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Autora: Profa. Maria Eleonora Feracin da Silva Picoli Colaboradores: Profa. Thiago Macrini Profa. Laura Cristina da Cruz Dominciano Microbiologia, Imunologia e Parasitologia Professora conteudista: Maria Eleonora Feracin da Silva Picoli Graduou-se em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 1999, concluiu o mestrado em Biologia Funcional e Molecular na área de Bioquímica, pela mesma universidade, no ano de 2002 e obteve o título de doutora em Biologia Funcional e Molecular, em 2004, também pela Unicamp. Foi docente no curso de Ciências Biológicas e tutora no curso de Bioquímica da Nutrição, oferecido na modalidade de educação a distância (EaD) pelo Departamento de Bioquímica do Instituto de Biologia da Unicamp. Ingressou na Universidade Paulista – UNIP/Campinas no ano de 2002, na qual atua até hoje como docente titular da disciplina de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia dos cursos de Enfermagem, Farmácia, Nutrição, Odontologia e Medicina Veterinária. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) P598m Picoli, Maria Eleonora Feracin da Silva. Microbiologia, Imunologia, Parasitologia. / Maria Eleonora Feracin da Silva. – São Paulo: Editora Sol, 2020. 136 p., il Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Microbiologia. 2. Imunologia. 3. Parasitologia. I. Título. CDU 576.8 U504.12 – 20 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Ana Luiza Fazzio Juliana Mendes Sumário Microbiologia, Imunologia e Parasitologia APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 INTRODUÇÃO AO ESTUDO DOS MICRORGANISMOS ...........................................................................9 1.1 Como os microrganismos são estudados ................................................................................... 11 1.2 Conceitos importantes em microbiologia .................................................................................. 14 1.3 A célula procarionte ............................................................................................................................ 15 1.4 Estruturas e apêndices bacterianos .............................................................................................. 17 1.4.1 Parede celular ........................................................................................................................................... 17 1.4.2 Fímbrias ....................................................................................................................................................... 19 1.4.3 Flagelos ....................................................................................................................................................... 20 1.4.4 Cápsula ........................................................................................................................................................ 21 1.4.5 Esporos ........................................................................................................................................................ 22 2 METABOLISMO, REPRODUÇÃO E CRESCIMENTO BACTERIANO .................................................... 24 2.1 Metabolismo bacteriano.................................................................................................................... 25 2.2 Genética e reprodução bacteriana ................................................................................................ 28 2.2.1 Fissão binária transversal ..................................................................................................................... 29 2.3 Aquisição da variabilidade genética ............................................................................................. 30 2.3.1 Conjugação ............................................................................................................................................... 31 2.3.2 Transformação ......................................................................................................................................... 33 2.3.3 Transdução ................................................................................................................................................. 34 2.4 Resistência bacteriana........................................................................................................................ 35 2.5 Fatores que interferem no crescimento bacteriano ............................................................... 36 2.5.1 Nutrientes .................................................................................................................................................. 36 2.5.2 Temperatura ............................................................................................................................................. 37 2.5.3 Oxigênio ...................................................................................................................................................... 38 2.5.4 Pressão osmótica .................................................................................................................................... 39 2.5.5 Potencial hidrogeniônico (pH) ........................................................................................................... 40 2.5.6 Métodos de controle do crescimento bacteriano...................................................................... 40 3 INTRODUÇÃO À MICOLOGIA E VIROLOGIA ........................................................................................... 41 3.1 Fungos ....................................................................................................................................................... 41 3.2 Vírus ........................................................................................................................................................... 