Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
/E sp ec ia lid ad es C lín ic as 1 /U ni ve rs id ad e Fe de ra l d e C iê nc ia s da S aú de d e Po rt o Al eg re Apresentação: Eliézer Cunha Caso clínico: Deficiência de alfa-1 antitripsina Dados gerais: RLD, sexo masculino, 44 anos, engenheiro civil, natural de Encruzilhada do Sul (RS). Morava em Rondonópolis (MT), mas mudou-se para o sul recentemente em busca de tratamento especializado. RLD foi transferido, há 1 semana, do Hospital Santa Ana (HSA, em Santa Cruz do Sul) para a internação do setor de Gastroenterologia da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (SCMPA). Acompanhado pela irmã, o paciente faz seu próprio relato com alto nível de confiabilidade. Relata que, antes de chegar à SCMPA, ficou internado por duas semanas no Hospital Santa Ana*. Lá, refere que sentia inchaço, dor abdominal e fraqueza; e que recebeu antibióticos por 11 dias para tratamento de uma infecção (sic.). A irmã diz que se tratava de uma Peritonite Bacteriana Espontânea, mas o paciente discorda. Ainda em Santa Cruz, realizou paracenteses de alívio (com infusão posterior de albumina). Na última manhã que ficou internado no HSA, teve sensação de vertigem mesmo quando sentado. Ao se levantar para ir ao banheiro, teve síncope e queda. Foi acolhido pela irmã, que evitou a queda ao solo. Nessa ocasião, apresentou hematêmese em pequena quantidade — razão pela qual fora transferido, via GERINT, para a SCMPA. Refere que, há 1 ano, apresentou hematêmese e melena e que ficou internado por cerca de 1 semana. Na ocasião, um exame de endoscopia constatou a presença de varizes esofágicas. Todavia, a causa hepática mantém-se desconhecida. *O paciente e a familiar não são capazes de informar mais do que isso e não portam qualquer tipo de nota de transferência emitida pelo Hospital Santa Ana, sendo impossível conferir a veracidade do que é informado. Estado geral regular/levemente comprometido; Consciente, orientado no tempo e no espaço, colaborativo com o exame; Pele e mucosas externas hipocoradas, hidratadas e ictéricas (+1/+4); Eupneico; SpO2 de 98%, FC = 111, PA = 130/70 Avaliação cardíaca: ritmo regular, 2 tempos, bulhas normofonéticas, sem sopros (RR, 2T, BNF, S/S) Exame pulmonar: murmúrios vesiculares uniformemente distribuídos (MVUD), sem anormalidades. Exame de abdôme: globoso, ascítico (com teste piparote positivo), indolor, ruídos hidroaéreos presentes e bem distribuídos pelos 4 quadrantes, com circulação colateral evidente. Avaliação objetiva IMC = 30, limite inferior para obesidade de grau 1 (95kg e 178cm de altura); Refere ganho de peso (de aproximadamente 5kg) devido à ascite. Antes da doença, era bastante ativo e mantinha uma alimentação razoavelmente saudável (sem excessos). Pálido, com múltiplos hematomas e edema notável de MMII (empastamento de MID). Diurese preservada. Evacuação: 1x dia, com fezes de consistência semi-sólida, pretas e com odor fétido. [Exame de toque retal confirma melena]. No momento da avaliação, apresenta-se deitado em decúbito dorsal no leito; sente-se bem, sem queixa presente de vertigem. Avaliação subjetiva Extremidades: aquecidas, bem perfundidas, com edema assimétrico de MMII (+4/+4) e empastamento de MID, sem sinais flogísticos (calor, rubor, edema, dor e limitação funcional). ECG (28/06): sinusal, ausência de bloqueios de ramo, progressão adequada de ondas R nas precordiais, eixo preservado, sem demais alterações agudas. /Especialidades Clínicas 1 /Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre /Especialidades Clínicas 1 /Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre Lista de problemas # Cirrose — Child C / MELD-Na 22 (em evolução de 27/05/2021) Etiologia ainda não definida; Ascite volumosa; Sorologias virais negativas. # Nega alergias # Nega etilismo, tabagismo e drogadição # Nega outras comorbidades # Hepatite (sic.) #Nega cirurgias prévias Exames complementares Ureia = 126 Creatinina = 1,16 Na = 120 K = 6,2 Ácido Úrico = 4,6 Lactato = 9,4 mmol/L TGO = 88 TGP = 63 Fosfatase A. = 78 GGT = 37 Bilirrubina Total = 3,1 Bilirrubina direta= 1,8 LDH = 277 TP RNI = 2,33 TTPA = 53,5 Albumina = 2,2 Cálcio Iônico = 4,59 Hb = 5,5 HT = 17,2% VCM = 113 CHCM = 32,0 RDW = 19,9 Leucócitos = 50.120 Plaquetas = 343.000 anti-HIV = NR anti-HCV = NR anti-HBS = <3 HBsAg = NR 8–20 mg/dL 0,7–1,3 mg/dL 136–145 mEq/L 3,5–5 mEq/L 2,5–8 mg/dL 0,5-1,6 mmol/L 0–35 U/L 0–35 U/L 36–150 U/L 8–78 U/L 0,3–1,2 mg/dL/dia 0–0,3 mg/dL 60–160 U/L 25–36 seg 3,5–5,4 g/dL 9–10,5 mg/dL 14–17 g/dL 41–51% 80–100 fL 32–36 g/dL 11-14% 4.500-11.000 células/mcL 150.000-350.000/mcL Valores de referência 28/06/2021 22/05/2021 Análise do líquido ascítico Albumina = <1,0 pH = 8,3 Glicose = 154 Amilase = 20 Citológico ---------------- Eritrócitos = 250 Leucócitos = 100 Linfócitos = 58% Neutrófilos = 20% Macrófagos = 10% Cél. Mesoteliais = 2% BAAR = Neg. Bacteriológico = Neg. Lista de medicamentos Furosemida 40mg 1x dia Espironolactona 100mg 1x dia Propanolol 40mg à noite aproximadamente 7,3 < 150/uL < 500/uL <50% <50% Valores de referência Alteração dos níveis de ureia (↑), potássio (↑), lactato (↑), TGO (↑), TGP (↑), BT (↑), BD (↑), LDH (↑), tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPA) (↑), albumina (↓), Ca iônico (↓). Anemia macrocítica normocrômica com anisocitose pronunciada + Leucocitose às custas de segmentados (73,9%) Exames alterados Legenda: Síntese Fora a hemorragia digestiva alta, cujo manejo é emergencial (discutido adiante), um dos achados mais interessantes a se investigar no paciente deste caso é a ascite — uma vez que o exame laboratorial do líquido ascítico pode nos fornecer dados fundamentais ao diagnóstico da doença de base; ou pelo menos indicar se foi, de fato, uma PBE que descompensou a cirrose instalada. Por definição, ‘ascite’ se refere ao acúmulo de líquido (de origem patológica) na cavidade abdominal, como consequência de três processos relacionados e que ocorrem em diferentes fases da doença hepática: vasodilatação, overflow e underfill. Dado que a ascite do nosso paciente teve início recente (tendo este se queixado de inchaço pouco antes de internar no Hospital Santa Ana), é mais provável que os dois processos iniciais — vasodilatação e overflow — sejam preponderantes. A origem do líquido é variável (sangue, plasma, bile, suco pancreático, líquido intestinal, linfa e urina). A causa mais comum de ascite é a hipertensão portal O abdômen do nosso paciente era semelhante à imagem, bastante globoso. Para se certificar de que se tratava de um acúmulo grave de líquido na cavidade peritoneal, conduziu-se a manobra de piparote, cujo achado foi positivo. Diferente da imagem, notava-se no abdômen do paciente evidente circulação colateral — sinal de uma tentativa de compensação para a hipertensão portal que também nos sinaliza que o paciente já está na fase de cirrose mais grave, underfill. /Especialidades Clínicas 1 /Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto AlegreAprofundando os achados clínicos: secundária a doenças crônicas do fígado, que corresponde a mais de 80% dos pacientes com ascite. As causas mais comuns de ascite não hipertensiva incluem infecções (tubérculos), malignidade