas com Ongs. De acordo com a
Revista Nova Escola de junho/julho de 2007,
as Ongs: “atuando em áreas diversas e trazendo
soluções para os problemas que afetam o dia-
a-dia da direção e de professores, (...)
cumprem um importante papel: o de
contribuir para a melhoria da aprendizagem
dos alunos (p. 55)”.
Da mesma maneira, outra medida, que
busca atender aos anseios e ao discurso de
mais qualidade para a escola estatal, é a adoção
do chamado “apostilamento” das redes de
ensino bancadas com recursos públicos. Uma
das editoras que tem feito ampla divulgação
de parceria com os sistemas de ensino de redes
municipais, é a Editora Positivo. Sua
propaganda tem enfatizado que sua proposta
de apostilamento “revolucionará” o sistema
educacional que o adotar. Para tanto, oferece
no pacote “Sistema de Ensino Aprende
Brasil (SABE)”, um centro de pesquisa, que
diz contar com mais de 200 educadores
“qualificados”; livros didáticos integrados;
assessorias pedagógicas e um portal
exclusivo com homepage personalizada
para o município2.
É interessante perceber que por trás dessa
proposta está explícita a relação de incentivo
à iniciativa privada, na geração de renda e
desenvolvimento do mercado editorial. A
idéia do “apostilamento” também está de
acordo com as políticas do Banco Mundial
para a Educação Básica. Nessas estratégias
do Banco Mundial estão explicitadas em
qual “rubrica”, tal qual uma empresa privada,
deve o Estado investir para alcançar a
educação de qualidade. Vejamos:
A qualidade educativa, na
concepção do BM seria o resultado
da presença de determinados
“insumos” que intervêm na
escolaridade. Para o caso da escola de
primeiro grau, consideram-se nove
fatores como determinantes de um
aprendizado efetivo (...): (1)
bibliotecas; (2) tempo de instrução;
(3) tarefas de casa; (4) livros
didáticos; (5) conhecimentos do
professor; (6) experiência do
professor; (7) laboratórios; (8) salário
do professor; (9) tamanho da classe.
(...) ao mesmo tempo que desestimula
a investir nos três últimos –
laboratórios, salários docentes e
redução do tamanho da classe -,
recomenda investir nos primeiros e,
especificamente, em três deles:
a) aumentar o tempo de
instrução, através da prolongação do
ano escolar, da flexibilizaçãoe
adequação dos horários, e da
distribuição de tarefas de casa;
b) proporcionar livros didáticos,
vistos como expressão operativa do
currículo e contando com eles para
compensadores dos baixos níveis de
formação docente. Recomenda aos
países que deixem a produção e
distribuição dos livros didáticos em
mãos do setor privado, que capacitem
os professores na sua utilização, além
de elaborarem guias didáticos para
estes últimos; e
c) melhorar o conhecimento dos
professores (privilegiando a
capacitação em serviço sobre a
formação inicial e estimulando as
modalidades a distância) (BM, 1995,
p. 51, apud Torres, 2000, p. 134).
Todas essas políticas para a educação
brasileira convergem para chegarmos a
algumas conclusões:
1. Que vivemos um momento de
construção de um consenso em torno das
bandeiras sociais da ideologia neoliberal e a
escola é um dos espaços de sua divulgação,
principalmente pelos conhecimentos
transmitidos;
2. O Estado brasileiro, tal qual todos os
estados sob o capitalismo, desenvolvem e
implementam as políticas públicas sociais,
visando ao interesse de determinada classe
social, qual seja, aquela que detém o controle
dos meios de produção e de poder político;
3. Sob o discurso de implantação de uma
educação de qualidade que visa emancipar
os “cidadãos”, está a implementação de
atividades econômicas que subsidiam a
2 Verificar essas informações em www.editorapositivo.com.br
24 - outubro de 200866666
iniciativa privada, portanto, é dinheiro
público, que vem do povo, da gente
comum, financiando e solidificando as
empresas capitalistas. Nada mais injusto
numa sociedade que prega a igualdade
entre todos...
Também tomo Gramsci para pensarmos,
nós – os educadores – se queremos ser
emancipadores ou homens-massa. Ele, ao
discutir a filosofia da práxis, já apontava para
a seguinte pergunta: “qual é o tipo de
conformismo, do homem-massa do qual
fazemos parte?”
Quando a concepção de
mundo não é crítica e coerente,
mas ocasional e desagregada,
pertencemos simultaneamente a
UUUUU
Reforma do Estado e política educacional: o contexto
para a reforma curricular em tempos neoliberais
Lalo Watanabe Minto (*)
ma contradição ronda a
educação brasileira hoje: nunca
foi tão pronunciado o discurso
que alça a educação à condição
de solução para todos os problemas sociais, ao
passo que as políticas efetivamente
implantadas expressam o descontrole e o
descaso efetivos do Estado para com os mais
urgentes problemas educacionais.
