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Introdução à Relatividade Restrita e Geral

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Curso: Relatividade 01/2019
Aula 1: 18 de março
Profa. Raissa F. P. Mendes
O nosso curso começa com uma viagem pelos labirintos da Relatividade Restrita, até ajustarmos
a nossa intuição aos novos conceitos que ela nos apresenta. Em seguida, passa pelos terrenos por
vezes áridos da geometria diferencial para obtermos nosso prêmio: um entendimento adequado das
equações de Einstein. Dáı, veremos várias aplicações interessantes da teoria da Relatividade Geral
em astrof́ısica e cosmologia, incluindo buracos negros, estrelas relativ́ısticas e ondas gravitacionais!
1.1 Introdução
Bem vindos ao curso de Relatividade! A Relatividade (Especial e Geral) é uma teoria beĺıssima,
que promoveu uma mudança radical na forma de entendermos conceitos fundamentais como tempo
e espaço. É simplesmente incŕıvel que, cerca de 100 anos atrás, o ser humano tenha descoberto que
a Natureza pode ser descrita da forma que vamos aprender. E os frutos dessa teoria ainda estão
sendo colhidos até hoje: a Relatividade Geral, que é o foco do nosso curso, forma a base para todo
o modelo padrão de astrof́ısica e cosmologia, a base para o entendimento do Universo como um
todo.
Livros recomendados:
• B. Schutz, “A first course in general relativity”
• S. Carroll, “Geometry and Spacetime”
• Misner, Thorne e Wheeler, “Gravitation”
• J. B. Hartle, “Gravity: An Introduction to Einstein’s General Relativity”
• H. Gutfreund, J. Renn, “The Road to Relativity” (sobre a história da Relatividade Geral)
Antes do surgimento da Relatividade, no começo do século XX, havia três grandes áreas na F́ısica,
a Mecânica Clássica (MC), o Eletromagnetismo (EM) e a Termodinâmica. E é no EM que estão as
origens da Relatividade. Na segunda metade do século XIX, começaram a aparecer contradições
entre essas grandes áreas da F́ısica (a cinemática Galileana de um lado e o Eletromagnetismo
de outro), e dáı brotou todo um entendimento novo, na forma da Relatividade Especial (RE, ou
Restrita). E da tensão entre a Gravitação Newtoniana (parte da MC) e a Relatividade Especial
surge a Relatividade Geral (RG). Da mesma forma, de contradições entre EM e Termodinâmica —
radiação de corpo negro! — surge a Mecânica Quântica. RE e MQ dão origem à Teoria Quântica
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de Campos, que é a base do Modelo Padrão da F́ısica de Part́ıculas, que descreve três das quatro
interações fundamentais (eletromagnética, nuclear forte e nuclear fraca). RG e TQC são também
incompat́ıveis: resolver essa contradição é o maior desafio da f́ısica moderna.
1.2 Origens da Relatividade Especial
A Relatividade Especial nasce do Eletromagnetismo, e da sua incompatibilidade com a Mecânica
Clássica. Tanto que o trabalho (publicado em 1905) em que Einstein estabelece as bases da RE
tem o nome “Sobre a Eletrodinâmica dos Corpos em Movimento”. Antes de chegar nele, vamos
começar revisando:
Prinćıpio da Relatividade (Galileu): As leis da mecânica se aplicam em qualquer referencial
inercial.
Ou seja, se aplicam em qualquer referencial em que corpos isolados permanecem em repouso ou em
movimento retiĺıneo e uniforme1. Uma ilustração disso é o fato de que, se colocamos uma mesa de
sinuca em um trem que viaja a velocidade constante, podemos jogar exatamente como se o trem
estivesse parado. Note que o mesmo não vale se houver aceleração: as leis da mecânica não são as
mesmas em referenciais acelerados. Tomemos, por exemplo, a 2a lei de Newton2:
F = ma
Se x→ x′ = x−Vt, ou v→ v′ = v −V (Transformação de Galileu):
m→ m, a→ a′ = a− V̇ = a. Se F = F(x1 − x0), F′ = F.
Ou seja, o lado direito de F = ma é invariante por transformações de Galileu, e o lado esquerdo
também é se, por exemplo, a força só depende da distância relativa entre dois corpos (como a força
1Podemos definir um referencial inercial como aquele em que vale a primeira lei de Newton: em que, na ausência
de forças, um objeto descreve movimento retiĺıneo e uniforme. Uma definição mais abstrata, dada pelo Landau, é
que um referencial é inercial se nele o espaço é homogêneo e isotrópico e o tempo flui homogeneamente. Pense num
ônibus fazendo uma curva: existe um ponto “especial”, o centro da curva, que “repele” todos os passageiros!
