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MANOEL DE CAMPOS ALMEIDA PLATÃO REDIMIDO A TEORIA DOS NÚMEROS FIGURADOS NA CIÊNCIA ANTIGA & MODERNA CURITIBA-2001 Em memória de meu pai, Artur Santos Almeida, exemplo de vida. INTRODUÇÃO O objetivo deste livro é proceder a uma reavaliação da Teoria dos Números Figurados, uma criação da escola pitagórica. Tanto esta teoria como a concepção platônica da estrutura da matéria, que admitia que esta era constituída por corpúsculos com a forma de poliedros regulares, vêm, injustamente na nossa opinião, sendo consideradas como meras curiosidades dentro da História da Ciência. Procuraremos mostrar que essa teoria desempenhou e ainda desempenha importante papel enquanto modelo mental dentro da ciência. O seu emprego fornece modelos aplicáveis dentro de vários ramos da ciência moderna, alguns inusitados, tais como a física dos clusters e a histologia moderna. Ilustraremos como aspectos da teoria dos números figurados podem surgir, inesperadamente, em problemas atuais da física e da matemática. Mostraremos como a associação dessa teoria com a concepção platônica da estrutura da matéria, na forma de números poliedrais regulares, pode conduzir a resultados inesperados que, de certa forma, ajudam na compreensão de pontos obscuros dentro do contexto cultural da etnociência grega. Também o conceito grego de número, especialmente o pitagórico, será reapreciado, procurando evidenciar sua riqueza implícita. Alguns autores modernos tendem a considerar esse conceito como paupérrimo, relegando-o a mera coleção de unidades, desconhecendo algumas de suas implicações filosóficas. Procuramos utilizar conceitos e ferramentas da antropologia cultural, da epistemologia histórica e da etnomatemática que, na nossa opinião, se complementam, mostrando assim as diversas facetas do sistema cultural de conhecimento grego. Algumas das idéias básicas aqui apresentadas foram extraídas de uma conferência por nós pronunciada, sob o título de “Platão Redimido”, no III Encontro Luso-Brasileiro de História da Matemática, realizado na Universidade de Coimbra, em fevereiro de 2000; porém o presente trabalho é uma versão muito expandida e melhorada daquela, incorporando muitas novas idéias e material então não disponível. Para a apresentação do conceito de número, empregamos parte do material desenvolvido para uma conferência que proferimos no IV Seminário Nacional de História da Matemática, realizado em Natal, no Campus da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em abril de 2001. A elaboração do enfoque sob a ótica da epistemologia histórica foi possível graças a um convite do Max Planck Institut Für Wissenschaftsgeschichte, de Berlim, onde pudemos colher valiosas informações adicionais sobre esta importante técnica. Este livro foi escrito para o leitor em geral, sua leitura não exige conhecimentos matemáticos especializados. O conteúdo que demanda um preparo matemático um pouco mais sofisticado, embora mesmo assim seu nível não seja superior ao que é ensinado em escolas de nível médio no país, foi colocado como anexo ou em notas explicativas. Estes anexos, complementados pelas notas explicativas, expõem detalhes que, eventualmente, serão de interesse para o leitor desejoso de aprofundar o assunto. Acreditamos que qualquer leitor, seja ele professor, aluno de cursos superiores em ciências exatas, ou mesmo do ensino médio, ou ainda apenas interessado em questões da História da Ciência, História da Matemática, Etnomatemática, Epistemologia Histórica, Educação Matemática e História da Filosofia, encontrará neste livro material com que satisfazer sua curiosidade intelectual. AGRADECIMENTOS Primeiramente, gostaríamos de agradecer os valiosos conselhos lingüísticos e o apoio amigo do douto Irmão Virgílio Josué Balestro, a quem muito devemos. Também somos muito gratos ao ilustre Prof. Dr. Ubiratan D’Ambrosio, tanto pelo seu incentivo como pela sua observação de que algumas idéias do presente trabalho poderiam dar outra interpretação à percepção que os gregos tinham da realidade física, o que não tínhamos percebido na ocasião. Igualmente agradecemos ao insigne Dr. Peter Damerow, do Max Planck Institut, as nossas instrutivas conversas e o seu gentil convite para uma visita ao Instituto, onde generosamente colocou a sua biblioteca particular à nossa disposição. Não poderíamos deixar de registrar os nossos sinceros reconhecimentos ao Dr. Jürgen Renn, Diretor do Instituto Max Planck, pela gentileza com que fomos recebidos e pela amabilidade com que colocou os recursos daquela Instituição à nossa disposição. Finalmente, agradecemos à Pontifícia Universidade Católica do Paraná, o seu apoio em diversas ocasiões, o que muito contribuiu para a consecução desta obra. Todas as opiniões aqui emitidas, bem como erros e enganos cometidos, são de responsabilidade exclusiva do autor. Curitiba, maio de 2002. NOTA IMPORTANTE A numeração das páginas deste arquivo digital NÂO CORRESPONDE à numeração da obra impressa. Este arquivo serve única e exclusivamente para o conhecimento de pesquisadores interessados no tema, com finalidade científica e acadêmica, e todos os direitos de reprodução estão reservados ao autor. CITAÇÂO Para citar esta obra: ALMEIDA, Manoel de Campos. Platão Redimido: A Teoria dos Números Figurados na Ciência Antiga & Moderna. Curitiba, Champagnat, 2002. ISBN 85-7292-084-6 SUMÁRIO INTRODUÇÃO........................................................................................................3 CAPÍTULO I - A ESCOLA PITAGÓRICA....................................................................10 Preliminares...........................................................................................................................10 Pitágoras e sua escola............................................................................................................10 Nominação.............................................................................................................................14 Doutrina do Nome..................................................................................................................15 Bíblia......................................................................................................................................15 Outras culturas primitivas......................................................................................................17 Mesopotâmia..........................................................................................................................17 Nomes e números...................................................................................................................19 Egito.......................................................................................................................................24 Outras civilizações..................................................................................................................25 Considerações finais...............................................................................................................28 CAPÍTULO II - TEORIAS GREGAS SOBRE A ESTRUTURA DA MATÉRIA.........31 Preliminares.............................................................................................................................31 A estrutura da matéria segundo a escola pitagórica................................................................32 Sistemas de numeração gregos................................................................................................36 Ábaco.......................................................................................................................................37Formação da matéria...............................................................................................................43 CAPÍTULO III - PLATÃO E O ATOMISMO................................................................45 O atomismo............................................................................................................................45 A estrutura da matéria segundo Platão...................................................................................48 Críticas à teoria platônica da estrutura da matéria.................................................................51 Sólidos platônicos..................................................................................................................55 Bolas Escocesas.....................................................................................................................59 CAPÍTULO IV - TEORIA DOS NÚMEROS FIGURADOS........................................67 Nicômaco de Gerasa.............................................................................................................67 Gnômon................................................................................................................................69 Números poligonais..............................................................................................................71 Representação de partículas como esferas...........................................................................76. Reconstrução dos números poliedrais..................................................................................78. CAPÍTULO V - A FÍSICA MODERNA..........................................................................80 Sinopse histórica dos conceitos de átomo e elemento...........................................................80 Clusters metálicos..................................................................................................................87 