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Disciplina: História e antropologia da nutrição Aula 2: Alimentação e cultura Apresentação Continuando as discussões da aula 1, aprofundaremos o conceito de cultura a partir de um dos desdobramentos possíveis, que é o conceito de cultura alimentar. Também apresentaremos os aspectos simbólicos que atuam sobre a alimentação em três eixos: aspectos reais, simbólicos e imaginários da alimentação. Conceituaremos cada um dos eixos e, a partir de exemplos cotidianos, mostraremos a relação entre alimentação e cultura. Pensando ainda nas dimensões simbólicas da alimentação, traremos outros dois conceitos: comensalidade e memória afetiva. Buscamos mostrar que um alimento representa mais que um instrumento biológico de consumo, com micro e macronutrientes, mas também todo um arcabouço simbólico de sentidos. Objetivos Descrever o conceito de cultura alimentar; Distinguir os aspectos reais, simbólicos e imaginários da alimentação; Debater as particularidades da comensalidade e da memória afetiva. Cultura alimentar Na aula 1, tivemos o primeiro contato com conceitos fundamentais da Antropologia e pudemos compreender como essa ciência pode ser útil para o campo da alimentação e Nutrição. Um dos conceitos chaves que trabalhamos foi o de cultura. Agora vamos mergulhar um pouco mais e entender a relação íntima entre cultura e alimentação a partir do conceito de cultura alimentar .1 (Fonte: Africa Studio / Shutterstock). Seguindo o mesmo padrão da aula passada, vamos apresentar o que alguns pensadores têm para nos dizer sobre esse conceito. Veja a de�nição de cultura alimentar feita por Carlos Rodrigues Brandão: (...) um sistema simbólico, ou seja, um conjunto de mecanismos de controle, planos, receitas, regras e instruções que governam o comportamento humano quando o assunto é comer. Fonte: BRANDÃO, 1981. Também é importante destacar o seguinte a respeito dos símbolos e signi�cados partilhados: http://estacio.webaula.com.br/cursos/go0065/aula2.html Esses símbolos e significados são partilhados entre os membros do sistema cultural, assumindo um caráter público e, portanto, não individual ou privado. Fonte: ALMEIDA, 2009, p. 62. Veja outra de�nição interessante: A identidade de um povo se dá, principalmente, por sua língua e por sua cultura alimentar. Um conjunto de práticas alimentares determinadas ao longo do tempo por uma sociedade passa a identi�cá-la e muitas vezes, quando enraíza, se torna patrimônio cultural. O ato da alimentação, mais do que biológico, envolve as formas e tecnologias de cultivo, manejo e a coleta do alimento, a escolha, seu armazenamento e formas de preparo e de apresentação, constituindo um processo social e cultural. (SONATI et al, 2009, p.137) (Fonte: Civil / Shutterstock). A cultura alimentar não é algo estático, nem acabado, mas um conjunto simbólico em constante transformação, seja pelas mudanças climáticas, tecnológicas, ou por meio dos contatos com outras culturas. Fato é que diferentes fatores in�uenciam na constante reconstrução dos signos e signi�cados de uma cultura alimentar. Para facilitar o entendimento geral, propomos uma análise a partir de três aspectos que trazem perspectivas diferentes sobre o alimento: Real Simbólico Imaginário Aspecto real de um alimento Refere-se ao alimento em si, in natura, ao alimento natural. Podemos dizer que é o aspecto mais próximo ao que chamamos de natureza. Falar de aspecto real de um alimento é entende-lo na sua dimensão biológica, seus componentes físico-químicos. Se falamos de uma maçã, o aspecto real dela é a maçã em si, entendida a partir das características físico-químicas e sensoriais (cor, aroma, textura sabor) que a compõem. Se quisermos estabelecer uma conexão entre a dimensão real do alimento e a Nutrição, podemos dizer que o valor real de um alimento é atribuído pelo nutricionista quando este se atém sobre os micros e macronutrientes de um alimento, suas contagens calóricas, proteicas e de vitaminas. Atenção É claro que a dimensão real de um alimento ou qualquer outra coisa é de suma importância, pois corresponde à constituição concreta de uma determinada coisa. Entretanto o que estamos propondo é o reconhecimento da existência de outras dimensões