2Aqui usamos implicitamente a noção do tempo “absoluto, verdadeiro e matemático” de Newton: ver sec. 1.3.2!
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gravitacional ou a força elástica). E a força de resistência de arraste F = −bv? Ela depende da
velocidade relativa em relação ao ar: v→ (vparticula − var)!
O prinćıpio da relatividade se aplica ao EM?
TG[Eqs. de Maxwell] 6= Eqs. de Maxwell !
Eqs. de Maxwell: válidas em um único referencial inercial ?
À primeira vista não: se aplicamos a transformação de Galileu às equações de Maxwell, obtemos
um conjunto diferente de equações, que possui soluções diferentes. Isso parecia implicar que as
equações de Maxwell, como conhecidas na época, só eram válidas em um referencial espećıfico.
Uma outra forma de chegar a isso é lembrar que muitas equações da eletrodinâmica, começando
com a força de Lorentz, F = q(E + v × B), fazem referência expĺıcita à velocidade da part́ıcula.
Inclusive, o EM prediz uma velocidade c = 1/
√
�0µ0 (onde �0 é a permissividade elétrica e µ0 é a
permeabilidade magnética no vácuo), a velocidade da luz no vácuo, com base em suas constantes
fundamentais. Mas velocidade em relação a que?
A interpretação usual era que a teoria eletromagnética pressuporia a existência de um referencial
estacionário único, chamado “éter”, com relação ao qual todas as velocidades deveriam ser medidas.
E as equações de Maxwell só valeriam nesse referencial.
E então se torna uma questão fundamental determinar a velocidade desse referencial (se não, como
sabemos onde aplicar as equações do EM?). Por exemplo, a Terra se move em torno do Sol
com uma velocidade de aproximadamente 30km/s. Ao longo do movimento orbital, a velocidade
relativa da Terra em relação ao éter deve mudar. Em particular, a velocidade da luz, de 300.000
km/s, seria aquela medida em um referencial em repouso em relação ao éter. Supondo um vento
de éter uniforme, se em um ponto da órbita a Terra está em repouso em relação ao éter, no
ponto diametralmente oposto deveŕıamos observar uma velocidade da luz de 300.060 km/s. Assim,
medindo a velocidade da luz com precisão suficiente, deveŕıamos observar modulações, tanto diárias
quanto anuais, devido ao movimento relativo da Terra em relação ao éter. No entanto, todos os
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experimentos que se propuseram a medir essa mudança na velocidade da luz (o mais famoso sendo
o experimento de Michelson-Morley, de 1887) deram resultados nulos. Isso gerou modelos cada vez
mais complicados para o tal do éter!
Mas Einstein pensou diferente. O que acontece, de fato, quando aplicamos o EM de Maxwell, como
ele é, em diferentes referenciais inerciais? Vamos considerar um exemplo. Imagine uma espira
condutora sobre um trenzinho que se move com velocidade constante ao longo de um trilho. Em
um certo momento, o trem passa entre os pólos de um ı́mã gigante. O que acontece? Do ponto de
vista do referencial da estação, O, existe uma força magnética sobre as cargas da espira, que estão
se movendo. Isso gera uma fem motora E =
∫
(F/q) · dl =
∫
(v × B) · dl que induz uma corrente
quando a espira entra ou sai da região com campo magnético. Quando a espira está toda imersa
no campo uniforme, não há corrente (a força total sobre ela é nula). Note que, no caso ilustrado
abaixo, E = −Bvh.
Por outro lado, o que aconteceria se aplicássemos as mesmas equações de Maxwell no referencial em
movimento? Como o anel está em repouso, v = 0 e não existe força magnética. Mas, à medida que o
ı́mã se move, o campo magnético no trem muda, e a mudança no campo magnético induz um campo
elétrico, pela lei de Faraday. A força elétrica resultantegerará uma fem E =
∫
E · dl = −dΦ/dt,
onde Φ =
∫
B·dA é o fluxo de campo magnético atravessando a espira. No caso ilustrado na figura,
Φ = Bhx e dΦ/dt = Bhv. Logo, E = −Bhv, que é o mesmo resultado obtido anteriormente3!