O tipo de educação que hoje se pratica
expressa as condições objetivas da sociedade
em que vivemos. É a educação de que
necessita um país capitalista periférico,
permeado por contradições que permitem a
convivência tranqüila entre um discurso
demagógico em prol da educação e o
imperativo de “honrar os compromissos” com
o capital internacional que são, precisamente,
fatores limitadores de uma política
efetivamente preocupada com a educação.
Sabemos também que a atividade educativa
é fundamental em qualquer formação social
humana, tanto no sentido mais geral do seu
caráter humanizador, como no sentido estrito
das necessidades específicas de qualificação dos
indivíduos. Estas duas dimensões, contudo,
não são determinadas a priori. Ao contrário,
resultam das condições sociais efetivamente
existentes num certo período histórico. É sobre
esta educação em sentido estrito – que, nas
sociedades modernas, transformou-se em
sinônimo de escola – que vamos tratar aqui.
Inicialmente, poderíamos dizer que nessa
determinação da educação pela sociedade
capitalista destacam-se duas questões: a da
abrangência da educação escolar e a do
conteúdo desta escola, da formação por ela
proposta e praticada. Neste último, em especial,
nos deparamos com o problema do currículo.
Mas vale o alerta: não se trata de pensar o
currículo de forma “especializada”, mas em seu
sentido social (historicamente produzido), o
que se desvela à medida que o complexo
educacional é desvelado. Faremos então uma
síntese dos principais processos aqui
implicados, adentrando, posteriormente, na
questão do modo como o currículo hoje
expressa as dimensões mais gerais de uma dada
formação social e, nela, de uma política
educacional específica.
A educação como política social no
Estado contemporâneo
O contexto histórico no qual se produz a
contradição citada no início, é o da destruição
das bases objetivas das sociedades capitalistas
do pós-2a Guerra Mundial. Em termos gerais,
esta reestruturação decorre das mudanças no
mundo da produção e das relações de trabalho
ocorridas a partir dos anos de 1960. Mudanças
concretizadas no processo permanente de
transformação das forças produtivas, em vista
da necessidade do capital expandir-se e
acumular-se em escala mundial.
A reestruturação capitalista tem, como um
de seus requisitos básicos, o processo no qual o
capital se apropria de setores não inteiramente
dominados por sua lógica reprodutiva (a do
lucro crescente). Os serviços estatais de interesse
público, bem como as políticas sociais, tornam-
se assim grandes oportunidades de negócios. A
síntese ideológica desta necessidade é o
neoliberalismo, que postula a necessidade do
Estado ser mais eficiente, sobretudo no que se
refere aos gastos sociais. Por isso, o discurso
reformista mistificou a idéia de que, uma vez
feito o “saneamento fiscal do Estado”, ampliar-
se-ia a capacidade de investir em políticas sociais.
O que vem ocorrendo efetivamente é o inverso
disso: um processo de privatização cuja lógica é
retirar os gastos sociais do orçamento estatal,
reduzindo a esfera dos direitos sociais.
Com o neoliberalismo busca-se construir
um Estado máximo para o capital, no qual se
impõe um novo tipo de política social de caráter
assistencialista, gerida como atividade privada,
que assume um tom de caridade e
voluntarismo. O Estado passa a ser o gestor dos
serviços que delega ao setor privado (ou à
“sociedade civil”), o que implica transferência
de responsabilidades: deixa de financiar
atividades como a educação, reservando a si o
papel de “avaliador” e “fiscalizador”; mas de
uma avaliação e controle feitos por meio de
critérios como os da gestão eficiente e do
mercado. (SAVIANI, 2002, p. 23).
No caso brasileiro, foi basicamente a
Reforma do Estado que promoveu essa adequação
jurídica-política à nova realidade do mundo
da produção e da acumulação capitalistas. Suas
dimensões foram dadas por reformas parciais:
previdenciária, fiscal, tributária, trabalhista e
social (saúde, educação etc.); e seu objetivo
inadiável: tornar o Estado mais eficaz e funcional
às demandas do capital. No interior dessa
lógica, a educação é duramente atingida pelos
interesses do capital e os organismos
internacionais atuam como porta-vozes de tais
interesses: por um lado, disseminando a idéia
de que é necessário reformar (“modernizar”);
por outro, impondo politicamente tais medidas,
via formulação de diretrizes e estratégias1.
Na forma histórica contemporânea do
capital, expansão econômica associada a altos
níveis de desemprego é plenamente possível.
Dispensa-se, com isso, a promessa integradora
da educação dos tempos do pós-2ª Guerra,
quando educar-se era garantir ‘ascensão social’.
Reinventa-se esta promessa agora, não mais
como política social para o desenvolvimento
nacional, mas para o simples desenvolvimento,
expressão genérica da condição subordinada
do país aos ditames do capital mundializado.
A educação tem de ser promovida não como
política de Estado, mas como aparato de
acumulação do capital, mediado pela sua
mercantilização crescente. Ao indivíduo cabe
concorrer para que tenha a chance de ser
“incluído” no seleto grupo que ainda conseguirá
“ascender socialmente”.