que agem com simultâneo impacto e importância sobre diferentes aspectos em nossa sociedade. Além de sermos seres biológicos, também somos seres culturais. Se a gente pensar bem, biologicamente, o ser humano enquanto um ser onívoro, teoricamente, pode comer praticamente tudo o que há na natureza, desde que não o envenene. Contudo sabemos que, na prática, nem tudo o que é “biologicamente ingerível” é “culturalmente comestível” (Fischler, 2001). Mas por que? A Antropologia é ciência que se propõe a fazeruma conexão entre natureza e cultura. A alimentação é o espaço por excelência de demonstração empírica disso. Nesse sentido, ao olhar para outros aspectos que incidem sobre a alimentação, podemos encontrar respostas para essa pergunta. Aspecto simbólico de um alimento Nem só da dimensão real se compõem um alimento. Existem diversos valores simbólicos que são culturalmente atribuídos a um alimento. Pegando ainda o exemplo da maçã, há um valor simbólico sobre ela, assim como sobre a maioria das frutas, que conversa muito com a área da Nutrição, o valor de um alimento saudável. Nesse sentido, dizer que um alimento é saudável é imprimir nele um valor simbólico. Diversos valores simbólicos podem ser atribuídos sobre diferentes objetos em nossa vida. Um outro exemplo, ainda tomando a maçã como exemplo, podemos pensar que se essa maçã é vendida numa embalagem mais so�sticada, harmonicamente arrumada na prateleira ou se está disposta na gôndola de qualquer maneira, diferentes valores simbólicos vão incidir sobre ela, relacionados a um alimento de maior ou menor qualidade. Atenção O que queremos chamar a atenção é que, em qualquer sociedade, um alimento nunca é só um produto “biologicamente ingerível”, mas é também a soma dos valores simbólicos atribuídos a ele, que fazem com que ele se torne ou não culturalmente comestível, além de conferirem a esse alimento categorias diversas, que de�nem os valores desse alimento para cada grupo social. Somos seres culturais e, como vimos na última aula, a cultura é uma teia de símbolos. Nesse sentido, como nos mostra Maria Eunice Maciel (2001): A escolha do que será considerado “comida ” e do como, quando e por que comer tal alimento, é relacionada com o arbitrário cultural e com uma classificação estabelecida culturalmente. A cultura não apenas indica o que é e o que não é comida, estabelecendo prescrições (o que deve ser ingerido e quando) e proibições (fortes interdições como os tabus), como estabelece distinções entre o que é considerado “bom” e o que é considerado “ruim ”, “forte”, “fraco”, ying e yang, conforme classificações e hierarquias culturalmente definidas. Ao longo de nossas próximas aulas, desdobraremos alguns desses aspectos simbólicos como as crenças, tabus, as restrições religiosas e os fatores que in�uenciam nossas escolhas alimentares. Por isso, é fundamental entender bem o que são esses aspectos simbólicos. Mas, além de todos os valores simbólicos que incidem sobre a alimentação, há ainda construções imaginárias que os grupos sociais e/ou indivíduos fazem a respeito de diferentes alimentos. Aspectos imaginários de um alimento Vimos que um alimento é, primeiramente, uma substância biologicamente ingerível, constituída por elementos físicos, químicos e compostos nutricionais, o que constitui seu aspecto real. Constatamos também que, além dessa dimensão real, há aspectos simbólicos que incidem sobre um alimento, conferindo a eles valores socioculturais que determinam se este alimento é culturalmente comestível, ou seja, qual sua relevância, qualidade e funções dentro de um grupo social. Falaremos agora de uma outra dimensão atribuída aos alimentos, os aspectos imaginários. Os aspectos imaginários são construções inventadas e culturalmente validadas sobre um determinado objeto.Esses constructos podem se referir a todo tipo de coisa. Lembra da maçã do exemplo anterior? (Fonte: kozirsky / Shutterstock). Pois bem, se essa maçã, caísse no chão, independentemente do nível de esterilização desse chão, é muito provável que você já não sentisse o mesmo desejo de comê-la. Isso porque temos em nossa sociedade construções sociais sobre higiene e pureza que se relacionam diretamente com as construções imaginárias que fazemos em