Prévia do material em texto
Aqui eu parto de ''Cartografias do Desejo - Micropolítica, subjetividade e história'', de Suely Rolnik, que transcreveu uma série de entrevistas concedias por Felix Guattari em sua vinda ao Brasil durante a década de 80. Em meio a crise de governamentalidade, como diria Foucault, ao se referir a uma nova produção de sujeito no contemporâneo, se faz útil as análises de Guattari acerca da cultura e dos problemas clínicos do sujeito tecnicizado do século XXI. O presente texto busca analisar a produção de subjetividade na sociedade de massa subsidiada pelo agenciamento coletivo da nova razão do capitalismo contemporâneo: o neoliberalismo e seus mecanismos de concorrência que instauram uma crise na consciência coletiva. Assim, visa-se frustrar o campo do desejo, implicando uma perturbação neurótica que reduz a potência criativa do sujeito. A insegurança de produzir modos de vida singular se deve ao fato de colocar em risco as posições pré-estabelecidas na estrutura social. Guattari traça dois modelos de signos: as identidades reconhecidas, que são modelos dominantes no espaço social, e o território da singularidade, caracterizado por modelos desviantes da normalidade constituída, cujos impulsos se dão no investimento do desejo contra as estruturas de valores impostos, constituindo uma estratégia micropolítica, já que é um investimento no campo social. A cultura é um conceito reacionário? A cultura estabelecida na sociedade moderna se reduz ao padrão do mercado econômico cujos fundamentos se dão no nível da troca, submetendo- se a valores macro políticos. Nessa condição, a cultura se desvia inteiramente do que deveria significar: criação e autenticidade. ‘’A cultural enquanto esfera autônoma só existe no nível dos mercados de poder, dos mercados econômicos, e não a nível de produção, da criação e do consumo real.’’ (Guattari F: Rolnik S, 1996, p.15). A cultura de massa definida por Guattari se refere a uma subordinação da subjetividade a produção e ao consumo. Nessa condição permite-se o enquadramento de indivíduos em escalas hierárquicas cujos significados são controlados afetivamente, por meio de aparatos sensíveis que tocam às preferências individuais produzidas pela máquina do mercado. Repressora e inquisitiva, a cultura para Guattari é tomada como reacionária, uma vez que dita quem a possui e quem está de fora das exigências preconcebidas. O conceito de cultura está intimamente ligado ao cultivo do espírito e formas de trabalho na conjuntura econômica. Para Guattari (1996) não se fala mais em pessoa de qualidade, o que se considera é a qualidade da cultura. Desse modo, visa-se apontar para uma estratégia de desvio a essas estruturas, diretamente ligadas ao senso prático, dado que é preciso exercer a singularização, isto é, uma prática micropolítica que recusa os modos vigentes, criando novas formas de sensibilidade, pois essa é a principal função de uma subjetividade singular, que sente e atua no campo social. Guattari ainda ressalta que é preciso elaborar uma cultura metamórfica, que se cria, se modifica a todo instante. ‘’ É preciso para tolerar margens, setores de cultura minoritários, subjetividades em que é possível se reconhecer, recuperar entre os indivíduos uma orientação alheia á do capitalismo’’ Guattari (1996). O problema se dá na medida em que governos tentam axiomatizar esse fluxos a seus modos, incluindo sob o pretexto democrático, quando na verdade estão sequestrando-os para domestica-los em nome de uma instituição. Como dito, o modus operandi do mercado econômico visa modelar as preferências individuais, em escala global, extinguindo qualquer forma de expressão autêntica e criadora. Não se trata de um movimento ideológico da macro estrutura, mas sim uma produção de subjetividade. Relacionando a produção social como uma usina maquinica, pode-se observar uma geração permanente de mecanismos que enquadram as personalidades em regimes de significações. Os aparatos tradicionais que organizam o desejo coletivo indubitavelmente passam pelas instituições familiares, midiáticas, e da cultura de massa em geral. Na medida em que uma instituição pretende domesticar forças menores sua influência ocorre no âmbito dos valores, uma dominação total que só é efetivada na escala do querer. Possuindo o controle das afecções, seja pela igreja, família, pela indústria, o indivíduo vive para perpetuar sua zona de segurança, onde ele é integrado e tido como justo por possuir valores pré-constituídos. Guattari chega a este ponto do tema separando as categorias de individualidade e subjetividade: a primeira é fruto de uma produção coletiva, massiva em proporções globais, enquanto a subjetividade não é passível de totalização. Os processos de singularização e subjetividade se formam na proporção em que são estabelecidas novas formas de sentir, de associações sociais, tais como os grupos minoritários que tendem a emergir no espaço social. Assim sendo, constata-se que o principal fundamento da produção capitalística é produzir a individualização em detrimento da singularidade. Posto isto, a manipulação das formas de penar, de agir, e de ser, acarreta efeitos psicossociais que tocam a saúde mental, como destacada acima. Outros acarretamentos da subordinação aos modelos impostos pela máquina social é o sentimento de culpabilização que está calcado na interiorização de uma vida inoperante, posto que a moral utilitarista da vida contemporânea almeja meras relações contratuais apoiadas em interesses privados. Para aprofundar a questão da problemática psíquica causada pela subjetividade capitalística, cabe lembrar os ensaios freudianos em O mal estar da civilização, obra publicada no contexto da grande crise econômica mundial de 1929. Tal como nos dias atuais, a condição do capitalismo em produzir subjetividades em escala global levou Freud a tratar da repressão social, da depressão generalizada e diversas queixas psíquicas geradoras de neuroses. Para Freud o mundo é movido pelo princípio de prazer, e, desse modo, o EU evita qualquer forma de desprazer externo que o possa levar ao desprazer. Assim, o sujeito se opõe a tudo que vem de fora e que o ameaça. O agenciamento autoritário dos aparatos sociais levam os indivíduos a promover paliativos contra os sofrimentos psíquicos, tais como a religião, substâncias químicas para atuarem no organismo, restabelecendo, mesmo que falsamente, o princípio de prazer. Nesse sentido, a religião, como detentora do conhecimento da finalidade da vida e do sofrer, é a via mais plausível para o sujeito que sofre. Haja vista as instituições pentecostais que capturaram a opinião pública e o Estado brasileiro depois da crise governamental no país, após as passeatas de 2013. Como colocado anteriormente, portanto, as práticas micropolíticas, efetuada pelo conjunto das singularidades que atuam em nível molecular e no círculo dos afetos, é uma estratégia para o mal estar. Freud também aponta para atividade intelectual como ferramenta de fuga, pois eleva o contentamento da mente atenuando as queixas, pois ao compreender as análises dos contemporâneos e dos antigos, percebe-se que o processo se dá em escala global, e não meramente na consciência individual. A micropolítica como linha de fuga aos regimes de linha dura contribui para a circulação de uma cultura morfológica, que se atualiza e se desprende dos modelos arraigados na moralidade utilitária.