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INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO CEARÁ- CAMPUS DE BATURITÉ CURSO DE GRADUAÇÃO DE TECNOLOGIA EM HOTELARIA ALIMENTOS TRADICIONAIS DO QUILOMBO DA SERRA DO EVARISTO: UMA PROPOSTA DE TURISMO GASTRONÔMICO ANTONIA THAYRES MACIEL DO NASCIMENTO BATURITÉ, CE 2016 ANTONIA THAYRES MACIEL DO NASCIMENTO ALIMENTOS TRADICIONAIS DO QUILOMBO DA SERRA DO EVARISTO: UMA PROPOSTA DE TURISMO GASTRONÔMICO Trabalho de Conclusão de curso apresentado à coordenadoria do curso de Tecnologia em Hotelaria do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará- IFCE, campus Baturité, como requisito parcial de conclusão. Orientadora: Prof.ª Drª. Anna Erika Ferreira Lima BATURITÉ, CE 2016 Dados Internacionais de Catalogação da Publicação na Fonte Sara Maria Peres de Morais (CRB 3 – 901) Nascimento, Antonia Thayres Maciel do. Alimentos tradicionais do quilombo da Serra do Evaristo: uma proposta de turismo gastronômico / Antonia Thayres Maciel do Nascimento. – 2016. 92f. Trabalho de conclusão de curso (Monografia) - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará - Campus Baturité, Curso de Tecnologia em Hotelaria, Baturité, 2016. Orientadora: Profª Drª. Anna Erika Ferreira Lima. 1. Alimentos tradicionais. 2. Quilombolas. 3. Cultura. 4. Tradição. 5. Gastronomia CDD 641.3 ANTONIA THAYRES MACIEL DO NASCIMENTO ALIMENTOS TRADICIONAIS DO QUILOMBO DA SERRA DO EVARISTO: UMA PROPOSTA DE TURISMO GASTRONÔMICO Trabalho de Conclusão de curso apresentado à coordenadoria do curso de Tecnologia em Hotelaria do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará- IFCE, campus Baturité, como requisito parcial de conclusão. Aprovado em _____ de ___________________ de ________. BANCA EXAMINADORA __________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Anna Erika Ferreira Lima (Orientadora) Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE, Campus Baturité) __________________________________________________ Profª. Ms. Márcia Maria Leal de Medeiros Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE, Campus Baturité). _______________________________________________ Prof. Esp. Roberto José de Araújo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE, Campus Baturité). Dedico este trabalho primeiramente a Deus, pela saúde, fé e perseverança nos estudos. Aos moradores da comunidade Quilombola da Serra do Evaristo, em especial as mulheres que foram fundamentais na construção dessa pesquisa. Aos meus pais e familiares que me apoiaram durante essa caminhada acadêmica e principalmente ao meu primo João Guilherme Farias Medeiros que mesmo em sua inocência está me ensinando a ser forte e corajosa nessa etapa e na vida em si. AGRADECIMENTOS Acredito que agradecer por tudo o que foi adquirido e conquistado até o presente momento, não seria o bastante, pois palavras faltariam a todos aqueles que de alguma forma contribuíram para que minha caminhada seguisse no caminho certo. Sendo assim, é com esse sentimento que agradeço a Deus que pelo dom da vida, a minha mãe Thais Maria Maciel do Nascimento que me incentivou desde o início e fez com que todos os dias eu tivesse força para continuar, apoiado em seu exemplo de mãe e mulher, que me ensinou a ter valores e princípios junto ao seu parceiro José Orlando Ferreira do Nascimento a quem eu tenho com muito carinho como figura paterna em minha vida. Ao meu namorado que mesmo estando distante durante esses dois anos, me deu força e me acalmou nos momentos de ansiedade, me suportou nos finais de semestre, que por vezes me deixaram preocupadas. À minha professora, orientadora e amiga Anna Érika Ferreira Lima, que enxergou um potencial que eu mesmo desconhecia, despertou-me o interesse pela pesquisa, me incentivou a ir a campo, e melhor que isso deu- me a oportunidade de reconstruir um novo ser, com novas perspectivas de futuro e até mesmo de humanidade. Tenho que deixar bem claro que tornei-me uma admiradora, pela sua história, força e pelo seu profissionalismo. Ao Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI), a qual eu tenho orgulho de ter feito parte, ter ganhado e trocado experiências, aos demais participantes que compartilharam seus conhecimentos e vivências comigo durante esse período. Ao Wanderson Barbosa e Tabatha Arruda por me ajudarem com as transcrições da minha pesquisa. Aos meus fies amigos Ezequiel Andrew Ângelo Barroso Vieira que trouxe alegria em todos os dias de aula ou campo, sempre levantando minha autoestima, e ajudando. Fazendo algumas fotografias da minha pesquisa. À Maria Josiane Martins Ribeiro que foi minha parceira no campo de pesquisa, nos momentos de desespero veio sempre com uma palavra certa para cada situação, uma pessoa que me ensinou a ir em frente, sem contar o acolhimento que sua família me deu nos dias de pesquisa. À minha turma de Hotelaria 2013.2, aos colegas de sala que dividiram momentos inesquecíveis e entre conversas e brincadeiras cada um me cativou de um jeito. À Lorena Ferreira Lima e Luana Stefany Gondim Gomes, que me acolheram em sua casa em dias e em noites de estudo intenso no campus. À Ellen Sabrina Pereira que foi minha parceira nos trabalhos em sala e em todos os dias letivos nesses dois anos. À Antônia Gladjane Pinheiro da Silva que sempre entre uma palavra e outra me incentivou e me abrigou em sua casa quando eu não tinha como voltar para a minha. Ao Programa de Apoio à Produtividade em Pesquisa (Proapp), responsável pela concessão da minha bolsa e do apoio financeiro durante esses dois anos que foram fundamentais para a realização da minha pesquisa. Ao Laboratório de Cartografia da UFC- (LABOCART), que compartilharam seus conhecimentos e trabalham junto ao NEABI na construção dos Mapas de localização da serra. Aos moradores da comunidade Quilombola da Serra do Evaristo- Baturité, que me receberam em suas casas, em especial a Dona Maria do Socorro Fernandes de Castro a quem eu tenho um apreço enorme, me recebeu como uma filha, deu total atenção a minha pesquisa e me permitiu acompanhar o preparo do Mungunzá Salgado. Dona Socorro, sentirei falta do seu abraço que me afagava nas sextas-feiras e dias de curso. A Evandro Clementino Ferreira que fez a intermediação desde o início da nossa chegada à comunidade. À Dona Francisca Julião e sua família; Dona Naíde; Sr. Tico e Sr. Alfredo Rafael que me ajudaram no inicio de minha chegada, com informações sobre a história da comunidade. À Maria Elisângela, Aurelena da Costa, Conceição Fernandes, Maria Aparecida, Elisilvia Julião e Maria Lucivânia entre outras mulheres que foram protagonistas em minha pesquisa, fizeram os preparos dos alimentos para que eu pudesse registar o passo a passo. Ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) campus Baturité que forneceu o transporte nos dias de pesquisa e curso de extensão. Enfim, deixo meus sinceros agradecimentos a todos estes que foram partícipes do meu crescimento dentro e fora do Instituto e permitiram que eu fosse pesquisadora. “A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, mas em ter novos olhos”. Marcel Proust RESUMO No território brasileiro a presença de comunidades tradicionais é bastante significativa, e designa-se que cerca de cinco mil sejam quilombolas. Esse grupo Étnico-racial é conhecido por sua forma de organização territorial e sua cultura singular. Tomamoscomo objeto de estudo a comunidade Quilombola da Serra do Evaristo no município de Baturité- CE, onde residem atualmente cerca de 150 famílias que tem a agricultura familiar como principal meio de subsistência e geração de renda. A partir desse contexto tomamos como objetivo geral investigar a biodiversidade alimentar desse grupo e junto à comunidade identificar os alimentos tradicionais que eram plantados no inicio da formação da comunidade, os que chegaram com influência de outras regiões e os que foram deixados como herança, bem como as modificações que esses alimentos sofreram ao longo do tempo. A pesquisa teve como principal ferramenta de metodologia o estudo etnográfico, entrevistas semi-estruturadas e grupos focais. Buscou-se ainda, fazer uma descrição densa a partir da identificação das comidas tradicionais ou pratos típicos comumente consumidos na comunidade, acompanhando a suas elaborações e através disso estabelecer uma correlação entre as práticas culinárias e o turismo gastronômico, tendo a gastronomia local como atrativo turístico, enquanto proposta que possa garantir desenvolvimento econômico e social para a comunidade, especificamente para as mulheres que são os sujeitos principais na produção desses alimentos. Os alimentos que foram catalogados estão presentes nas comemorações familiares, nos festejos da igreja e principalmente na mesa das famílias, com isso a comunidade e sua gastronomia tradicional possui forte atrativo turístico para desenvolvimento socioeconômico. Palavras-chave: Alimentos tradicionais, quilombolas, cultura, tradição, gastronomia. ABSTRACT In Brazil the presence of traditional communities is quite significant, and it is known that about five thousand are quilombo. This ethnic-racial group is known for its form of territorial organization and its unique culture. We take as object of study the Quilombo community Evaristo Mountain in Baturité- CE the municipality of, where currently home to about 150 families that has family farming as their main a means of subsistence and income generation. From this context we take as a general objective investigate food biodiversity of this group and with the community to identify traditional foods that were planted at the beginning of community formation many as have come with the influence of other regions and that have been left as an inheritance, as well as modifications that these foods have suffered over time. The research had as main methodology tool the ethnographic study, semi-structured interviews and focus groups. We sought to also make a dense description from the identification of traditional foods or typical dishes commonly consumed in the community, accompanying their elaborations and through this establish a correlation between the culinary practices and gastronomic tourism, having the local gastronomy as a tourist attraction, as a proposal that can ensure economic development and social for the community, Specifically for women who are the main subjects in the production of these foods. The foods that have been cataloged are present in family celebrations, festivities in the church and especially on the table of families with this community and its traditional cuisine has a strong tourist attraction for socioeconomic development. Keywords: Traditional foods. Quilombo. Culture. Tradition. gastronomy. LISTA DE FIGURAS FIGURA 1. A comunidade Quilombola da Serra do Evaristo................................... 