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Conceitos básicos para uma iniciação no “sistema de precedentes”. Gustavo Faria1 SUMÁRIO. 1. Introdução. 1.Precedente, jurisprudência, súmula e ementa. 1.1. Precedente. 1.2. Jurisprudência. 1.3. Súmulas. 2. Ratio decidendi e obiter dictum. 3. Distinguising, overruling, overriding, signaling e anticipatory overruling. 3.1. Distinguishing. 3.2. Overruling e overriding. 3.3. Signaling e anticipatory overruling. 4. Considerações finais: um convite à reflexão crítica. 1. Introdução O presente trabalho não tem o propósito de inovar na teoria dos precedentes, tampouco de trazer uma visão autoral acerca do tema. Nosso objetivo é, especialmente, traçar um panorama geral sobre conceitos indispensáveis à iniciação no assunto, propiciando um estoque teórico mínimo para que, a partir de noções pragmáticas elementares, cada qual possa prosseguir em suas pesquisas e alcançar o adensamento científico que julgar necessário. Para isso, buscaremos apresentar um apanhado sintético de parte do que já foi desenvolvido por grandes nomes da literatura nacional, reconhecendo, desde já, que a chamada “doutrina de precedentes”, secularmente construída nos países de tradição anglo-saxônica, sob as bases da common law, encontra-se em estágio de amadurecimento e 1 Especialista e Mestre em Direito Processual. Professor. Advogado consolidação bem menos avançado em nosso sistema processual, sabidamente alicerçado em matrizes jurídicas diversas, de base romano- germânica, alimentado pelos influxos teóricos da civil law. Como decorrência lógica dessa constatação, devemos advertir o leitor que ainda há muita divergência entre os estudiosos que se dedicam ao estudo do tema, razão pela qual apresentaremos uma sistematização que, na nossa visão, fornece conceitos básicos que mais se alinham à proposta trazida pelo direito processual brasileiro positivado. Ao fim deste estudo - muito embora não seja nosso objetivo primeiro -, proporemos uma linha de continuidade para a pesquisa, sugerindo análises que ultrapassem as fronteiras do pragmatismo sem reflexão crítica e que poderão propiciar ao leitor o alcance de horizontes academicamente mais inquietantes. 1.Precedente, jurisprudência, súmula e ementa. 1.1. Precedente. Não é recente a aproximação do direito processual brasileiro com a “doutrina de precedentes”. De longa data2, buscando otimizar a atividade jurisdicional e, especialmente, combater o fenômeno da dispersão jurisprudencial (propagado como antitético aos ideais de isonomia e segurança jurídica), a legislação vem buscando formas de se estabelecer um sistema de “padrões decisórios”3, entendidos como paradigmas, 2 Veja, por exemplo, que a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1891, em seu art. 59, III, § 2º, já estabelecia que “Nos casos em que houver de aplicar leis dos Estados, a Justiça Federal consultará a jurisprudência dos Tribunais locais, e vice-versa, as Justiças dos Estados consultarão a jurisprudência dos Tribunais Federais, quando houverem de interpretar leis da União.” 3 Essa expressão é utilizada pelo próprio Código de Processo Civil, em seu artigo 966, § 5º, ao dizer que cabe ação rescisória contra decisão baseada em enunciado de súmula ou acórdão proferido em julgamento de casos repetitivos que não tenha considerado a existência de distinção entre a questão discutida no processo e o padrão decisório que lhe deu fundamento. referências, modelos deliberativos judiciais que servem de norteamento para solução de casos futuros e análogos. Como uma das espécies desses padrões decisórios, temos a figura do precedente. No caminho de uma (das várias) correntes que tentam defini-lo, entendemos ser o precedente um julgado do qual possa ser extraída uma interpretação jurídica acerca de determinada questão (um elemento normativo) que poderá servir de base para o julgamento de casos análogos. Mas, perceba, segundo essa concepção, nem todo julgado é um precedente. Isso porque, como destaca parte da doutrina, decisões que se limitem a fazer simples aplicação de normas ou, ainda, remeter-se a um precedente (enquanto julgamento-tipo), não podem ser enquadradas como precedentes, dado que não trazem consigo fundamentos jurídicos generalizáveis extraídos da interpretação acerca de uma questão de direito. Exemplificativamente: imagine que um advogado, devedor de alimentos, assim reconhecido por decisão não definitiva, postule ao Superior