intra-abdominal, enfermidades inflamatórias do peritônio e lesões ductais (quilosa, pancreática, biliar). RLD se encaixa na estatística que estabelece que 80-90% dos casos de ascite têm como causa cirrose hepática. No caso do nosso paciente temos: cirrose de estágio C (escore de maior gravidade) na escala clínica de Child-Pugh, um sistema de classificação utilizado para avaliação do prognóstico da cirrose e para ordenação dos pacientes na fila do transplante de fígado. Esse sistema utiliza três variáveis laboratoriais rotineiramente aferidas (bilirrubina sérica, albumina sérica e INR) eduas variáveis de avaliação subjetiva (ascite e encefalopatia hepática). Nosso paciente atinge a classificação de maior gravidade mesmo sem apresentar encefalopatia hepática evidente*. Conforme o Manual de Perícia Médica do Ministério da Saúde, a classificação de Child-Pugh é bastante confiável para que se preveja a sobrevida em várias doenças hepáticas, bem como para que se antecipe a probabilidade de complicações importantes, como as varizes e a Peritonite Bacteriana Espontânea. Pelo escore de MELD (que considera os valores de creatinina, de bilirrubina total e de INR), nosso paciente também se classifica como hepatopata grave. Apesar de não manifestar encefalopatia hepática evidente, considerando o curso e a gravidade da cirrose de RLD, é muito provável que este apresente alterações neuropsiquiátricas discretas, que só poderiam ser detectadas por testes neuropsicométricos. Esses sutis distúrbios compõem a Encefalopatia Hepática Subclínica, que se apresenta em cerca de 70% dos pacientes cirróticos. Todavia, essa informação não tem grande relevância no nosso caso. Assim, não pesquisamos esse possível acometimento, uma vez que os critérios diagnósticos para tal são pouco estabelecidos e que o risco do tratamento pode superar os benefícios. Vasodilatação: nas fases iniciais da cirrose, há vasodilatação periférica e retenção renal de água e sódio. Esse processo ocorre desde a fase pré-ascítica e é importante ao longo de toda a evolução posterior. Overflow: escape de fluido para a cavidade peritoneal. Underfill: já formado um certo grau de ascite, o volume de sangue em efetiva circulação diminui, havendo estimulação permanente dos vasopressores — levando a uma retenção ainda maior de água e de sódio pelos rins. Extrapolando-se o limite da capacidade de drenagem linfática abdominal e hepática, o acúmulo de líquido na cavidade peritoneal aumenta ainda mais. Andrade Júnior, D., Galvão, F., Santos, S., & Andrade, D. (2009). Ascite: estado da arte baseado em evidências. Revista Da Associação Médica Brasileira, 55(4), 489-496. doi: 10.1590/s0104-42302009000400028. Longo, DL et al. Harrison’s Principles of Internal Medicine. 18th ed. New York: McGraw-Hill, 2012. A mais frequente complicação da ascite entre cirróticos, a Peritonite Bacteriana Espontânea, é nossa primeira hipótese para o que poderia ter sido responsável pela descompensação do caso do nosso paciente. Na entrevista, a irmã do paciente relatou que este recebeu antibióticos por 11 dias no Hospital Santa Ana, justamente devido a uma infecção do tipo PBE. Essa infecção se caracteriza pela cultura positiva do líquido ascítico para apenas um agente microbiano e pela contagem de Polimorfonucleares (PMN), no exame de paracentese abdominal, superior a 250/mm³. Os sinais e sintomas da PBE são bastante sutis, já que o volume interposto entre as camadas visceral e parietal impede o desenvolvimento de um abdômen rígido. Os mais comuns são: febre (geralmente baixa), dor abdominal e alteração do estado