25 FIGURA 2. A vista da Serra...................................................................................... 32 FIGURA 3. Dança de São Gonçalo........................................................................... 33 FIGURA 4. Fava Branca............................................................................................ 34 FIGURA 5. Milho retirado do molho........................................................................ 55 FIGURA 6. Toucinho e carne de sol................................................................... 55 FIGURA 7. Dona M.doS. F. C cortando as verduras.............................................. 56 FIGURA 8. Mungunzá pronto................................................................................... 56 FIGURA 9. Mamoeiro............................................................................................... 57 FIGURA 10. Rapaduras quebradas.............................................................................. 57 FIGURA 11. O mel da rapadura.................................................................................. 59 FIGURA 12. Adição da polpa do mamão.................................................................... 59 FIGURA 13. Adição do coco ralado............................................................................ 60 FIGURA 14. Adição do cravo-da-índia e erva doce.................................................... 60 FIGURA 15. O doce de mamão pronto..................................................................... 60 FIGURA 16. O coco ralado para a cocada.................................................................. 61 FIGURA 17. Mistura do coco e do açúcar no fogo.................................................... 61 FIGURA 18. Preparo da cocada.................................................................................. 61 FIGURA 19. A cocada pronta..................................................................................... 62 FIGURA 20. A mistura sendo preparada..................................................................... 63 FIGURA 21. Adição do mel ao suco........................................................................... 63 FIGURA 22. Suco de clorofila pronto......................................................................... 63 FIGURA 23. Catação da Fava Branca (cozinha do IFCE encerramento do módulo de cultura alimentar).............................................................................. 64 FIGURA 24. Toucinho de porco cortado em cubos.................................................... 65 FIGURA 25. Pimentão em cubos........................................................................... 65 FIGURA 26. O baião quase pronto.............................................................................. 65 FIGURA 27. O baião de fava pronto........................................................................... 66 FIGURA 28. Coco liquidificado.................................................................................. 67 FIGURA 29. Adição do açúcar, prova do doce........................................................... 67 FIGURA 30. Adição da farinha de milho.................................................................... 67 FIGURA 31. A mistura dos ingredientes..................................................................... 68 FIGURA 32. Adição do cravo e erva doce.................................................................. 68 FIGURA 33. Na panela de pressão.............................................................................. 68 FIGURA 34. A mistura indo ao fogo para cozinhar.................................................... 68 FIGURA 35. Massa cozida.......................................................................................... 69 FIGURA 36. Massa na fôrma...................................................................................... 69 FIGURA 37. Bolo minuto pronto................................................................................ 69 FIGURA 38. Arroz da terra......................................................................................... 70 FIGURA 39. Dona M.E. daS. F catando o arroz......................................................... 70 FIGURA 40. Cebola branca picada.............................................................................71 FIGURA 41. Despejando a banha sobre a cebola........................................................ 71 FIGURA 42. Cozimento do Arroz............................................................................... 71 FIGURA 44. Arroz da terra após o preparo................................................................ 72 FIGURA 45. Mulheres catando o feijão...................................................................... 73 FIGURA 46. Banana tipo curuda (verde).................................................................... 73 FIGURA 47. Corte das verduras.................................................................................. 73 FIGURA 48. Adição da banana e das verduras ao feijão cozido................................. 74 FIGURA 49. Feijão quase pronto................................................................................ 74 FIGURA 50. Feijão com banana curuda (verde) pronto para ser servido................... 74 LISTA DE TABELA TABELA 1. Encontro de Grupos Focais............................................................... 25 LISTA DE QUADROS QUADRO 1. Alimentos que eram plantados na comunidade e seu valor nutricional...................................................................................... 45 QUADRO 2. Os alimentos que chegaram à comunidade por influências externas.......................................................................................... 46 QUADRO 3. Alimentos que foram deixados como herança................................ 47 LISTA DE MAPAS MAPA 1. Localização geográfica do Quilombo da Serra do Evaristo – Baturité, CE- Brasil......................................................................... 20 LISTA DE ABREVEATURAS E SIGLAS CE Ceará CPISP Comissão Pró-Índio São Paulo CNSAN Conferencia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional DHAA Direito Humano à Alimentação Adequada DPU Defensoria Pública da União IFCE Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará IJC Instituto Juventude Contemporânea INCRA Instituto Nacional Colonização e Reforma Agrária IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional LABOCART Laboratório de Cartografia LEAT Laboratório de Estudos Agrários MG Minas Gerais NEABI Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas OMT Organização Mundial de Turismo PNPCT Politica Nacional de Desenvolvimento Sustentável SDA Secretária de Desenvolvimento Agrário UFC Universidade Federal do Ceará UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 17 2 ASPECTOS METODOLÓGICOS: o caminho das descobertas........................... 24 3 O QUILOMBO DA SERRA DO EVARISTO- BATURITÉ- CEARÁ: a história contada pelos interlocutores........................................................................ 30 3.1 Comunidades Tradicionais: um estudo sobre os quilombolas............................... 30 3.2 O Quilombo da Serra do Evaristo............................................................................ 32 3.2.1 Vozes do Saber............................................................................................................. 35 4 ENTRE ALIMENTOS TRADICIONAIS E A COMIDA DE VERDADE: uma compreensão conceitual............................................................................................. 38 4.1 A Comida de Verdade e a Verdade da Comida...................................................... 38 4.2 Alimentos Tradicionais.............................................................................................. 40 4.2.1 Do passado ao presente... Sobre os alimentos que formaram a comunidade............... 42 4.2.2 Entre histórias e relatos: os quilombolas e a relação com a comida............................ 47 5 ALIMENTOS TRADICIONAIS: das identificações às elaborações.................... 52 5.1 A tradição expressa no Saber-Fazer: O Doce e o Salgado........................................... 