Tribunal de Justiça o direito de ser preso em sala da Estado-Maior, com base no art. 7º do Estatuto da OAB, a despeito de o CPC prever o cumprimento da prisão em regime fechado. Se aquele tribunal, na análise da questão jurídica que lhe foi submetida, negar tal direito ao advogado, entendendo, fundamentadamente, que o benefício se restringe à prisão penal, de índole punitiva, podemos considerar que esse julgado é um precedente? Parece-nos que sim, já que as razões de decidir contidas em sua fundamentação podem ser tidas como referência para o julgamento de casos análogos. Devemos, todavia, distinguir os precedentes vinculantes dos precedentes meramente persuasivos. São vinculantes (também chamados de obrigatórios ou qualificados) aqueles cuja observância é impositiva aos demais órgãos do Judiciário, para casos que envolvam a mesma questão jurídica.4 No Código vigente, podemos identificar, pela análise dos arts. 927, 1.030, I, “a” e 988, § 5º, II, do CPC, que são vinculantes os seguintes precedentes: i) as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; ii) os acórdãos proferidos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; iii) a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados e; iv) as decisões do Supremo Tribunal Federal em julgamento de recursos extraordinários5. Para o descumprimento de alguns desses precedentes pelos demais órgãos do Judiciário, a propósito, a lei processual prevê mecanismo específico de irresignação: a Reclamação, ação autônoma de impugnação de certas decisões judiciais, prevista nos arts. 988 a 993 do CPC.6 No Brasil, como se vê, a força vinculante de um precedente é imposta pela lei, que já estabelece, de forma pré-determinada, quais decisões terão o chamado binding effect, tornando-se um authority precedent, diferentemente do que ocorre no sistema da common law, em que uma decisão não “nasce” como precedente vinculante, mas vincula apenas de forma contingencial, à medida que, paulatinamente, seu potencial epistemológico-paradigmático vai sendo reconhecido pelos 4 Importante registrar que, na visão de alguns, “precedentes” são apenas os julgados que possuem natureza vinculante. 5 Quando o CPC, por exemplo, prevê cabimento de Reclamação contra decisão que contrarie acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida, e partindo do pressuposto de que só se julga recurso extraordinário com repercussão geral (pois esse é um requisito de admissibilidade do RE), podemos concluir que, por inferência lógica, os acórdãos provenientes do julgamento desses recursos serão dotados de eficácia vinculantes. 6 Nesse sentido, o CPC, em seu art. 988, prevê que caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência. Da mesma forma, o § 5º do mesmo artigo traz, de forma implícita, outras hipóteses de cabimento da Reclamação. demais órgãos, fruto de uma cadeia argumentativa que elevao precedente - por seus aspectos qualitativos - à categoria de norma. Não sendo vinculante, um precedente será considerado meramente persuasivo, pois aos demais órgãos do Judiciário não é imposto o seguimento daquele entendimento, muito embora possam reconhecer naquele julgado uma correta interpretação acerca de determinada questão e utilizá-lo como referência, orientando-se por ele para o julgamento de um caso futuro. Na situação hipotética há pouco criada (prisão do advogado em sala de Estado-Maior), se a citada decisão fosse, por exemplo, da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, estaríamos diante de um precedente meramente persuasivo. Entretanto, se a decisão tivesse sido proferida pelo órgão especial daquele tribunal (Corte Especial), o precedente seria de natureza vinculante (com base no art. 927, V, do CPC). Por fim, vale lembrar que um precedente, seja vinculante ou persuasivo, poderá (ou deverá, nos casos dos julgados dos tribunais) apresentar uma ementa, entendida como uma síntese, um resumo do conteúdo daquele julgado, trazendo uma visão geral dos elementos essenciais constantes do inteiro teor da decisão, facilitando o trabalho de catalogação e pesquisa dos entendimentos dos órgãos jurisdicionais.7 7 Como, por exemplo: HABEAS CORPUS. OBRIGAÇÃO ALIMENTÍCIA. INADIMPLEMENTO PRISÃO CIVIL. DECRETAÇÃO. PANDEMIA. SÚMULA Nº 309/STJ. ART. 528, § 7º, DO CPC/2015. PRISÃO CIVIL. PANDEMIA (COVID-19). SUSPENSÃO TEMPORÁRIA. POSSIBILIDADE. DIFERIMENTO. PROVISORIEDADE. 