Simetria em Líquidos............................................................................................................98 Clusters dodecaedrais............................................................................................................99 CAPÍTULO VI - MATEMÁTICA MODERNA..............................................................101 Preliminares...........................................................................................................................101 Histórico................................................................................................................................101. Tangência de círculos.............................................................................................................102 Colméias.................................................................................................................................102 Conjectura de Kepler.............................................................................................................105. Conjectura de Kelvin.............................................................................................................109 Hilbert....................................................................................................................................111 O ladrilhamento do plano......................................................................................................111 Progressos recentes acerca da Conjectura de Kepler............................................................114. CAPÍTULO VII - A TEORIA DOS NÚMEROS FIGURADOS SOB A ÓTICA DA EPISTEMOLOGIA HISTÓRICA..................................................................................119 Preliminares........................................................................................................................119. História da Ciência como Epistemologia Histórica............................................................119 A Teoria dos Números Figurados.......................................................................................121 Números Figurados.............................................................................................................122 Números figurados planos..................................................................................................122. Princípios gerais de construção dos números figurados.....................................................122. Um mito de criação matemático.........................................................................................129 Processos elementares, físicos e cotidianos, envolvidos na construção dos números figurados.............................................................................................................................124 Estabilidade mecânica dos números poliedrais regulares: ................................................127 Os números poliedrais regulares........................................................................................128 A motivação de Platão na escolha dos poliedros regulares para a cosmogonia do Timeu.129 Evolução dos processos de contagem e do conceito de número.........................................130 A teoria dos números pares e ímpares.................................................................................136 O conceito de número entre os gregos................................................................................137 Conceito pitagórico de número figurado............................................................................142 A teoria dos números figurados enquanto modelo mental..................................................143 CAPÍTULO VIII - EPÍLOGO..........................................................................................145 ANEXO I - RECONSTRUÇÃO DOS NÚMEROS FIGURADOS POLIEDRAIS REGULARES......................................................................................................................162 Números tetraedrais ............................................................................................................162 Números cúbicos..................................................................................................................164 Números octaedrais..............................................................................................................165 Números icosaedrais.............................................................................................................165 Números dodecaedrais..........................................................................................................169 Estabilidade mecânica dos números poliedrais regulares.....................................................174 ANEXO II - NÚMEROS POLIEDRAIS............................................................................176 ANEXO III - O MÉTODO DE APLICAÇÃO DE ÁREAS..............................................178 I. O método.............................................................................................................................178 II. Divisão áurea.......................................................................................................................184 ANEXO IV - NÚMEROS SÓLIDOS...................................................................................186 NOTAS..............................................................................................................................149 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................156 CAPÍTULO I A ESCOLA PITAGÓRICA Tudo dispuseste com medida, número e peso. Sab., 11, 20. Preliminares Recentes descobertas da física sobre o comportamento dos átomos, especialmente quando agregados em pequenas formações,suscitam uma reavaliação de algumas teorias erigidas pela ciência grega sobre a estrutura da matéria. A ciência moderna tende a considerá-las puro "non sense", apreciação esta que, veremos, deve ser ponderada com cautela. É notoriamente conhecida a posição da escola pitagórica, de que tudo é número. Neste capítulo examinaremos as origens dessa concepção e, na seqüência, estudaremos as idéias das escolas gregas sobre o assunto. Pitágoras e sua escola Pitágoras de Samos, indubitavelmente, constitui personagem extremamente importante para o desenvolvimento da Matemática, talvez o primeiro matemático puro registrado pela história. Relativamente pouco se sabe sobre a sua vida ou sobre as suas realizações matemáticas. O transcorrer do tempo conferiu-lhe proporções míticas, tornando difícil joeirar o lendário do histórico. Mesmo biografias antigas, meritórias pelo seu uso de fontes originais, hoje incompulsáveis, devem ser lidas cum grano salis1, pois lhe atribuem poderes quase divinos, em tentativa de apresentá-lo como um semideus. 1 Com um grão de sal, isto é, com uma pitada de cautela. A escola que criou era permeada por uma mescla de ciência e religião, e alternava espírito científico com misticismo. Seu código de ética pregava o segredo de sua doutrina, talvez para valorizar seus ensinamentos perante a comunidade. Essa aura de mistério, que caracteriza a figura de Pitágoras, originou-se na antigüidade, prevalecendo até o presente. Pitágoras nasceu em torno de 570 A.C.. O pai, Mnesarco, era gravador de gemas, mercador proveniente de Tiro; a mãe, Pitais, era nativa de Samos. Pouco se sabe sobre a sua educação, exceto que foi aluno de Ferecides. Quando tinha entre 18 e 20 anos visitou Tales, então de idade avançada, em Mileto. Anaximandro, aluno de Tales, lecionava nesta cidade, tendo Pitágoras presenciado suas preleções. Tanto Tales quanto Anaximandro contribuíram para desenvolver o seu interesse em matemática e astronomia. Em cerca de 535 A.C. visitou o Egito, atendendo a uma sugestão de Tales. Provavelmente levou carta de recomendação de Polícrates, tirano que controlava Samos, e que mantinha alianças com a terra do Nilo. Ali visitou muitos templos, participando de discussões com os sacerdotes. É possível que muitos dos ensinamentos sobre costumes adotados pela sua escola, bem como questões de geometria, tenham sido coletados nesta viagem. Cambises II, rei da Pérsia, invadiu o Egito em 525 A.C.. Polícrates desistiu de sua aliança com os faraós e enviou 40 navios para reforçar a armada persa. Os persas venceram a batalha de Pelésio, no delta do Nilo, e capturaram Menfis e Heliópolis, derrotando as forças egípcias. Pitágoras foi feito prisioneiro e levado para a Babilônia. É possível que nesta ocasião tenha tido conhecimento do teorema que leva o seu nome, o qual já era conhecido dos babilônios mais de mil anos antes. Em cerca de 520 A.C. Pitágoras retornou a Samos. Logo após fez uma viagem a Creta, para estudar seu sistema de leis. De volta a Samos, estabeleceu uma escola, que denominou Semicírculo. Aproximadamente em 518 A.C. viajou para o sul da Itália, onde fundou uma sociedade filosófica e religiosa em Crotona. Esta sociedade contava com dois círculos de seguidores. O interno, cujos adeptos eram conhecidos como mathematikoi, ou estudantes, viviam permanentemente na sociedade, não tinham posses pessoais e eram vegetarianos. Eram ensinados pessoalmente por Pitágoras. Já os do círculo exterior, os akousmatikoi, os ouvintes ou aforistas, viviam nas próprias casas, freqüentando a sociedade apenas durante o dia. A estes era permitido terem posses e não havia restrições quanto ao seu regime alimentar. Neste período havia muitos ritos cercados de mistério, boa parte com origem no oriente, que prometiam aos seus