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1 GASTROENTEROLOGIA RAUL BICALHO – MEDUFES 103 Síndrome do Intestino Irritável DEFINIÇÃO A síndrome do intestino irritável (SII) é um distúrbio gastrointestinal caracterizado por dor abdominal crônica associada à alteração do hábito intestinal na ausência de qualquer causa orgânica. • Critérios de Roma IV: o São critérios que definem critérios diagnósticos para todas as doenças funcionais relacionadas ao TGI (e a síndrome do intestino irritável é uma delas) o A SII é definida como dor abdominal recorrente (> 1x/semana nos últimos 3m) associada a 2 ou + dos seguintes: ▪ A dor é relacionada com a evacuação (desencadeada, piorada ou melhorada pela evacuação) ▪ Há uma mudança na frequência de evacuações ▪ Há uma mudança na consistência das fezes o Podemos subclassificar a SII em 3 subclassificações: ▪ SII com constipação → ≥ 25% das evacuações com Bristol 1 ou 2 ▪ SII com diarreia → ≥ 25% das evacuações com Bristol 6 ou 7 ▪ SII mista (mistura de constipação e diarreia de forma intermitente) → ≥ 25% das evacuações com Bristol 1 ou 2 e ≥ 25% das evacuações com Bristol 6 ou 7 o A Classificação de Bristol determina o formato das fezes e é utilizada para subclassificar a SII ▪ Bristol tipo 1 → Fezes em pedaços separados e duros (fezes em cíbalos) ▪ Bristol tipo 2 → Pedaços duros, mas em formato de salsicha ▪ Bristol tipo 3 → Forma de salsicha e com algumas fendas na superfícies ▪ Bristol tipo 4 → Formato de salsicha e lisa ▪ Bristol tipo 5 → Pedaços moles, mas com contornos bem definidos ▪ Bristol tipo 6 → Pedaços mais aerados, com contornos pouco definidos ▪ Bristol tipo 7 → Fezes totalmente aquosas sem nenhum pedaço sólido EPIDEMIOLOGIA • Dados epidemiológicos: o É uma doença de alta prevalência → Cerca de 5 a 10% da população geral têm a SII o O sexo feminino é mais acometido que o masculino PROFA. BEATRIZ ROCHA 2 GASTROENTEROLOGIA RAUL BICALHO – MEDUFES 103 o A doença é mais frequente em mulheres entre 20 e 40 anos de idade • Fatores de risco: o Os estudos que foram feitos para definir esses fatores de risco não são estudos com grande nível de evidência, são estudos transversais de nível mais fraco o Fatores periféricos: ▪ Fatores relacionados à alimentação ▪ Infecções gastrointestinais agudas (gastroenterites agudas) ▪ Inflamação mucosa → Pacientes com doença inflamatória intestinal têm uma maior associação com SII ▪ Cirurgias abdominais e pélvicas ▪ Menstruação o Fatores centrais: ▪ Stress da vida ▪ Somatização de doenças psicológicas ▪ Ansiedade e depressão ▪ Dificuldade em lidar com dificuldades da vida ▪ Baixo suporte social ▪ Algum abuso sofrido na infância o Infecção intestinal aguda prévia → Fator de risco mais bem estabelecido/reconhecido para SII ▪ Existe até uma síndrome chamada síndrome do intestino irritável pós-infecciosa ❖ 10% dos casos de SII ❖ Pode acontecer após infecções por vírus, bactérias ou protozoários que causam alterações tanto da microbiota quanto da permeabilidade vascular, desencadeando uma resposta imunológica que altera sensibilidade visceral, motilidade intestinal etc. → Pode durar até 2 anos após a infecção FISIOPATOLOGIA • Resumo da fisiopatologia: o Não há uma fisiopatologia muito bem definida, há especulações de alguns estudos que já foram feitos o Em pacientes geneticamente predispostos, quando associados a alguns fatores psicológicos ou a infecções gastrointestinais podem acontecer alterações no sistema nervoso entérico ▪ Isso pode repercutir com um impacto nas respostas motora, sensitiva e secretora do trato gastrointestinal, assim como alteração da barreira mucosa ❖ Podem causar alterações motoras no sentido de diminuir ou aumentar a motilidade intestinal ❖ Podem aumentar a sensibilidade visceral ❖ Podem aumentar a secreção de líquido para o lúmen intestinal causando diarreia por exemplo o Os 2 principais pilares da fisiopatologia da doença são: ▪ Aumento da sensibilidade visceral 3 GASTROENTEROLOGIA RAUL BICALHO – MEDUFES 103 ▪ Distúrbio