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UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO GRADUAÇÃO EM GASTRONOMIA DISCIPLINA: TÉCNICAS DE COZINHA CONTEMPORÂNEA DOCENTE: POLLIANNA THOMÉ DISCENTE: JULIANA SILVA SANTANA Estudo de Food Design - Chef Virgílio Martínez O chef peruano Virgílio Martínez tem se destacado há alguns anos no cenário gastronômico internacional, ocupando lugares proeminentes nos rankings de melhor profissional da área ou melhor restaurante, e essa visibilidade não se dá apenas pelo resultado palpável, tangível dos seus afazeres, mas pelo que está por trás da sua mente inventiva e capaz. Após assistir o episódio na série Chef’s Table (Netflix) sobre o seu trabalho, é impossível não se encantar com os valores que movem sua busca culinária: a valorização da sua raíz, identidade, ancestralidade, e de itens da flora e fauna tão representativos do Peru, mas pouco utilizados nos menus ditos peruanos. Suas criações são embasadas em pesquisas - sensoriais e científicas, e contam com a parceria da esposa e chef Pía León, e da irmã, Malena Martínez, bióloga e responsável pela Iniciativa Mater - grupo de pesquisa que cataloga os achados nativos dos diferentes biomas do país. A cozinha de Martínez se transforma em um verdadeiro laboratório, onde ele e sua equipe conseguem explorar os territórios peruanos através de ingredientes coletados na enorme biodiversidade local, indo desde a selva amazônica, passando pelo ecossistema marinho, até as paisagens andinas. Com um menu que acompanha a sazonalidade das mudanças climáticas do Peru, e que, por isso, é alterado algumas vezes ao ano, o chef conseguiu reunir pratos que representam a maneira como os andinos enxergam o mundo - em níveis e altitudes diferentes, não na horizontalidade - partindo de ecossistemas da altitude -10 m, com a temática marinha, até 3750 m, em homenagem aos Andes. Para tanto, ele utiliza ingredientes que servem de inspiração tanto para a composição de aromas e sabores quanto para a apresentação do prato, que é cuidadosamente montado para interpretar o referido habitat. Por isso, podem ser encontrados itens mais comuns, como raízes, tubérculos e frutas, mas também alguns desconhecidos, para o qual o paladar não foi previamente educado, como bactérias, seivas, argilas etc, e que surpreendem com essas novas sensações. Até a água é engarrafada na fonte, filtrada, ozonificada e purificada pelo próprio restaurante do chef. A magia dessas descobertas comandadas por Martínez está na maneira como ele mesmo descreve seu trabalho, evidenciando que em uma visita aos seus restaurantes, o comensal não pode estar ali apenas para comer, mas para viver uma experiência, um encontro com a alma do Peru, pois cada prato equivale à vivência de um ecossistema. Com o encantamento provocado pelo supracitado episódio, fui pesquisar na internet imagens, depoimentos, registros dos pratos e elementos que auxiliassem na continuação dessa viagem. Para o estudo de food design, escolhi, do menu “Ecosistemas Mater" , o prato Valle de Árbol (figura 1), que, em 2016, era o segundo no serviço simplificado de 11 passos do restaurante Central (que também possui o serviço completo, com 17 passos). Esse prato corresponde ao ecossistema da altitude 230 m, em homenagem aos vales das Cordilheiras dos Andes, e é composto por três ingredientes chaves: palta , abacate peruano, firme e untuoso; a famosa ají panca , uma pimenta bem típica do país, de sabor moderado e notas frutadas, com coloração vermelho intenso, quase bordô, e que deixa os molhos com uma vivacidade marcante; e paico , uma planta aromática medicinal, conhecida no Brasil como erva-de-santa-maria (aqui, mais popularmente utilizada de maneira farmacológica, e não na culinária). A apresentação é feita em pedaços quebrados de cerâmica, com tonalidades contrastantes aos preparos, e destaca de maneira convidativa o alimento. As porções são feitas para se comer com as mãos (outro ponto importante para vivenciar o ecossistema, como no momento em que se colhe, cheira e degusta o ingrediente in natura), e apresentam três diferentes texturas de palta , sendo um deles coberto com cinzas, um elemento que se sobressai por ser algo inesperado na cozinha. Não consegui encontrar referências aos demais ingredientes que compõem os três sabores, apesar de executar vasta pesquisa, devido à curiosidade que o prato me despertou. Figura 1 - prato Valle