seguidores vida eterna. Para citar alguns, lembramos os profetas órficos, que circulavam entre a Itália e a Grécia; o culto de Dionísio, onde homens e mulheres mergulhavam em êxtases selvagens. Um modo mais pacato de se obter a eternidade era por meio da iniciação nos mistérios de Demeter e Perséfone, em Eleusis. Todos esses cultos começavam com purificações rituais, para liberar a alma dos eflúvios terrenos, para então aspirar à unidade com o divino. Havia então um renascimento na divindade, e assim ganhava-se a vida eterna. Os pitagóricos praticavam ritos de purificação e de iniciação, bem como adotavam estilos de vida monásticos, ascéticos, o que também era comum em outros cultos. O que os distinguia dos demais era o caminho que propunham para a elevação da alma e comunhão com Deus, que era principalmente por meio da matemática. Deus era a unidade e ordenara o universo por meio de números. O mundo era a pluralidade e consistia em elementos contrastantes. É a harmonia que restaura a unidade entre as partes contrastantes, moldando- as em um cosmos uniforme. Ela é divina, e consiste em razões numéricas. Quem dominava esta harmonia numérica adquiria caráter divino e imortal. É dentro desta doutrina mística que se desenvolveu a ciência exata dos pitagóricos. Em 513 A.C. Pitágoras retornou a Delos, pois fora informado de que seu antigo professor, o sírio Ferecides, estava agonizando. Ali permaneceu por alguns meses, até o sepultamento do mestre. Por volta de 510 A.C. irrompeu uma guerra entre Crotona e uma poderosa cidade vizinha, Sibaris. Pitágoras parece ter-se envolvido, de alguma forma, na disputa. Sibaris foi derrotada e seu território incorporado ao Estado crotonense. Em torno de 508 A.C. um aristocrata crotonense, chamado Cílon, incitou uma multidão contra a sociedade pitagórica. Pitágoras se refugiou em Metaponto, onde se difundiu um boato acerca do seu suicídio; porém muitas autoridades antigas afirmam que ele morreu bastante idoso. Pitágoras, em 508 A.C., teria pouco mais de sessenta anos, o que não justificaria essas afirmações. Resta buscar, portanto, comprovações da sua sobrevivência após os calamitosos eventos desta data. A data da sua morte é, portanto, uma questão ainda em debate. O pitagorismo sofreu eclipses periódicos, como os provocados pela revolta de Cílon e a posterior, mais grave, de 450 A.C., quando a sociedade foi dispersa pela Itália; porém o movimento prosseguiu neste país até o ano 300 A.C., quando Aristoxeno entrou em contacto com os remanescentes da comunidade, que foi sucessora direta da sociedade de Crotona, em Tarento. Durante os séculos III e II A.C. os pitagóricos levaram uma vida ascética, errante. No século I antes da nossa era, quando os romanos já tinham conquistado quase todos os territórios helenísticos, o pitagorismo mais uma vez se tornou uma força expressiva no florescente Império Romano. Inúmeras religiões orientais, como por exemplo o judaísmo alexandrino e a religião egípcia, que tinham sofrido influência da filosofia grega, garimpavam argumentos racionais, extraídos dos ensinamentos pitagóricos, em defesa de crenças, muitas vezes absurdas e irracionais. É a época dos pseudo-ensinamentos de Hermes Trimegisto, repletos de idéias pitagóricas, com tintas de religião egípcia, ou de figuras semicharlatanescas, como Apolônio de Tiana, que afirmava ser um avatar de Pitágoras. Em Roma, Ovídio e Nigídio Fígulo reavivaram o interesse pela filosofia de Pitágoras. Nicômaco de Gerasa, que viveu no século II D.C., redigiu interessante estudo sobre a matemática dos pitagóricos e escreveu uma “Vida de Pitágoras”. Nesse mesmo século surgiu Numênio de Apaméia, o qual sustentava que Platão era apenas mais um pitagórico, combinando, assim, os ensinamentos desses dois filósofos. No século seguinte, Plotino e Amélio, discípulos de Numênio, ajudados por obras de Platão, contribuíram para esclarecer teorias metafísicas de Pitágoras. Porfírio, discípulo de Plotino, também escreveu outra importantebiografia de Pitágoras. Esses sábios, juntamente com outros, como Moderato, Teon, Crônio e Trásilo, deram novo ímpeto ao pitagorismo, originando o movimento renovador hoje conhecido como neopitagórico. Gorman (1979) argumenta, com razão, que é difícil discernir se são neopitagóricos ou neoplatônicos, em virtude das similitudes e complementaridades dessas concepções filosóficas. Quando os cristãos assumiram, no século IV D.C. o controle do estado romano, os pitagóricos tornaram-se uma minoria perseguida, porém suas idéias continuaram a ser disseminadas na antiga escola de Platão, a Academia de Atenas, e em Alexandria. Essa situação perdurou até o século VI, quando Justiniano, o Imperador do Oriente, fechou a Academia e proibiu o ensino de filosofias e doutrinas pagãs. Por um período de mil e duzentos anos, do século VI A.C. ao século VI D.C., as doutrinas de Pitágoras foram pregadas abertamente. Depois, a Idade das Trevas se encarregou de obliterar esse conhecimento. Somente o Renascimento Italiano conduziu a um renovado interesse pelo pensamento pitagórico, com a redescoberta dos escritos clássicos. A principal doutrina da filosofia pitagórica consistia na crença de que tudo era número, ou assemelhava-se e harmonizava-se a ele. Jâmblico (c.250-325 D.C.) registra, em sua “Vida de Pitágoras”, que o mestre repetia freqüentemente aos seus discípulos: “Todas as coisas se assemelham ao número” (GUTHRIE, 1988, p.97; GORMAN, 1979, p. 146). Esta é a origem do conhecido mote da escola pitagórica “Tudo é número”. Iremos, na seqüência, procurar investigar as origens dessa concepção. Nominação A nominação de um fenômeno sempre antecede o trabalho intelectual da sua compreensão e justificação. Esse é o processo que transforma o mundo de impressões sensoriais, que compartilhamos com os animais, em um mundo próprio do homem, isto é, cognitivo, um universo de idéias, explicações e significados. Toda a cognição teórica tem como ponto de partida um mundo pré-moldado pela linguagem, observa CASSIRER (1953), desse modo qualquer cientista, historiador, filósofo ou religioso lida com seus objetos somente após a linguagem tê-los apresentado. O liame original entre a lingüística e a consciência mítico-religiosa é expresso no fato de que estruturas lingüísticas aparecem também como entidades míticas; a Palavra torna-se então uma espécie de força primária, da qual todas as ações e seres provêm (CASSIRER, 1953). A noção de que nome e essência de um dado ser estão intrinsicamente relacionados, mediante uma correspondência necessária e interna, e que nome não apenas denota mas realmente é o próprio ser, bem como a potência do ser real está contida em seu nome, eis o que parece um dos conceitos fundamentais da consciência mítico-religiosa primitiva. Doutrina do Nome Os mitos de criação geralmente procuram justificar a origem do universo, dos seres vivos e da matéria em geral como produto da intervenção divina. Entre as formas dessa intervenção podemos identificar duas, de interesse mais próximo. A primeira diz respeito à criação como produto de uma ação divina: Deus fez (fiat). A segunda é a criação pela palavra: Deus disse. Bastava ao Deus criador estabelecer um plano, emitir uma palavra e pronunciar um nome para que a coisa prevista viesse a existir. Essa, em síntese, era o que se pode denominar, seguindo CONTENAU (1950, p.167), de doutrina do nome: uma coisa não existe até que receba, por intervenção divina, um nome. Em conseqüência, se uma coisa não porta um nome, ela não existe. Por coisa (res) entenderemos qualquer objeto material, animado ou inanimado. Essa doutrina encontrava-se amplamente difundida por todo o Oriente Próximo antigo. Pode-se suspeitar que suas raízes provavelmente mergulham no neolítico dessa região, imersas na pré- história. Bíblia Os estudiosos identificam pelo menos três correntes principais de diferentes tradições que contribuíram para a composição literária da Bíblia cristã. A primeira, a tradição javeísta, é assim chamada porque emprega o nome divino IAHWEH desde a narração da criação. Teve origem provavelmente em Judá e talvez tenha sido escrita, no essencial, durante o reino de Salomão. A segunda, a tradição eloista, emprega o nome ELOHIM para designar Deus. Estima-se ser mais recente que a javeísta, e em geral é relacionada às tribos do norte. A terceira, a tradição sacerdotal, se preocupa com as leis, a organização do santuário, sacrifícios e ofertas. Exprime o espírito legislativo e litúrgico. Esta tradição se deve aos sacerdotes do templo de Jerusalém, embora preserve elementos antigos. Salomão iniciou a construção do templo de Jerusalém logo depois de 970 A.C. Nesta tradição, a criação obedece a um esquema semanal, litúrgico, tendo Deus descansado no sétimo dia, o sábado, dia do repouso sabático. A primeira descrição da criação, Gênesis 1,1 – 2,4, pertence à tradição sacerdotal, a segunda descrição (2,4 b –3,24) é de lavra da tradição javeísta. As duas formas de intervenção divina mencionadas estão bem documentadas na tradição bíblica cristã, no Gênesis: "Deus fez o firmamento, que separou as águas que estão sob o firmamento das águas que estão acima do firmamento, e Deus chamou ao firmamento "céu""(Gen:1,7 - grifo nosso). É a criação como produto de ação: Deus primeiro fez (criou) o firmamento, depois nominou-o: céu. Outros exemplos da criação pela ação figuram nos versículos 16, os astros; 25, os animais terrestres; 26, o homem. A criação pela ação está mais bem explicitada na segunda descrição da criação, narrada nos versículos Gên.:2, 4b- 25, possivelmente uma tradição mais antiga. A criação pela palavra aparece