45 4 INTRODUÇÃO À PARASITOLOGIA E PRINCIPAIS PARASITAS CAUSADORES DE DOENÇAS EM HUMANOS ................................................................................................................................ 50 4.1 Introdução à parasitologia ............................................................................................................... 50 4.1.1 Tipos de parasitas .................................................................................................................................... 51 4.1.2 Vetores .........................................................................................................................................................52 4.2 PRINCIPAIS PARASITAS CAUSADORES DE DOENÇAS EM HUMANOS ............................. 52 4.2.1 Protozoa ..................................................................................................................................................... 52 4.3 Helmintos ................................................................................................................................................ 61 4.3.1 Nematoda .................................................................................................................................................. 62 4.4 Filo Platyhelminthes .......................................................................................................................... 66 4.4.1 Cestoides .................................................................................................................................................... 67 4.4.2 Trematoda .................................................................................................................................................. 69 4.5 Artrópodes............................................................................................................................................... 72 Unidade II 5 O SISTEMA IMUNOLÓGICO E SEUS CONSTITUINTES ......................................................................... 85 5.1 Conceitos gerais .................................................................................................................................... 85 5.2 Órgãos e tecidos linfoides ................................................................................................................. 88 5.2.1 Órgãos linfoides centrais ..................................................................................................................... 89 5.2.2 Órgãos linfoides periféricos ................................................................................................................ 92 6 CÉLULAS QUE PARTICIPAM DA RESPOSTA IMUNE ............................................................................ 92 6.1 Células apresentadoras de antígeno ............................................................................................ 93 6.2 Linfócitos ................................................................................................................................................. 94 6.2.1 Linfócito B .................................................................................................................................................. 94 6.2.2 Linfócito T .................................................................................................................................................. 96 6.2.3 Células NK .................................................................................................................................................. 97 6.3 Granulócitos ........................................................................................................................................... 97 7 RESPOSTA IMUNE INATA ............................................................................................................................100 7.1 Elementos e mecanismos de ação ...............................................................................................100 8 RESPOSTA IMUNE ADAPTATIVA ...............................................................................................................104 8.1 Elementos e mecanismos de ação ...............................................................................................105 8.2 Resposta imune celular....................................................................................................................107 8.3 Resposta imune humoral ................................................................................................................110 8.4 Reações de hipersensibilidade ......................................................................................................113 7 APRESENTAÇÃO A microbiologia, a imunologia e a parasitologia são áreas intimamente ligadas. Partindo deste princípio, elaboramos este material para que os alunos possam aprender sobre a forma como os patógenos atacam (microbiologia e parasitologia) e os hospedeiros se defendem (imunologia). Além disto, esta disciplina tem como objetivo a aquisição de conceitos básicos dessas áreas a fim de capacitar o aluno a compreender e a relacionar os conhecimentos específicos em sua área de atuação, bem como desenvolver o raciocínio crítico adequadamente. O domínio desses três tópicos é essencial por diferentes motivos. Pensando na área de microbiologia, podemos falar que saber quais fatores são capazes de inibir o crescimento bacteriano é essencial para impedir o desenvolvimento de bactérias em determinados materiais. INTRODUÇÃO “Menino, tire essa mão suja da boca! Ela está cheia de germes!” Quem nunca escutou essa frase quando era criança? Pois bem, sua mãe não estava errada. Os microrganismos – vírus, fungos, bactérias ou parasitas – estão por toda parte e tentam, de diversas maneiras, colonizar um organismo vivo. A fim de evitar essa invasão indesejada, temos o nosso sistema imune, que, por sua vez, tentará