determinadas situações. O pesquisador Fishler nos mostra que: o homem nutre-se também de imaginário e de significados, partilhando representações coletivas. Se é possível avaliar o valor nutritivo do alimento (um combustível a ser liberado como energia e sustentar o corpo) o ato alimentar implica também em um valor simbólico, o que complexifica a questão, pois requer um outro tipo de abordagem. Fonte: FISHLER, 2001, p. 20. Essas construções não são estáticas, variam ao longo do tempo, de sociedade para sociedade e, muitas vezes, entre grupos sociais de uma mesma sociedade. Algumas delas têm comprovação cientí�ca, mas outras só transitam no campo da crença e tabu social. Exemplo Em uma palestra da pesquisadora Lívia Barbosa, ela deu um exemplo que cabe bem para facilitar o entendimento de como os aspectos imaginários agem sobre nossas construções de valores e práticas sociais diversas. Normalmente no Brasil, lavamos nossas roupas em grupos separados, roupas de cama, íntimas, roupas de bebê, roupas em geral, pano de chão, pano de prato. Segundo ela, em outros lugares do mundo, é comum encontrar pessoas tirando toda sorte de coisas que foram lavadas ao mesmo tempo de uma máquina de lavar, nas lavanderias coletivas. Mas, para nós, pensar num pano de chão sendo lavado com um pano de prato, ou mesmo com uma blusa, não é uma ideia das melhores. Se pensarmos pragmaticamente, talvez não haja, de fato, contaminação, mas nossa construção imaginária de pureza, limpeza, sujeira e contaminação nos leva a idealizar o que é limpo e o que é sujo. Transpondo isso para o universo dos alimentos, podemos pensar na transformação da relação com os alimentos industrializados. No Brasil, durante muito tempo, os industrializados foram associados a alimentos mais saudáveis pelo seus baixos níveis de contaminação. No entanto, atualmente, são associados a produtos arti�ciais, por perderem a relação com o fazer manual da cozinha. Tudo isso são aspectos imaginários que incidem sobre os produtos. Assim como os aspectos simbólicos, os aspectos imaginários também são mutáveis, intangíveis, mas, assim como os aspectos reais, con�guram-se como elementos importantes para uma compreensão mais completa e complexa do alimento, da alimentação e das interações deles com a sociedade humana. Dessa forma, apresentamos a fala de Santos: Desvendando mistérios, misturando o mundo virtual ao real, o imaginário sobre o comer vai se modificando e fortalecendo a visão científica do ato de se alimentar. Fonte: SANTOS, 2008, p.37. Diante disso, podemos dizer que existe uma diferença entre o que é alimento e o que é comid. Roberto Da Matta (1987, p.21-22). defende a ideia de que: Alimento Qualquer substância nutritiva que possa ser ingerida para manter a vida. Comida Respeito a tudo o que se come com prazer, de acordo com regras sociais. Dessa forma, comida não é apenas uma substância alimentar, mas um modo, um estilo um jeito de se alimentar. Segundo Da Matta, o jeito de comer de�ne não só aquilo que é ingerido, mas também aquele que o ingere. Entendemos, assim, que comida é algo dotado de cultura, relativo aos seres humanos. Essa análise diferenciada do que é comida, confere particularidades aos seres humanos em relação aos outros animais. De acordo com a autora Catherine Perles (1979), cozinhar é um ato exclusivamente humano, próprio da nossa espécie. O ser humano é o único animal da natureza capaz de cozinhar e combinar nutrientes. (Fonte: Rawpixel.com / Shutterstock). Além disso, comer não é um ato solitário, mas faz parte da origem da socialização humana. Também essa característica de socialização por meio da comida é uma particularidade humana que chamamos de comensalidade . Podemos de�nir a comensalidade como momento de partilhar sensações e reforçar a coesão dos grupos sociais aos quais fazemos parte, família, escola, religiosidade, amigos. A comensalidade é, portanto, uma experiência sensorial compartilhada, que pode ter vários signi�cados, como pactos, fechamento de acordos e contratos, confraternização. Mas, de uma maneira geral, ela compõe um ritual coletivo. Os sentidos utilizados na comensalidade geram experiências mnemônicas, que chamamos de memória afetiva . Comida é memória e afeto. 