Na reforma educacional brasileira dois
processos são indissociáveis: a reforma de cunho
organizacional (promoção da gestão “eficiente”,
enxugamento dos gastos públicos e
direcionamento de recursos ao setor privado,
privatização e controle via avaliação etc.); e a de
cunho curricular (conteúdos e tipo de formação
demandados na nova fase do capital). Ambas
uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade
é compósita, de uma maneira
bizarra: nela se encontram os
elementos dos homens das cavernas
e pr inc íp ios da c i ênc ia mai s
moderna e progres s i s ta ,
preconceitos de todas as fases
históricas passadas (...) Criticar a
própria concepção de mundo,
por tanto , s ign i f i ca torná- la
unitária e coerente e elevá-la até o
ponto atingido pelo pensamento
mundial mais evoluído (Gramsci,
1999, p. 94).
Pensemos nisso...
Referências Bibliográficas:
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1. Introdução ao estudo de filosofia. A
filosofia de Benedetto Croce. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
JACOMELI, M. R. M. PCNs e Temas
Transversais: análise histórica das políticas
educacionais brasileiras. Campinas/SP:
Alínea, 2007.
LIMA, P. G. Tendências paradigmáticas
na pesquisa educacional. Artur Nogueira/SP:
Amil, 2003.
NEVES, M. L. W. Educação e Política
no limiar do séc. XXI. Campinas: Autores
Associados, 2000.
NORONHA, O. M. Políticas neoliberais,
conhecimento e educação. Campinas/SP:
(*) Professora do Departamento de Filosofia e
História da Educação da Faculdade de
Educação da Unicamp e pesquisadora do
Grupo de Pesquisa “História, Sociedade e
Educação no Brasil – HISTEDBR”.
Editora Alínea, 2002.
Revista Nova Escola, junho/julho de 2007.
SILVA, K.; SILVA, M. H. Dicionário de
conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2005
TORRES, R. M. Melhorar a
qua l idade da educação bás ica ? As
estratégias do Banco Mundial. In: De
TOMMASI, L. e outros (Orgs.). O Banco
Mundial e as políticas educacionais. 3ª
ed. São Paulo: Cortez, 2000.
1 Para uma visão ampliada da reforma do Estado e da educação no Brasil, ver MINTO (2006, caps. 2 e 5).
24 - outubro de 2008 77777
abrangem todos os níveis de ensino, compondo
um único processo2.
O discurso da educação como solução para
todos os males
Vimos que a sociedade capitalista
contemporânea se organiza de modo a tornar
as determinações do capital (produção e
realização do lucro) o único horizonte possível
da reprodução social. É dessa forma que a
ideologia neoliberal3 propõe novas funções para
a educação, cujo objetivo é, de um lado,
legitimar as desigualdades numa formação
social altamente excludente; e, de outro,
ampliar a lógica dual de uma educação que
atende de forma diferenciada a diferentes
segmentos da sociedade (as classes sociais).
Para que a reforma educacional atendesse
às demandas do mundo da produção e da
reprodução sociais foi preciso, inicialmente,
recolocar em pauta uma linguagem
salvacionista. Em grande medida isso foi
cumprido pelos organismos internacionais, que
operam numa lógica de padronização,
oferecendo verdadeiros pacotes educacionais
aos ditos “países em desenvolvimento”.
Interessa-nos destacar um dos elementos
essenciais desses “pacotes”, referente à
qualidade do ensino. Para isso, lembremos de
algumas das recomendações do Banco
Mundial (BM): 1) o professor é considerado
apenas o quinto fator de importância na
qualidade do ensino, que, ademais, é resumida
a uma noção de “domínio de conteúdos” que
enfatiza a formação em serviço (especialmente
em programas de formação à distância) e não
a formação inicial, considerada cara e
ineficiente. Também não se reporta às
condições de trabalho e remuneração dos
docentes; 2) para piorar, esta visão de
conteúdo, já empobrecida, é tomada como
sinônimo de “livro didático”, ao qual se confere
hegemonia por ser “insumo de baixo custo” e
de “alto retorno” (relação custo-benefício).
(TORRES, 2000). Vê-se que, somadas estas
poucas recomendações, não se está longe de
concluir que o professor é desnecessário no
processo educativo, pois visto apenas como
mais um dos “insumos” que dele participa.
Nesse contexto a difusão de noções como
empregabilidade, aprender a aprender e
competências torna-se central no campo
educacional. Nesta fase do capital, que se
caracteriza pelo desemprego estrutural e pela
crescente precarização das condições de
trabalho, empregabilidade significa “transferir
aos trabalhadores a necessidade de sua
qualificação, que anteriormente eram em
grande parte realizadas pelo capital”
(ANTUNES, 2003, p.131). Igualmente, o
aprender a aprender “sintetiza uma concepção
educacional voltada para a formação, nos
indivíduos, da disposição para uma constante
e infatigável adaptação à sociedade regida pelo
capital” (DUARTE, 2003, p. 11) e as
competências são a sua outra face: mantém-se
a idéia de fundo do construtivismo – de
esquemas adaptativos construídos pelo sujeito
na interação com o ambiente –, mas re-
elaboradas à luz da necessidade premente de
adaptação que não pressupõe mais o domínio
de conhecimentos mínimos sobre o meio ao
qual se adapta o sujeito. “Agora a questão da
verdade é elidida”, diz SAVIANI (2007, p.