defender o hospedeiro e barrar a ocupação dos patógenos. Sendo assim, este livro-texto tem como objetivo apresentar as principais estratégias desenvolvidas pelos patógenos para causar uma doença e as formas como nosso sistema imunológico neutraliza essas ações. Para isso, iniciaremos nossos estudos pelas bactérias, fungos e vírus – os três principais patógenos causadores de doenças no ser humano. Estudaremos as principais características de cada grupo, as estratégias desenvolvidas para se reproduzir e colonizar o nosso organismo e como podemos controlar o seu crescimento. Aprenderemos sobre o nosso sistema imunológico e a maneira como ele neutraliza a ação dos patógenos. Analisaremos as células envolvidas na resposta imune e o modo pelo qual elas, também, neutralizam os patógenos. Finalmente, estudaremos os parasitas, os protozoários e os vermes, além de suas principais características e doenças causadas. Esperamos que após o término não apenas do livro-texto, mas da disciplina como um todo, se perceba a importância de conhecer esses microrganismos para o dia a dia do futuro profissional. Boa leitura! 9 MICROBIOLOGIA, IMUNOLOGIA E PARASITOLOGIA Unidade I 1 INTRODUÇÃO AO ESTUDO DOS MICRORGANISMOS A Microbiologia, como o próprio nome diz, é a ciência responsável pelo estudo dos organismos microscópicos, ou seja, aqueles que só podem ser estudados através dos microscópios. Dois tipos de microrganismos são explorados pela Microbiologia: as partículas infecciosas ou microrganismos acelulares – que incluem os vírus e os príons – e os microrganismos celulares pelos quais encontramos os procariontes (arqueanas e bactérias) e os eucariontes (algas, protozoários e fungos). Apesar de sempre se desconfiar da existência desses seres diminutos, que estão espalhados por toda parte, somente em 1674, quando o alemão Antony van Leeuwenhoek desenvolveu o primeiro microscópio do mundo, é que a presença desses pequenos seres foi comprovada. A figura a seguir mostra como era o artefato desenvolvido por Leeuwenhoek. Figura 1 – Leeuwenhoek e seu primeiro microscópio Saiba mais Para um estudo mais aprofundado acerca de Antony van Leeuwenhoek e a invenção do microscópio, leia: ANTONY van Leeuwenhoek: inventor do microscópio. Jornal Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial, Rio de Janeiro, v. 45, n. 2, abr. 2009. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S1676-24442009000200001&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 13 jul. 2016. 10 Unidade I Porém, o “pai” da Microbiologia é o francês Louis Pasteur, que, por intermédio de diversos trabalhos, explicou a presença dos microrganismos no ar e atribuiu a eles o papel de contaminação de diferentes meios.Graças aos experimentos desenvolvidos por Pasteur, é que outros médicos e pesquisadores puderam alertar a população sobre o desempenho dos microrganismos no desenvolvimento das doenças. Em meados de 1860, outro médico, que também concordava com os conceitos de Pasteur sobre a presença dos microrganismos no ambiente e o seu papel na contaminação, desenvolveu um método de desinfecção para campo operatório com o objetivo de reduzir os processos infecciosos. As ideias do Dr. Joseph Lister, embora excêntricas para a época, ajudaram a salvar muitas vidas, e seus princípios são utilizados até hoje em ambientes hospitalares. No entanto, a comprovação de que os microrganismos eram os grandes responsáveis pelos processos infecciosos só veio em 1876 com os Postulados de Koch. O médico alemão Robert Koch afirmou, em seu primeiro postulado, que existia uma interação envolvendo o patógeno e o seu hospedeiro doente. No segundo postulado, Koch afirmava que esse patógeno poderia ser isolado em meio de cultura nutritiva para ter todas as suas características estudadas. Já no terceiro postulado, o médico declarava que o patógeno isolado em meio de cultura causaria a reprodução dos sintomas se fosse inoculado em uma planta sadia. Finalmente, no quarto e último postulado, Koch confirmava que, ao ser isolado novamente, o patógeno manteria as mesmas características de quando foi isolado anteriormente. Não poderíamos deixar de citar Alexander Fleming — médico escocês responsável pela descoberta do primeiro antibiótico, a penicilina. Fleming era muito preocupado com o estudo das defesas do organismo contra as infecções microbianas quando, em 1928, ao analisar colônias de Staphylococcus, percebeu que essas bactérias tinham o seu crescimento inibido pela presença do fungo do gênero Penicillium. Estava iniciada a era dos antibióticos. Colônia de Penicillium Área de inibição do crescimento bacteriano Colônia de bactéria normal Figura 2 – À esquerda, Alexander Fleming em seu laboratório; à direita, meio de cultura com colônias bacterianas e fúngicas 11 MICROBIOLOGIA, IMUNOLOGIA E PARASITOLOGIA Saiba mais A fim de saber mais sobre a vida e as contribuições de Alexandre Fleming para a ciência, leia: ALEXANDER Fleming e a descoberta da penicilina. Jornal Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial, Rio de Janeiro, v. 45, n. 5, out. 2009. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid= S1676-24442009000500001&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 13 jul. 2016. De lá para cá, muita coisa mudou. Novas formas de estudos dos microrganismos foram desenvolvidas, outras estratégias de desinfecção foram aplicadas em diferentes áreas da saúde e a batalha contra esses pequenos seres se tornou cada vez mais acirrada devido ao desenvolvimento da resistência aos antimicrobianos. 