de motilidade intestinal (tanto aumentando quanto diminuindo a motilidade) • Papel da dieta: o A dieta tem um papel importante na SII o Esses pacientes têm uma sensibilidade maior aos FODMAPs (fermentable oligosaccharides, disaccharides, monosaccharides and polyols), carboidratos muito pobremente digeridos que podem ficar no lúmen intestinal e serem fermentados pelas bactérias causando aumento de gases e de dor abdominal ▪ Têm efeitos fermentativos e osmóticos → Geralmente levam a flatulência e diarreia desses pacientes ▪ Alimentos ricos em FODMAps (imagem) o Esses pacientes comumente têm deficiência de lactase (intolerância à lactose) e de sucrase- isomaltase (podendo ter digestão de sacarose e amido prejudicada) • Papel do microbioma/microbiota intestinal: o O microbioma gastrointestinal desses pacientes é descrito como diferente de indivíduos saudáveis (essa afirmação ainda é muito questionável, até porque nós nem sabemos bem o que é um microbioma saudável) • Papel dos ácidos biliares: o Esses pacientes costumam ter uma má-absorção de sais biliares o Sais biliares no intestino podem ter o efeito de aumento da motilidade intestinal e até um aumento da fermentação, produzindo gases MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS • Sintomas cardinais: o Dor abdominal ▪ Geralmente é crônica ▪ Surge de forma intermitente (o paciente tem períodos de dor intercalado com períodos sem dor ou com dor muito leve) ▪ Geralmente é localizada no abdome inferior ▪ Tem relação com a defecação (melhora, piora ou é desencadeada pela defecação) o Alteração do hábito intestinal ▪ Geralmente tem uma alteração na consistência das fezes e/ou na frequência das evacuações ▪ Podemos classificar o paciente no polo diarreico ou no polo constipado • Outros sintomas: o O bloating e a distensão abdominal são sintomas muito frequentes também nesses pacientes 4 GASTROENTEROLOGIA RAUL BICALHO – MEDUFES 103 ▪ Bloating → Excesso de gases/flatulência o Situações comumente associadas à SII → Dor lombar, cefaleia, fadiga, fibromialgia, ansiedade/depressão e coexistência com outros transtornos funcionais gastrointestinais ▪ Paciente que tem 1 transtorno funcional tem muito mais chance de ter outro transtorno funcional, por exemplo uma dispepsia funcional DIAGNÓSTICO A 1ª pergunta que nós temos que nos fazer é: “O paciente preenche os critérios de Roma IV?”, ou seja, ele tem uma dor abdominal recorrente relacionada com a evacuação, associada à mudança na frequência ou na consistência das fezes? Se sim, precisamos fazer uma investigação básica desse paciente. • Investigação básica: o Hemograma completo, PCR e sorologia para a doença celíaca o O nosso objetivo é descartar algumas causas orgânicas que cursam com sintomas semelhantes a esses ▪ Ex.: A doença celíaca é 3x mais frequente nesses pacientes (por isso é importante fazer a pesquisa) • Calprotectina fecal: o Se o paciente tem diarreia devemos dosar a calprotectina fecal o É uma proteína liberada por neutrófilo. Então, diante de um processo inflamatório intestinal, há liberação da calprotectina fecal o É uma proteína que não é reabsorvida pelo intestino. Então, o que é eliminado nas fezes corresponde ao que foi produzido pelo processo inflamatório → É um grande preditor de inflamação intestinal o O ponto de corte da calprotectina é 50 mcg/g ▪ > 50 mcg/g → 81% de sensibilidade e 87% de especificada para doença inflamatória intestinal ▪ < 50 mcg/g + PCR normal → < 1% de probabilidade de doença inflamatória intestinal o O fator preditivo negativo da calprotectina fecal é o mais importante ▪ Quando vem negativo (<50), a gente praticamente exclui alguma inflamação intestinal ▪ Quando vem positivo (>50), levantamos um alerta paraessa inflamação, mas lembrando que outras situações também poderiam elevar essa calprotectina, por exemplo uma hemorroida ou uma fissura anal • Colonoscopia: o Como já dito, iniciamos com uma investigação básica (hemograma, PCR e sorologia de doença celíaca) + calprotectina fecal se