52 5.1.1 Mungunzá Salgado....................................................................................................... 53 5.1.2 Doce de Mamão........................................................................................................... 57 5.1.3 Cocada.......................................................................................................................... 61 5.1.4 Suco de Clorofila.......................................................................................................... 62 5.1.5 Baião de Fava com Toucinho....................................................................................... 64 5.1.6 Bolo Minuto................................................................................................................. 66 5.1.7 Arroz da Terra.............................................................................................................. 69 5.1.8 Feijão com Banana Verde............................................................................................ 72 6 CAMINHOS E POSSIBILIDADES: alternativas de desenvolvimento econômico e social do quilombo................................................................................ 76 6.1 A gastronomia como atrativo turístico..................................................................... 76 6.2 Alimentos Tradicionais: uma proposta de turismo gastronômico e cultural para o Quilombo da Serra do Evaristo.................................................................... 79 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................... 82 8 REFERÊNCIAS......................................................................................................... 85 APÊNDICES-............................................................................................................. 88 ANEXOS A- ............................................................................................................... 91 ANEXOS B-................................................................................................................ 92 1. INTRODUÇÃO “A Esperança não murcha, ela não cansa, Também como ela não sucumbe a Crença, Vão-se sonhos nas asas da Descrença, Voltam sonhos nas asas da Esperança”. Augusto dos Anjos 18 1. INTRODUÇÃO A pesquisa tomou como ponto inicial investigar a variedade alimentar dos quilombolas da Serra do Evaristo em Baturité- CE, tendo em vista as características culturais desse grupo que estão presentes nas questões alimentares a exemplo, o que o alimento representa para eles, como os identificam e a história que carregam consigo, seja no plantio, no preparo, e a partir disso iniciar o levantamento dos alimentos e das preparações comumente consumidos, que foram identificados como tradicionais. Tomamos como objeto de análise os supracitados alimentos tradicionais e seu modo de preparo. Dessa forma compreendemos que é possível conceber e sentir a tradição que não é dita explicitamente através da alimentação. Indo mais além da sua dimensão biológica, alguns alimentos podem transcender questões geográficas, tornando-se parte da representatividade de um grupo, pois a alimentação humana pode ser entendida como um ato social e cultural que produz diversos sistemas alimentares, sendo estes influenciados por fatores ecológicos, históricos, culturais, sociais e econômicos que definem suas escolhas e classificações na perspectiva alimentar. Ao passo que o alimento foi abordado no sentido sociocultural foram levantadas questões acerca do objeto a ser analisadocomo: até que ponto um alimento é considerado tradicional? O que o classifica como tradicional? Seria a história que cada alimento trás consigo no decorrer do tempo? De acordo com as pesquisas tem-se que o alimento é considerado tradicional ao passo que o seu preparo e seu cultivo foram passados por gerações e reproduzidos baseados na história de seus percussores, dessa forma é classificado como “tradicional” porque resistiram ao tempo, ou porque são considerados como descrito por Zuin; Zuin (2008, p. 111) “produtos com história [...] que fazem parte de uma determinada cultura, vindos de um longo tempo, através de gerações que os foram produzindo e recriando [...]”. Além disso, o que se pode afirmar é que o alimento em si é fruto literal da representatividade social de um grupo, que se identifica ou é identificado por sua forma de organização territorial, onde esse grupo social compreende o tradicional como regional ou local, ou ainda, aquele que representa sua cultura, formas de lidar com a terra, e como mantêm tais ensinamentos e tradições no espaço onde vivem. 19 Sendo assim, falar de alimentos tradicionais requer uma leitura minuciosa sobre o que o alimento conta desde o plantio ao consumo, e o que ele significa para cada grupo e/ou indivíduo. Por esta razão se fez importante a catalogação das comidas que envolvem o saber- fazer dos sujeitos sociais do Quilombo da Serra do Evaristo, especificamente, das mulheres, visto que as mesmas são as que lidam, diretamente, com as elaborações e/ou preparos, e como estas nomeiam, ou seja, os “pratos típicos” ou “comidas típicas”. Tais processos revelam não só sabores, mas saberes advindos de seus pais e ancestrais. Ademais, buscou-se através de uma compreensão dialógica com os principais responsáveis pela agricultura familiar camponesa local, saber o que é revertido para autoconsumo a partir do que é produzido em suas terras, tendo em vista que as práticas alimentares têm sofrido modificações em função de diversos fatores, podendo-se apontar como elementares, a modernização da agricultura e a praticidade que os produtos industrializados apresentam a esses povos, trazendo consequente ameaça à tríade segurança alimentar, soberania alimentar e ao Direito Humano a Alimentação Adequada (DHAA). Mesmo com essas adversidades influenciadas pela globalização de produtos e meios mais práticos de preparos, esses grupos sociais guardam saberes que constituem expressões de sua identidade e modos de sobrevivência. Dessa forma pretendeu-se (junto às mulheres que são reconhecidas na comunidade Quilombola da Serra do Evaristo por suas práticas de preparos de comidas) atinar quais alimentos eram plantados, quais chegaram sobre influências de outas regiões, e dentre estes quais continuam sendo plantados nas terras quilombolas, considerando a importância da História e da tradição desse grupo social. A partir desse contexto o trabalho visa estabelecer uma correlação entre as práticas gastronômicas das mulheres quilombolas e o turismo gastronômico, enquanto proposta que possa garantir recursos para a geração de renda na comunidade, bem como, uma possibilidade de incentivo para o fortalecimento de práticas que levem a elaboração dos pratos produzidos de forma constante na comunidade. Para o desenvolvimento dessa pesquisa e coleta de dados foi utilizado como ferramenta principal o método etnográfico onde Lakatos e Marconi (2010) afirmam que “consiste no levantamento de todos os dados possíveis sobre a sociedade em geral e na descrição, com a finalidade de conhecer melhor o estilo de vida ou a cultura específica de determinados grupos”. Usando as técnicas de observação participante e registros orais, com a 20 proposta de gerar uma descrição densa dos alimentos que foram identificados como tradicionais e o modo de preparo dos mesmos que são supracitados como pratos típicos. Sendo assim a pesquisa foi realizada na comunidade quilombola da Serra do Evaristo (Mapa 1) que encontra-se localizada no município de Baturité- CE, a 100 km da capital cearense. Com sua história e modo de vida fundamentada na sua origem de ancestralidade negra, a população contabilizada atualmente é de aproximadamente 560 habitantes distribuídas em torno de 150 famílias que vivem principalmente da agricultura familiar. Os moradores mais antigos descendentes dos primeiros habitantes afirmam que a comunidade foi constituída por cinco principais famílias: os Bentos, os Soares, os Juliões, os Leandros e os Venâncios, os quais nomearam alguns pontos de referência na própria comunidade. Existem muitas pesquisas e trabalhos voltados para a área do conhecimento sobre comunidades tradicionais e como eles vivem e se organizam, no entanto se torna vazio a trabalhos específicos que focalize na produção e transformação do alimento em comida com valor histórico, do ser tradicional pela cultura, pelo que o mesmo representa. Foi a partir dessa percepção que optamos por efetivar o estudo sobre os alimentos tradicionais na comunidade quilombola e sua possível proposta de turismo gastronômico. Sendo assim se faz importante registrar todo o conhecimento a partir do alimento advindos da história e cultura desse povo. Do mesmo modo, a relevância de conhecer a cultura alimentar desses povos através da história oral, de aproximar-se do modo como vivem a fim de disseminar o conhecimento e construir um novo olhar para as realidades de vida desses grupos. O mapa 1 que apresenta a localização das limitações da Serra do Evaristo, é fruto de uma parceria estabelecida com o Laboratório de Cartografia da UFC (LABOCART). Através desse material podemos visualizar de modo claro e preciso a localização da comunidade. 