1.1 Como os microrganismos são estudados Apesar de a presença dos microrganismos no corpo humano como agentes causadores de doenças sempre despertar o interesse de muitos estudiosos, não se deve esquecer que esses seres são encontrados em praticamente todos os ambientes chamados de naturais em populações mistas, ou seja, diferentes grupos de microrganismos coabitam determinado nicho. Embora, em termos ecológicos, essa interação seja de extrema relevância para a manutenção do ambiente, em laboratório é preciso que esses microrganismos sejam separados e isolados para o estudo. Sendo assim, em laboratórios eles são colocados em culturas puras, isto é, uma única espécie de microrganismo (fungo, bactéria ou partícula viral) é colocada em um meio nutritivo apropriado para que seu crescimento seja estimulado. Mas o que é o meio de cultura? São preparações feitas de um material nutritivo, que permite o cultivo artificial de microrganismos em laboratórios. Para que cada microrganismo seja cultivado, prepara-se um meio de cultura específico que atenda a todos os requisitos nutricionais desse microrganismo. Chamamos de meios enriquecidos aqueles meios que favorecem o crescimento e a reprodução de um ou mais microrganismos de interesse, por isso são os mais utilizados em laboratórios de microbiologia médica e de alimentos. Observação Algumas vezes é necessário o isolamento de um tipo específico de microrganismo encontrado em uma população mista. Neste caso, faz-se uso dos chamados meios seletivos capazes de estimular o crescimento de um tipo de microrganismo e inibir o crescimento de outros por meio do uso de antibióticos específicos, corante e sais biliares. 12 Unidade I Assim, o meio de cultura nos permite conseguir, de forma artificial, uma grande concentração de microrganismos e, desta forma, a realização de estudos bioquímicos, morfológicos e farmacológicos desses seres vivos. A caracterização morfológica ainda é a principal forma de identificação de vários seres vivos. Por serem organismos de dimensões reduzidas, os microrganismos não são detectados individualmente pelo olho humano, logo, para o estudo desses seres se utiliza obrigatoriamente o microscópio. Os microscópios são um conjunto de lentes e condensadores que aumentam em até 1,2 mil vezes o tamanho de uma célula de forma a permitir a distinção dos detalhes de determinadas estruturas. Para o estudo de microrganismos, são utilizados os microscópios de campo claro, mas ainda é necessário o uso de corantes que permitem a diferenciação de grupos químicos isolados e/ou associados. Ocular Objetivas Platina Condensador Figura 3 – Representação esquemática de um microscópio óptico de luz O primeiro passo para esse estudo é o preparo de um esfregaço, ou seja, os microrganismos da amostra de interesse são colocados de forma concentrada em uma lâmina. Essa amostra pode ser proveniente tanto de um meio de cultura como do ambiente. Antes de se iniciar o processo de coloração, deve-se fixar o microrganismo na lâmina para evitar que ele seja perdido durante o processo de coloração. Embora existam diferentes técnicas de fixação, a realizada pelo calor ainda é a mais utilizada em laboratórios. O passo seguinte é a coloração. Chamamos de coloração simples aquela que usa um único tipo de corante e permite apenas a constatação da presença do microrganismo. Neste sentido, muitas vezes, utiliza-se a coloração diferencial cujo uso de corantes contrastantes (dois ou mais) permite não apenas a identificação qualitativa do microrganismo, mas também a diferenciação de grupos distintos de 13 MICROBIOLOGIA, IMUNOLOGIA E PARASITOLOGIA microrganismos, em especial de bactérias. A coloração diferencial também possibilita a visualização de estruturas particulares de grupos de bactérias. No estudo das bactérias, a principal técnica utilizada é a coloração de Gram. Desenvolvida em 1884 pelo médico Hans Christian Gram, a técnica de Gram – como ficou conhecida – permite a identificação e a diferenciação de dois grupos de bactérias: as Gram+ (Gram-positivas) e as Gram- (Gram-negativas). Esses grupos se diferenciam pela composição de sua parede celular, que será discutida mais adiante. Ademais, a técnica viabiliza a identificação morfológica da bactéria e o acompanhamento do isolamento de uma amostra, além de auxiliar na escolha do melhor tipo de antibiótico a ser prescrito no tratamento. A figura a seguir mostra de forma esquemática os passos para a coloração de Gram. Gram-positivas (G+) Gram-negativa (G–) Fixação Cristal de violeta Lugol Descoloração Fucsina ou safranina Bastonete (gram-positivo) Cocos (gram-positivos) Vibrião (gram-negativo) Figura 4 – Representação esquemática mostrando os passos para a coloração de Gram. O lugol (iodo) faz o papel de mordente, a descoloração é feita com álcool e acetona, e a fucsina ou safranina exerce o papel de contracorante. Micrografia comparando uma bactéria Gram-positiva e uma Gram-negativa. Em roxo/azul temos as bactérias Gram-positivas e em rosa/magenta as bactérias Gram-negativas Outras técnicas de coloração permitem, ainda, identificar estruturas específicasdo microrganismo, como a presença de flagelos, cápsulas e endósporo, e são aplicadas conforme a necessidade do estudo. 14 Unidade I Os testes bioquímicos também são amplamente utilizados na identificação de microrganismos — em especial as bactérias — e aplicados em associação às colorações simples ou diferenciais para a prova definitiva na identificação de microrganismos devido ao fato de que as propriedades metabólicas são específicas para cada grupo. Os testes bioquímicos são divididos em dois grupos: tipos de metabolismo e atividade enzimática. Esses testes são expressos, na maioria das vezes, como positivo ou negativo, e o resultado gerado será comparado às características já descritas na literatura. 