Veja que a interpretação dos dois observadores é completamente diferente (em um caso a fem é
devida a forças elétricas, em outro a fem é devido a forças magnéticas), mas o observável (a fem
ou a corrente) calculado nos dois casos é o mesmo!! Isso levou Einstein a postular que as leis do
EM devem ser válidas, da forma escrita por Maxwell, em qualquer referencial inercial. Como as
equações de Maxwell não são invariantes por transformações de Galileu, a conclusão é que elas é
que devem ser alteradas, junto com toda a cinemática clássica! Em outras palavras: as leis do EM
se aplicam sim em qualquer referencial inercial, mas a transformação entre referenciais inerciais
não é dada pela transformação de Galileu. De fato, a transformação de Galileu, vAC = vAB + vBC
será substitúıda por vAC = (vAB + vBC)/(1 + vABvBC/c
2). Se vAB � c e vBC � c, isso se reduz à
transformação de Galileu. Mas para velocidades mais próximas à da luz, tudo muda. Em particular,
se vAB = c, automaticamente vAC = c.
Vejamos como Einstein formula o problema em seu artigo de 1905:
3Para uma demonstração mais geral, ver a sec. 7.1.3 do Griffiths
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“Sabe-se que a eletrodinâmica de Maxwell, quando aplicada a corpos em movimento, leva a as-
simetrias que não parecem inerentes aos fenômenos. Tome, por exemplo, a ação eletrodinâmica
rećıproca de um ı́mã e um condutor. O fenômeno observável aqui depende só do movimento relativo
do condutor e do ı́mã, ao passo que a visão usual traça uma distinção profunda entre os casos em
que um ou o outro corpo está em movimento. Pois, se o ı́mã está em movimento e o condutor
em repouso, aparece na vizinhança do ı́mã um campo elétrico com uma certa energia bem definida,
produzindo uma corrente onde o condutor está situado. Mas se o ı́mã está em repouso e o condutor
em movimento, nenhum campo elétrico aparece na vizinhança do ı́mã. No condutor, porém, encon-
tramos uma força eletromotriz, que não possui energia correspondente por si só, mas que dá origem
a correntes elétricas idênticas em posição e intensidade àquelas produzidas pelas forças elétricas no
primeiro caso.
Exemplos desse tipo, junto com buscas mal sucedidas para descobrir qualquer movimento da terra
com respeito ao meio lumińıfero, sugerem que os fenômenos da eletrodinâmica, como aqueles da
mecânica, não possuem propriedades correspondentes à ideia de repouso absoluto. Eles sugerem
(...) que as mesmas leis da eletrodinâmica e da ótica serão válidas em todos os referenciais em
que as equações da mecânica são verdadeiras. Nós vamos elevar essa conjectura (que chamaremos
daqui em diante “prinćıpio da relatividade”) ao status de um postulado, e também introduzir outro
postulado, que é irreconciliável com o primeiro apenas em aparência, que a luz sempre se propaga
no espaço livre com uma velocidade bem definida c que é independente do estado de movimento do
corpo emissor. Esses dois postulados são suficientes para se obter uma teoria simples e consistente
da eletrodinâmica dos corpos em movimento baseada na teoria de Maxwell para corpos estacionários.
A introdução de um éter lumińıfero se provará supérflua, uma vez que a visão desenvolvida aqui
não requerirá um “espaço estacionário absoluto” dotado de propriedades particulares (...)”
Postulados da Relatividade Restrita:
• Prinćıpio da relatividade (P1): As leis da f́ısica se aplicam em qualquer referencial inercial.
Ou: nenhum experimento pode medir a velocidade absoluta de um observador.
• Universalidade da velocidade da luz (P2): A velocidade da luz relativa a qualquer obser-
vador não acelerado é c = 3× 108m/s, independentemente do movimento da fonte de luz
relativa ao observador.
Note que, se assumimos que as equações de Maxwell são as mesmas em todos os referenciais inerciais,
somos forçados ao segundo postulado!
Na próxima aula, vamos ver mais formalmente as consequências desses postulados e como eles
levam a uma noção de geometria do espaço-tempo. Mas vamos já discutir uma das principais
consequências f́ısicas desse postulado, que é a quebra da noção de simultaneidade.