435), que acrescenta: a “pedagogia das
competências” tem como objetivo “dotar os
indivíduos de comportamentos flexíveis que
lhes permitam ajustar-se às condições de uma
sociedade em que as próprias necessidades de
sobrevivência não estão garantidas”.
Esse tecnicismo requentado, disseminado
pelos organismos internacionais, visa promover
justamente este deslocamento para o indivíduo,
de modo que as condições mais gerais de sua
própria existência jamais sejam anunciadas
como problema. Na educação observa-se um
“deslocamento do ensinar para o aprender e do
formar para o treinar, com um tipo de ensino
centrado no estudante e nas redes de educação à
distância, por onde ele pode navegar e acessar a
qualquer momento o estoque de informações
disponíveis de modo ‘democrático’ e, com isso,
compor sua ‘cesta básica’ de informações e de
conhecimentos” (NORONHA, 2002, p. 70-1).
O discurso da educação como solução para
todos os problemas, articulado ao processo de
reorganização das políticas sociais de modo a
torná-las mais “afetas” ao mercado, permitem
observar que o processo de privatização não é
senão a própria expressão da reforma em curso:
quando se desqualifica a ação do Estado na
educação e se impõe uma ideologia que converte
esta última em meio exclusivo de inserção no
mercado de trabalho, a educação se transforma
num campo altamente rentável, passível de
grandes investimentos capitalistas. Impera a
lógica da mercadoria: quem pode pagar, tem
‘acesso’; quem não pode, está ‘excluído’.
A legislação educacional brasileira
incorporou essas noções e esse discurso
tecnicista, sobretudo após o marco legal da
LDB/1996, que se complementa com a
construção dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs) e das Diretrizes Curriculares
dos ensinos médio e superior, bem como pela
reforma da educação profissional4.
Currículo: renovação pedagógica ou
esvaziamento do ensino?
Numa sociedade que privatiza
crescentemente a educação, a concepção de
ensino e de formação necessárias para uma plena
adequação dos indivíduos, sua lógica não é
mais do que aquela que prevê a simples
‘adaptação’. Por isso, o conceito de cidadania
(e de educar para a cidadania) será o grande
articulador das Diretrizes Curriculares
Nacionais e dos PCNs. Se a cidadania
pressupõe o atendimento de condições
objetivas mínimas (acesso à saúde, à educação,
à moradia etc.) e estas estão organizadas
fundamentalmente na forma de mercadorias/
serviços no vasto mercado brasileiro, é preciso
que o cidadão seja, antes de tudo, um
consumidor de sua própria condição cidadã.
No caso da educação, esta condição é
duplamente articulada: de um lado, como
consumo do serviço educacional (o acesso
à escola), o que favorece o setor privado,
uma vez que a política educacional oficial
desqualifica o público (estatal) e beneficia
o mercado; de outro lado, pelo tipo de
mercadoria (o conhecimento) que se está
consumindo. Ao que nos leva novamente
à problemática do currículo: qual é o tipo
de formação/treinamento, conhecimento/
saber que se demanda numa sociedade
como esta? Estar íamos v ivendo na
“sociedade do conhecimento”?
DUARTE (2003, p. 11-2) responde
negativamente a essa questão e destaca seu
caráter ilusório. Isso se completa com a crítica
das “pedagogias do aprender a aprender” e seu
caráteradaptativo, cujo intuito é oferecer uma
formação criativa: criatividade que “não deve
ser confundida com busca de transformações
radicais na realidade social, mas sim (...) em
termos da capacidade de encontrar novas
formas de ação que permitam melhor adaptação
aos ditames da sociedade capitalista”.
Organismos como o BM e a Unesco5
tornaram-se os grandes arautos das reformas
educacionais porque traduziram tais
necessidades em termos de diretrizes políticas
gerais. Nesta perspectiva ideológica, “não é
preciso que os indivíduos desenvolvam uma
formação sistemática, ampla e profunda,
tendo como base os conhecimentos
socialmente significativos produzidos e
acumulados pela humanidade. Nem mesmo
é preciso que a escola propicie tal tipo de
formação. O conhecimento estaria
sintetizado e disponível a todos na rede,
bastando a cada um ‘acessá-lo’”
(NORONHA, 2002, p. 79-80).
Política “social” neoliberal, discurso
salvacionista da educação e privatização do ensino
completam-se, portanto, com a questão do
conteúdo (ou esvaziamento) do ensino. Juntos,
formam o universo em que as mudanças no campo
educacional tornam-se compreensíveis. A ilusão
de que estaríamos vivendo numa “sociedade do
conhecimento”, por suposto, apenas obscurece o
sentido de tal transformação.