1.2 Conceitos importantes em microbiologia Embora existam muitos microrganismos benéficos para o homem, o estudo desses seres vivos – em especial das bactérias, fungos e vírus – tem como objetivo entender as doenças que eles provocam, suas formas de disseminação e controle. Com a intensificação desses estudos e o desenvolvimento de técnicas laboratoriais mais precisas e eficientes, observou-se que, na verdade, esse mecanismo é mais complexo do que se pensava, já que um mesmo microrganismo pode ocasionar mais de um tipo de doença (exemplo: Staphylococcus aureus – provoca amidalite, endocardite e piodermite) e muitos microrganismos podem causar o mesmo tipo de doença (exemplo: pneumonias virais, bacterianas e fúngicas). A relação entre um microrganismo e seu hospedeiro nem sempre resulta em desenvolvimento da doença; pode ser que ocorra uma interação temporária ou ainda uma relação simbiótica de longo prazo, já que o corpo humano se adaptou ao longo do tempo à presença de microrganismo em determinados tecidos, e as infecções só acontecerão quando um desses microrganismos se deslocar para um ambiente até então estéril, como o pulmão e o coração. Chamamos de microbiota comensal (microbiota normal ou ainda microbiota endógena) um grupo de microrganismos que coloniza diversas regiões do corpo humano, como a pele e os tratos genitouretral e intestinal de um hospedeiro. Essa microbiota pode colonizar temporariamente ou permanentemente seu hospedeiro sem interferir no funcionamento normal desse organismo, aliás, tais microrganismos têm um papel importante na sobrevivência do seu hospedeiro por contribuírem no metabolismo de alguns produtos alimentícios, auxiliarem na produção de vitaminas e fatores de crescimento, além de defenderem seu hospedeiro de outros microrganismos de alta virulência. Observação Comensalismo é uma relação biológica em que um organismo é beneficiado e o outro não é afetado pela relação. Porém, alguns desses microrganismos interagem com seu hospedeiro de forma a alterar a fisiologia normal do organismo, desencadeando um processo patológico que causa danos teciduais por consequência da ação direta de fatores microbianos e/ou da própria resposta imune do hospedeiro. Chamamos de patógeno aquele microrganismo causador de doença, enquanto os não patogênicos são incapazes de desencadear a doença, pelo contrário, a maioria deles é benéfica para o seu hospedeiro. 15 MICROBIOLOGIA, IMUNOLOGIA E PARASITOLOGIA Poucos microrganismos são considerados patógenos estritos, ou seja, obrigatoriamente acarretam doença ao seu hospedeiro. Dentre eles, podemos citar: • Mycobacterium tuberculosis: agente causador da tuberculose. • Neisseria meningitidis e Neisseria gonorrhoeae: causadoras, respectivamente, da meningite meningocócica e da gonorreia. • Vírus da dengue, febre zika e febre chikungunya. • Trypanosoma cruzi: responsável pela doença de Chagas. A maioria dos patógenos é considerada patógeno oportunista. São os microrganismos que colonizam o organismo humano e, geralmente, não causam nenhuma doença, mas têm potencial de desencadear infecções ao colonizarem determinadas regiões do nosso corpo nas quais, normalmente, não são encontrados, ou, ainda, se o hospedeiro tiver seu sistema imunológico comprometido. Grande parte das infecções humanas é considerada oportunista justamente por causa desses microrganismos constituintes da microbiota endógena. Lembrete A infeção ocorrerá quando a presença de um microrganismo provocar alterações na fisiologia normal do organismo com diferentes graus de gravidade. 1.3 A célula procarionte Acredita-se que a primeira célula a surgir na Terra tenha sido uma célula procarionte heterotrófica, em que um agregado de RNA, DNA e proteínas teria sido envolvido por uma bicamada de fosfolipídios. Porém essas células, por serem incapazes de sintetizar compostos ricos em energia, esgotaram as reservas de carbono do ambiente, levando à pressão para o surgimento dos organismos procariontes autotróficos, que desenvolveram um sistema capaz de utilizar energia solar para a produção de compostos ricos em energia, e, como consequência, liberaram O2 para o meio alterando a atmosfera, que se tornou menos agressiva e tóxica, bem como permitiu a evolução das células e dos seres vivos hoje existentes no planeta. Com os avanços da microscopia, foi possível observar que ainda temos no ambiente dois tipos de células: um tipo simples, que remete ao antepassado evolutivo, chamado procarionte; e um mais complexo, que teria se originado das modificações provocadas pelos procariontes, denominado eucarionte. As células procariontes são, portanto, menos complexas e menores do que as eucariontes. Atribui-se a essas limitações a ausência de estruturas membranosas intracelulares — as organelas características dos eucariontes. 16 Unidade I Parede Polirribossomo Membrana plasmática Nucleoide Figura 5 – Esquema mostrando as estruturas típicas de uma célula procarionte As bactérias possuem uma membrana plasmática que, assim como nos eucariontes, é formada de fosfolipídios e proteínas com funções de transporte, comunicação celular e uma cadeia respiratória semelhante àquela existente nas mitocôndrias dos eucariontes. No entanto, essa é envolta por uma estrutura rígida – a parede celular –, que está presente (com exceção dos micoplasmas) em todas as bactérias. A função da parede celular está relacionada ao controle da pressão osmótica, permitindo a sobrevivência das bactérias em meios hipotônicos, além de garantir a manutenção da forma e a proteção contra os bacteriófagos. A principal característica das células procariontes é a ausência de estruturas membranosas, de maneira que seu citoplasma é formado essencialmente pelo citosol, no qual encontramos os ribossomos livres, ou na forma de polirribossomos e grânulos de reservas osmoticamente inertes e não envolvidos por membranas. O citoesqueleto também está ausente, sendo a forma celular mantida unicamente pela parede celular. As bactérias podem ser diferenciadas uma das outras pela sua morfologia – incluindo não apenas o tamanho, mas também a forma e as características da parede – e por suas características metabólicas, antigênicas e genéticas. Em relação à forma, as bactérias podem ser classificadas em: • cocos: forma esférica; • bacilos: forma de bastão (exemplo: Escherichia coli, Salmonella); • espiroqueta: forma parecida com a de uma cobra (exemplo: Treponema). Algumas bactérias se agrupam em cachos, como os Staphylococcus aureus; outras em arranjos lineares, os Streptococcus pneumoniae, e há, ainda, as que se organizam aos pares, como as Neisserias. 