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1.3 Relatividade da simultaneidade
1.3.1 Experimento mental
Situação: trem viajando a velocidade constante. No centro, há uma lâmpada. Em um certo
momento, o interruptor é ligado e a luz se propaga até atingir as extremidades do trem.
Como a lâmpada é equidistante das duas extremidades, um observador no trem vai julgar que a
luz chega nas duas extremidades ao mesmo tempo e vai dizer que os dois eventos – (a) a luz chega
na extremidade dianteira e (b) a luz chega na extremidade traseira – são simultâneos.
Mas, para um observador na estação, esses eventos não são simultâneos. Se L é o comprimento do
vagão (como medido pelo observador na estação) e v é a sua velocidade, o tempo que a luz demora
para chegar na extremidade dianteira é (L/2)/(c − v) ao passo que demora (L/2)/(c + v) para
chegar na extremidade traseira. Esse observador dirá que o evento (b) acontece antes do evento
(a). Conclusão:
Dois eventos que são simultâneos em um referencial inercial não são, em geral, simultâneos em
outro.
Um outro exemplo parecido: três observadores, A, B e O viajam num foguete de comprimento L,
sendo que O está a meio caminho entre A e B. A e B emitem um pulso de luz em direção a O, e
O recebe os dois sinais simultaneamente. Que sinal foi emitido primeiro? A resposta depende do
referencial. No referencial inercial em que o foguete está em repouso, um observador dirá que os
dois pulsos foram emitidos simultaneamente, pois se propagaram pela mesma distância e chegaram
ao mesmo tempo em O. Mas num referencial em que of foguete está se movendo, um observador
raciocina assim: “Os sinais foram recebidos simultaneamente em O. Quando os pulsos foram
emitidos, B estava sempre mais próximo da posição de recepção de O que A. Como os dois sinais
viajam com velocidade c, A precisa ter emitido seu pulso antes de B para que os dois chegassem
ao mesmo tempo em O.”
Está claro como isso não aconteceria se o nosso pensamento fosse Galileano? Se a luz tivesse
velocidade c com relação ao ‘éter’ e se o éter fosse carregado pelo foguete, o pulso de A viajaria com
velocidade c+ v e o pulso de B viajaria com velocidade c− v com relação a um observador externo
ao foguete (sendo v a velocidade do foguete nesse referencial). Dáı, para A, (c + v)t = L/2 + vt e
t = L/(2c). Para B, (c− v)t = L/2− vt e t = L/(2c). Os eventos de emissão seriam simultâneos.
(Isso é o que acontece se substitúımos a luz por uma bala!)
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Obs.: Não se trata de uma falha na observação. Uma criança que ouve um trovão e vê um raio
pode inferir que a fonte da luz não foi simultânea à fonte do som. Mas esse é um erro trivial –
claramente precisamos levar em conta a velocidade de propagação de cada sinal.
1.3.2 Reflexão
Pela discussão anterior sobre simulteneidade, não há razão para aceitar a hipótese Newtoniana de
que o tempo em referenciais diferentes será o mesmo. Haverá, em geral, uma noção diferente de
tempo e simultaneidade para cada referencial inercial. Por isso dotaremos referenciais inerciais de
um sistema de quatro coordenadas, (t, x, y, z).
A ideia Newtoniana de tempo é de um tempo absoluto: “O tempo absoluto, verdadeiro e ma-
temático, por sua própria natureza, flui uniformemente sem relação a nada externo”. Se lançamos
um projétil com um relógio acoplado a ele, esse relógio bate da mesma forma que o que está no meu
pulso. Um segundo nesse relógio corresponde a um segundo para o universo. O tempo registrado
por um observador não depende da velocidadeou da posição daquele observador. Embora isso
pareça bastante natural, não é uma necessidade lógica. Em RE, vamos aprender que existe uma
noção absoluta de espaço-tempo e que cada observador inercial divide esse espaço-tempo em noções
separadas de espaço tridimensional e tempo unidimensional. Essa separação é diferente em cada
referencial inercial, mas existe uma noção absoluta de espaço-tempo que independe do observador.
Em RG, vamos aprender que tempo e espaço dependem também da posição relativa a um campo
gravitacional.
1.4 Diagramas espaço-temporais
Vamos introduzir uma ferramenta que é tão simples que parece trivial, mas que é bastante poderosa
em moldar a nossa intuição: a ideia de diagramas espaço-temporais. Como um quadro só tem duas
dimensões, faremos um gráfico de dois dos eixos de coordenadas do espaço-tempo de acordo com
um certo observador inercial. Estamos desenhando seções do espaço-tempo da mesma forma que o
plano x-y é um corte do espaço tridimensional.