em diversas outras instâncias, como em Gên.: 1,3: "Deus disse: "Haja luz" e houve luz. Deus viu que a luz era boa, e Deus separou a luz e as trevas. Deus chamou a luz "dia" e as trevas "noite" (grifo nosso). Observe-se que primeiro Deus criou a luz por meio da palavra (Deus disse), denominando-a posteriormente: luz. A criação pela palavra reaparece em Salmos 33,6: “O céu foi feito com a palavra de IAHWEH, e o seu exército com o sopro de sua boca.” Este salmo faz parte da coleção atribuída ao rei David (c.1010-970 A.C.), embora não se tenha certeza acerca da data de sua composição. Talvez a mais notável expressão do poder criador da palavra apareça no Evangelho de São João, versículo 1,1: "No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus". Outras culturas primitivas Paralelo direto encontramos entre as tradições dos índios Uitoto: “No princípio, a Palavra deu ao Pai sua origem” (PREUSS, apud CASSIRER, 1953, p.45). Do mesmo modo, encontramos na Índia a exaltação do poder da Palavra mesmo acima do poder dos deuses: “Da Palavra falada todos os deuses dependem, [e] todos os animais e homens; na Palavra vivem todas as criaturas...; a Palavra é o Imperecível, o primogênito da lei eterna, a mãe dos Vedas, o umbigo do mundo divino” (Taittirya Brahm., 2,8,8,4; apud CASSIRER, 1953, p.48). Entre os polinésios também encontramos mitos de criação em que o poder de criação da Palavra é posto em evidência. Segundo um desses mitos, no início só existiam as Águas e as Trevas. Io, o deus supremo, separou as águas pelo poder do pensamento e pelo poder das suas palavras, criando assim o céu e a terra. Ele disse: “ Que as Águas se separem, que se formem os Céus, que a Terra surja”(ELIADE, 1963, p.32). Outro mito similar envolve o deus Tananoa. A idéia básica é que Tananoa induz o processo de criação pela remoção do silêncio original (Mutuhei) através da produção da Palavra (tom) (CASSIRER, 1953, p.46). Como a Palavra é a primeira a aparecer, também é considerada o poder supremo. Não poucas vezes, culturas primitivas consideraram o nome da divindade, e não o próprio deus, como fonte real de eficácia.Mesopotâmia O Gênesis conta a história de Abraão, nascido em "Ur dos caldeus" (Gên.:11,28). Sabe-se hoje que Ur era cidade da Suméria. Os ancestrais de Abraão eram nômades semitas que habitavam a Mesopotâmia. Gên.12,1 narra que Deus ordenou a Abraão sair da Mesopotâmia para a terra que lhe mostraria. É geralmente aceito que Abraão passou a viver em Canaã por volta de 1850 A.C., o que nos permite afirmar que os relatos da criação descritos no Gênesis provêm de tradições que remontam, no mínimo, ao final do terceiro milênio antes da nossa era, e que podem ter sido influenciadas por narrativas similares sumérias. Aos Sumérios é geralmente creditada a invenção da escrita, por volta de 3200-3000 AC. Imediatamente em seguida, os seus vizinhos Elamitas desenvolveram a sua escrita, que mostra clara influência da suméria. A visão dos povos mesopotâmicos acerca do sobrenatural é uma mistura inextricável de origem suméria e acádica, influenciada por crenças de uma população- substrato de origem desconhecida. Como o eminente sumerólogo S. N. Kramer já sublinhara, é muito possível que haja "traços de influência semítica mesmo na mais antiga mitologia suméria, tanto quanto são encontrados no caso da língua suméria" (apud HEIDEL, 1963, p.12). Isto reforça as conexões entre os mitos de criação sumérios e os semitas hebraico - bíblicos. Muito da literatura suméria foi escrito por falantes de acádio, quando o sumério já era língua extinta. Os acadianos falavam uma língua semítica, podendo ter estado presentes na Mesopotâmia desde o tempo em que os sumérios chegaram, ou se haverem difundido pela região logo após. As suas culturas se mesclaram e devem ter vivido conjuntamente de forma pacífica, gradualmente tornando-se parte integral da cultura suméria. Sobre tabletes sumérios de argila, encontrados em Fara, datados de 2900-2800 A.C., nomes semíticos (acádicos) são atestados pela primeira vez. Pode-se conjecturar, por conseguinte, que os antepassados de Abraão mantinham relações com eles. O mito de criação sumério Enûma Elish principia com as seguintes palavras: 1. "Quando no alto o céu (ainda) não tinha sido nomeado; 2. (E) abaixo a terra não tinha (ainda) sido chamada por um nome;" (HEIDEL, p.18). Isto mostra que para os sumérios as coisas (o céu, a terra), só passavam a existir após receberem um nome: é o poder criador da palavra. Os acadianos tinham uma expressão para designar uma coisa qualquer: "Tudo isto (aqui) que porta um nome" (CONTENAU, p.167). HEIDEL (1963) considera que o poema que ilustra esse mito, na forma como o conhecemos, foi composto provavelmente durante a primeira dinastia babilônica (1894- 1595 A.C.), afirmando, porém, que o mito está indubitavelmente baseado na cosmologia suméria. Nomes e números A propriedade que os números possuem de poderem ser combinados de vários modos, de se poder escrever cada um de várias maneiras, sugere possuírem algo de sagrado, induzindo a considerá-los como uma espécie de língua universal, capaz de tudo expressar. A associação de números com nomes é muito antiga na cultura suméria. Uma das primeiras manifestações do poder dos números encontra-se no panteão sumério, onde existe uma hierarquia numérica dos deuses. Ao deus supremo, o deus do céu An(u), associava-se o número "perfeito", a unidade (base) 60, o que nos permite inferir a antigüidade deste sistema. A série numérica atribuída aos deuses, que traduz também a sua importância hierárquica dentro do panteão sumério, é a seguinte (cf. DHORME, 1949; IFRAH,1981, p.310), An (Anu), deus supremo, deus do céu, 60 Enlil, deus da terra, filho de An, 50 Ea (Enki), o deus das águas, 40 Sin (Nannu), deus-lua, 30 Shamash ((Utu), deus-sol 20 Ishtar (Inanna), deusa-vênus, 15 Nergal, deus dos infernos 14 Marduk, e também Gibil e Nusku 10 O panteão sumério-babilônico, com os símbolos e números associados aos deuses, pode ser apreciado nas figuras seguintes. Os mesopotâmios tiveram a idéia de atribuir um valor numérico aos signos de seu silabário, de modo que todo o nome pudesse ser expresso por um número. A criptografia denomina correspondências um-a-um entre sinais e numerais de “substituição cifrada”. Por Fig. Símbolos de An 60 e Enlil 50 Ea 40 Fig. Sin 30 Shamash 20 Ishtar 15 Fig. Nergal 14 Marduk 10 exemplo, Sargão II (722-705 A.C.), rei da Assíria, por ocasião da construção do palácio de Khorsabad, procurou criar um elo entre sua identidade e a muralha que o defendia, fazendo inscrever: "De 16.283 cúbitos, o número de meu nome, eu fiz a medida de sua muralha" (RUTTEN, p.197, grifo nosso). Deste modo estabeleceram a igualdade nome = número. Dada a importância desta inscrição, convém examiná-la com maior profundidade. É conhecida na literatura como a famosa Nameninschrift (inscrição do nome), e provém de um cilindro, mas também foi encontrada inscrita em um touro e em outros objetos. Reza o seguinte: No mês de Abu, o mês do descenso do deus fogo, destruidor da vegetação [cultivada] crescente, quando [se] assenta a plataforma de fundação para a cidade e a casa. Eu assentei a muralha de fundação, eu construí o seu trabalho de tijolos. Templos substanciais, construídos firmes como as fundações da eternidade, eu construí neste ponto para Ea, Sin, Nergal, Adad, Shamash, Urta. Palácios de marfim, amoreiras, cedros, juníperos,e madeira de pistache eu construí ao seu comando divino para minha moradia real. Um bit-hillani [?], uma cópia de um palácio hitita [sírio], eu construí em frente de suas portas. Vigas de cedro e cipreste eu assentei para os telhados. De 16283 cúbitos, o número de meu nome, eu fiz a medida de sua muralha, estabelecendo a plataforma de fundação sobre o leito de rochas da alta montanha (FOUTS, 1994). A interpretação desta inscrição permanece em debate. Não parece uma hipérbole literária com números, ou seja, o embelezamento intencional de um número com o propósito de glorificar determinado monarca. Isto era um recurso literário relativamente comum na Mesopotâmia daqueles tempos. Por exemplo, podemos citar as inscrições de Rimush e de seu pai, Sargão I (c. 2350 A.C.). Na de Rimush o número de convidados para festejar (54.016) é convenientemente cerca de dez vezes o número de convidados de seu pai. Um fenômeno similar pode-se constatar durante os reinos de Shalmanasar I (c. 1275- 1245 A.C.) e de seu sucessor Tukulti-Ninurta I (c.1245-1208). A inscrição do primeiro cita a captura de 14.400 prisioneiros, enquanto o segundo afirma que capturou 28.000, convenientemente o dobro do antecessor. Outro notável exemplo poético de hipérbole literária numérica encontramos em uma inscrição de Ugarit: Deixe seu poderoso exército ser numeroso, Trezentos dez-milhares. Conscritos sem número, Soldados para além de contagem. Notem-se os termos hiperbólicos “sem número” e “para além de contagem”, em um paralelismo sinônimo de 3.000.000. O acádico é uma língua semita, juntamente com o hebreu, o árabe, o aramaico etc. Ele tem três dialetos: o acádico antigo, o assírio e o babilônico. Pode-se dizer, portanto, que qualquer coisa escrita em babilônico ou assírio está também escrita em acádico. Os falantes do acádico emprestaram e adaptaram o silabário sumério para a sua escrita. Existe pequeno número de textos, denominados textos numérico-silábicos, que estabelecem correspondência entre os sinais do silabário (A), com números. Entre esses textos encontram-se os registrados nos tabletes: W22825+22808, Rm.806, BM 46603+46609, BM 47732+48191, BM 77233, MMA86.11.364. Estudando esses textos, PEARCE (1996) mostrou o seguinte: 1) existe um sistema consistente de atribuir correspondência entre numerais e sinais do silabário (A); 2) a presença de tabletes, que preservam essa paridade, em diferentes sítios, argúi contra a existência de um “conhecimento secreto”. Já no terceiro milênio encontramos o aparecimento em textos de valores numéricos para sílabas, principalmente na ortografia de nome de deuses e de elementos em nomes pessoais, relacionados a essas divindades. O corpus de inscrições de Susa proporciona alguns dos mais antigos exemplos encontrados no segundo milênio. Nas inscrições de Kidinû, cerca de 1465 A.C. , aparece o valor 3,20 como o equivalente numérico de “rei”. Também figuram 15 - 2,30 e 1,20 como equivalentes numéricos para “direita”, “esquerda” e “trono”, respectivamente. No primeiro milênio, encontramos numerais freqüentemente representando nomes divinos. Embora seja difícil identificar o propósito para o qual esses textos numérico- silábicos foram compilados, bem como o seu uso na prática cotidiana do escriba, eles certamente contribuíram para a preservação e manutenção da tradição de ensino dos escribas, especialmente nos princípios do primeiro milênio em geral, e no período Seleucida em particular. A cópia fiel de textos tradicionais era parte integrante da formação do escriba. Heródoto conta que os gregos aprenderam a escrever com os fenícios. Os gregos denominam suas letras de phoinikeia, isto é, coisas fenícias; a derivação da letras gregas do alfabeto fenício é confirmada por uma série de similaridades nos seus nomes, no modo em que eram escritas e pela sua ordenação, de alpha a tau. As mais antigas inscrições gregas, rabiscos em pedaços de cerâmica, datam de 730 A.C., embora os gregos já praticassem a escrita algum tempo antes. No século VI A.C., os gregos desenvolveram um sistema de numeração escrita de 1 a 24 por meio de letras alfabéticas, conhecido como ático, baseado no princípio acrofônico, segundo o qual a letra inicial da palavra para o número era seu numeral. Nesse sistema, os números de um a quatro eram representados por riscos verticais repetidos; para o cinco adotou-se um novo símbolo, a primeira letra da palavra grega para cinco: pente (Π ou Γ). Para números de seis a nove combinava-se o símbolo Γ com riscos unitários verticais: Γ era sete. Para as potências positivas da base dez, empregava as letras iniciais das palavras correspondentes: ∆, para deka, dez; H para hekaton, cem; X para khilioi, mil; M para myrioi, dez mil. Após a introdução das letras minúsculas na Grécia, surgiu o sistema alfabético ou jônio, onde a correspondência dos números era feita com as letras minúsculas. Como a escrita grega era alfabética, herança dos fenícios, e não silábica, como a babilônica, o passo natural era associar cada letra a um número, como já os babilônios o tinham feito, associando cada sílaba a um número. O passo cognitivo é o mesmo: associar cada signo da sua escrita a um número. Os Hebreus também adotaram um sistema acrofônico similar. Os seus numerais usam as vinte e duas letras do seu alfabeto, na mesma ordem das do alfabeto fenício, do qual elas derivam, para representar, de aleph a tet, as primeiras nove unidades; então de yod a tsade, as nove dezenas; finalmente de kof a tav, as primeiras quatro centenas. Esses sistemas foram as sementes de grande parte do misticismo numérico posterior, divulgado entre os gregos principalmente pela escola pitagórica, constituindo a raiz da gematria e da cabala hebraica, e da numerologia moderna. Egito Encontramos também a doutrina do nome entre os egípcios. A importância da preservação do nome entre eles era fundamental. O filho que ajudava a manter vivo o nome do pai e, em conseqüência, a sua memória, cumpria meritória obrigação. Acreditava-se que o corpo físico do homem era acompanhado, de um lado, por seu Ka, ou duplo e, por outro, pelo seu nome, como uma espécie de duplo espiritual. O nome era parte essencial do indivíduo; o seu apagar correspondia à sua destruição. Sem nome ninguém poderia ser identificado no julgamento final, assim como o homem somente passava a existir nesta terra após haver sido pronunciado o seu nome. Do mesmo modo, a vida futura só podia ser atingida depois que os deuses do mundo de além-túmulo se tivessem familiarizado com ele e pronunciado o seu nome. Sir E. A. Wallis Budge nos ensina que o mito da criação egípcio, escrito no papiro de Nesi-Amsu, relata que, antes de que o mundo e tudo o que nele se contém começasse a existir, só havia o grande deus Neb-er-tcher, pois ainda nem mesmo os deuses tinham nascido. Chegado o tempo em que ao deus caberia criar todas as coisa, disse: "Produzi (i.e., criei) a minha boca, pronunciei o meu próprio nome como palavra de poder e, assim, me expandi sob as evoluções do deus Quépera (=Neb-er-tcher), e desenvolvi-me a partir da Fig. Sistemas de numeração grego (jônio) e hebreu matéria primeva, que produzira multidões de evoluções desde o princípio do tempo"(BUDGE I, p.104). Para os egípcios, portanto, a criação resultaria da pronunciação do nome do deus Neb-er-tcher, ou Quépera, por ele mesmo, notável caso de autogeração. Em outra versão este deus se confunde com Osíris. No Capítulo XVII do Livro dos Mortos, encontramos o seguinte enunciado: "Sou o grande deus Nu, que pariu a si mesmo, e fez do seu nome a companhia dos deuses" (BUDGE I, p.105). Na seqüência, é perguntado: "Que significa isto ?" ou "Que é isto? " Ao que é respondido: "É Ra, criador dos nomes dos seus membros, que veio a existir na forma dos deuses que estão no séquito de Ra". Pode-se constatar que todos os "deuses" do Egito não passavam de personificações dos nomes de Ra, cada deus era um dos seus "membros"; o nome do deus era o próprio deus. Se o egípcio morto não conhecesse os nomes dos deuses e demônios do mundo inferior, passaria por maus bocados, com o bloqueio dos seus caminhos e portas fechadas, até que forças hostis lhe dessem cabo; por isso, como lembrete e guia condutor da sua trajetória de além-mundo, o egípcio procurava levar para o seu túmulo uma cópia ou resumo do Livro dos Mortos. O nome de um egípcio que fosse objeto de maldição acarretava o mal ao seu dono, como o que fosse objeto de benção ou de prece era agraciado com muitas coisas boas. Esta é uma concepção muito difundida entre sociedades primitivas, mesmo na nossa era. É costume, em muitas tribos, os aborígines possuírem dois nomes, um verdadeiro, que deve ser mantido no máximo segredo, e outro de uso habitual, cotidiano. Acredita-se que, se um feiticeiro vier a conhecer o nome verdadeiro de alguém, terá grande poder sobre esta pessoa, podendo causar-lhe malefícios, lançando feitiços e sortilégios sobre o seu nome. Isso mostra que a identidade entre o nome de uma pessoa e a própria pessoa é noção extremamente difundida em todo o globo, em todos os tempos. Mostra como a doutrina do nome pode ser considerada quase como concepção arquetípica, enraizada no inconsciente de significativa parcela da humanidade. Outras civilizações Em Roma, quando o conceito de “pessoa legal” foi formalmente articulado, esse status foi negado a certos sujeitos físicos, a quem também foi negada a posse oficial de um nome próprio. Por conseguinte, sob a lei romana, um escravo não podia ter um nome legal, porque não era enquadrado como “pessoa legal” ao amparo da lei. As cidades antigas possuíam divindades protetoras, cujos nomes eram ciosamente guardados. Quando as legiões romanas sitiavam uma cidade, os sacerdotes apressavam-se em dirigir orações ou encantamentos à divindade protetora do lugar, convidando-a a se afastar ou a passar aos romanos, assegurando-lhe que seria bem tratada, ou melhor do que anteriormente.O nome da principal divindade protetora de Roma estava envolto no mais profundo mistério. Temia-se que os seus inimigos pudessem atrai-la, fazendo-a abandonar Roma. Do mesmo modo a própria cidade possuía um nome secreto, que jamais poderia ser pronunciado ou escrito, nem mesmo nas cerimônias religiosas, para afastar conjurações malévolas. A menção do nome da divindade ou do nome secreto da cidade acarretava a pena de morte. Tão escrupulosamente foi isso observado, que até hoje se ignora o nome secreto da cidade. Já se conjecturou que talvez fosse Quiris, de onde advém quirites, cidadão romano, ou então Valentia. Para os israelitas do antigo testamento, o nome de uma pessoa não apenas a designa, mas determina sua natureza; uma mudança em seu nome marca uma mudança em seu destino. Para alterar o fado de Abrão e de sua esposa Sarai, Deus troca seus nomes para Abraão e Sara (cf. Gen 17, 5; 17, 15). Gen 35,10 registra que Deus mudou o nome de Jacó para Israel, reordenando seu destino, para assinalar que sua descendência constituiria a nação de Israel. Os Esquimós acreditavam que o homem é composto de três elementos: corpo, alma e nome. Os indígenas australianos conservam os seus nomes em segredo, porquanto, se o inimigo os conhecer, poderá prejudicá-los. Após o primeiro dos ritos de passagem, cerimônias que lhes conferem direitos de homens maduros, a que se submetem, abandonam, para sempre, os seus nomes. Em outras tribos da Austrália Central, além de seu nome próprio, usual, todo homem, mulher ou criança possuem outro, secreto, conferido pelos anciões. Este só é conhecido dos membros já iniciados do grupo, e enunciado apenas em ocasiões solenes. Fora disso, apenas é pronunciado após muitas precauções, para não ser ouvido por pessoas estranhas ao convívio. Os povos da Costa dos Escravos, na África, crêem na existência de um liame real, material entre o homem e o seu nome, acreditando