17 MICROBIOLOGIA, IMUNOLOGIA E PARASITOLOGIA 1.4 Estruturas e apêndices bacterianos 1.4.1 Parede celular A parede celular bacteriana é formada de subunidades poliméricas sintetizadas no meio intracelular e transportadas para o meio externo em que sofreram a polimerização. O principal peptidoglicano encontrado é formado por uma cadeia linear de dissacarídeos repetidos de ácido N-acetilglicosamina e ácido N-acetilmurâmico unidos entre si por uma ligação glicosídica do tipo β 1-4, que é alvo da ação das lisozimas – enzima encontrada na lágrima, na saliva e no suor –, além de ser o sítiode ação dos antibióticos β-lactâmicos. 2 µm 2 µm 2 µm 2 µm 1 µm Plano de divisão Diplococos Estreptococos Tétrade Sarcinas Estafilococos Co co s 2 µm 5 µm 1 µm Bacilo isolado Diplobacilos Estreptobacilos Cocobacilo Ba ci lo s 2 µm 2 µm 5 µm Vibrião Espirilo Espiroqueta Es pi ro qu et as Figura 6 – Representação esquemática dos principais arranjos bacterianos encontrados na natureza 18 Unidade I Unido ao ácido N-acetilglicosamina, existe um tetrapeptídeo que realiza ligações cruzadas com outros peptidoglicanos para criar camadas entrecruzadas em três dimensões. Quanto maior o número de camadas, mais forte e rígida será a parede celular. Esses componentes e a sua forma de organização são exclusivos da parede celular bacteriana, e sua estrutura repetitiva é a grande responsável por ativar respostas imunes inatas aos seres humanos. Embora essa organização de peptidoglicanos seja comum a todas as bactérias, existem peculiaridades entre as paredes que podem ser utilizadas como critérios de classificação bacteriana. Conforme a composição da parede, as bactérias podem ser classificadas em Gram-positivas (Gram+) e Gram- negativas (Gram-). As bactérias consideras Gram+ possuem múltiplas camadas de peptidoglicano entrecruzadas, criando uma malha rígida e espessa, no entanto porosa o suficiente para permitir a difusão de elementos do meio externo para a membrana plasmática. Além da N-acetilglicosamina e do ácido N-acetilmurâmico, são encontrados nessa parede celular dois polímeros aniônicos: o ácido teicoico e o ácido lipoteicoico. Esses elementos atuam como antígenos que, além de diferenciarem sorotipos bacterianos, promovem a adesão bacteriana às superfícies celulares e a agregação destas com outras bactérias, bem como interferem na fagocitose e estimulam a resposta imune inata. No entanto, algumas bactérias têm uma organização mais complexa da membrana, as chamadas Gram-. Nessas bactérias existem duas camadas externas de membranas citoplasmáticas, acima das quais há uma única camada de peptidoglicanos desprovida de ácidos teicoico e lipoteicoico. Fora dessa fina camada de peptidoglicano tem-se uma membrana externa, separada da membrana citoplasmática pelo espaço periplasmático. A membrana externa das bactérias Gram-, além de manter a estrutura bacteriana, possui capacidade seletiva para moléculas maiores e/ou hidrofóbicas, o que as torna mais resistentes a diferentes reações adversas, como as características do trato digestório e a resistência a antimicrobianos. A composição dessa estrutura é de uma camada externa formada por lipopolissacarídeos (LPS), dividida em três regiões: • lipídio A: com função de endotoxina pela indução de células de defesa e liberação de mediadores de resposta inflamatória; • cerne granular: de origem polissacarídica e responsável pela viabilidade bacteriana; • antígeno O: responsável pela distinção de cepas bacterianas. A figura a seguir mostra a comparação entre as paredes das bactérias Gram+ e Gram-. 19 MICROBIOLOGIA, IMUNOLOGIA E PARASITOLOGIA Proteínas associadas à parede celular Ácido teicóico Ácido lipoteicóico Peptoglicano Membrana citoplasmática Membrana externa Periplasma Antígeno Camada de LPS Fosfolipídios Peptoglicano Membrana citoplasmática O Gram-positiva Gram-negativa Figura 7 – Representação esquemática da parede celular das bactérias Gram-positivas e Gram-negativas 1.4.2 Fímbrias Localizadas externamente à parede celular bacteriana, as fímbrias são estruturas proteicas – também chamadas de pili. A proteína que forma a fímbria recebe o nome de pilina. As fímbrias têm origem citoplasmática e se estendem através da membrana plasmática e da parede celular. Podem ser encontradas em diferentes espécies de bactérias, porém são mais comuns em bactérias Gram-. 20 Unidade I Existem dois tipos de fímbrias que diferem quanto à função. Aquelas fímbrias curtas e numerosas que estão dispostas ao redor de toda a superfície bacteriana têm a função de adesão e estão presentes em bactérias que normalmente colonizam regiões cujo fluxo de substância é grande, como a luz intestinal e o canal da uretra. Porém, algumas espécies de bactérias possuem fímbria única e mais longa chamada fímbria sexual (pili sexual ou pelo F). Graças a essa fímbria especial, uma bactéria é capaz de se ligar a outra por meio dessa estrutura, e uma porção do material genético, normalmente o plasmídio, é transferido de uma bactéria a outra. Esse processo recebe o nome de conjugação, e sua importância será abordada mais adiante. Flangella Fimbriae Figura 8 – Fotomicrografia das fímbrias de adesão e do pelo F 1.4.3 Flagelos Os flagelos também são apêndices bacterianos; assim como em células eucariontes, sua função é associada à locomoção. Do mesmo modo que as fímbrias, a estrutura do flagelo é constituída de filamentos proteicos — a proteína que constitui esses filamentos recebe o nome de flagelina. O flagelo bacteriano tem origem membranar e se projeta através da parede. 