de Árbol , do restaurante Central Fonte: https://traveler.marriott.com/lima/tasting-menu-lima-restaurant/ Encontrei também o registro de uma composição semelhante, mas com uma apresentação mais simplificada (figura 2), contando apenas com dois tipos de sabores, e não três, como na figura 1, o que demonstra as alterações que são feitas no cardápio, a partir das pesquisas e investigações do chef e sua equipe. Figura 2 - apresentação mais simples do prato Valle de Árbol , do restaurante Central Fonte: https://abcblogs.abc.es/gastronomia/restaurantes-internacioanles/los-top-de-lima-central-de-virgilio-m artinez.html (2016) Pode-se perceber, através dos registros fotográficos, a preocupação do chef com o aspecto do prato, desde a seleção da cerâmica quebrada, evidenciando como os vales recortam as cordilheiras, até o cuidado e delicadeza na montagem das porções, garantindo um visual limpo e minimalista, mesmo com tantos pequenos detalhes. A contemporaneidade se expressa no uso de microverdes, panc, flores comestíveis, mousses, liofilização de plantas, raízes e frutos, gelificação de líquidos, tamanho das porções, e a criatividade na visão geral. Foi um prato que me encheu os olhos desde o primeiro momento, pela beleza, pela maneira diferenciada de se apresentar, e, depois, pela sua representatividade. Me agradou a estética da composição de cores, os detalhes de cada porção, o tipo de empratamento, e, à primeira vista, não imaginaria nenhum ingrediente muito diferente, considerando apenas o visual - ao contrário de outros pratos que constam no mesmo menu. Com relação ao paladar, pelas poucas avaliações que encontrei falando sobre o Valle de Árbol , em sites como Trip Advisor e blogs de viagem, eleentrega sabores delicados, picantes, mas com a untuosidade marcante da palta , além da inovação trazida pelas cinzas, e foi muito apreciado por quem experimentou. Figura 3 - composição do prato Valle de Árbol , do restaurante Central Fonte: http://tenhofomedequedeque.blogspot.com/2016/04/central.html (2016) Diante das informações restritas que consegui coletar sobre os ingredientes que compõem os “bocaditos”, e sabendo que algumas partes da apresentação não são comestíveis, deixo a minha imaginação fluir para pensar em como realizaria o Valle de Árbol (figura 3). A porção número 1 esboça ser a mais simples de ser executada, pois aparentemente é composta de dois pedaços de palta , temperados com sal, e envoltos em uma fina camada de condimentos naturais. Pela coloração vermelho intenso, a ají panca deve fazer parte da composição, e acredito que as cinzas utilizadas sejam oriundas do huatia , um forno de barro que remonta ao império Inca, e que é replicado no restaurante para assar uma diversidade de batatas. Já a porção número 2 parece ser feita a partir de um tipo de mousse salgada de palta , bem cremosa e estruturada, coberta com algo que se assemelha a um tipo de musgo, e sobre uma nova porção de mousse, estão delicadamente assentados: dois ou mais tipos de flores comestíveis, folhas de paico , e um pedaço de casca ou raiz, todas encontradas nos vales à que o nome do prato se refere. Na porção número 3, não consigo identificar se a base esférica em tom terroso é comestível ou faz parte do suporte para a segunda esfera (digo isso porque, no episódio da série, o apresentador chamou atenção para o fato de algumas estruturas na apresentação não serem comestíveis, mas que são utilizadas para ajudar a compor o cenário do ecossistema representado). Como o foco do prato é a tríade de palta , me concentro na esfera do topo, que aparenta ser uma espécie de creme gelificado, em uma consistência que permita ser boleado, para depois ser passado delicadamente em um mix de flores liofilizadas e levemente trituradas, como um tipo de granulado natural e super colorido. Nota-se que o fato do prato ser singelo não significa ser pouco trabalhoso. Ao contrário, são tantos ínfimos pormenores para deixá-lo com esse aspecto belo e limpo (por exemplo, o pedaço cortado de palta que está verde vivo, e não sujo de tempero nas laterais, ou as esferas se equilibrando perfeitamente) que evidenciam uma característica importante da cozinha contemporânea: tudo deve estar em seu devido lugar para que o prato possa transmitir as sensações corretas, e fazer o comensal vivenciar um pouco do universo que existe na cabeça criativa do chef.
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