que, por meio deste, pode-se causar-lhe mal. Entre as tribos que acreditam que revelar o nome aos estrangeiros lhes concede poder sobrenatural sobre os seus membros, encontram-se os seguintes: os Araucanos, do Chile; selvagens da Güiana inglesa; Guamis, do Panamá; Apaches, do Novo México, Arizona e Texas; Sicsicas ou Blackfeet, da família algonquina. Já entre os que substituem os nomes indígenas, secretos, pelos dados pelos europeus, agrupam-se: Navajos, do Novo México; Tonkawes, do Texas; Nishinam, da Califórnia. Os indígenas brasileiros, civilizados ou semicivilizados, possuem freqüentemente dois nomes, sendo que um, o da língua nativa, mantém caráter mais ou menos reservado, enquanto o outro, o da língua portuguesa, é o que empregam para gozar das regalias de cidadão no convívio na comunidade. Porém há tribos que costumam dar aos filhos mais de um nome indígena, como entre os Bororos, do Mato Grosso, ou ainda os Caingangues, do Paraná. Entre os Apopocuvas (Guaranis), o nome é como um pedaço da alma do seu portador, idêntico a ele e, portanto, inseparável. O indígena não “se chama” isso ou aquilo, na verdade é “isso ou aquilo” (GUÉRIOS, 1956). Os pais, ciosos dos seus filhos, especialmente quando em contato com estranhos, mantêm os seus nomes em segredo, atribuindo-lhes alcunhas. Muitas vezes, quando os pais falecem prematuramente, sem comunicarem aos filhos os seus verdadeiros nomes, estes permanecem o resto da vida inteira sem os conhecer. O folclore brasileiro registra vários exemplos de magia simpática, baseados na onipotência do nome: “escrever o nome de alguém num papel e fazê-lo queimar é agouro certo”; “colocar o nome escrito [de um desafeto] em um formigueiro ou cupinzeiro, para que seja destruído”, é infortúnio certo ( CASCUDO). Na Rússia, costumava-se denominar o recém-nascido de ono, pronome neutro da terceira pessoa, pelo receio de assalto de espíritos malignos. Talvez seja esse o motivo de que, em várias línguas, a criança é do gênero neutro. O neutro é o gênero inanimado, dos seres inertes, desprovidos de fluidos vitais ou alma, portanto, inatingíveis por meio da magia. Considerações finais Como mostramos, a doutrina do nome, de que uma coisa passa a existir quando recebe um nome, constituía concepção muito difundida entre os povos da antigüidade, especialmente entre os mesopotâmios. Também estes desenvolveram o conceito de que nome = número. A doutrina do nome pode ser reformulada assim: uma coisa passa a existir quando recebe um número = nome. Logo, todas as coisas que existem têm número. Ora, isso nada mais é do que a doutrina da escola pitagórica: "Tudo (todas as coisas que existem) é número". Dificilmente se pode negar a influência mesopotâmica nessa doutrina da escola pitagórica. Embora a vida de Pitágoras seja pouco conhecida, obscura, envolta em lendas, relatos tradicionais afirmam que ele estudou no Egito e na Babilônia. Mesmo o conhecimento do teorema, ao qual o nome de Pitágoras ainda está ligado, de que em um triângulo retângulo a soma do quadrado da sua hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos seus catetos, provavelmente provém dos babilônios. Embora minúscula, uma pista dessa influência pode ter sobrevivido. Jâmblico, um comentarista tardio (c.250-c.325), escreveu uma "Vida de Pitágoras", onde menciona que entre os pitagóricos havia duas formas de filosofia, praticadas por dois grupos, os ouvintes ou akousmatikoi e os estudantes ou mathematikoi. A filosofia dos Ouvintes consistia em palestras, nas quais, segundo Jâmblico, não eram empregadas demonstrações ou raciocínios lógicos, mas apenas emitidas orientações sobre como as coisas deveriam serem feitas, ou sobre quais comportamentos deveriam ser adotados. Eram-lhes apresentados dogmas divinos inquestionáveis que, sob juramento, não deveriam ser revelados. As palestras eram de três tipos: no primeiro apenas se dissertava sobre certos fatos; noutro, elucidavam-se estes fatos; no terceiro, prescrevia-se o que deveria ou não ser feito acerca deles. As palestras subjetivas estudavam a natureza especial de um determinado objeto, como o exemplo registrado por Jâmblico: "Qual é a coisa mais sábia? Número. A próxima coisa mais sábia é o poder de dar nome2." (grifo nosso - GUTHRIE, 1988, p. 77). Encontramos aqui a associação entre número e o poder de dar nome, característico da doutrina do nome, o que pode testemunhar a influência mesopotâmica sobre a doutrina pitagórica, isso se a tradução e a interpretação empregadas estiverem corretas, e se Jâmblico preservou fielmente a tradição sobre a questão. Também nessa região pode localizar-se a fonte para as concepções sobre o misticismo numérico pelas quais essa escola se tornou conhecida. A influência dos “bárbaros” (egípcios, caldeus, hindus, etc.) sobre as idéias gregas já era amplamente admitida na antiguidade. Por exemplo, Clemente de Alexandria (séc. II D.C.- morreu em 215), no seu livro Stromatei (Miscelâneas), em seu Capítulo XV, cujo título muito sugestivo é “A filosofia grega em grande parte originada dos bárbaros”, então escrevia: E é bem sabido que Platão estava perpetuamente celebrando os bárbaros, relembrando que ambos, ele e Pitágoras, aprenderam a maioria e os mais nobres de seus dogmas entre eles. ...E refere-se que Pitágoras foi discípulo de Sonches, o arquiprofeta Egípcio; e Platão, de Sechnuphis de Heliópolis; e Eudoxo, de Cnidius de Konuphis, que também era Egípcio. ...Alexandre, em seu livro Sobre os símbolos pitagóricos, relata que Pitágoras foi um aluno de Nazaratus, o Assírio...Assim a filosofia, uma coisa da mais alta utilidade, floresceu na antiguidade ente os bárbaros, lançando suas luzes sobre as nações. Posteriormente veio para a Grécia. Em suas primeiras filas estavam os profetas do Egito, e os Caldeus entre os Assírios, e os Druidas entre os Gauleses; e os Samaneanos entre os Báctrios; e os filósofos dos Celtas; e os Magosda Pérsia, que anteviram o nascimento do Senhor, e vieram para a terra da Judéia guiados por uma estrela. Os gimnosofistas hindus estão também nesse número, e outros filósofos bárbaros.... Há, evidentemente, uma mistura heterogênea de diversas tradições antigas, cada qual com maior ou menor grau de veracidade, que deve ser ponderada com cautela; porém, a atribuição aos “bárbaros” de significativa parcela da filosofia grega parece consistente. Clemente cita a obra perdida De Symbolis Pythagoricis de Alexandre Polyhistor (fl. ca. 50 A.C.), que colocava as raízes da filosofia grega entre os bárbaros. Alexandre 2 the naming power. clamava que a filosofia tinha florescido antes dos gregos entre os profetas do Egito, os Caldeus da Assíria, os Druidas da Gáulia, os xamãs da Bactria, os philosophati dos Celtas, e os Magos da Pérsia. Hoje a influência mesopotâmica e egípcia sobre várias idéias gregas, doutrinárias ou científicas, é reconhecida. Ver, por exemplo, autores como NEUGEBAUER (1969), SARTON (1993-Ancient...), FOWLER (1999). Quanto à criação pela palavra, ATWELL (2000, p. 465) resume bem a opinião atual sobre a questão: A criação pela palavra divina era um conceito comum, disseminado no antigo Oriente Próximo. Não era expressão tardia e refinada da atividade divina na criação; mas já era um conceito vivo na antiga Suméria. Sua origem parece penetrar profundamente na crença primitiva no poder do nome e na magia associada às palavras. Assim como uma imagem pode repartir a essência da coisa que representa, também a palavra pronunciada tem o potencial da coisa que significa. Está intimamente relacionada com a crença que um ato ritual evoca verdadeiramente a realidade que ele representa. CAPÍTULO II TEORIAS GREGAS SOBRE A ESTRUTURA DA MATÉRIA Não faça nada além do que você sabe, Mas aprenda o que você pode necessitar: Assim sua vida se encherá de felicidade. Pitágoras. Versos de Ouro. Preliminares Podemos agrupar as teorias gregas concernentes à estrutura da matéria em cinco grupos principais, acompanhando TATON (1959, tomo I, vol.2, p.25): 1. Multiplicidade infinita de substâncias, desde a sua origem (Anaximandro - c.610-540 A . C., Anaxágoras- c.500-428 A. C.). 2. Pluralidade limitada a certo número de substâncias elementares (água, ar, fogo e terra, isto é, os quatro elementos), cujas combinações explicam a variedade dos compostos da natureza perceptíveis pela experiência sensível (Empédocles - c.495-435 A . C.). 3. Uma única substância primordial (água, ar ou fogo) capaz de se transformar em todas as outras, por condensação, rarefação, etc. (Tales - c.625-545 A . C., Anaxímenes - c.550 (?) A . C., Heráclito - c.500 (?) A . C.). 4. Uma única substância, sem qualidades, mas dividida em partículas distintas, elementos últimos, cujas combinações permitem a formação dos diferentes corpos (atomismo: Leucipo: pouco mais velho que Demócrito - c.440/435(?) A . C.). 