21 22 É nessa conjuntura que desde junho de 2014 foram desenvolvidas atividades de pesquisa e extensão junto à comunidade quilombola da Serra do Evaristo, através do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e indígenas (NEABI) no Campus Baturité, sendo um dos projetos de pesquisa “A Geografia dos alimentos tradicionais dos povos e comunidades do maciço de Baturité: um estudo sobre os quilombolas da Serra do Evaristo”. As categorias de análise que ajudaram a compreensão do tema foram: comunidades tradicionais, quilombos, alimentos tradicionais, alimentos regionais, comida x alimento, comida de verdade e turismo gastronômico. Os autores que subsidiaram a fundamentação teórica foram Little (2010) e Yabeta; Gomes (2012); Oliveira (2007) para entender as comunidades tradicionais quilombolas; Pidner (2011) e Vansina (2010) sobre os saberes empíricos; Zuin; Zuin (2008) abordam os alimentos tradicionais e sua importância; Rocha (2010) fala sobre alimento como identidade cultural; Gratão (2011) defende o sabor através da memória gustativa; Montanari (2013) revela a comida como cultura; Santos (2005) compreende o alimento como ato social; DaMatta (1986) alimento x comida; para compreender sobre a comida de verdade foram consultados documentos da 5º Conferencia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional em 2015, Córner (2006); Moletta (2000); Schluter (2003); Segala (2006) e Barczsz; Amaral (2010) fomentaram sobre turismo gastronômico, turismo cultural, gastronomia quanto atrativo turístico. Por conseguinte, o desenvolvimento da pesquisa levou-nos a estruturar o trabalho em seis partes ou capítulos como descrições a seguir. A primeira parte trata-se da definição dos pontos iniciais para o desenvolvimento da pesquisa, foi pretendido com a pesquisa. A problematização é um ponto importante para qualquer pesquisa. No segundo capítulo apresentaremos a metodologia utilizada no desenvolvimento da pesquisa, como traçamos o caminho das descobertas para a história e cultura da comunidade por meio da observação direta e do estudo etnográfico. O terceiro capitulo intitulado “O quilombo da Serra do Evaristo- Baturité-a história contada pelos interlocutores”, trás a história da origem da comunidade reproduzida através dos diálogos estabelecidos durante a pesquisa, como surgiu, como foi constituída e os saberes ao longo do tempo. 23 O quarto capítulo apresenta o conceito de comida de verdade para a compreensão dos alimentos tradicionais, expõe a definição dos alimentos tradicionais e como a comunidade os define a partir da sua história e cultura alimentar, apresentando os alimentos deixados como heranças dos ancestrais, os alimentos preservados e os que foram trazidos de fora por cultura de outras regiões. No quinto capítulo está discorrido o passo a passo do preparo das comidas identificadas pelos moradores como tradicionais, estão organizados da seguinte forma, pela ordem de identificação: Mungunzá salgado; Doce de mamão; Cocada; Suco de Clorofila; Baião de Fava com Tocinho; Bolo Minuto; Arroz da Terra; Feijão com Banana Verde; O sexto capítulo apresenta o turismo gastronômico como uma proposta de desenvolvimento social e econômico dentro da comunidade, principalmente para quem já lida com os preparos dos alimentos cotidianamente. “Vá até onde puder ver; quando lá chegar poderá ver ainda mais longe.” Goethe 2. ASPECTOS METODOLÓGICOS: O CAMINHO DAS DESCOBERTAS 25 2. ASPECTOS METODOLÓGICOS- O Caminho das Descobertas A pesquisa se fundamentou em um estudo etnográfico, que correlacionou a teoria fundante em Malinowisk (1985) e sua contribuição para definição dos instrumentos metodológicos de trabalho de campo, como uso de caderneta de trabalho nas quais eram feitos os registros mediante uma descrição densa em todos os trabalhos de campo totalizando vinte e um meses de incursões na comunidade, desenhadas não apenas em dias de pesquisas, mas em noites e pernoites no quilombo da Serra do Evaristo. A utilização da caderneta de campo se consubstanciou como um instrumento adotado na pesquisa a partir dos primeiros trabalhos de campo, os quais foram iniciados em meados de agosto de 2014. Essa ferramenta tornou-se fundamental por registrar a avaliação e a interação da pesquisadora com a comunidade; e permitiu, através da sua forma cronológica, lembrar os momentos e experiências vivenciados em campo. Nessas ocasiões, além das rodas de conversas que possibilitaram a catalogação de oito comidas e a identificação de vinte e três alimentos que fizeram e fazem parte dos costumes alimentares, só foram possíveis mediante observações diretas amadurecidas por meio da vivência e convivência com a Comunidade. Os registros realizados por meio da história oral tem se mostrado uma ferramenta importante para pesquisa em diversas áreas acadêmicas, constituídos por entrevistas com os sujeitos protagonistas da história. A história oral, [...] centra-se na memória humana e sua capacidade de rememorar o passado enquanto testemunha do vivido. Podemos entender a memória como a presença do passado, como uma construção psíquica e intelectual de fragmentos representativos desse mesmo passado, nunca em sua totalidade, mas parciais em decorrência dos estímulos para a sua seleção. Não é somente a lembrança de um certo indivíduo, mas de um indivíduo inserido em um contexto familiar ou social, por exemplo, de tal forma que suas lembranças são permeadas por inferências coletivas [...]. (MATTOS; SENNA, 2011, p. 95). Outro recurso metodológico utilizado foi a formação de grupos focais, por meio de interações com os sujeitos para coleta de dados sobre um tema específico, nesse contexto, conforme GONDIM (2003.p 3) “O foco não se encontra na análise dos conteúdos manifestos nos grupos, mas sim no discurso que permite inferir o sentido oculto, as representações ideológicas, os valores e os afetos vinculados ao tema investigado”. Partindo desse pressuposto, buscou-se desvelar a cultura alimentar e os alimentos tradicionais desse grupo social, o que resultou um total de dez encontros. 26 Tabela 1. Encontros de grupos focais. DATAS DOS ENCONTROS TEMAS DISCUTIDOS Setembro de 2014 Os alimentos que faziam parte da História Setembro de 2014 Mulheres que produziam as comidas Janeiro de 2015 Acompanhamento do modo de preparo do mungunzá salgado e doce de mamão Abril de 2015 Acompanhamento do modo de preparo do suco de clorofila Maio de 2015 Diálogo sobre alimentos, saberes e tradições. Junho de 2015 A cultura da comunidade Agosto de 2015 Compreensão da história da comunidade. Dezembro de 2015 Acompanhamento e história de pratos típicos. Fevereiro de 2016 O que fazia parte da alimentação das mulheres. Março de 2016 Conhecendo melhor o espaço da comunidade Fonte: Elaborado pelo autor. Nos dois primeiros encontros a princípio foram identificados os alimentos que faziam parte da história e da agricultura e quem eram as mulheres que produziam as comidas. O terceiro encontro buscou conhecer o modo de preparo e o saber- fazer do “Mungunzá salgado” e do “Doce de mamão”. O quarto foi acompanhado o modo de preparo do suco de clorofila e falado sobre os seus efeitos nas pessoas da comunidade. O quinto ocorreu possibilitou um diálogo sobre alimentos, saberes e tradições; o sexto encontro realizado em junho de 2015 propôs conhecer a cultura da comunidade; o sétimo procurou compreender a história da comunidade através de lembranças do vivido; o oitavo em dezembro de 2015 houve a identificação e o acompanhamento do preparo e da história de cinco pratos denominados “típicos”; o nono encontro aconteceu atentou-se para um diálogo simples com as mulheres sobre o que fazia parte da sua alimentação cotidiana; o décimo e último pretendeu conhecer melhor a espacialização da comunidade. Esses encontros oportunizaram a compreensão da história cultural e alimentar do objeto de pesquisa, uma vez que a construção dessa colcha de retalhos só foi possível mediante as falas dos partícipes desse processo. Ademais, a aplicação de vinte formulários, técnica utilizada para coleta de dados de cunho empírico, em suma, um método que visa captar a percepção e opinião dos sujeitos sobre o objeto da pesquisa, a fim de elucidar um fenômeno, um fato ou uma ocorrência. 27 Foram aplicados no período de agosto a setembro de 2014, e permitiu que a identificação dos alimentos apontassem os primeiros passos para efetivação da catalogação dos pratos e suas formas de elaboração. Após esse momento, munidos por indicações de sujeitos reconhecidos no quilombo por suas preparações partimos para conversar e acompanhá-los em suas elaborações. Essas pessoas, foram oito mulheres, que nos permitiram acompanhar oito preparações culinárias, e, durante esses momentos realizar oito entrevistas semi-estruturadas, as quais descortinaram e elucidaram os segredos dos seus modos de preparos advindos de seus pais, avós e demais ancestrais. Lakatos e Marconi (2010) afirmam que as entrevistas são meios de investigação social com grande relevância por permitir o contato direto com os entrevistados. Pode-se indicar ainda, que a definição da amostra seguiu critérios como: moradores que são referências em preparações de alimentos no quilombo, e, que são lideranças femininas nas tomadas de decisões sobre a comunidade, uma vez que estas detêm o conhecimento referente às preparações das “comidas de verdade” como define Pollan (2008), em seu livro “Em defesa da Comida: Um Manifesto”. Outros registros a exemplo de fotografias e materiais audiovisuais, obtidos no decorrer das conversas com os sujeitos possibilitaram, que o objeto de estudo ‘os alimentos’ fossem reproduzidos através de narrativas visuais, como afirma (Gonçalves, 2013 apud Cauquelin, 2008) sendo compreendido como uma fração da vida que expressa recordações de lugares, pessoas, aromas, saberes e sabores. Um desafio encontrado no caminho de descobertaspara a pesquisa foram às transcrições das entrevistas e encontros