mental. O único sinal compatível com o que paciente relatou que sentiu, antes de se dirigir ao HSA, é o desconforto abdominal. Os pacientes podem apresentar, ainda: leucocitose, acidose e alteração da função renal. Para verificar isso, vamos explorar o exame geral prévio que se refere ao período em que RLD foi admitido no Hospital Santa Ana. Nele, esperamos encontrar justamente isso: leucocitose, acidose e alteração da função renal. A paracentese abdominal para análise do líquido ascítico é o exame mais eficiente para diagnosticar a presença de ascite, a sua causa e determinar se o líquido está, ou não, infectado. Este exame foi realizado nos dias 14/05 e 22/05, ainda no Hospital Santa Ana, em Santa Cruz do Sul. Como já sabemos, na PBE há leucocitose (>500 células/mm³) com predomínio de PMN (<250/mm³). Essa análise é bastante importante, pois, na tuberculose e na carcinomatose peritoneal, há aumento dos leucócitos às custas dos linfócitos. Todavia, no exame do nosso paciente, tanto a contagem de hemácias, quanto a de leucócitos eram bastante baixas — sendo possíveis que os valores encontrados sejam resultado de uma paracentese traumática, na qual ocorre a entrada de PMN e de eritrócitos na ascite. Ureia = 25 Creatinina = 0,67 Na = 133 K = 4,1 Ácido Úrico = 3,7 Lactato = 2,2 mmol/L TGO = 78 TGP = 41 Fosfatase A. = 101 GGT = 29 Bilirrubina Total = 3,7 Bilirrubina direta= 1,3 LDH = 275 TP RNI = 1,63 TTPA = 33,5 Albumina = 2,4 Cálcio Iônico = 4,64 Hb = 13,9 HT = 40,8% VCM = 106 CHCM = 34,1 RDW = 14,7 Leucócitos = 6.350 Plaquetas = 136.000 anti-HIV = NR anti-HCV = NR anti-HBS = <3 HBsAg = NR 8–20 mg/dL 0,7–1,3 mg/dL 136–145 mEq/L 3,5–5 mEq/L 2,5–8 mg/dL 0,5-1,6 mmol/L 0–35 U/L 0–35 U/L 36–150 U/L 8–78 U/L 0,3–1,2 mg/dL/dia 0–0,3 mg/dL 60–160 U/L 25–36 seg 3,5–5,4 g/dL 9–10,5 mg/dL 14–17 g/dL 41–51% 80–100 fL 32–36 g/dL 11-14% 4.500-11.000 células/mcL 150.000-350.000/mcL Valores de referência 12/05/2021 14/05/2021 Análise do líquido ascítico Albumina = <1,0 pH = 8,1 Glicose = 128 Amilase = 20 Citológico ---------------- Eritrócitos = 37 Leucócitos = 15 Linfócitos = 9% Neutrófilos = 75% Macrófagos = 15% Cél. Mesoteliais = 1% BAAR = Neg. Bacteriológico = Neg. aproximadamente 7,3 < 150/uL < 500/uL <50% <50% Valores de referência Exames de interesse Legenda: O teste de Gram, apesar de ser pouco sensível para a detecção de PBE (identificando apenas cerca de 7-10% dos casos), também foi executado e deu resultado negativo. Essa baixa sensibilidade ocorre porque o teste exige 10.000 bactérias/ml para sua positividade, quando a PBE se caracteriza pela baixa densidade de bactérias/mililitro. Revisando o que achamos, temos: 1. pH levemente básico (incompatível com a acidose que buscávamos); 2. baixa contagem de leucócitos (incompatível com a leucocitose que buscávamos); 3. nível de creatinina no plasma um pouco abaixo do parâmetro de referência, sugerindo que não há alteração significativa da função renal. Assim, ao que tudo indica, o que descompensou a cirrose de RLD não foi uma PBE, como havia dito sua irmã. Andrade Júnior, D., Galvão, F., Santos, S., & Andrade, D. (2009). Ascite: estado da arte baseado em evidências. Revista Da Associação Médica Brasileira, 55(4), 489-496. doi: 10.1590/s0104-42302009000400028. Longo, DL et al. Harrison’s Principles of Internal Medicine. 