5. Tudo procede do número inteiro. Essa doutrina, anterior ao atomismo, parece enunciá-lo, no sentido de que implica a descontinuidade da matéria, combinada com a idéia de que a formação dos diversos corpos sensíveis corresponde a combinações numéricas pitagorismo: Pitágoras nasceu em c.570 A. C. As datas indicadas são apenas aproximadas, dadas somente com o objetivo de esboçarmos uma linha de tempo para essas teorias, situando-as cronologicamente. Para sua discussão consultar BARNES (1987) e KIRK & RAVEN (1981). A maioria das obras dos filósofos gregos antigos, mormente dos pré-socráticos, não sobreviveu. Restaram somente pequenas citações, denominadas de fragmentos, preservadas em obras de autores antigos, desde Platão no quarto século antes da nossa era, a Simplício, no sexto século depois de Cristo, e mesmo, em raros casos, em escritores bizantinos tardios, como João Tzetzes. Eruditos modernos como Diels e Kranz, Kirk e Raven garimparam esses fragmentos, colecionando-os e anotando-os em obras que constituem a nossa principal fonte de conhecimento sobre essas obras perdidas. As concepções de Platão (428-347 A . C.) sobre a estrutura da matéria podem ser classificadas como uma variante do grupo 4, o que mostraremos na seqüência. Dessas teorias, a dos quatro elementos de Empédocles foi, sem sombra de dúvida, a que exerceu maior influência na evolução posterior da ciência. Foi empregada como hipótese de trabalho até o século XVI, e mesmo no início do XVII. Foi descartada pela ciência moderna, que concedeu ganho de causa ao atomismo. Iremos, em seguida, analisar as teorias sobre a estrutura da matéria da escola pitagórica, dos atomistas e de Platão, apresentadas nesta ordem (cronológica). A estrutura da matéria segundo a escola pitagórica Encontramos o mais extenso e útil sumário sobre as teorias dos Pitagóricos na Metafísica de Aristóteles (384-322 A.C.) (KIRK&RAVEN, 1981, p.236 e ss.), o qual merece nossa atenção, Contemporaneamente com estes filósofos, e antes deles, os Pitagóricos, como eles eram chamados, devotaram-se às matemáticas; eles foram os primeiros a avançar neste estudo; tendo sido educados nele, pensaram [que] seus princípios eram os princípios de todas as coisas. Desde [que ] destes princípios [os] números são por natureza o[s] primeiro[s], e em números eles pareciam ver muitas semelhanças às coisas que existiam e que viriam a existir - mais que no fogo e [na] terra e [na] água (certa modificação dos números sendo justiça, outra sendo alma e razão, outra sendo oportunidade - e similarmente todas as outras coisas sendo numericamente expressáveis); porque, novamente, eles viam que os atributos e as razões das escalas musicais eram expressáveis em números; porque, então, todas as outras coisas pareciam em sua natureza íntegra serem modeladas após [mediante] números, e números pareciam ser a[s] primeira[s] coisa[s] no todo da natureza, eles supunham os elementos dos números serem os elementos de todas as coisas, e o céu inteiro ser uma escala musical e um número. E todas as propriedades dos números e escalas as quais eles podiam mostrar que concordavam com os atributos e partes do arranjo integral dos céus eram por eles coletadas e adicionadas ao seu esquema; e se havia uma brecha em algum ponto, eles rapidamente faziam adições para manter assim toda a sua teoria coerente. E.g. como o número 10 era pensado ser perfeito e compreender toda a natureza dos números, eles diziam que os corpos que se moviam através dos céus eram 10, mas como os corpos visíveis eram apenas nove, para consertar isto eles inventaram um décimo - a "contra-terra". ... Evidentemente, então, estes pensadores também consideravam que o número é o princípio tanto da matéria para as coisas como formador de suas modificações e de seus estados permanentes, ...; e todo o céu, como tem sido dito, é números. Deste importante excerto, apesar de sua linguagem arcaica, pode-se constatar que os pitagóricos consideravam "os princípios das matemáticas" (os números) como os princípios de todas as coisas. Mesmo coisas imateriais, tais como justiça, alma e razão, originavam-se de "modificações" (combinações?) dos números. Consideravam "os elementos" dos números serem "os elementos" de todas as coisas. Nisso reside o atomismo numérico pitagórico. Procuravam explicar tudo por meio dos números; se aparecia alguma brecha no seu arcabouço teórico, rapidamente a cimentavam, mesmo à custa de invenções como a "contra-terra", para manter o todo coerente, afirma Aristóteles. Encontramos também uma observação significativa: a importância do número (perfeito!?) 10 para os pitagóricos. Um fragmento de Aécio nos fornece pistas sobre a natureza do 10. O dez constitui a verdadeira natureza do número. Todos os homens, tanto gregos quantobárbaros, contam do mesmo modo até dez; chegados aí, retomam a unidade. Pitágoras torna a sustentar que a força do número dez reside no número quatro, tétrade. Esta é a razão: se alguém começa com a unidade e lhe acrescenta, sucessivamente, os números até quatro, obtém o número dez; se for além da tétrade, excederá também o dez Assim, tomada a unidade e adicionando-lhe sucessivamente dois, três e quatro, obtém-se dez. Desse modo, este número mediante a unidade reside em dez, mas potencialmente no número quatro. Por isso os pitagóricos costumavam invocar a tétrade no seu mais sagrado juramento: : "Por ele que deu à nossa geração o tetractys, o qual contém a fonte e [a] raiz da natureza eterna" (KIRK&RAVEN, 1981, p.230-1). O número 10 era representado por dez pontos, ou alfas (α), dispostos em um triângulo eqüilátero:` O alfa representava a unidade (α = 1), princípio gerador de qualquer número. Este diagrama, pelo qual se percebe imediatamente que 10 = 1+ 2 + 3 + 4, era conhecido como Tetractys da Década; por ele os pitagóricos afiançavam os seus mais solenes juramentos. É importante notar que neste mais sagrado símbolo para os pitagóricos está embutido o princípio da construção de números como soma de série de números: 10 = 1+ 2 + 3 + 4, que será basilar para a teoria pitagórica dos números figurados, exposta na seqüência. Seguidores de Pitágoras acresceram outras interpretações: o número um é o gerador dos números e o número da razão; o dois é o primeiro número par, ou feminino, o número da opinião; três é o primeiro número masculino verdadeiro, o da harmonia, sendo composto da unidade (1) e da diversidade (2); quatro é o número da justiça ou retribuição, indicando o ajuste de contas; cinco é o número do casamento, união dos primeiros números verdadeiramente femininos e masculinos e seis é o número da criação. O 10 representava o número do universo, pois é a soma de todas as dimensões geométricas. Um ponto (a unidade - 1) gera as dimensões; dois pontos (2) determinam uma reta de dimensão um; três pontos (3) não coplanares determinam um triângulo com uma área de dimensão dois; quatro pontos (4) não coplanares determinam um tetraedro com volume de dimensão três; portanto, a soma dos números que representam todas as dimensões é 1+ 2 + 3 + 4 = 10, o número perfeito. Os neopitagóricos às vezes excluíam o dois da lista dos primos, alegando que o um e o dois não são números verdadeiros, mas geradores dos números pares e ímpares. α α α α α α α α α α Fig. 2.1 Tetractys da Década Na escola pitagórica encontram-se, portanto, ecos do misticismo numérico mesopotâmico. Não serão analisados aqui; deixamo-los para outro documento. A visão do número dez como perfeito parece ter inspirado o primeiro sistema astronômico não geocêntrico. O pitagórico Filolaus, nascido em torno de 470 A.C., postulou que no centro do universo havia um fogo central em torno do qual a Terra, o Sol, a Lua, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno giravam uniformemente. Se somarmos a estes corpos a esfera das estrelas fixas, obteremos um total de apenas nove corpos celestes, não dez, o número dez, número do universo, que os pitagóricos consideram perfeito. Diante disso, Filolaus não hesitou: postulou a existência de uma contra-terra, colinear com a terra em sua revolução em torno do fogo central, de modo que a sua existência não era então percebida, elevando assim para dez o número de corpos celestes. Origina-se daí a procedência da reclamação de Aristóteles quanto à forma como os pitagóricos "cimentavam" as brechas em suas teorias. A seguinte passagem da Metafísica de Aristóteles (KIRK&RAVEN, 1981, p.246) nos ensina que os pitagóricos acreditavam que os números possuíam magnitude geométrica espacial. Agora [,] os pitagóricos também acreditam em uma espécie de número - o matemático; somente [que] eles diziam [que] ele não é separado mas substâncias são formadas dele. Pois eles constroem todo o universo de números - não somente números consistindo em unidades abstratas; eles supunham que as unidades tinham magnitude espacial [...].Todos [...] presumiam que os números consistiam em unidades abstratas, exceto os pitagóricos; eles supunham que os números tinham magnitude, como foi dito anteriormente. Os pitagóricos pensavam, por conseguinte, que os números possuíam extensão espacial, confundindo o ponto geométrico do desenho com a unidade abstrata da aritmética. Estes pontos-unidades funcionavam também como a base da matéria física, eram contemplados de fato como uma primitiva forma de átomo. Aécio (KIRK, RAVEN, 1981, p.247) atribui a Ecfanto a prioridade dessa afirmativa, o que não é aceito por todos os estudiosos, significativa parcela dos quais acha que ele foi apenas o primeiro, de quem se tem conhecimento, a reconhecer explicitamente isso: "Ecfanto de Siracusa, um dos pitagóricos, mantinha que os princípios de todas as coisas são corpos indivisíveis e vazio. Pois ele foi o primeiro a dizer que as unidades Pitagóricas eram corpóreas". Aristóteles relembra que os pitagóricos consideravam os números como "funcionando como o elemento material nas coisas", considerando assim que os objetos concretos eram literalmente compostos de agregações de pontos-unidades-átomos. Esses pontos-unidades-átomos eram cercados pelo vazio. O conceito de vazio- vácuo entre os pitagóricos é objeto de discussão. Temos, porém, o testemunho de Aristóteles de que eles "admitem a existência do vácuo; dizem que êle penetra no céu quando este respira o sopro infinito, e que o vazio delimita as coisas" (TATON, 1959, tomo I, vol.2, p.16). A função do vazio era separar as coisas - e nas coisas incluíam os pontos- unidades-átomos. Sistemas