com os sujeitos, pois muitas vezes o ambiente desfavorecia a dialógica, o que tornava o áudio da conversa de difícil compreensão. Contudo, foi possível transcrever os textos de forma coerente e fiel ao que foi dito pelos partícipes, optando-se em manter a linguagem original regional, para assim firmar a identidade dos moradores (LIMA, 2008). Outro desafio para a efetivação dessa pesquisa foi o deslocamento até a comunidade, por questões de dificuldade de transporte. Como pesquisadora, o principal e não menos importante desafio enfrentado no processo de pesquisa, foi conhecer pela primeira vez uma comunidade tradicional que requereu uma desconstrução de personalidade, de valores, crenças e medos atentando-se para uma construção de olhares mais humanos, e críticos, solidários à realidade vivida por esses 28 povos e mais que isso, proporcionou uma reconstrução de um novo “ser” com novos ideais e perspectivas. Ao término da etapa de pesquisa de campo, partiu-se para a análise dos dados obtidos seguindo o processo em etapas de análise de conteúdos. Deste modo, constituíram-se em três etapas básicas: a pré- análise, a descrição e a interpretação inferencial. Os estágios metodológicos se apresentam elencados pelas letras de “a” a “c” a seguir. a) Primeiramente foi feito levantamento bibliográfico para a pré-compreensão geral do tema e do objeto de estudo, compreender sobre as comunidades tradicionais, Fundação Cultural dos Palmares; Little (2010) ; Yabeta; Gomes (2012); Oliveira (2007) para entender as comunidades quilombolas; Pidner (2011) e Vansina (2010) explanam sobre os saberes empíricos, saberes locais; Zuin; Zuin (2008) tratam dos alimentos tradicionais e sua importância; Rocha (2010) defende o alimento como eixo de identidade cultural; Gratão; Mandarola Jr (2011) ressalta o sabor como contribuinte de uma memória gustativa; Montanari (2013) desvenda através da história da alimentação a comida como cultura; Santos (2005) compreende o alimento como ato social; Da Matta (1986) explica a diferença entre comida e alimento; o Manifesto da 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional subsidiaram o entendimento sobre a comida de verdade; Córner (2006); Moletta (2000); Schluter (2003); Segala (2006) e Barczsz; Amaral (2010) Sendo esta, uma etapa importante para familiarização do material característico dos enunciados. b) A partir da leitura interpretativa do material, surgiu o momento de levá-las a adequar- se ou contrapor-se com a realidade do trabalho de campo, obtida por meio da observação in loco. Dessa forma foi possível reagrupar as informações e categorizar os processos de análises. c) Após o reagrupamento dos conteúdos emergentes, iniciou-se a etapa de descrição do objeto de estudo, e foram escolhidas as falas dos principais sujeitos a serem inseridos. Vale salientar que os entrevistados assinaram documentos de autorização de imagens e falas (Apêndice), pois representam os textos que serão apresentados no decorrer da leitura deste trabalho. Mesmo de posse desses documentos, optou-se metodologicamente, por utilizar as iniciais dos nomes dos sujeitos sociais entrevistados, com vistas a preservar suas 29 identidades. Para além da defesa do Trabalho de Conclusão de Curso da pesquisadora, o presente documento visa atender uma demanda social da comunidade quilombola da Serra do Evaristo, uma vez que os sujeitos sociais entrevistados indicaram nos constructos deste processo o interesse pela divulgação dessa pesquisa, para valorizar e registrar a cultura alimentar / gastronômica do quilombo, o que poderá ser observado no detalhamento das preparações no capítulo cinco. É importante ressaltar ainda que a pesquisa que definiu esse estudo é parte integrante do projeto “A Geografia dos alimentos tradicionais dos povos e comunidades do maciço de Baturité- um estudo sobre os quilombolas da Serra do Evaristo” viabilizado pelo primeiro Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) Campus Baturité, voltado para estudos de questões étnico- raciais, história e cultura negra, através do Ensino, Pesquisa e Extensão, em parceria também com o Laboratório de Cartografia da UFC (LABOCART) e o Laboratório de Estudos Agrários e Territoriais da UFC (LEAT). 3. O QUILOMBO DA SERRA DO EVARISTO- BATURITÉ – CE – A HISTÓRIA CONTADA PELOS INTERLOCUTORES “A experiência é um conhecimento empírico, isto é, um conhecimento que determina um objeto de percepções”. Immanuel Kant 31 3. O QUILOMBO DA SERRA DO EVARISTO- BATURITÉ – CE: a história contada pelos interlocutores 3.1 Comunidades Tradicionais: um estudo sobre os quilombolas. Segundo dados de 2010 da Defensoria Pública da União (DPU) que estão distribuídos pelo Brasil cerca de 520 etnias caracterizadas por povos ou comunidades tradicionais, com trajetórias de vida diversas. Dessa forma o país é ocupado por cerca de ¼ (25%) de brasileiros distribuídos em diversas comunidades dentre esses, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, seringueiros, caiçaras, quebradeiras de coco-babaçu entre outros. Essas comunidades adotaram um modelo de cultura rudimentar, abrigando-se em terras menos povoadas, férteis e providas de recursos naturais, que possibilitassem sua subsistência e reprodução. Os territórios tradicionais além de assegurar a sobrevivência dos povos e comunidades tradicionais: [...] constituem a base para a produção e a reprodução de todo o seu patrimônio cultural. A realidade atual reflete a necessidade de mudanças que permitam a estes povos e comunidades a experiência de viver sua cidadania, sem que tenham que abrir mão de suas práticas culturais, sociais e econômicas (BRASIL, 1998 apud MONTE ALTO, 2012, p. 52). O conceito de tradicional pode ser explicado por diversos autores, de acordo com Little (2010), surgem dois novos conceitos na década de 1990 com origens ligadas a dois elementos distintos: o movimento ambientalista e dos direitos étnicos. Devido a isto foi instituída pelo Governo Federal em 2007 pelo Decreto nº 6.040 a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) que visa estimular o desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais, com foco no reconhecimento, garantindo seus direitos territoriais e seu espaço na sociedade valorizando sua identidade e seu modo de organização. Muitos desses grupos resistiram às tentativas dos conservacionistas de tomar o controle das terras que habitavam e que constituíam o sustento do seu modo de vida. Também não aceitaram passivamente as novas categorias que lhes foram colocadas. Uma das respostas dos grupos sociais impactados pela criação das áreas protegidas foi reivindicar o status de “ser tradicional” como arma na sua luta para ganhar reconhecimento étnico do Estado brasileiro e para defender seus recursos culturais frente a sua potencial expropriação ou desaparecimento [...] (LITTLE, 2004, apud LITTLE, 2010, p. 11). 32 Deste modo especifica-se para o território de populações quilombolas que segundo dados da Comissão Pró- Índio de São Paulo (CPÍSP), no Brasil esses povos aparecem subdividido em 24 estados: Amazonas, Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Paraná, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins. Segundo Yabeta; Gomes (2012) dados da Fundação Cultural dos Palmares, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e de outros órgãos e instituições, estima-se que em todo o País existam hoje cerca5.000 comunidades quilombolas, sendo que aproximadamente 193 tiveram sua titulação concluída. De acordo com dados da Secretária de Desenvolvimento Agrário (SDA) o estado do Ceará abrange em torno de 32 municípios onde há residentes que se reconhecem como quilombolas. Esses grupos são definidos como étnico-raciais com trajetórias de vida independentes deixadas pelos seus afrodescendentes que viveram em constante luta e opressão em busca de seu espaço ou de sua terra por direito. Tais grupos deixaram de herança não somente as terras conquistadas, mas a cultura, seus costumes, alimentos e práticas de subsistências. Um sinônimo de garantia para essas comunidades é a existência de uma legislação federal que assegure a eles o direito à terra e ao desenvolvimento sustentável que: Regulamenta o procedimento de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação, registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que tratam o Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1998 e Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003 (BRASIL). Além disso, as comunidades tradicionais são asseguradas pela Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010, que visa garantir à população negra a igualdade racial, através de oportunidades e direitos étnicos individuais e coletivos, a fim de combater a discriminação e intolerância étnica. Do mesmo modo, a Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003 estabelece a inserção no currículo nacional de educação a obrigatoriedade do estudo da “história e cultura afro- brasileira”. Essa ação ajuda a expandir o conhecimento sobre a cultura negra, e possibilita a minimização do preconceito de cor e raça. De certo, surge a importância de se estudar sobre tais comunidades e vivenciar a cultura única de cada uma. 33 3.2 O quilombo da Serra do Evaristo- Baturité- CE. A comunidade remanescente de quilombo está localizada na Serra do Evaristo em Baturité- CE há cerca de 10 quilômetros do centro da cidade, estando a 100 km da capital cearense. São remanescentes por que foram descendentes de grupos que se organizaram nesse espaço, após o período de escravidão vivido entre os séculos XVII e XVIII. Os remanescentes passaram a ser reconhecidos após suas lutas por direitos territoriais. A comunidade da Serra do Evaristo possui atualmente em torno de 150 famílias totalizando aproximadamente 560 pessoas residentes, algumas têm como meio de subsistência a agricultura familiar, uma das principais atividades desenvolvidas e responsáveis pela geração de renda e produção de alimentos, muitos dos quais, o saber fazer foi transmitida por familiares e se tornaram essenciais para o consumo desse grupo social. Figura 1. Comunidade Quilombola da Serra do Evaristo A população é originária de ancestralidades negras e após descobertas arqueológicas no local acredita-se que também tiveram influências indígenas. Acredita-se que o nome da Serra se originou de uma possível relação com a tribo indígena que antes habitava estas terras, provavelmente um índio ou cacique, considerado como um guerreiro que lutou pela comunidade e abrigou os primeiros negros refugiados por conta do processo de escravidão, que acabaram chegando à comunidade. Foto: Nascimento (2015). 