O espaço-tempo em RE vai ser como a arena onde a f́ısica acontece: part́ıculas se movem, colidem,
campos se propagam, etc. Ele mesmo permanece inalterado. E, a partir da próxima aula, nós
vamos começar a estudar a geometria desse espaço-tempo. Na RG, a situação é mais dramática,
uma vez que em RG o próprio espaço-tempo é dinâmico: “Ao invés de pensar no espaço e no
tempo como um estágio, onde o drama da matéria se desenrola, precisamos imaginar um teatro
ultramoderno, em que o próprio estágio se torna um dos atores” (Einstein).
Um ponto no espaço-tempo é chamado evento: é algo que acontece num certo instante e num certo
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lugar. O espaço-tempo é uma coleção desses eventos. Por exemplo, uma supernova que explodiu em
1054 na nebulosa de Crab (de modo mais idealizado, a explosão instantânea de um rojão pontual).
Um evento é caracterizado pelas coordenadas (tP , xP , yP , zP ), num certo referencial inercial. Para
que todas as nossas coordenadas tenham as mesmas unidades, e para tornar mais expĺıcito o papel
da velocidade da luz na construção da Relatividade, adotaremos ct em vez de t: (ctP , xP , yP , zP ).
A trajetória de uma part́ıcula pontual é descrita por uma sucessão de eventos: uma part́ıcula
descreve uma curva no espaço-tempo. Essa curva é chamada linha de mundo. A tangente à
linha de mundo nos dá d(ct)/dx = cdt/dx = c/V x. Velocidade nula corresponde a uma tangente
infinita. A velocidade da luz corresponde a uma tangente unitária, ou seja, um ângulo de 45o.
Duas part́ıculas colidindo seriam representadas por curvas que se interceptam. A trajetória de uma
régua seria uma superf́ıcie no espaço-tempo, e assim por diante.
Esse diagrama é nossa imagem de um referencial inercial. Note que podemos pensar num referencial
como um sistema de aquisição de informações. Podemos pensar que em cada ponto do espaço (no
caso, da linha), temos um observador em repouso, que carrega um relógio. Esses observadores
atribuem a cada evento um rótulo: quatro números ou coordenadas. “Observar” um evento consiste
em registrar essas quatro coordenadas (por um observador que intercepta o evento!).
1.5 Sincronização de relógios
É importante que todos esses relógios4 estejam sincronizados, que em um certo instante todos eles
marquem o mesmo valor. Como podemos fazer isso? O que eu não quero é o seguinte: “Para
4Um relógio é um sistema dinâmico projetado para que uma função das suas variáveis dinâmicas seja o tempo
(como dado pelo relógio). A função é tal que dada a descrição teórica do relógio em termos da teoria dinâmica, sua
evolução seja linear no parâmetro de evolução: t(λ) = aλ+ b. Por exemplo, uma realização dessa ideia é um sistema
oscilatório feito de materiais que não deterioram. Ver pgs. 23–29 e 395–399 do Gravitation para uma discussão sobre
relógios ideais!
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sincronizar meu relógio com o da Amanda, eu corro até ela, sincronizo os relógios, e volto para a
minha posição”. Nós vamos assumir que “relógios honestos” marcam intervalos idênticos quando
sujeitos às mesmas condições (independente da sua história pregressa). Mas não queremos assumir
que relógios com linhas de mundo diferentes entre P e Q marquem o mesmo intervalo de tempo
entre esses dois eventos. A RE vai nos mostrar que isso não ocorre!
Uma outra ideia seria usar um sinal luminoso para fazer a sincronização. Em t = 0 eu mando um
sinal de luz para a Amanda. Quando ela recebe o sinal, ela sabe que deve colocar o relógio dela
para marcar 0 mais o tempo que a luz demorou para chegar até ela, que é d/c, onde d é a distância
conhecida entre nós. Outra forma: colocamos uma fonte de luz exatamente no meio da distância
entre nós e quando recebermos o sinal, marcamos 0, por exemplo, nos relógios.