Todo o constructo pós-moderno que dá
suporte às teorias pedagógicas e que se refletem
em propostas educacionais novidadeiras,
ampara-se na idéia de um deslocamento dos
conteúdos para os métodos e práticas, bem
como do domínio dos recursos (meios)
fundamentais do ensino, cuja expressão
máxima é o construtivismo. Se, por um lado, é
correto dizer que o domínio do instrumental é
necessário, elevá-lo à condição de único (ou
principal) suporte do processo educativo, é
torná-lo absoluto, atemporal e aistórico. É
separar forma de conteúdo, teoria de prática.
Os PCNs, anunciados como uma proposta
flexível (BRASIL. MEC, 1997, p. 13),
também não podem ser considerados em si
mesmos. Isto porque, somados a uma política
de financiamento restritiva, a uma idéia de
‘autonomia’ escolar desvencilhada de recursos
e infra-estrutura6, bem como a uma política de
avaliação centralizadora e quantificadora de
uma série de “índices” de qualidade da
educação, tornam-se, efetivamente, verdadeiros
mecanismos de aprisionamento dos conteúdos
que compõe o currículo escolar. Eis porque se
concebe para a educação um papel em que:
“Não basta visar à capacitação dos
estudantes para futuras habilitações em
2 
 Os diagnósticos que vêm orientando as reformas enfatizam essas duas dimensões, como que atribuindo dois níveis de “responsabilidade” pelos problemas educacionais: do currículo, o qual deve ser
reformulado, e, da gestão, para a qual privatizar é a solução.
3
 Por ideologia neoliberal denominamos todo o amplo conjunto de ideologias conservadoras – não só econômicas – que se desenvolvem nesta fase do capitalismo.
4
 Não vamos tratar dessas mudanças em geral, mas enfatizar a proposta dos PCNs e, em seguida, aquelas que se referem à política de formação de professores.
5
 Tomamos como base o documento conhecido como Relatório Jacques Delors (DELORS, 2001).
6
 Vejamos a compreensão da atual Secretária de Educação de São Paulo: “Estamos enfrentando a desorganização pedagógica com várias ações (...) como a criação de um currículo para todas as séries, de
disciplinas e as expectativas de aprendizagem. Ou seja, as escolas agora sabem o que devem ensinar aos alunos. Não significa que a escola não tenha autonomia. Ela continua escolhendo seus livros e seu projeto
pedagógico. Mas isso tem de seguir os conteúdos básicos” (CASTRO, 2008).
24 - outubro de 200888888
termos das especializações tradicionais,
mas antes trata-se de ter em vista a
formação dos estudantes em termos de
sua capacitação para a aquisição e o
desenvolvimento de novas competências,
em função de novos saberes que se
produzem e demandam um novo tipo
de profissional, preparado para poder
lidar com novas tecnologias e linguagens,
capaz de responder a novos ritmos e
processos. Essas novas relações entre
conhecimento e trabalho exigem
capacidade de iniciativa e inovação e, mais
do que nunca, ‘aprender a aprender’”
(BRASIL. MEC, 1997, p. 34-5).
Os conteúdos preconizados pelos PCNs
dizem respeito à participação dos indivíduos
na sociedade contemporânea e à sua plena
adaptação a ela, ao que se convencionou
chamar de “exercício da cidadania”. Nesta visão,
ser cidadão significa: a) dominar certas
ferramentas cognitivas para adaptar-se – nunca
para transformar – à realidade vigente (a “cesta
de informações”); e b) consumir os bens e
serviços mínimos necessários à sobrevivência
material. A tradução disso encontra-se na noção
de equidade, pronunciada regularmente pelo
BM, pela Unesco, pela CEPAL, pelo MEC, e,
claro, incorporada pelos PCNs.
Mas, afinal, qual é o tipo de conteúdo que
prepara para o exercício dessa cidadania, para o
usufruto de direitos sociais numa sociedade que
restringe cada vez mais as já escassas conquistas
do século XX, e que relega ao mercado a tarefa
de oferecer os “bens” necessários à cidadania?
Trata-se de um conteúdo escasso, simplificado,
que mais apela à própria utilidade social (do
certificado) do que promove qualquer tipo de
retorno para os indivíduos (domínio de
conteúdos). No fundo, retorno mesmo é aquele
que beneficia aos grandes empresários, agora
imbuídos da “responsabilidade social” de
promover a conquista da cidadania, numa
formação social tão desigual como a brasileira7.
Por essa razão, os PCNs só se tornam
funcionais quando apresentados como algo
acima das relações sociais. Não por acaso, o “BM
recomenda enfaticamente a elaboração e
desenvolvimento do currículo como uma tarefa
restrita ao poder central ou regional, sem
participação local e sem formar parte do pacote
de funções delegadas pela descentralização”
(TORRES, 2000, p. 156). Para poder oferecer
a todo o amplo quadro da organização da
educação brasileira um formato definido –
ainda que ‘flexível’, torna-se necessário apelar a
um suposto “modelo ideal”. E tal como no
formato mais adequado e coerente com a
mercantilização da educação, este se dá pela via
da padronização e do esvaziamento8. Eis o
sentido da visão de currículo apresentada pelos
PCNs, na qual:
“os Temas Tranversais são os
conhecimentos principais e os conteúdos
das várias áreas devem servir para o
trabalho com eles. O documento desloca
o debate do conteúdo a ser ensinado para
a forma de ser ensinado. (...).