34 Nesse sentido afirma Oliveira (2007, p.7) que “as comunidades remanescentes de quilombo são criações históricas e sociais, não devem ser definidas por fatores biológicos ou raciais, já que os quilombos não eram compostos apenas por negros, mas por índios, mestiços e brancos”. De acordo com informações obtidas durante a pesquisa descobriu-se que cinco principais famílias constituem o berço da comunidade e com o passar do tempo formaram o povoado são eles: os “Bentos”, os “Soares”, os “Juliões”, os “Leandros” e os “Venâncios”. Para alguns moradores isso sustenta a hipótese de que as terras foram herança familiar vindo de possíveis formações de quilombos. Não há registros de como essas principais famílias chegaram ao Evaristo. A comunidade apresenta traços de cultura africana nitidamente respeitada, refletidas em sua forma de organização e modo de vida, como as comidas e a própria autoafirmação da raça. A historicidade do local é um registro da memória da população mais antiga, uma digna representação narrativa repassada nos encontros em família e conversas com moradores mais antigos. De acordo com pesquisas feitas na comunidade em 2010, pelo Instituto de Juventude Contemporânea (IJC), descobriu-se que por volta de 1964 houve um deslizamento de terra, que ocasionou mudanças na organização das famílias, diminuindo os espaços destinados à plantação, ainda complementa explicando o fato da maioria dos moradores possuírem mais de Figura 2. A vista da serra. Foto: Barroso (2015). 35 80 anos, pode-se dizer que a Serra do Evaristo tem pouco mais de 250 anos, e revelam que pais, avós e até bisavós nasceram e foram criados na comunidade, o que leva-nos a crer que a comunidade foi ocupada nos momentos de transferências de negros cearenses para os abrigos quando ainda havia a escravidão. De acordo com as histórias de Dona F.J.daS, nascida e criada na comunidade, uma das idosas entrevistadas, que falou sobre suas lembranças, contou que seu pai foi quem doou terras para a construção da escola, da igreja e do posto de saúde que atendem a população e cita que antes não tinha luz na comunidade, só chegando na década de 1980. A religião predominante é a católica, mas há outras como evangélicas. A comunidade ainda expressa em sua cultura a dança de São Gonçalo movimento cultural que é reconhecido por jovens e mais velhos. Conforme contam os moradores essa dança surgiu quando em uma época de seca, o santo ao som da rabeca, ao redor de um poço colocou mulheres para dançar. Depois deste ocorrido um pedido foi feito ao santo e atendido considerando-se um milagre, e a dança continuou se repetindo. É dançada por várias mulheres e alguns homens ao som de instrumentos musicais . Outro fator crucial que representa essa cultura singular é a produção de alimentos presentes no lugar, que podem ser considerados como tradicionais pela comunidade e que compõem a mesa de suas famílias; tais alimentos fazem parte de uma importante atividade de subsistência. Ademais se fez importante compreender como se configura a cultura alimentar Figura 3. Dança de São Gonçalo Foto: Lima (2015) 36 da comunidade, os alimentos presentes no consumo e no plantio, e os pratos que são preparados e considerados tradicionais para os moradores. 3.2.1 Vozes do Saber Os saberes nesse texto foram relacionados o saber da história, do tempo, sobre a vida, o espaço e a cultura. Esses saberes trazem em si um reflexo do que foi vivido, da familiaridade, dos laços afetivos. Tanto a prática da narrativa quanto a escuta dessas histórias de vida, permitiam que o valor dos saberes fossem resguardados e passados de geração para geração como tradição. Permitindo, portando que os narradores e até os ouvintes sejam protagonistas da história, do saber. Para Vansina (2010) esses tipos de conhecimentos são na verdade tradições orais, elocuções- chaves que possibilitam a preservação da “sabedoria dos ancestrais” algo que possa ser transmitido verbalmente para as gerações futuras. A aproximação com essa comunidade permitiu dar visibilidade a esses conhecimentos locais, que diversas vezes são desvalorizados pela ciência moderna que expropria as vozes dos produtores do saber. Nesse contexto, acredita-se que a reafirmação dos saberes locais presentes, é uma forma de elevar os principais sujeitos que dão vida a narrativa do saber, além de valorizar o seumodo de vida e suas expectativas sobre o mundo. Dessa forma denominamos nesse texto os conhecimentos vividos e produzidos pelos moradores do quilombo, como saberes locais ou como qualifica Pidner (2011) saberes populares, não científicos, saberes hegemônicos e saberes autóctones. Podemos compreender o saber desse povo pelas histórias de vida, pelo modo como eles discorrem sobre a vida de seus pais, no tempo que a comunidade ainda não era tão populosa como é atualmente. [...] Isso aqui hoje tá muito bom, animal num tinha, a minha mãe contava pra gente que só quem tinha um animalzim aqui era o pai dela [...] antigamente aqui quando era para contatar o padre para celebrar uma missa [...] precisava levar um animal selado pro padre vim a cavalo, e tinha uma pessoa para ir buscar e para ir deixar [...] num tinha estrada era uma vereda [...] nós quando era no fim do ano que o inverno era ruim, e eu já era adulto [...] meu avô falava com a comunidade, o povo todim, cada um levava seu enxadeco aqui no ombro e ia cavar, era dessa largurinhaveia e não andava carro pra cá, ai foi que surgiu essa estrada e ficou mais fácil. (F.SdeC, 94 anos. Entrevista realizada em setembro de 2014). Os saberes produzidos e vivenciados pelos integrantes da comunidade são conhecimentos adquiridos com o passar do tempo, sem comprovações de vínculo com o 37 científico. Dessa forma foi entre trabalhos de campo e conversas com os moradores da comunidade quilombola que descobriu-se por exemplo, através de seu A.RdeC de 47 anos, uma experiência que eles faziam para saber se o inverno seria bom para o plantio. [...] Muitas coisas eles fazem, eu não sei bem as datas, mas têm os dias que eles fazem a experiência da pedra de sal, botar a pedra de sal (em um lugar ou depósito) e se no outro dia ela amanhecer molhada, eles prever um inverno bom, são coisas que a gente considera como tradição [...] As pessoas mais idosas elas sabem, e aquilo ali tá na mente, tão gravados e elas não esquecem né? (A.R.deC, 47 anos. Entrevista realizada em abril de 2015). Deste modo é notório na fala dos entrevistados como o saber desses moradores antigos permanece como narrativa na comunidade. É uma sabedoria coloquial independente da prática ter desaparecido no decorrer do tempo. É algo que advém do vínculo parental, dos diálogos estabelecidos e que são vistas pelas novas gerações como a ciência do povo antigo. Ademais, seu A.RdeC, fala sobre as manifestações culturais que eram presentes na comunidade, descreve sobre a época em que o folclore era mais vivo. Em junho entra um pouco da tradição religiosa e um pouco a folclórica que é o costume de se fazer uma fogueira né, e tem as comidas especiais, mais comidas com milhos. Mais uns elementos de festejos, de fogos, cada um quer fazer um barulho, uma festa, tem as quadrilhas, os forrós. [...] Hoje o Boi-bumbá não tem mais, tinha um grupo que fazia, já passou, e depois foi se perdendo. Eu já assisti algumas vezes, quando eu era menino assistia né, mas morria medo. Era um grupo de pessoas eles se vestia com umas roupas estranhas, as vezes era de palhas, se vestiam de palha, era uma coisa criada bem criada sem sofisticação né, uma coisa, faziam umas mascara de papelão, pintava de escuro a redor dos olhos, e tinha os personagens do boi bumbar que era o boi, tinha a burrinha, o cavalo velho. Eu me lembro bem desses três personagens, e tinha o matador. Eles faziam, esse grupo faziam para celebrar o folclore e arrecadar recursos. Eu não sei bem como eles dividiam esses recursos. É tanto que tinha um momento que eles vendiam o boi né, partilham o boi todinho dizendo que ia vendendo a parte do boi e alguém da plateia ia comprando uma parte do boi. (A.RdeC, 47 anos Entrevista realizada em abril de 2015). É possível através dessas dialógicas estabelecidas com esses entrevistados, ver que os mesmos se preocupam com a história que está sendo contada, na medida em que os mesmo são conscientes que estão narrando suas histórias de vida, seu aprendizado, suas lembranças do tempo antigo. Para confirmar esse pressuposto Pidner (2011) conclui em sua fala que: Os saberes locais revelam os detalhes do cotidiano, o universo de experiências vivido nos lugares, a transpiração do dia-a-dia. Vulgar e prático. Costumeiro e habitual. Comum e coletivo. Os saberes locais correm pelas veias do sujeito, pulsam o coração, irrigam a mente. Sujeitos são intérpretes do mundo, são autores e leitores dos saberes locais. Os sujeitos são feitos de saberes e os saberes são feitos de sujeito. (PIDNER 2011, p. 5 grifo do autor). 