21 MICROBIOLOGIA, IMUNOLOGIA E PARASITOLOGIA A quantidade e a localização dos flagelos variam conforme a espécie. As bactérias do gênero Salmonella são consideradas peritríquias, uma vez que possuem flagelos distribuídos na superfície celular, ao passo que bactérias, como as do gênero Escherichia, são consideradas monotríquias por terem um único flagelo polar. As bactérias espiroquetas, como as treponemas, apresentam dois filamentos semelhantes aos flagelos, chamados de filamentos axiais, que se entrelaçam e são ligados aos dois polos celulares. Essa organização permite o peculiar movimento dessas bactérias de forma helicoidal, semelhante ao de uma lagarta. (a) Peritríqueo (b) Monotríqueo e polar0,5 µm 0,5 µm 0,5 µm 0,5 µm(c) Lototríqueo e polar (d) Anfitríqueo e polar Figura 9 – Diferentes arranjos dos flagelos bacterianos 1.4.4 Cápsula Conhecida também como glicocálice, a cápsula bacteriana é uma camada gelatinosa localizada externamente à parede celular e firmemente aderida a ela. Sua constituição química é de polissacarídeos, que podem estar associados a lipídios e proteínas. Uma vez que a composição da cápsula pode variar, essa estrutura é utilizada na classificação sorológica de bactérias dentro de uma determinada espécie e no grau de sua patogenicidade. A cápsula é conhecida por sua função antifagocítica, ou seja, as bactérias encapsuladas não são englobadas por células de defesa com poder de fagocitose, como os macrófagos e os neutrófilos. Essa capacidade permite que tais bactérias neutralizem a ação do sistema imunológico e consigam sobreviver mais tempo no hospedeiro. 22 Unidade I Célula bacteriana Cápsula A B Figura 10 – Cápsulas bacterianas (A) destaque da cápsula em uma bactéria – nota-se seu posicionamento acima da parede celular; (B) coloração negativa da cápsula – a cápsula permanece como um halo ao redor das células. Na foto (A), a cápsula da bactéria Acinetobacter em coloração negativa com tinta nanquim 1.4.5 Esporos Algumas bactérias Gram+ são capazes de formar esporos – considerados estruturas de resistência –, pois são constituídos em condições adversas do meio, como a presença de oxigênio para uma bactéria anaeróbica ou, ainda, a perda de um requisito nutricional, como o aminoácido alanina. Quando uma bactéria formar o esporo, ela entrará em um estado vegetativo, ou seja, sua taxa metabólicas se reduzirá drasticamente e a bactéria ficará incapaz de se reproduzir. Assim que a bactéria identifica a característica adversa do meio, uma sequência de eventos bioquímicos é iniciada por meio da ativação de diferentes genes e da secreção de alguns elementos do metabolismo bacteriano. Além disso, ocorre a duplicação do cromossomo. Uma das cópias desse cromossomo bacteriano e uma parte do conteúdo citoplasmático — com proteínas essenciais e ribossomos — são envolvidas pela membrana plasmática e por uma série de envoltórios formados por peptoglicanosricos em cálcio e ácido dipicolínico, que conferem resistência à estrutura. O esporo confere proteção ao DNA bacteriano contra temperatura alta, ação de enzimas, radiação e desinfetantes, além de ser uma estrutura desidratada e capaz de se manter viável por muitos anos, até que as condições do meio voltem a ser favoráveis. 23 MICROBIOLOGIA, IMUNOLOGIA E PARASITOLOGIA Septo SeptoNucleoide Nucleoide segregado Duplicação e segregação do nucleoide Formação do revestimento duplo do esporo Mesossomos Nucleoide Esporo Esporo em formação Figura 11 – Diferentes estágios de formação de um esporo Conforme o meio volta a apresentar os requisitos necessários para o desenvolvimento da bactéria, ocorre a germinação do esporo. Para que esse processo seja iniciado, é preciso o rompimento da capa externa do esporo por eventos físicos ou mecânicos e a presença de água e alanina no meio. Durante o processo, o esporo absorve a água, acarretando seu inchaço e rompimento dos outros envoltórios, permitindo, assim, que a bactéria termine seu ciclo de divisão. Todo esse processo leva de 60 minutos a 90 minutos, de acordo com a espécie. Nesse período, o esporo está vulnerável. Apenas as bactérias Gram+ (nunca as Gram-) são capazes de produzir esporos, e a localização desse esporo dentro da célula é de grande utilidade na hora de identificar a bactéria. 24 Unidade I 2 METABOLISMO, REPRODUÇÃO E CRESCIMENTO BACTERIANO Assim como todos os seres vivos, as bactérias requerem uma fonte de energia para a síntese de elementos estruturais. Os nutrientes essenciais responsáveis pelas reações que produzem essas estruturas são: carbono (normalmente na forma de carboidratos), nitrogênio (normalmente na forma de proteínas e nucleotídeos), ATP, água e diversos íons, em especial o ferro. A fim de que ocorra o crescimento bacteriano, é necessária a presença de quantidades suficientes de nutrientes no meio, em especial aqueles que possam ser utilizados para a síntese de DNA, já que a replicação do cromossomo bacteriano é um evento essencial para a sobrevivência da célula. As bactérias são seres unicelulares — constituídos de uma única célula —, o que lhes permite uma reprodução rápida para produzir mais células semelhantes. Mas para que esse processo ocorra, são necessários alguns “ingredientes” básicos, no caso, água e nutrientes. Na sua maioria, as bactérias são organismos heterotróficos, uma vez que utilizam compostos orgânicos diferentes do CO2 como fonte de carbono. Além disso, são consideradas quimiotróficas – precisam retirar do meio as substâncias orgânicas necessárias ao seu desenvolvimento. Todas as bactérias patogênicas são, portanto, quimio-heterotróficas, ou seja, além de usarem compostos orgânicos diferentes do CO2 como fonte de carbono, retiram do meio substâncias químicas para serem utilizadas como fonte de energia. A diminuição de nutrientes ou o acúmulo de produtos tóxicos no meio leva à interrupção de outros eventos do processo de crescimento, mas mantém a duplicação do cromossomo bacteriano até que ele esteja totalmente duplicado, permitindo, em alguns casos, a esporulação em espécies capazes. Em um meio de cultura, é possível identificar todas essas fases do crescimento bacteriano e determinar o tempo que uma bactéria leva para crescer, bem como avaliar os efeitos de diferentes agentes antimicrobianos. Nesta situação, podemos identificar quatro fases bem marcantes na dinâmica populacional da espécie: • Fase de retardo (ou lag): refere-se ao tempo que a bactéria leva para se adaptar ao meio. • Fase exponencial (ou log): ocorre o aumento numérico das bactérias como consequência da divisão celular e a redução dos nutrientes da cultura. • Fase estacionária: as bactérias param de crescer por causa da falta de nutrientes (essa carência de nutrientes é acompanhada pelo acúmulo gradual de substâncias tóxicas, que tornam o meio impróprio para o crescimento bacteriano). • Fase de declínio: acontece uma redução numérica da população bacteriana em decorrência de sua morte. 