de numeração gregos Os gregos pré-clássicos faziam uso de sistemas de numeração antigos, como o sistema cretense e o micênico; posteriormente, desenvolveram um sistema de numeração grego arcaico (ver, para detalhes, IFRAH, 1989, p.181 e ss.). Os gregos clássicos empregavam dois sistemas de numeração; o mais antigo, o herodiânico ou ático, empregava símbolos como o | para a unidade; Γ (antiga forma de PI), inicial de PENTE = 5; ∆ (delta), inicial de DEKA = 10; Η, inicial de HEKATON = 100; X (CHI), inicial de KHILIOI = 1000; Μ, inicial de MURIOI = 10000. O sistema ático provavelmente começou a ser usado desde o século V a.C., talvez desde o VIII a.C. No tempo de Pitágoras este sistema começava a ser empregado usualmente, porém, ainda era costume o emprego do ábaco, onde os numerais eram representados por contadores colocados em colunas na sua superfície. No início da época alexandrina, mais ou menos no tempo de Ptolomeu Filadelfo, esse sistema foi sendo substituído pelos numerais jônios ou alfabéticos, onde cada letra grega, inicialmente maiúscula, tinha um valor numérico equivalente : Α = 1, Β = 2, Γ = 3, ∆ = 4,... É um sistema de numeração alfabético, onde cada letra tinha um valor numérico. Os gregos usavam um alfabeto, talvez assimilado dos fenícios. Empregavam o mesmo princípio usado pelos mesopotâmicos de atribuir um valor numérico a uma sílaba (os mesopotâmios empregavam um silabário). O uso pelos gregos deste sistema acrofônico provavelmente foi um dos fatores que os induziu a inventar o (seu misticismo numérico, nos moldes do desenvolvido pelos mesopotâmios. Ábaco Deter-nos-emos um momento a investigar as origens do ábaco. Provavelmente perdem-se nas fímbrias no tempo, onde a história ainda não era escrita. Talvez começou como simples seixos dispostos em colunas traçadas na areia, evoluindo para caixas de areia, ou de poeira, que foram suas precursoras. Como os Sumérios são acreditados inventores da escrita, cabe indagar se empregavam ou não o ábaco. Se registraram seu uso por escrito, seria o primeiro empregoatestado do ábaco na história; porém os fatos não se revelam tão simples. Os arqueólogos não encontraram nenhum artefato que possa ser associado indubitavelmente a cálculos, ou como meio auxiliar deles; porém listas léxicas de períodos posteriores sugerem que os sumérios podem ter empregado ábacos feitos de madeira, os quais, sendo degradáveis, provavelmente se decompuseram e assim não foram encontrados nas escavações. Existe alguma evidência de que o signo SANGA, que significava o responsável por uma unidade econômica, deriva de um pictograma que representa um ábaco. Isto é reforçado pelo símbolo cuneiforme SID, que se desenvolveu do signo SANGA, e era empregado com o significado de contar. O signo SANGA parece representar um ábaco, cuja superfície está dividida em diversas colunas, e está interceptada por uma linha (cunha) vertical que parece representar a unidade. Se essa interpretação estiver correta, isso pode atestar o emprego do ábaco nos fins Fig. 2.2 Na ordem: signo SANGA, em sumério arcaico, do período de URUK; SID: signo cuneiforme arcaico, sumério do período de Jemdet Nasr; SID: signo cuneiforme mais recente, sumério clássico. do quarto, princípios do terceiro milênio antes da nossa era, porém o seu emprego pode ser ainda muito mais antigo. A “conta”, propriamente dita, é denotada por uma combinação do verbo SID, contar, com a palavra NIG (total, soma) - NIG-SID, nik-kas-si: “fazendo o total, totalizando”. A etimologia da palavra sumeriana para “total, soma, colocar junto”(NIGI, NIGIN) claramente sugere as sucessivas secções de um ábaco, como podemos apreciar pela evolução de seus signos. Nessas listas léxicas, que relacionavam várias profissões exercidas na Mesopotâmia, cada entrada dava uma breve descrição do representante da mesma, e um breve título do tipo “homem de...”, mas ao mesmo tempo em cada caso a entrada especificava a natureza das ferramentas ou artefatos empregados em cada profissão. Em uma das entradas encontramos uma palavra (IMNA; abnú) que significa “pequenos objetos de argila”, que indica o sistema de calculi empregado pelos Sumérios. O calculador era referido como o “homem com os pequenos objetos de argila” (LÚ IMNA NA; sa...(?)). Isto provavelmente se refere aos períodos mais antigos, reminescência do emprego de calculi de argila encerrados em bullae3, para representar quantidades de bens diversos. Em outros contextos, o material do contador era expresso pela palavra GES, madeira, o que indica o emprego de varinhas de madeira como contadores no ábaco. A palavra suméria GESDAB significava tablete de madeira. Provavelmente o ábaco sumério 3 Esferas ocas de argila, do tamanho aproximado de bolas de tênis, que continham um tipo de calculi empregado na Mesopotâmia, denominado token, feito também de argila, na forma de discos, cilindros, esferas, etc. a b c Fig. 2.3 Signo NIGI ou NIGIN: a) forma mais antiga, sumério arcaico, período de Uruk; b) signo cuneiforme arcaico, sumério do período de Jemdet Nasr; c) signo mais recente, sumério clássico. era, portanto, de madeira, e empregava como contadores varinhas de madeira. A profissão associada era “o homem das varinhas pequenas de madeira”. O verbo sumério DIM significava modelar em argila, construir e, por associação, elaborar resultados. Um das palavras que se supõe que significava ábaco em sumério é GESDAB-DIM. Outra é GESSU-ME-GE, que pode significar, literalmente, a madeira (do tablete, GES), uma varinha (de junco, GE), as regras de aritmética (ME) e um total (provido pela mão, SU). Porém, cabe lembrar, isto não está provado. O nome ábaco provém do latim abacus, derivado da palavra grega mais antiga abax (αβαξ), que significa apenas uma superfície plana. Muitos autores afirmam que abax provém de uma palavra antiga de origem semítica, o hebreu abaq, poeira; porém outras autoridades, como PULLAN (1979), alegam que a relação entre as palavras grega e a hebréia não está inteiramente provada. Algumas imagens dos antigos ábacos gregos sobreviveram, por exemplo, o mostrado no denominado “vaso de Dario”, proveniente de Canossa, no sul da Itália (ex- colônia grega), datado de 350 a.C. Um detalhe do vaso mostra o tesoureiro do rei persa Dario, sentado, manipulando contadores em um ábaco, para contabilizar o pagamento de tributos. Os contadores sobre o ábaco representam a soma de 1231 dracmas e 4 obois. Segura, em sua mão esquerda, um tablete de cera para registrar os resultados. Este tablete, denominado de diptychon (díptico), consistia em duas pequenas tábuas de madeira, de aproximadamente 14 por 12 cm, unidas por dobradiças, cuja superfície era coberta por fina camada de cera (keros). A escrita era feita riscando-se a cera por meio de um estilete, conhecido como grapheion (ou lat. stilus). Ela era facilmente apagada, alisando-se a cera, o que permitia seu reaproveitamento para anotações efêmeras. Fig. 2.4 Vaso de Dario. Detalhe mostrando o emprego do ábaco grego. O exemplo mais marcante de ábaco grego é a “tábua de Salamis”, uma prancha de mármore branco, medindo 1,49 m de comprimento por 0,75 m de largura, encontrada em 1846 na ilha de Salamis, datando do século V a.C., em cuja superfície estão traçadas linhas que compõem um ábaco. Possui dois conjuntos de linhas paralelas, um de seis e outro com onze linhas. Símbolos numéricos aparecem em três lados da mesma. Em um lado variam de 1 a 1000, do outro lado, de um oitavo de obol até 6.000 dracmas. Dracmas e obois eram tanto unidades de peso como moedas na Grécia antiga, sendo que o obol valia um sexto do dracma. Os contadores (seixos, calculi) eram dispostos nas colunas sobre sua superfície. Da palavra romana para contadores, calculus, calculi (plural), originou-se a palavra cálculo, hoje muito conhecida, especialmente pela disciplina de mesmo nome. A palavra psephoi (ψηφοι) era usada para seixos de qualquer espécie, e também para contadores. A palavra ψηφζω significava “contar ou calcular”, do mesmo modo que os romanos usavam mais tarde a frase “ponere calculus , e que nós empregamos a expressão “calcular”. Conhecem-se diversos exemplares de calculi romanos. Estes eram discos plano- convexos, de aproximadamente 1,2 a 2,0 cm, e podiam ser de osso ou marfim, mas usualmente eram de vidro. Provavelmente eram feitos derramando-se gotas de vidro fundido sobre uma superfície plana. Enquanto os calculi romanos são relativamente bem conhecidos, o mesmo não se pode dizer dos contadores que os gregos empregavam. Vários discos e outros artefatos foram recuperados pelos arqueólogos, mas nenhum pode ser claramente identificado como contador. Todavia não há nenhuma razão para se esperar que Fig. 2.5 Tábua de Salamina uma espécie padronizada de contador fosse empregada, pois quaisquer seixos ordinários teriam perfeitamente servido. Talvez das figuras resultantes dos agrupamentos desses seixos originou-se a disposição dos pontos no tetractys, bem como a teoria dos números figurados. Pode-se argumentar que um número era percebido como uma disposição geométrica de unidades (calculi), e os ábacos constituiriam algo como “artefatos técnicos” onde a “percepção” dos números se fazia através de sua “disposição espacial”; portanto, o uso do ábaco é uma “técnica concreta” de representação de números. Esse “modelo prático” de representação de números pode ter originado um novo “modelo mental” de representação de números: os “números figurados”. Ábacos, varinhas de contar, caixas de areia não eram apenas ferramentas utilitárias, mas a base de uma técnica concreta
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