Ao professor, agora, cabe a tarefa
de organizar os conteúdos das várias
áreas em torno de temáticas escolhidas,
atentando para não isolá-las e para
enfatizar o exercício da cidadania”
(JACOMELI, 2004, p. 102-3).
Para alguns de seus defensores nota-se até a
tentativa de sobrepor a noção de
transversalidade à realidade, como uma simples
determinação do pensamento, da subjetividade
do educador, o que só pode ser formulado
quando se despreza que a produção do
conhecimento também tem
uma história, vinculada
necessariamente às condições
objetivas das sociedades
humanas, terreno da luta de
classes e das relações sociais
realmente existentes9.
Formação de professores
Uma das formas básicas
de operacionalizar o
esvaziamento da educação é
mediante uma política de
formação de professores
também esvaziada. Por isso,
este é um tema sempre
enfatizado pelos organismos
internacionais, que adotam a
perspectiva tecnicista do custo-benefício,
associando formação com o que se pensa ser o
“rendimento” do processo educativo. Nesse
sentido, FREITAS (2002, p. 148) alerta que
as atuais políticas para a graduação e pós-
graduação pretendem retirar a formação de
professores do campo científico e acadêmico
próprio da educação, localizando-a no “campo”
da “epistemologia da prática”, isto é, das práticas
educativas, o que nos leva aos problemas da
fragmentação/especialização e do aligeiramento
da formação inicial. Nas Diretrizes Curriculares
do governo brasileiro, a discussão dos conteúdos
e métodos das disciplinas é deslocada de modo
restritivo, reduzida a um “processo de
desenvolvimentode competências para lidar
com as técnicas e os instrumentais do ensino
(tecnologia) e da ciência aplicada no campo do
ensino e da aprendizagem” (idem, p. 156).
Já ARCE (2000, p. 55) critica a perspectiva
construtivista na qual se postula que o professor
deve ter “subtraídos da sua formação os
conteúdos escolares em prol do
desenvolvimento de habilidades que o levem a
gerar autonomia do aluno”. Nota-se aqui que,
também para o professor, vigora a tendência
de individualização, forçando-o a tornar-se
responsável pela própria formação/qualificação,
ao sabor das novas relações de trabalho. Com
isso, distancia-se de qualquer noção de projeto
global de formação, atendendo apenas aos
ditames da nova ordem econômica.
Não é de estranhar, portanto, que o atual
Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE)
reforce duas tendências que vêm promovendo
o esvaziamento: tornar a educação à distância
base dos cursos de formação de professores e, na
esteira da diversificação institucional do ensino
superior, retirá-la das universidades.
Em síntese, pode-se
afirmar que o esvaziamento
da escola (conseqüen-
temente, do currículo)
corresponde às necessidades
imanentes ao modo de
produção capitalista hoje. É
uma das formas pelas quais
se busca (des)educar os
indivíduos, naturalizando as
determinações materiais do
capital e as relações sociais por
ela constituídas como as
únicas possíveis: fazendo-as
senso comum.
Duas das tendências mais
expressivas disso são: a) o
esvaziamento em geral, como processo de
simplificação dos conteúdos que compõem os
currículos escolares. Ou seja, uma redução ao
mesmo tempo absoluta e relativa, esta última
referente ao pragmatismo e às propostas
novidadeiras que assolam a educação. As noções
de “pedagogia das competências” e “aprender a
aprender” são alguns dos artifícios ideológicos
associados a esta tendência; b) o esvaziamento
no sentido da educação dominada pela lógica
da mercadoria. Direito social converte-se em
serviço, atendimento em oferta, qualidade em
eficiência, igualdade em equidade. Aos extratos
do capital que investem no ensino importa
“servir aos poucos e sempre” a educação, o que
converge plenamente com o aligeiramento da
formação e a redução dos conteúdos: a lógica é
oferecer um serviço simplificado, facilmente
produzido e pouco dispendioso, que pressupõe
profissionais pouco qualificados (professor
torna-se “tutor”, “facilitador”), mas muito
rentável quando associado a um discurso
hegemônico que valoriza a educação10. Neste
caso, as noções mais emblemáticas são:
“aprender ao longo da vida”, “educação
permanente”, “qualidade total” e “pedagogia
de resultados”.
Nessa lógica, a qualidade da educação passa a
ser medida apenas pelos “indicadores da educação”,
donde se vê que a ênfase conferida a isso nas
propostas educacionais oficiais não é fortuita.
Algumas conclusões: que escola, que
currículo, que sociedade?
Como pensar numa outra forma de
organização da educação? Como escapar de uma
política que se autodenomina flexível, mas que,
em nome da ‘autonomia’ escolar, da
‘individualidade inata’ do sujeito e da
‘liberdade democrática’ de uma sociedade
extremamente mercantilizada, impõe condições
limitantes e castradoras para a educação?