A forma que vamos usar é a seguinte. Considere dois observadores, A e B, em repouso entre si. A
envia um feixe de luz para B em t = 0, que é refletido por B e retorna a A. A mede então o tempo
entre o instante da emissão e o instante da recepção. Digamos, ct = 12 m. Primeira pergunta: com
isso, podemos determinar a distância até B? Sim, a distância é ct/2, ou 6 m. (Esse é o prinćıpio
de funcionamento do radar! Se eu quero saber a distância até um avião, não uso réguas, mas
exatamente esse esquema.) Agora, como podemos usar isso para sincronizar os relógios de A e B?
É fácil. Como A e B estão em repouso, a distância entre eles é fixa e o tempo de ida do sinal é o
mesmo tempo do retorno. Logo, B deve ter recebido o sinal no instante ct = 6 m. Então depois de
terminado o experimento A grita: “Ei B, o instante P ′ em que você recebeu o sinal deveria marcar
ct = 6 m”. Então B vai nos seus registros e vê que no relógio dele aquele instante tinha sido,
digamos, ctP ′ = 10 m. Então ele subtrai 4 do tempo de todos os seus registros. Os relógios estão
sincronizados. Se fizéssemos esse experimento com outros observadores em repouso em relação a A
e B, podeŕıamos determinar todos os eventos simultâneos a P e P ′, ou seja, todos os eventos com
ct = 6 m. Naturalmente, o lugar geométrico de todos esses eventos é uma reta paralela ao eixo-x.
A situação fica interessante quando olhamos esse procedimento a partir do ponto de vista de outro
referencial inercial O′. Em particular, vamos considerar um referencial com velocidade relativa −v
em relação a A e B, de modo que as linhas de mundo de A e B, nesse referencial, são retas com
inclinação c/v, como ilustrado na figura mais abaixo. Como o procedimento de sincronização dos
relógios de A e B é visto nesse referencial? O passo crucial é lembrarmos que, pelo prinćıpio P2, a
velocidade da luz é a mesma em todos os referenciais.
Aula 1: 18 de março 1-10
Temos então que, no instante tA = 0, A emite um pulso de luz, que é refletido por B e retorna a A.
Agora, do ponto de vista de O′, A é uma fonte em movimento e o postulado P2 diz que a velocidade
da luz é c independente do movimento da fonte. Então a linha de mundo do sinal emitido por A
é inclinada de 45o, também no referencial O′. O mesmo ocorre para o raio de luz refletido por B.
Como resultado do procedimento realizado, A e B chegaram à conclusão de que os eventos P e P ′
são simultâneos. Mas O′ observa o evento P acontecendo antes de P ′! Eventos simultâneos em um
referencial não são simultâneos em outro. A noção de simultaneidade depende do observador.
Isso é super radical. Super bonito. E vamos ver muitas consequências disso. Por enquanto, é
importante entender as implicações disso para a construção do “eixo-x” de O em relação a O′, ou
seja, como as “superf́ıcies de simultaneidade” ou os lugares geométricos dos eventos simultâneos
em um referencial são vistos de acordo com outro. Com o procedimento de sincronização realizado
por A e B, eles determinaram que os eventos P e P ′ são simultâneos nesse referencial.Repetindo
esse procedimento com outros observadores em repouso em relação a A e B, poderiam determinar
o conjunto de todos os eventos com ct = 6 m. Convença-se de que, na perspectiva de O′, o
lugar geométrico desses eventos é a reta indicada em vermelho na figura! O eixo-x, que é o lugar
geométrico dos eventos simultâneos ao evento t = 0, seria paralelo a essa reta. Vejam que o ângulo
θ é igual5 a φ e tal que tan θ = v/c!
As figuras (a) e (b) à direita mostram os eixos t e x de um referencial inercial, vistos a partir de
outro. Começamos a ver algo estranho! A geometria nesse diagrama não é a geometria Euclideana
comum. Na próxima aula, vamos falar sobre essa nova geometria!
Para casa: Ler até sec. 1.5 do Schutz. Se convencer dos diagramas mostrados por último! Na
lista 1, fazer os itens (a)-(c) e (l) da questão 1.
Leitura adicional: Notas de aula do Geroch sobre relógios ideias, dispońıveis na página da disci-
plina.
5Que os três lados indicados são iguais pode ser visto pelo fato de que um triângulo retângulo pode ser inscrito
numa circunferência, sendo um dos lados o diâmetro dela.
1-11
	Introdução
	Origens da Relatividade Especial
	Relatividade da simultaneidade
	Experimento mental
	Reflexão
	Diagramas espaço-temporais
	Sincronização de relógios

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