18th ed. New York: McGraw-Hill, 2012. O diagnóstico de de�ciência de AAT costuma ser bastante tardio, e envolve o reconhecimento de padrões clínicos de doença e a identi�cação das alterações laboratoriais correspondentes. No caso de RLD, a alteração clínica sugestiva da doença foi o acometimento hepático sem causa de�nida. Realizando-se eletroforese de proteínas séricas, foi possível averiguar banda α1 reduzida ou ausente, motivando o exame de quanti�cação dos níveis séricos de AAT, cujo resultado apontou o distúrbio genético. Para �ns de diagnóstico é importante saber que, enquanto uma proteína de fase aguda, os níveis séricos de AAT podem estar falsamente aumentados durante processos in�amatórios e infecciosos. Ureia = 126 Creatinina = 1,16 Na = 120 K = 6,2 Ácido Úrico = 4,6 Lactato = 9,4 mmol/L TGO = 88 TGP = 63 Fosfatase A. = 78 GGT = 37 Bilirrubina Total = 3,1 Bilirrubina direta= 1,8 LDH = 277 TP RNI = 2,33 TTPA = 53,5 Albumina = 2,2 Cálcio Iônico = 4,59 Hb = 5,5 HT = 17,2% VCM = 113 CHCM = 32,0 RDW = 19,9 Leucócitos = 50.120 Plaquetas = 343.000 anti-HIV = NR anti-HCV = NR anti-HBS = <3 HBsAg = NR Antes de buscar a etiologia: Manejo de emergência de um paciente com hemorragia digestiva alta Recomenda-se realizar a endoscopia nas primeiras 24h, a contar do momento em que o paciente interna no hospital. Contudo, caso o sangramento seja severo e se verifique instabilidade hemodinâmica, o procedimentodeve ser realizado com urgência. Úlceras com sangramento ativo e vasos visíveis sem sangramento devem receber terapia endoscópica. Um dos tratamentos possíveis é a compressão mecânica do cordão varicoso a partir do uso de ligaduras/bandas elásticas, provocando com isso a interrupção do fluxo sangüíneo e posterior trombose. Pode ser utilizada terapia de injeção, sondas térmicas (por exemplo: eletrocoagulação e sonda térmica) ou clipes. Injeção de solução de soro fisiológico com adrenalina — Atinge-se a hemostasia à medida em que se dá o tamponamento do vaso pela bolha que o acúmulo de soro forma na submucosa, juntamente com a vasoconstrição causada pela adrenalina. Não deve ser utilizada como monoterapia. Sangramentos recorrentes devem ser tratados com a repetição das terapias endoscópicas; Sangramentos varicosos esofágicos devem ser tratados com a aplicação de ligaduras; enquanto que as varizes gástricas devem receber injeção de adesivos teciduais. Em caso de sangramento refratário de varizes, deve-se realizar procedimento de shunt portossistêmico. (ENDOSCOPIA) A hemorragia digestiva alta (sangramento do esôfago, do estômago e/ou do duodeno) é uma emergência médica relativamente comum, com taxa de mortalidade de 2-10%. Os achados mais comuns são: hematêmese e melena, podendo se verificar hematoquezia nos casos em que o sangramento é bastante volumoso. Nosso paciente, RLD, apresenta esses dois sinais (hematêmese e melena) em sua história da doença atual. A hipótese de melena foi confirmada a partir do exame de toque retal, que verificou fezes com coloração de piche e odor fétido. Até que se proceda com endoscopia, a causa do episódio de sangramento é incerta, mas costuma ser dividida em (1) varicosa e (2) não varicosa. As úlceras pépticas são a principal causa de internação hospitalar por HDA — correspondendo a aproximadamente metade dos casos, estão bastante vinculadas à infecção por H. pylori e ao uso de drogas anti- secretoras. Ao nos depararmos com um paciente que apresenta sangramento digestivo alto, devemos solicitar hemograma, coagulograma, nível de eletrólitos (sódio, potássio), de ureia e de creatinina para monitorização. Além disso, cabe um teste de tipagem sanguínea nos casos com suspeita de sangramento volumoso, pois o paciente pode precisar de trasnfusão. No caso de RLD, não sobra muita dúvida de que o paciente apresenta a complicação, então... Como manejar esse paciente? Avaliação das vias