Sabendo que a educação não se constitui
num problema em si mesmo, entendemos que
o esvaziamento do conteúdo escolar é altamente
prejudicial para a formação das futuras
gerações. É necessário, então, resgatar uma
concepção educacional e pedagógica que preze
pelo aprendizado dos conteúdos historicamente
produzidos e acumulados pela humanidade.
Mas não se trata apenas disso: o significado e a
importância de uma pedagogia de tal natureza
residem na possibilidade de reverter o sentido
de uma política educacional que vem
promovendo a destruição das formas
sistemáticas de transmissão dos saberes e
conhecimentos e, com ela, a possibilidade de
fazer com que cada um dos indivíduos seja
também um portador da humanidade
produzida ao longo da história.
Urge definir uma política educacional
adequada a esse fim e não subordinada aos
ditames da acumulação de capital em escala
global, que desvia recursos públicos em
montantes crescentes para remunerar o capital
financeiro e que, do ponto de vista curricular,
impõe formatos pretensamente flexíveis, porém
uniformizantes tanto quanto alienantes. Uma
política que quebre o círculo vicioso da exigência
de eficiência, pela via punitiva da avaliação, e
que tenha nesta um mecanismo de efetiva
melhora da qualidade, não servindo apenas para
7
 Nada mais emblemático do que o “Compromisso Todos pela Educação”, acordo empresarial que serviu de base para muitas das proposições do atual Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE).
8
 Os imperativos de padronização, flexibilização e produtividade funcionais ao capital no campo educacional levaram GENTILI (1996) a comparar a educação com o funcionamento das lanchonetes de tipo
fast food, analogia à qual denominou de “mcdonaldização” da escola.
9
 Ver, neste sentido, a formulação de GALLO (2001, p. 34), que afirma suas diferenças para com a proposta dos PCNs, mas não deixa de aproximar-se dela em pelo menos dois aspectos: o caráter meramente
adaptativo da educação e o distanciamento para com a realidade histórica, proclamada na hipótese de que as “grandes questões políticas” devem ser resolvidas “no campo do fluxo de informações”.
10
 A indicação de que os alunos que chegam ao nível superior apresentam lacunas essenciais de formação é emblemática. A Folha de S. Paulo apresenta dados que atestam a ampliação da prática de oferecer
“reforço” – sobretudo em português e matemática – nas instituições de ensino superior particulares do país, o que inclui renomadas instituições e não apenas aquelas reconhecidas por seu pouco rigor na seleção
dos estudantes. Conhecimentos básicos que antes eram ensinados na escola básica passam a fazer parte dos currículos de cursos superiores (FACULDADES dão ‘supletivo’..., 2008).
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atestar o dado, o consolidado, mas que seja ponto
de apoio para o avanço contínuo e progressivo.
Mas não se trata, aqui, de reinventar a roda.
Sem reordenar as prioridades desta sociedade,
não há como pensar numa outra política
educacional. É preciso construir uma saída
educacional que, de um lado, não repita o erro
de pensar a educação como algo acima das
relações sociais dadas e que a pense, por outro
lado, não apenas como reprodução destas
mesmas relações. Uma educação que,
assumindo seus elementos de contradição, seja
direcionada para produzir em cada um dos
indivíduos, o máximo desenvolvimento de seus
conhecimentos e capacidades, a saber, aquelas
historicamente produzidas e acumuladas pela
humanidade11. Numa sociedade que já vive os
sinais de uma crescente barbárie social, esta
tarefa é inadiável.
Referências Bibiográficas
ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho.
CCCCC
Currículo e Histórias de Vida
Belmira Oliveira Bueno (*), Daiane Antunes Vieira Pincinato (**), Márcia Maria Brandão Santos (***)
A história de vida é outra maneira de considerar a educação. Já não se trata de aproximar a educação da vida, (...) mas de considerar a vida como o espaço de
formação. (...) A educação é assim feita de momentos que só adquirem o seu sentido na história de uma vida. (Pierre Dominicé)
urrículo e histórias de vida têm bem
mais em comum do que a primeira
vista se poderia pensar. Ambos dizem
respeito a percursos e experiências de
vida, a trajetos percorridos, àquilo que
documenta e testemunha o que alguém realizou,
seja na escola, na profissão ou ao longo de toda
uma existência.
Partir desse ponto parece-nos importante, já
que acostumados demais às palavras, acabamos
muitas vezes por perder seus significados. No
caso do currículo, essa perda desencadeou um
movimento que já dura algumas décadas, cujo
propósito foi o de analisar e recriar o seu sentido
na escola. Com as histórias de vida algo
semelhante também se deu. A história dessa
abordagem também teve seus percalços e os
modos de entender e usar essa abordagem é,
ainda hoje, assuntopara polêmicas. Entendemos
que sua apropriação na área da educação tem
uma relação muito estreita com movimentos que
visam promover mudanças na escola, ou mesmo,
uma reinvenção dessa instituição.