2 3 Exemplo http://estacio.webaula.com.br/cursos/go0065/aula2.html http://estacio.webaula.com.br/cursos/go0065/aula2.html Cena do filme "Ratatouille" (Fonte: El País <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/09/02/cultura/1472835982_440709.html> ). Um exemplo disso pode ser visto no �lme Ratatouille. Em uma das cenas do �lme, ao provar o prato do restaurante, o crítico de cozinha é transportado para sua infância. Provavelmente você também já comeu algo que te transportou para outro lugar. Essas memórias gustativas também são construções simbólicas atribuídas à comida. E assim encerramos essa aula, com sabor de memória afetiva. Bom apetite! Atividade 1. “O que aprendemos sobre comida está inserido em um corpo substantivo de materiais culturais historicamente derivados” (Braga, 2004, p.26). Como podemos de�nir o conceito de cultura alimentar? 2. (Diferenciar comida de alimento) “Cozinhar é um ato exclusivamente humano”. Partindo dessa frase, como podemos distinguir uma comida de um alimento? 3. Aprendemos que diferentes aspectos incidem sobre um alimento. Pontuamos três fundamentais, que são: real, simbólico e imaginário. Diferencie e explique esses três aspectos. 4. Os seres humanos são seres biológicos, culturais e sociais. Algumas características são particularidades destes seres. A coletividade em relação à alimentação é uma delas. Como chamamos esse exercício de compartilhar o alimento? 5. Algumas vezes, quando comemos, mais que o prazer e a saciedade, atribuímos outros signi�cados ao momento. Chamamos isso de memória afetiva. Como podemos de�nir esse conceito? https://brasil.elpais.com/brasil/2016/09/02/cultura/1472835982_440709.html Notas Cultura alimentar 1 Conjunto de práticas alimentares que inclui o que se como (insumos, ingredientes), como se prepara (culinária, técnicas de processamento), quando se come (número de refeições por dia, que compõem o hábito alimentar dessa cultura), com quem se come (restrições de casta, gênero, até mesmo o ato de comer sozinho). Comensalidade 2 Prática de comer juntos, partilhando, (mesmo que desigualmente) a comida. Memória afetiva 3 Registros sensoriais, afetivos que a comida e a comensalidade podem gerar nos indivíduos. Referências ALMEIDA, Marco Antonio Bettine de. Comentários sociológicos da cultura alimentar. In: MENDES, Roberto Teixeira et al. Qualidade de vida e cultura alimentar. Campinas: Ipês Editorial, 2009. Cap. 6. p. 59-67. Disponível em: https:// www.fef.unicamp.br/ fef/ sites/ uploads/ deafa/ qvaf/ cultura_alimentarcompleto.pdf <https://www.fef.unicamp.br/fef/sites/uploads/deafa/qvaf/cultura_alimentarcompleto.pdf> . Acesso em: 09 dez. 2018. BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população brasileira. 2. ed. – Brasília: Ministério da Saúde, 2014. BRANDÃO, R. Plantar, colher e comer. Rio de Janeiro: Edição Graal, 1981. MACIEL, Maria Eunice. Cultura e alimentação ou o que têm a ver os macaquinhos de Koshima com Brillat-Savarin?. Horizontes antropológicos, 2001. SANTOS, LAS. O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais e alimentares no mundo contemporâneo. Salvador: EDUFBA, 2008. SONATI, Jaqueline Girnos et al. In�uências culinárias e diversidade cultural da identidade brasileira: imigração, regionalizaçãoe suas comidas. In: MENDES, Roberto Teixeira et al. Qualidade de vida e cultura alimentar. Campinas: Ipês Editorial, 2009. Cap. 14. p. 137-147. Disponível em: https:// www.fef.unicamp.br/ fef/ sites/ uploads/ deafa/ qvaf/ cultura_alimentarcompleto.pdf <https://www.fef.unicamp.br/fef/sites/uploads/deafa/qvaf/cultura_alimentarcompleto.pdf> . Acesso em: 09 dez. 18. Próxima aula Mitos; https://www.fef.unicamp.br/fef/sites/uploads/deafa/qvaf/cultura_alimentarcompleto.pdf https://www.fef.unicamp.br/fef/sites/uploads/deafa/qvaf/cultura_alimentarcompleto.pdf Tabus; Crenças. Explore mais Leia o artigo de Maria Eunice Maciel: Cultura e alimentação ou o que têm a ver os macaquinhos de Koshima com Brillat- Savarin? <https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/129362> Assista ao �lme: Ratatouille EUA, 2007, 1h50min. Animação/Comédia. Livre para todos os públicos. https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/129362
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