tem diarreia. A colonoscopia é solicitada quando o paciente apresenta sinais de alarme o Sinais de alarme: ▪ Alterações laboratoriais → Anemia por deficiência de ferro, PCR elevado ou calprotectina alterada ▪ Sangramento gastrointestinal (seja exteriorizado na forma de hematêmese, melena ou enterorragia) ▪ Perda de peso ▪ Presença de diarreia noturna → Sinal de alarme que pode ter algum fator orgânico ❖ Os pacientes com transtornos funcionais de uma forma geral costumam não apresentar sintomas durante a noite ❖ Já doenças orgânicas costumam acordar o paciente à noite e isso também serve para a SII 5 GASTROENTEROLOGIA RAUL BICALHO – MEDUFES 103 ▪ Massa abdominal ou retal palpável o Também é importante solicitar colonoscopia para pacientes que têm história na família de doença inflamatória intestinal, doença celíaca ou câncer colorretal → Existe um risco muito maior nos familiares desse pacientes do que na população geral o Solicitamos também a colono para pacientes com + de 50 anos e que ainda não realizaram a colonoscopia de rastreio de câncer colorretal (todo paciente > 50 anos tem que fazer colonoscopia de rastreio) TRATAMENTO • Objetivos: o Nenhum tratamento consegue mudar a história natural da doença, ou seja, não há um tratamento curativo o O tratamento é focado em aliviar os sintomas que mais incomodam o paciente (tratamento sintomático) ▪ A maioria dos tratamentos melhoram apenas 25 a 30% dos sintomas desses pacientes o Por isso, é muito importante uma relação médico-paciente empática → Nós precisamos expor ao paciente que ele tem uma doença crônica que não responde bem ao tratamento, então ele terá que conviver com ela ao longo da vida ▪ Vão ter momentos que o paciente se sentirá melhor e momentos que ele irá se sentir pior e o médico deve estar ali para acolher e ajuda-lo a passar por essas fases difíceis ▪ Esse esclarecimento ao paciente faz parte do tratamento (colocar expectativas reais ao paciente) → Dizer ao paciente que muitas vezes os sintomas não serão totalmente aliviados, porque existe uma complexidade fisiopatológica que ainda não compreendemos bem • Dieta pobre em FODMAPs: o Passo importante do tratamento o Melhora a dor abdominal e o bloating dos pacientes o Tem um grande impacto na qualidade de vida o Geralmente é feita em 3 fases ▪ 1ª fase → Dieta bem restritiva. Substituição de alimentos ricos em FODMAPs por alimentos pobres em FODMAPs ❖ Essa fase não deve durar mais do que 3 a 4 semanas, porque pode começar a causar deficiência de alguns micronutrientes e até mesmo alteração da microbiota intestinal ▪ 2ª fase → Reintroduzir grupo por grupo desses carboidratos e observar os sintomas ❖ Se o paciente voltar a ter gases, distensão, diarreia etc. com certo grupo dos FODMAPs (Ex.: Frutanos), podemos inferir que ele é sensível a esse grupo de alimentos ❖ Se o paciente ficar bem e sem sintomas com certo grupo de alimentos, podemos inferir que aquele grupo talvez ele consiga tolerar ❖ Vamos reintroduzindo grupo por grupo até classificar todos para ir para a 3ª fase ▪ 3ª fase → Personalizar a dieta desse paciente (ver qual grupo dos carboidratos ele tolera menos para recomendar que ele tire da dieta) 6 GASTROENTEROLOGIA RAUL BICALHO – MEDUFES 103 o Essa dieta pobre em FODMAPs idealmente deve ser feita guiada por um nutricionista ou um nutrólogo • Outros pontos do tratamento: o Podemos descrever fibras solúveis para aqueles com predomínio de constipação na SII → A fibra solúvel mais prescrita é o Psyllium o O exercício físico parece ter benefícios no tratamento desses pacientes, tanto pela melhora psicológica, quanto por ajudar na melhora da dor e das alterações do hábito intestinal o O uso de probióticos ainda é muito controverso nessa doença → Não é uma recomendação formal, até porque não se tem um guia quanto a qual probiótico usar, por quanto tempo, qual dose etc. TRATAMENTOS SINTOMÁTICOS ESPECÍFICOS • Constipação: o Se o paciente é constipado e não houve resposta com a fibra solúvel → Prescrever polietilenoglicol (PEG) ▪ O PEG é um laxativo da classe dos osmóticos, assim como a lactulona e o manitol ▪ O PEG dá muito menos efeitos colaterais o Se há persistência da constipação, há algumas medicações novas que podem ser tentadas: ▪ Linaclotida → Da classe dos secretagogos. Aumenta a secreção de líquido para o lúmen intestinal, diluindo mais o bolo fecal e melhorando a constipação, além de ter um efeito em acelerar o trânsito intestinal ▪ Lubiprostone → Efeito secretagogos semelhante ao da Linaclotida ▪ Tegaserod → Pode ser usado se não houver resposta das anteriores. Tem um efeito em aumentar a motilidade intestinal (é um agonista 5HT4) ❖ Só é seguro em ser utilizado em mulheres < 65 anos → Em pacientes > 65 anos ou homens pode ter efeitos cardiovasculares deletérios, com o aumento do risco de até síndrome coronariana aguda o Disfunção anorretal → Muitos dos pacientes com constipação, tem o que chamamos de disfunção anorretal, ocorrendo em até 40% dos pacientes com SII ▪ O M. puborretal, o esfíncter anal interno e o esfíncter anal externo são os principais músculos da defecção ❖ Numa situação normal, há o relaxamento dessa musculatura para que o bolo fecal passe ❖ Quando o paciente tem uma dissinergia da defecação, na hora de expulsar o bolo fecal ao invés dele relaxar essa musculatura, ele contrai, dificultando a evacuação ▪ Quadro clínico → Esforço evacuatório, sensação de evacuação incompleta e necessidade de manobras manuais para evacuar ▪ O exame principal para o diagnóstico é a manometria anorretal ▪ Esse pacientes não costumam responder a laxativos ▪ O tratamento nesses casos é a realização do biofeedback → Fisioterapia para a parte da defecação, onde o paciente aprende a contrair de forma correta o músculo 7 GASTROENTEROLOGIA RAUL BICALHO – MEDUFES 103 • Diarreia: o Se o paciente está no polo diarreico da SII, podemos usar os antidiarreicos → Principal representante é a loperamida (agonista opioide), como tratamento inicial o Se o paciente não responder → Podemos utilizar os quelantes de sais biliares (Ex.: Colestiramina) ▪ Como foi dito na fisiopatologia, esses pacientes podem ter uma má-absorção de sais biliares. Então, se quelamos esses sais biliares, pode diminuir o sintoma de diarreia • Dor abdominal e bloating: o Antiespasmódicos → Mebeverina, pinavério, otilônio e hioscina ▪ Não há maior benefício de um sobre o outro ▪ São feitos testes com esses medicamentos, às vezes o paciente se adapta melhor a um (a resposta a esses antiespasmódicos é muito individual) ▪ São usados conforme os sintomas → O paciente faz o uso se tiver a dor o Persistência da dor (mesmo com os antiespasmódicos) → Prescrever antidepressivos (tricíclicos), com o objetivo de atuar no eixo cérebro-intestinal ▪ Às vezes melhorando o transtorno psicológico podemos melhorar os sintomas de dor abdominal ▪ Além disso, os antidepressivos (principalmente os tricíclicos) têm efeito em modulação de dor, tanto periférica quanto central o Terapias psicológicas podem ser feitas (algum grau de evidência) → Terapia cognitivo comportamental e hipnoterapia (se nenhum dos tratamentos anteriores tiver surtido efeito) CONCLUSÃO • Resumo da aula: o A SII é uma doença de alta prevalência → Deve-se conhecer mesmo se não for gastroenterologista o O principal sintoma é uma dor abdominal crônica associada com alteração do hábito intestinal o Para o diagnóstico da doença todos devem fazer hemograma,PCR e sorologia para doença celíaca ▪ Calprotectina fecal se tiver diarreia ▪ Esses exames devem ser normais na SII o O paciente tem que fazer colonoscopia se tiver sinais de alarme o O tratamento é focado em aliviar os sintomas do paciente ▪ Se o paciente é constipado, fazemos tratamento para constipação com laxativos ▪ Se o paciente tem diarreia, fazemos antidiarreicos ▪ Se o paciente tem dor abdominal, fazemos antiespasmódicos o A dieta pobre em FODMAPs (carboidratos muito fermentativos) é um passo importante no tratamento
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