1. Em virtude da pandemia causada pelo coronavírus (Covid-19), admite-se, excepcionalmente, a suspensão da prisão dos devedores por dívida alimentícia em regime fechado. 2. Hipótese emergencial de saúde pública que autoriza provisoriamente o diferimento da execução da obrigação cível enquanto pendente a pandemia. 3. Ordem concedida. (STJ, HC 574.495/2020) 1.2. Jurisprudência Quando vários precedentes acerca de determinada questão são preferidos por um tribunal, num mesmo sentido, forma-se a chamada jurisprudência. A jurisprudência pode ser pacífica, quando não se encontra divergência sobre a questão dentro daquele Tribunal, ou, apenas, dominante, quando se visualiza dispersão (em maior ou menor grau) acerca daquela controvérsia. A jurisprudência pode ser considerada um padrão decisório? Entendemos que sim, tendo em vista que não deixa de ser uma referência, um paradigma jurídico-interpretativo acerca de uma questão de direito, que poderá servir de orientação e conformação no julgamento de casos subsequentes. Todavia, especialmente em virtude da subjetividade conceitual acerca do que seja “jurisprudência pacífica” e “jurisprudência dominante”, entendemos que tal padrão decisório não pode ser dotado de eficácia vinculante, de seguimento obrigatório, sendo, apenas, uma orientação (meramente persuasiva, portanto), acerca da melhor solução, na visão daquele órgão, sobre determinada temática. Afinal, quais os critérios a serem utilizados, por exemplo, para dizer que uma jurisprudência é dominante? E em qual período de tempo devo pesquisar para poder dizer que uma jurisprudência, por não encontrar qualquer julgado em sentido contrário, é pacífica? Esse alto grau de indeterminação faz com que a remissão à jurisprudência - enquanto referência para a sustentação de teses - seja feita com redobrada responsabilidade científica, devendo ser demonstrado, de forma analítica, que há um entendimento que seja, efetivamente, pacífico ou, ao menos, fortemente preponderante dentro daquele órgão. 1.3. Súmulas Quando a jurisprudência se consolida no âmbito de um tribunal, esse órgão pode sintetizá-la em um enunciado de súmula. Daí dizer “súmula da jurisprudência”, ou seja, um breve resumo daquele entendimento pacificado (ou, ao menos, com pouquíssima divergência) dentro de um tribunal. A súmula é o reflexo da jurisprudência. A jurisprudência é o projeto da súmula. De acordo com o CPC vigente, algumas súmulas têm caráter vinculante, assim como alguns precedentes. Pela redação do art. 927, são de seguimento obrigatório as súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional (incluídas, aí, aquelas ditas, propriamente, vinculantes, nos termos do art. 103-A, da CF8) e as do Superior Tribunal de Justiça, em matéria infraconstitucional. Percebe-se, assim, que o legislador quis atribuir vinculatividade a todas as súmulas do STF e do STJ, diferentemente do sistema anterior, que só reconhecia tal eficácia àquelas previstas no art. 103-A da CF. 2. Ratio decidendi e obiter dictum. A ratio decidendi (ou holding) de um precedente é a norma, a tese jurídica definida por aquele julgamento. 8 A propósito, quanto a essas, introduzidas no texto constitucional pela EC 45/2004, o CPC atribui-lhes um grau diferenciado de vinculatividade, pois sua inobservância pode ser questionada pela Reclamação, ação autônoma de impugnação prevista nos já citados arts. 988 a 993 do CPC. Podendo ser visto como uma espécie de “núcleo decisório”, a ratio é composta pelos fundamentos determinantes do julgado, a interpretação dada como correta pelo tribunal acerca de uma questão de direito que lhe foi submetida. Apenas a ratio decidendi vincula. Ela é o elemento normativo passível de generalização para aplicação em casos futuros e dotado de eficácia vinculante. A extração da ratio poderá ser obtida por um processo (complexo, diga-se de passagem) que buscará identificar os fatos que compõem a causa de pedir daquela demanda, o raciocínio jurídico afeto à questão e, finalmente, a tese fixada no caso concreto, tese essa, segundo a concepção legal vigente, entendida como a norma geral que servirá de diretriz para a resolução de questões semelhantes. Por sua vez, os obiter dicta (no plural, ou obiter dictum, no singular) são conhecidos como argumentos de passagem, de mero reforço, deliberações marginais (a latere) tratadas pelos julgadores, mas que não dizem respeito à questão principal a ser decidida, não compondo o núcleo da controvérsia, podendo serem vistos, ainda, como uma simples