aéreas, da respiração e da estabilidade hemodinâmica do paciente. Para os pacientes em estado de instabilidade hemodinâmica, recomenda-se a realização de ressuscitação; No caso do nosso paciente, as tentativas de instalação de um acesso intravenoso foram frustradas. Por isso, optou-se pela realização de um acesso intravenoso central (CVC), com o objetivo de monitorar o pulso, a pressão arterial (já que a hipotensão está relacionada à maior mortalidade) e a saturação de oxigênio. Caso o sangramento seja contínuo e intenso, pode-se realizar intubação orotraqueal (IOT) para proteger as vias aéreas. Transfusão de sangue Realizada até que a Hb atinja a faixa de 70-80g/L. Em caso de sangramento severo e hipotensão, recomenda-se extrapolar o limite superior dessa faixa para compensar a instabilidade hemodinâmica; Avaliação de risco Se o paciente obtiver escore de Glasgow-Blatchford maior ou igual a 1, deve-se considerar endoscopia. Eritromicina e Inibidores de bombas de prótons podem ser administrados; Pacientes cirróticos (como é o caso de RLD) devem receber drogas vasoativas e antibióticos. (PRÉ-ENDOSCOPIA) O diagnóstico de de�ciência de AAT costuma ser bastante tardio, e envolve o reconhecimento de padrões clínicos de doença e a identi�cação das alterações laboratoriais correspondentes. No caso de RLD, a alteração clínica sugestiva da doença foi o acometimento hepático sem causa de�nida. Realizando-se eletroforese de proteínas séricas, foi possível averiguar banda α1 reduzida ou ausente, motivando o exame de quanti�cação dos níveis séricos de AAT, cujo resultado apontou o distúrbio genético. Para �ns de diagnóstico é importante saber que, enquanto uma proteína de fase aguda, os níveis séricos de AAT podem estar falsamente aumentados durante processos in�amatórios e infecciosos. Antes de buscar a etiologia: Manejo de emergência de um paciente com hemorragia digestiva alta Pacientes que apresentem úlceras com alto risco de lesão (sangramento ativo, varizes visíveis, coágulo aderente) devem receber altas doses de Inibidores da Bomba de Prótons por, pelo menos, 72h. Para os pacientes cirróticos, deve-se manter a antibioticoterapia por pelo menos mais 7 dias, independentemente da fonte do sangramento. Sangramento varicoso deve ser tratado com drogas vasoativas por pelo menos mais 5 dias, Em uso para prevenção secundária, a aspirina deve ser continuada ou reintroduzida tão logo se atinja a hemostasia. Recomenda-se a introdução de drogas antitrombóticas após o alcance da hemostasia, de modo a evitar trombose e morte. (PÓS-ENDOSCOPIA) Management of acute upper gastrointestinal bleeding. (2018). Pharmaceutical Journal. doi: 10.1211/pj.2018.20205499 The role of endoscopy in the management of non-variceal acute upper gastrointestinal bleeding. (1992). Gastrointestinal Endoscopy, 38(6), 760-764. doi: 10.1016/s0016-5107(92)70608-7. Koyama, F., Hashiba, K., Bromberg, S., & Cappelanes, C. (2006). Tratamento endoscópico das varizes esofágicas utilizando alças pré-atadas confeccionadas com fio de poliamida. Arquivos De Gastroenterologia, 43(4), 328-333. doi: 10.1590/s0004-28032006000400016 Análise do caso em relação ao diagnóstico de Deficiência de alfa-1 antitripsina A deficiência de alfa-1 antitripsina (AAT) é causada por mutações no gene SERPINA1 e se manifesta clinicamente com o acometimento precoce de pulmões e do fígado, principalmente. Esse distúrbio genético de herança autossômica co-dominante afeta a produção e a liberação para o sangue da enzima alfa-1 antitripsina, cuja função é inibir a ação de proteases, da tripsina e da elastase