4. ENTRE A COMIDA DE VERDADE E OS ALIMENTOS TRADICIONAIS: UMA COMPREENSÃO CONCEITUAL. “Não coma nada que sua avó não reconheceria como comida” Michael Pollan (2008) 39 4. ENTRE A COMIDA DE VERDADE E OS ALIMENTOS TRADICIONAIS: uma compreensão conceitual. 4.1 A Comida de Verdade e a Verdade da Comida O Brasil é um país conhecido pela sua vasta gastronomia, cultura, tradições, saberes, enfim, cada lugar tem suas especificidades e formas de lidar com o alimento. No entanto o país passou anos lutando para sair do nível de pobreza extrema e da desigualdade, isso tudo aconteceu com os avanços para a garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), da Soberania Alimentar e da Segurança Alimentar e Nutricional de muitas famílias, através de políticas públicas que mudaram a situação de quase todos os estados. Essas ações resultaram em 2014 na saída do país do Mapa Mundial da Fome, reduzindo os índices de mortalidade e desnutrição infantil. Mesmo com todas essas conquistas o país ainda tem muitos desafios pela frente quando se trata de alimentação, igualdade, inclusão e entre outros assuntos que assolam o país. Ainda por cima o contexto atual político e econômico é um desafio maior, por um lado há um sistema que apoia e impulsiona essas ações de crescimento, reforçam a garantia dos direitos humanos em virtude das ameaças dos avanços já conquistados, e pelo lado econômico tem a crise que atinge o país, visto pelo viés alimentar os preços encontram-se cada vez mais elevados, com o desajuste da oferta e da demanda, das formas de produção e consumo. Devido a isso, ocorreu em 2015 após quatro anos de avanços a 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN) que teve como tema central “comida de verdade no campo e na cidade”. Essas conquistas só foram possíveis graças ao movimento coletivo de povos e comunidades tradicionais, organizações e movimentos sociais que tiveram sua construção e efetivação orientadas pelo respeito à sociobiodiversidade. Em um primeiro momento é imprescindível entender o que de fato é a comida de verdade, e para designar essa proposição o Manifesto da 5ª Conferência será base de fundamentação. Compreende-se como comida de verdade aquela que respeita as tradições, que respeita o meio ambiente, a agricultura familiar, que é saudável para o ser humano, respeita os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais valorizando as suas formas de consumo e produção. Comida de verdade é salvaguarda da vida [...] contribuindo para a redução dos efeitos das mudanças climáticas. Garante os direitos humanos, o direito à terra e ao território, a alimentação de qualidade e em quantidade adequada [...] comida de 40 verdade começa no aleitamento materno. Comida de verdade é produzida pela agricultura familiar, com base agroecológica [...] é produzida por meio do manejo adequado dos recursos naturais, levando em consideração os princípios da sustentabilidade e os conhecimentos tradicionais [...] É livre de agrotóxicos, de transgênicos, fertilizantes e de todos os tipos de contaminantes. (Manifesto da 5º Conferência Nacional de segurançaalimentar e Nutricional em 2015). No que se refere a comida como “salvaguarda” refere-se ao essencial para se viver, a satisfação o bem estar do ser humano, deste modo acaba se estabelecendo valores culturais onde a comida no ato de comer só tem sentido quando não atinge de forma negativa o meio ambiente, quando não contamina a terra, os rios enfim quando não trás ameaças ao planeta em sua conjuntura. Portanto a comida considerada de verdade perpassa a noção somente do prato de comida, são questões ambientais agregadas, em defesa da conservação dos recursos naturais para as gerações futuras, garantia dos direitos humanos. [...] O conceito de comida de verdade se associa diretamente ao de alimentação adequada e saudável, um direito humano básico, que se concretiza na comida que comemos, no campo e na cidade, nas formas como comemos e no valor simbólico dos alimentos [...] Logicamente deve ser adequada aos aspectos biológicos, de acordo com o curso da vida e as necessidades alimentares especiais dos indivíduos e grupos, atende aos princípios da variedade, equilíbrio, moderação e prazer (sabor), às dimensões geracionais, de gênero e etnia [...]. (Documento de referência da 5º Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, 2015). Ademais, torna-se importante também a valorização e preservação dos valores culturais e sociais que referenciam o modo de vida de cada comunidade, pois os mesmo revelam traços de identidades expressas nas formas de lidar com a terra, nos alimentos, no saber e no fazer das comidas e nas dimensões étnicas, dessa forma tem-se que: A comida de verdade garante a soberania alimentar; protege o patrimônio cultural e genético; reconhece a memória, a estética, os saberes, os sabores, os fazeres e os falares, a identidade, os ritos envolvidos, as tecnologias autóctones e suas inovações [...] Comida de verdade é caracterizada por alimentos in natura e minimamente processados em detrimento de produtos ultraprocessados. Deve atender às necessidades alimentares especiais. Comida de verdade é aquela que é compartilhada com emoções e harmonia [...] (Manifesto da 5º Conferência Nacional de segurança alimentar e Nutricional em 2015). Diante disso, torna-se de suma importância a produção de alimentos tradicionais, locais, regionais ou artesanais como podem ser definidos, por Zuin; Zuin; (2008, p. 111) “a produção desses alimentos propicia [...] o trabalho em família, pois envolve os saberes-fazeres das mulheres, já que são elas as principais produtoras desses alimentos”. 41 [...] Comida de verdade é aquela que reconhece o protagonismo da mulher, respeita os princípios da integridade, universalidade equidade. [...] é aquela que erradica a fome e promove alimentação saudável, conserva a natureza, promove saúde e paz entre os povos. (Manifesto da 5º Conferência Nacional de segurança alimentar e Nutricional em 2015). Essa tradição arraigada ao alimento estão sendo esquecidas, por diversos fatores como, por exemplo, o desprazer ao se alimentar, isso reverbera diversas questões, uma delas é que atualmente as pessoas têm procurado alimentos que respeitem o meio ambiente, os produtores e sua cultura principalmente. E por assim ser é que os alimentos considerados tradicionais são difíceis de definir, pois depende do contexto social, do espaço geográfico, do modo como vivem cada comunidade e sua cultura. No entanto do ponto de vista de Ribeiro e Martins (1995) os alimentos tradicionais podem ser definidos sendo “um produto único pelo emprego de matérias- primas e pelos conhecimentos aplicados, assim como os usos de produção, de consumo e de distribuição [...]” (RIBEIRO; MARTINS, 1995 apud ZUIN; ZUIN, 2008, p. 113). Do mesmo modo defendem que os alimentos podem ser considerados tradicionais por que fazem parte da história social de um grupo. Vindos de geração em geração, foram produzidos e reproduzidos durante o tempo, esse processo resulta das relações sociais e interfamiliares que se firmam no falar e no ouvir, no saber e no fazer de cada comida ou alimento, que perpassa o tempo e é chamada de tradição. 4.2 Alimentos tradicionais Os alimentos podem ser classificados como tradicionais a partir de duas dimensões: a primeira é a forma de cultivo, na qual os responsáveis pelo manejo da terra mantêm as mesmas técnicas e práticas de lidar com o plantio, sem uso de agrotóxicos, aditivos ou qualquer outro contaminante que coloque em risco a vida do consumidor e do meio ambiente, deste modo os alimentos se mantêm em suas formas naturais, isento de qualquer tipo de modificação; a segunda é a sua tradição advinda de conceitos culturais, encontros sociais e históricos adquiridos com o passar do tempo. Portanto, esses alimentos são tradicionais por que persistem no tempo, sendo sempre produzidos em um determinado lugar e de uma determinada maneira, conservando características que o definem quanto ao aspecto, à textura e ao sabor que estão ligados a cultura gastronômica de uma população. (ZUIN; ZUIN, 2008, p. 113). Nessa perspectiva a comunidade Quilombola da Serra do Evaristo enquadra-se como nessas duas dimensões, mais ainda, por valorizar o alimento tradicional pelo seu valor cultural e não somente comercial. Deste modo, são definidos nesse campo como produtos com 42 história, alimentos de origens e raízes arraigadas na cultura alimentar de um povo, é também considerado como matéria- prima particular, desde o plantio ao preparo de um prato. Por conseguinte, os alimentos são chamados tradicionais por que resistiram ao tempo, adquiriram histórias, foram repassados num encontro estabelecido entre laços familiares, do saber e da experiência, e com isso ganhado novas características, novos métodos de manejo, novos ingredientes no fazer. A sociedade brasileira ainda tem buscando cada vez mais reconhecer as vantagens de consumir um alimento tradicional, pois além de seus valores nutricionais é preciso conhecer o valor agregado por trás de cada alimento, seja o alimento em si como uma fruta ou um vegetal que passou