impressão (ou mesmo opinião) do julgador acerca de um tema conexo ao que está sendo decidido, prescindível para o deslinde daquela controvérsia. Por exemplo, se o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento de um REsp repetitivo, fixar uma tese sobre os limites do direito de defesa de um executado em sede de Embargos à Execução (e esse será o núcleo da questão principal, do qual emanará a ratio do precedente), mas o Relator, de forma gratuita, deliberar sobre a natureza de um prazo afeto àquela defesa (se próprio ou impróprio), essa questão conexa, mas marginal - sem a qual a decisão seria a mesma - poderia ser considerada um obiter dicutm. E justamente por não integrarem os fundamentos determinantes do precedente - não tendo sido, sequer, objeto de contraditório efetivo pelas partes -, os obiter dicta não são dotados de eficácia vinculante. Contudo, ressalte-se, nada impede que, no futuro, aquele tema objeto de um dictum seja debatido como questão principal de uma certa causa e se transforme na ratio decidendi de um outro precedente. 3. Distinguising, overruling, overriding, signaling e anticipatory overruling. 3.1. Distinguishing Diante de um padrão decisório (persuasivo ou vinculante), compete às partes e aos órgãos julgadores estabelecer um cotejo, uma comparação entre aquilo que foi estabelecido como tese jurídica (fundamentos determinantes do julgado - ratio decidendi) e os detalhes fático-jurídicos de um caso concreto à espera de julgamento, para, ao final, poderem dizer se aquele padrão se aplica ou não à hipótese concreta. A essa operação mental, estabelecidapor uma técnica de confronto entre casos, dá-se o nome de distinguishing (distinguishing-método), que permite, eventualmente, chegar-se à conclusão pela inaplicabilidade daquele padrão no caso sob análise (distinguishing-resultado), em vista da existência de alguma diferença que o particulariza.9 É justamente por isso que o art. 489, § 1º, VI, do CPC estabelece que “não se considera fundamentada uma decisão judicial que deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento [...]”. Em outras palavras, invocado determinado padrão decisório como fundamento em defesa de uma tese, o órgão julgador só poderá deixar de observá-lo se o caso concreto submetido a julgamento tratar de situação particularizada por um contexto fático-jurídico distinto. Enfim, parte-se do distinguishing- 9 Nesse sentido, vide Enunciado 306 do Fórum Permanente dos Processualistas Civis (FPPC). O precedente vinculante não será seguido quando o juiz ou tribunal distinguir o caso sob julgamento, demonstrando, fundamentadamente, tratar-se de situação particularizada por hipótese fática distinta, a impor solução jurídica diversa. método (técnica de confronto) e chega-se ao distinguishing-resultado (afastamento do padrão decisório). 3.2. Overruling e overriding Já o overruling é a superação total da orientação fixada no padrão decisório, enquanto o overriding ocorre quando há sua superação parcial. Diante do dinamismo das relações jurídicas e da necessidade de se permitir a reformulação de teses outrora fixadas, o sistema deve admitir que sejam abandonados entendimentos incompatíveis com a ordem jurídica vigente, ocasião em que se verificam o overruling e o overriding. Por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça, no ano de 2010, editou a súmula 453, prescrevendo que os honorários sucumbenciais, quando omitidos em decisão transitada em julgado, não poderiam ser cobrados em execução ou em ação própria. Todavia, o Código de Processo Civil de 2015, em seu capítulo atinente aos honorários advocatícios, trouxe regra expressa em sentido contrário, assegurando, em seu art. 85, § 18, que “caso a decisão transitada em julgado seja omissa quanto ao direito aos honorários ou ao seu valor, é cabível ação autônoma para sua definição e cobrança”. Diante desse novo cenário jurídico, compete ao STJ promover a superação daquele entendimento sumulado, numa aplicabilidade prática do overruling, garantindo-se, assim, integridade10 na aplicação do direito. 