neutrofílica*, evitando a injúria tecidual. A mutação mais frequentemente relacionada à doença determina a polimerização e o acúmulo da alfa-1 antitripsina no interior dos hepatócitos, provocando redução dos níveis sanguíneos da enzima. Com isso, dá-se o desenvolvimento de doenças hepáticas (como por exemplo a cirrose, que é o caso do nosso paciente) e pulmonares (enfisema de aparecimento precoce com comprometimento principalmente basal e doença pulmonar obstrutiva crônica, por exemplo). Elastase neutrofílica: enzima presente no tecido pulmonar que digere células danificadas/envelhecidas e bactérias para promover a cicatrização. Sabendo que o primeiro relato formal dessa doença é bastante recente (tendo sido escrito há 40 anos, somente), é compreensível que não existam, ainda, dados de prevalência ou de incidência dessa doença no Brasil. Todavia, estudos epidemiológicos apontam que sua prevalência seja numericamente próxima à da Fibrose Cística, afetando 1 em cada 2.000-5.000 indivíduos. No mundo, estima-se que a quantidade total de portadores de mutações no gene SERPINA1 seja de, aproximadamente, 3.4 milhões. Todos esses dados se tornam mais plausíveis e interessante à medida em que os aproximamos da realidade de saúde da nossa população. No braço paulistano do Projeto Latinoamericano de Investigação da Obstrução Pulmonar (PLATINO), descobriu-se que 15,8% dos indivíduos com mais de 40 anos apresentam doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). O dado fascinante, contudo, é que 12,5% desses indivíduos não havam sido expostos ao tabaco — deixando-nos uma margem para cogitar a possibilidade de uma série de outras etiologias para esse acometimento pulmonar; dentre elas, a deficiência de alfa-1 antitripsina. 15,8% Indivíduos com idade superior a 40 anos e com DPOC 84,2% Indivíduos com idade superior a 40 anossem DPOC 12,5% Indivíduos não expostos ao Tabaco Análise do caso em relação ao diagnóstico de Deficiência de alfa-1 antitripsina Mais de 100 alelos para o gene SERPINA1 (localizado no braço longo do cromossomo 14) foram registrados até o momento, havendo pelo menos 30 que provocam implicações clínicas. Dentro deste grupo, classificam-se em relação aos níveis séricos de AAT e à função da enzima em: Normal: os portadores de alelos M apresentam nível sérico e função normal da AAT; Deficiente: portadores de alelos Z, S e outras variantes mais raras apresentam nível sérico de AAT reduzido a pelo menos � do que seria considerado normal; Nulo: portadores dos alelos Q e O apresentam nível sérico de AAT indetectável; Disfuncional: portadores dos alelos F e Pittsburgh (entre outros) possuem nível sérico de AAT normal, mas com função reduzida dessa enzima. Em indivíduos normais, a AAT é produzida no fígado (e, em menor quantidade, nos macrófagos e no epitélio brônquico). Pela circulação, a enzima alcança os pulmões, onde exerce sua função anti-elastolítica. Desse modo, 40% da quantidade total dessa proteína está presente no sangue; os demais 60% estão impregnados em tecidos corporais, como os pulmões, onde age em defesa do organismo contra a elastólise.Considerada uma proteína de fase aguda, seus níveis podem estar aumentados em caso de inflamação. A ação de inibição sobre a protease implica a destruição da molécula de alfa-1 antitripsina, razão pela qual é essencial que haja reserva da proteína nos tecidos. Além de agir como antiprotease, a AAT parece ter importante função anti inflamatória nos pulmões. Ok, mas como uma simples troca de AAs (ácido glutâmico por lisina) no gene SERPINA1 pode produzir uma doença de implicações clínicas tão