por bons processos de plantio até o preparo de um prato elaborado por um neto que aprendeu a receita com a avó. Não é só esse atributo que está por trás de um alimento, muitas vezes desperta sensações que vão além do paladar. Quem os consome busca, sobretudo boas lembranças, memórias afetivas, pois através do alimento é possível encontrar sua identidade. “O alimento pode ser considerado como um eixo central na estruturação indentitária dos diversos povos” (ROCHA, 2010, p. 2). O sabor expresso no gosto e no cheiro é imaginação; é memória, pois estes nos remetem a outros lugares, a sentimentos agradáveis (ou desagradáveis), as experiência vividas. Desta maneira experiênciamos o mundo com o nosso corpo de sentidos- nossa corporeidade. (GRATÃO; MARANDOLA JR, 2011, p.62). No entanto, Montanari (2013) afirma dizendo que: O gosto é, portanto, um produto cultural, resultado de uma realidade coletiva e partilhável, em que as predileções e as excelências destacam-se não de um suposto instinto sensorial da língua, mas de uma complexa construção histórica. As cozinhas típicas e regionais são processo de lentas fusões e mestiçagens, desencadeadas nas áreas fronteiriças e, depois arraigadas nos territórios como emblemas de autencidade local. (MONTANARI, 2013, p. 11). Esse exercício de reconhecimento e memória, a partir de elementos históricos relacionados à comida é acima de tudo uma partilha de conhecimentos empíricos, esses que são cedidos por esses sujeitos que lidam com o preparo direto e mostram-se contribuintes de uma identidade gastronômica de um espaço e grupo social. Para Montanari (2013) a comida não pode ser definida apenas por seu valor nutricional, mas pelo contexto no seu entorno. Considera que existem duas variáveis que conjuntamente expressam um valorsignificativo para a “linguagem da comida” sendo essas apontadas como substância e circunstância, onde o alimento entra em conflito pelo seu valor 43 nutricional e pela sua simbologia cultural. Isso por que o alimento não é compreendido somente em uma lógica de necessidade do corpo, mas uma perspectiva de causar sensações para além do palato, como é o exemplo que o autor expressa sobre o café que de forma substancial nutre e ao mesmo tempo de forma circunstancial relaxa, desperta. Portanto, compreendendo os alimentos em uma função circunstancial, acredita-se que o mesmo constitui-se como um objeto da história, pois eles representam por meio de suas variações, um ato social que está associado aos usos, aos costumes, e ao modo de (com) viver em cada cultura. O historiador Carlos Roberto Antunes dos Santos (2005) considera que: Os alimentos não são somente alimentos. Alimentar-se é um ato nutricional, comer é um ato social, pois constitui atitudes ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações. Nenhum alimento que entra em nossas bocas é neutro. A historicidade da sensibilidade gastronômica explica e é explicada pelas manifestações culturais e sociais como espelho de uma época e que marcaram uma época. Neste sentido, o que se come é tão importante quanto quando se come, onde se come, como se come e com quem se come. Enfim, este é o lugar da alimentação na História. (SANTOS, 2005, p.12). Sendo assim, torna-se possível compreender como se consolida a questão dos alimentos tradicionais na comunidade Quilombola da Serra do Evaristo, como são as relações dos quilombolas com a comida, com as mudanças ocorridas e a preservação do saber e do fazer. 4.2.1 Do passado ao presente... Sobre os alimentos que formaram a comunidade. Partindo do pressuposto do que foi apresentado, se fez importante discorrer como era o cultivo dos alimentos antigamente na comunidade e o que foi modificado pelo tempo, tal reflexão foi possível através da narrativa de pessoas que nasceram e cresceram na comunidade vendo o cultivo de alimentos que na época eram fartura para os moradores. De modo geral serão visualizados os alimentos que fizeram e fazem parte do cotidiano dessas pessoas. Esse tópico possibilitou que os sujeitos através de suas falas, através da história oral revivessem os momentos bons que tiveram em suas infâncias e percebessem as mudanças que acabaram sofrendo no decorrer do tempo. O Sr. F.S.deC, de 94 anos, viúvo, nascido e criado na comunidade e neto de M.S.deC um dos principais donos das terras quilombolas antigamente, quando perguntado sobre quais eram os alimentos produzidos na comunidade, ele respondeu que antes plantava-se banana, 44 milho, algodão, mandioca, fava (ainda é plantada, mas em pouca quantidade), feijão , arroz, gergelim, laranja e melancia. E acrescenta: Tudo que plantava aqui dava [...] o povo tem aquele dizer que tem um tempo que a terra negava o pão e parece que nos tamo nesse tempo [...] hoje a vantagem daqui é mais bananeira, quem tem um chãozim desocupado tá cheio de bananeira (F.S.deC, 94 anos. Entrevista realizada em setembro de 2014). Já a Sra. F.J.daS de 88 anos, nascida na comunidade, conta que seu pai foi um grande produtor de urucum e complementa que também era notável a presença de goiabeiras e cajazeiras na comunidade. De acordo com dados da pesquisa feita na comunidade pelo Instituto de Juventude Contemporânea – IJC em 2010, todos esses alimentos eram plantados antes da predominância da plantação de banana e houve um tempo em que também plantava-se café, onde a comunidade acompanhou o crescimento no século XX. As entrevistadas, M.AdaS.F. e M.daC.daS.F.F lembraram como era o cultivo do feijão conhecido como carioca ou mulatinho na comunidade: [...] o feijão (de cordas) infelizmente aqui na serra não se planta mais. Não se planta mais não, nem arroz, a fava ainda planta mesmo que seja de pouco [...] E tem o feijão que o pessoal joga no mato, que é feijão mulatinho, carioca. Que eles chamam jogar no mato [...] É por que é assim, esse estilo ai, que o pessoal usa, os mais velhos né? Ele não é feito em roçado limpinho não, é como se fosse só na broca, ai lá fica os mato baixim, ai o pessoal diz joga no mato, ai ele nasce meio sufocado mais nasce, ai o pessoal arranca os pés, não é puxando, arrancando a baja do é não, são arrancados com tudo e trazem pra casa [...] Ai eles retiram a baja [...] ainda faz mais é muito pouco, mas perdeu mais a tradição. (M.daC.daS.F.F, 46 anos. Entrevista realizada em Abril de 2015). Dona M.AdaS.F, 31 anos, completa a fala dizendo que “Tem pessoas que tiram a baja, outras tiram as folhas e colocam pra secar”. É notório a partir desses trechos que contam um pouco do passado da comunidade, que houveram mudanças drásticas ao decorrer do tempo e com isso sua cultura alimentar foi sofrendo influências e em alguns casos perdida. Quando perguntado para o Sr. F.S.deC sobre 0vo que mudou em relação aos alimentos e se nas novas plantações eles sofreram alterações, ele conta que antes não tinham essas plantações na comunidade e que os alimentos não eram envenenados como são hoje. “A minha mãe contava pra mim, pra nós que era difícil uma pessoa ter uma touceira de bananeira pra comer um cacho de banana, era dificilmente era, já hoje tá desse jeito” (F.S.deC, 94 anos). 45 No decorrer dos trabalhos de campo e entre relatos dos moradores foi possível perceber que a banana é a principal fonte de subsistência produzida não só para o consumo mais também para fins comerciais e alguns casos bem particulares sofreram alterações como uso de carbureto que é um composto inorgânico usado para acelerar a maturação dos frutos, porém a comunidade reconhece que essa ação não é benéfica, pois modifica o sabor e a textura do alimento. Outros fatores importantes citados pelos entrevistados foram às influências que a comunidade teve em relação aos alimentos, disseram que foram introduzidos a acerola, o caju e a manga que chegaram á comunidade alguns anos depois que houve o povoamento, chegaram pessoas que moravam em outras cidades e passaram a habitar na comunidade, já outros alimentos ficaram como herança e continuam sendo preservados como o milho, a fava, a jaca e a tangerina (alguns deles produzidos em menores quantidades). São esses alimentos cultivados no quilombo que alimentam muitas famílias, que enriquecem suas mesas e garantem sua sobrevivência. Diante desses relatos podemos perceber as ramificações e variedades de alimentos que já pertenceram à comunidade e o que perdura até hoje a exemplo “A banana” que ganha um patamar de maior escalar de produção atualmente. De acordo com o que foi explanado anteriormente, é importante organizar em um quadro geral, os alimentos que foram citados pelos entrevistados como os que fizeram parte da comunidade desde sua formação (Quadro 1), os que foram inseridos através de influências de outras regiões (Quadro 2) e destes os alimentos deixados como herança de seus ancestrais que continuam sendo produzidos, consumidos e preservados por eles (Quadro 3). 46 Quadro 1. Alimentos que eram plantados na comunidade e seu valor nutricional. Fonte: Elaborado pelo autor (2016) e os valores nutricionais baseados na Tabela Brasileira de Composição de Alimentos (TACO) Disponível em: www.nepa.unicamp.br> ALIMENTOS QUE ERAM E CONTINUAM SENDO PLANTADOS NA COMUNIDADE NOME CIÊNTIFICO VALOR NUTRICIONAL Arroz Oryza sativa L. Carboidratos, proteínas, vitaminas A, B6, B12, C, E , K, cálcio, ferro, magnésio, selênio, potássio, fósforo, sódio, zinco, água, açucares, gorduras e ácidos saturados, monoinsaturados e poli-insaturados. Banana Musa acuminata Colla x Musa balbisiana Colla Carboidratos, proteínas, gorduras, fibra Alimentar. Batata
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