A escola é uma produção histórica forjada
em outro momento, uma instituição criada nas
sociedades européias dos séculos XVII e XVIII,
portanto, a partir de outras referências espaços-
temporais e concepções, de sociedade,
indivíduo, cultura etc. A escola que viemos a
conhecer – com sua organização, seriação e
divisão de espaço e tempo, no que diz respeito
aos alunos (separados por classes, turmas, séries)
e, também, aos conhecimentos (separados por
disciplina, subdivididos em conteúdos,
ministrados em dias, horários e períodos pré-
fixados) – é uma invenção relativamente
recente, com pouco mais de dois séculos de
história. Contudo, já deu provas exaustivas de
sua obsolescência e desajuste às demandas da
sociedade contemporânea.
O desafio hoje é, pois, o de sermos capazes de
reinventar a instituição escolar, cuja tarefa, por
mais difícil que se apresente, urge ser enfrentada.
Trata-se antes de mais nada de reexaminar sua
função social e seu papel, hoje, assim como a
concepção que dela fazemos e o que desejamos
para nossos alunos e as gerações que estão por vir.
A proposta deste texto é a de oferecer alguns
elementos que possam contribuir com essa
reflexão. Para tanto, retomamos alguns
momentos do percurso que, no âmbito da
história da educação, marcou o lugar da
supervisão em sua relação com o currículo
escolar, bem como o da entrada das histórias de
vida na cena educacional. Espera-se que tais
elementos possam ajudar a compreender mais
as tantas vidas e histórias que se cruzam na
escola, bem como a vida que se produz em
cada escola.
Supervisão escolar e currículo: os
(des)encontros de duas histórias
A trajetória da supervisão escolar, como campo
de estudos no Brasil, já foi contada e recontada
por importantes educadores, todos preocupados
em compreender os caminhos e descaminhos dessa
área e dessa função no magistério.
Embora se possa considerar que a função
supervisora tem sua origem na própria gênese
da prática educativa, nas comunidades
primitivas, em que a educação se dava de forma
difusa e indiferenciada, é com o desenvolvimento
das sociedades e aumento de sua complexidade
que essa função se dissemina como forma de
controle das práticas educativas informais. No
campo da educação, esse processo se dá com o
desenvolvimento dos sistemas formais de ensino,
quando começa a figurar como parte integrante
da organização escolar burocrática.
De início, a supervisão foi exercida pelos
inspetores escolares que, nos finais do século
XIX e início do XX, tinham uma atuação
voltada à transmissão e garantia de manutenção
das normas de funcionamento da organização
escolar. Por deterem os saberes da experiência
acumulada, como balizadores do exercício da
orientação do ensino, os inspetores escolares
gozavam de respeito e legitimidade. Eram
considerados os guardiões da tradição. Além
de realizarem a função supervisora de orientação
pedagógica, acompanhamento e controle das
práticas docentes, também exerciam as funções
administrativas de fiscalização e vigilância
burocrática. No que tange às práticas docentes,
o controle recaía, sobretudo, na cobrança ao
cumprimento do programa oficial.
 Com as reformas educacionais que ocorrem
na década de 1960, notadamente no Estado
de São Paulo, um novo profissional
especializado passa a atuar no interior das
escolas: o orientador pedagógico. Esse foi o
primeiro supervisor no sistema de ensino
paulista. Com efeito, é com ele que nasce a
supervisão escolar como um dos componentes
da tríade supervisão/currículo/avaliação. Aos
orientadores pedagógicos cabia o trabalho de
viabilizar o currículo, interpretar as
determinações legais e oferecer soluções criativas
para as situações pedagógicas propostas. Em
outras palavras, pode-se dizer que os guardiões
da tradição foram substituídos pelos guardiões
do currículo.
O Programa de Assistência Brasileiro-
Americana ao Ensino (PABAEE), acordo
assinado em 1956, exerceu significativa
influência no desenvolvimento do currículo
no país. Dentre seus oito departamentos, um
dizia respeito, especificamente, a Currículo e
Supervisão. Esse departamento oferecia três
disciplinas - currículo na escola elementar;
supervisão do ensino na escola primária; e
currículo e supervisão - todas enfatizando o
como planejar e desenvolver currículos. A
associação entre currículo e supervisão assinala,
pois, uma ênfase sobre os aspectos
instrumentais e técnicos do currículo.
Na década de 1970, a influência americana
no campo do currículo permanece com fortes
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11
 Sobre o sentido dessa educação com base em conteúdos, ver SAVIANI (2003), LOMBARDI (2006) e ARCE (2000).
24 - outubro de 20081010101010
características tecnicistas. Isso marca a passagem
do supervisor guardião do currículo para o
supervisor guardião da proposição legal. Com
efeito, o Decreto n° 5.586/75 estabeleceu que
ao supervisor compete “orientar o acom-
panhamento, avaliação e controle das
proposições curriculares na área de sua jurisdição
e zelar pela integração do sistema, especialmente
quanto à organização curricular”.
A visão tecnicista se propunha a garantir a
eficiência e a produtividade. Com isso, o
supervisor acabou por se tornar um técnico

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