relevantes? De que forma isso explica a situação de saúde do nosso paciente? A substituição do ácido glutâmico pela lisina na posição 342 do gene SERPINA1 faz com que a proteína produzida esteja predisposta a um processo de polimerização irreversível e deficitário. Consequentemente, temos o acúmulo desses polímeros nos hepatócitos, causando injúrias progressivas e graves ao tecido e à fisiologia do órgão. Desse modo, somente 15% das AAT que são produzidas chegam à circulação, levando à diminuição dos níveis séricos da proteína. Nos pulmões, a lesão decorre da quantidade reduzida de AAT no tecido. No fígado, dá-se o contrário: é o acúmulo de polímeros que degenera o órgão. Depois de formados, esses polímeros se agregam no RE dos hepatócitos. Em condições normais, são destruídos por proteínas de controle — sendo a doença hepática, portanto, resultado do desbalanço entre a quantidade de polímeros produzidos e a capacidade de degradação das proteínas de controle. Indivíduos com o mesmo fenótipo apresentam graus diferentes da doença hepática, porque possuem capacidades diferentes de degradar esses polímeros (reduzindo, com isso, o acúmulo). No caso de RLD, a injúria ao parênquima hepático parece ter acontecido ao longo de muitos anos, produzindo cirrose em estágio C de Child-Pugh. Nosso paciente integra uma estatística irrisória de 3%, que se refere aos casos de Deficiência da Alfa-1 Antitripsina que são descobertos pelo acometimento hepático, e não pelo pulmonar. O diagnóstico de deficiência de AAT costuma ser bastante tardio, e envolve o reconhecimento de padrões clínicos de doença e a identificação das alterações laboratoriais correspondentes. No caso de RLD, a alteração clínica sugestiva da doença foi o acometimento hepático sem causa definida. Realizando-se eletroforese de proteínas séricas, foi possível averiguar banda α1 reduzida ou ausente, motivando o exame de quantificação dos níveis séricos de AAT, cujo resultado apontou o distúrbio genético. Para fins de diagnóstico é importante saber que, enquanto uma proteína de fase aguda, os níveis séricos de AAT podem estar falsamente aumentados durante processos inflamatórios e infecciosos. No caso do nosso paciente, a principal medida para tratamento é o transplante hepático, dado que seu acometimento é primariamente hepático. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Andrade Júnior, D., Galvão, F., Santos, S., & Andrade, D. (2009). Ascite: estado da arte baseado em evidências. Revista Da Associação Médica Brasileira, 55(4), 489-496. doi: 10.1590/s0104-42302009000400028. Longo, DL et al. Harrison’s Principles of Internal Medicine. 18th ed. New York: McGraw-Hill, 2012. Management of acute upper gastrointestinal bleeding. (2018). Pharmaceutical Journal. doi: 10.1211/pj.2018.20205499 The role of endoscopy in the management of non-variceal acute upper gastrointestinal bleeding. (1992). Gastrointestinal Endoscopy, 38(6), 760-764. doi: 10.1016/s0016-5107(92)70608-7. Koyama, F., Hashiba, K., Bromberg, S., & Cappelanes, C. (2006). Tratamento endoscópico das varizes esofágicas utilizando alças pré-atadas confeccionadas com fio de poliamida. Arquivos De Gastroenterologia, 43(4), 328-333. doi: 10.1590/s0004-28032006000400016 Camelier, A., Winter, D., Jardim, J., Barboza, C., Cukier, A., & Miravitlles, M. (2008). Deficiência de alfa-1 antitripsina: diagnóstico e tratamento. Jornal Brasileiro De Pneumologia, 34(7), 514-527. doi: 10.1590/s1806-37132008000700012 /E sp ec ia lid ad es C lín ic as 1 /U ni ve rs id ad e Fe de ra l d e C iê nc ia s da S aú de d e Po rt o Al eg re
Compartilhar