10 Nesse sentido, vide Enunciado 456 do FPPC. Uma das dimensões do dever de integridade consiste em os tribunais decidirem em conformidade com a unidade do ordenamento jurídico. Por fim, vale lembrar que a modificação de entendimentos tem, com regra, eficácia temporal prospectiva (prospective overruling), ex nunc, ou seja, mantém-se a aplicação da ratio do padrão decisório substituído aos casos anteriores à sua superação, buscando-se, dessa forma, a proteção da confiança legítima, dimensão subjetiva do princípio da segurança jurídica.11 3.3. Signaling e anticipatory overruling. Em certas situações, os tribunais, antes mesmo de proceder à superação formal de um padrão decisório (overruling/overriding) começam a sinalizar uma mudança de entendimento, e a esse prenúncio de ruptura dá-se o nome de signaling. Nesse sentido, a propósito, já destacou o Fórum Permanente dos Processualistas Civis que “Os tribunais poderão sinalizar aos jurisdicionados sobre a possibilidade de mudança de entendimento da corte, com a eventual superação ou a criação de exceções ao precedente para casos futuros”.12 Ocorre que, diante dessa sinalização, estando clara a tendência de superação de certo padrão decisório, os órgãos inferiores podem deixar de aplicá-lo, de forma preventiva, mesmo sabendo que ainda não houve sua superação formal, situação denominada de anticipatory overruling (“antecipação da superação”). Partindo dos pressupostos de quem defende tal possibilidade, pensemos no seguinte exemplo: imagine que o Supremo Tribunal Federal tenha proferido uma decisão plenária, entendendo pela possibilidade de prisão antes do trânsito em julgado, bastando uma decisão de 2ª instância. Todavia, se um ou mais ministros, em número suficiente para inverter aquele resultado, já estiverem se manifestando, por decisões isoladas, no 11 Nesse sentido, art. 927, § 3º e 4º, do CPC e Enunciado 55 do FPPC. 12 Enunciado 320. sentido de modificação de seus entendimentos, poderão os órgãos inferiores deixar de aplicar, preventivamente, o entendimento ainda não formalmente superado. 4. Considerações finais: um convite à reflexão crítica. O propósito do presente trabalho foi propiciar um primeiro contato com temas afetos ao sistema de padrões decisórios, típico dos países da common law, para que, a partir daí, o leitor possa se sentir mais preparado para incursões de caráter crítico e verticalizado sobre o tema. Sem pretensão de eruditismo, apresentamos, de forma estritamente pragmática, conceitos e institutos do sistema com o qual, de forma cada vez mais aberta, nossa legislação tem se identificado. Todavia, é importante pensar o sistema processual como um todo, analisando o chamado “sistema de precedentes” sob a luz da integridade do ordenamento jurídico e, especialmente, das exigências constitucionais de legitimidade processual democrática. Importadas com o nítido propósito de contornar problemas de congestionamento do Poder Judiciário, as matrizes científicas do sistema anglo-saxônico têm sido empregadas de forma um tanto quanto açodada e irrefletida em nosso cenário processual, com nítido déficit epistemológico de base, trazendo indagações relevantes acerca da jurisprudencialização do direito13 como proposta utilitarista para a resolução de problemas relacionados à inefetividade do Judiciário e à dispersão jurisprudencial. Um direito processual ressignificado, visto como pressuposto lógico-jurídico-cooperativo de uma democracia participativa, que só se 13 Sobre o tema, de nossa autoria, a obra “Jurisprudencialização do Direito: reflexões no contesto da processualidade democrática”. Ed. Arraes. legitima numa “sociedade aberta de intérpretes” do ordenamento jurídico, coloca em xeque inúmeras premissas adotadas na normatização vigente (em especial no Código de Processo Civil), que atribui o monopólio dos sentidos a uma “assembleia de especialistas” e estende um pano de fundo para o recrudescimento de voluntarismos e discricionariedades judiciais. Esse cenário preocupante se agrava a partir do momento em que se verificam notórios déficits de participação da comunidade jurídica no plano instituinte (formação) da “norma jurisprudencial”, bem como no plano instituído, dadas as barreiras quase intransponíveis para a testificação dos padrões decisórios - com famigerados filtros recursais que impedem a revisão das teses -, exigindo-se, assim, que passemos a aceitá-los mais em razão de uma autoridade ínsita do que, propriamente, pelo reconhecimento de seus atributos e de seu processo histórico de formação. Apesar de instigante e, acima de tudo, necessário - por envolver a própria defesa do Processo Constitucional e do Estado Democrático de Direito -, deixaremos o aprofundamento desse debate crítico-reflexivo para um outro momento.
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