25 MICROBIOLOGIA, IMUNOLOGIA E PARASITOLOGIA Fase lag Fase log Fase de morte celularFase estacionária 1 2 3 4 Lo g do n úm er o de b ac té ria s 0 5 Tempo (h) 10 Figura 12 – Curva de crescimento bacteriano. (1) fase de adaptação; (2) fase de crescimento exponencial; (3) fase estacionária; (4) fase de declínio 2.1 Metabolismo bacteriano O metabolismo bacteriano se faz necessário a fim de que ocorra a produção de energia para a síntese de proteínas, estruturas citoplasmáticas, membrana plasmática e outras estruturas essenciais à sobrevivência da bactéria. Chamamos de catabolismo as reações que quebram um determinado substrato resultando na formação de ATP (adenosina trifosfato), que será utilizado na síntese de diferentes compostos, como a parede celular. O conjunto de reações que sintetiza novas estruturas, ou seja, constrói elementos celulares, recebe o nome de anabolismo. Saiba mais A fim de entender mais sobre catabolismo e anabolismo, bem como sua importância para o crescimento bacteriano, leia: TORTORA, G. J. et al. Microbiologia. 10. ed. Porto Alegre: Artmed, 2012. A presença de oxigênio no meio é um fator essencial ao hospedeiro, mas não à bactéria, ao se tornar um elemento letal às bactérias anaeróbicas obrigatórias. Uma característica comum para a maioria dessas bactérias é a capacidade de esporular, uma vez que elas são incapazes de crescer na presença desse gás. Um exemplo de bactérias anaeróbicas obrigatórias são as pertencentes ao gênero Clostridium. No entanto, bactérias do gênero Mycobacterium têm o oxigênio como um elemento indispensável ao seu crescimento, por isso são chamadas de aeróbicas obrigatórias. Porém, a maioria das bactérias — inclui-se grande parte das bactérias patogênicas — pode crescer tanto na presença como na ausência de oxigênio, mudando a sua forma de metabolizar os nutrientes conforme a disponibilidade desse 26 Unidade I gás. Essas bactérias, chamadas anaeróbicas facultativas, são as mais eficientes na produção de energia, uma vez que conseguem se adaptar às concentrações de oxigênio do meio. A maioria das bactérias de interesse médico é classificada como anaeróbica facultativa. O metabolismo bacteriano inicia-se ainda no meio extracelular, onde são encontradas as macromoléculas que serão utilizadas na produção de energia. Essas macromoléculas precisam ser hidrolisadas por enzimas específicas e penetram na célula por intermédio de transportadores específicos localizados na membrana plasmática. Nessa situação, as proteínas são degradadas em aminoácidos, os polissacarídeos em monossacarídeos – normalmente a glicose – e os lipídios em glicerol e ácidos graxos. Os aminoácidos, a glicose e os ácidos graxos são, então, convertidos por diferentes vias em piruvato (ácido pirúvico). Por meio da oxidação da molécula de piruvato, ocorrerá a síntese de ATP ou, ainda, a utilização desse composto para a síntese de novas moléculas de aminoácidos, lipídios, carboidratos e ácidos nucleicos – essenciais para a sobrevivência da bactéria. A figura seguinte resume as principais formas de obtenção de energia pelas bactérias. O principal substrato energético para a maioria das bactérias é a glicose. Esse monossacarídeo pode ser convertido em energia por meio de vias aeróbicas, no caso a respiração aeróbica, como também por vias anaeróbicas, mediante os processos de fermentação e respiração anaeróbica. Proteínas Polissacarídeos Reações de hidrólise Reações anaeróbicas Reações aeróbicas Lipideos Aminoácidos Monossacarídeos Glicose Piruvato Acetil CoA Ciclo do ácido tricarboxílico ATP Cadeia de transporte de elétrons Fermentação/putrefação Ácidos graxos Glicerol + Figura 13 – Catabolismo de proteínas, polissacarídeos e lipídios na célula bacteriana A via mais comum que as bactérias utilizam para o catabolismo da glicose é a glicolítica ou glicólise ou, ainda, Embden-Meyerhof-Parnas (EMP), isso porqueas reações dessa via podem ocorrer tanto de forma aeróbica como de forma anaeróbica. Na presença de oxigênio, a glicose é convertida em piruvato por uma série de reações químicas, de forma que uma molécula de glicose – que possui seis carbonos – gera duas moléculas de piruvato, cada uma com três carbonos. Se o oxigênio estiver presente no meio, o piruvato ainda poderá ser oxidado, e seus produtos, utilizados para a síntese de ATP. 27 MICROBIOLOGIA, IMUNOLOGIA E PARASITOLOGIA Porém, em situações de carência ou insuficiência de oxigênio para manter a via aeróbica, a forma primária de produção de ATP é a fermentação. Nesse processo, o piruvato é convertido em diferentes produtos finais. Uma vez que o tipo de produto final gerado varia conforme a espécie, muitas bactérias podem ser identificadas com base no seu produto final. Os principais produtos finais podem ser ácidos, álcoois e gases. Fluxo de elétrons Elétrons Produção de ATP Glicose 2 ácidos pirúvicos 2 CO2 2 NADH 2 NADH 6 NADH 4 CO2 6 CO2 (Total) 2 ATP 34 ATP 38 ATP (Total) 2 FADH2 10 NADH 2 FADH2 (Total) Cadeia de transporte de elétrons e quimiosmose 6 O2 6 H2O + 12 H+ Etapa preparatória 2 acetel-CoA Ciclo de Krebs 2 ATP +2 H+ +2 H+ +6 H+ +10 H+ Glicólise Figura 14 – Resumo da respiração aeróbica em procariontes 28 Unidade I Pyruvate (CH3COCOOH) H2 (hydrogen) CO2 (carbon dioxide) HCOOH (formic acid) CH3COOH (acetic acid) CH3CH2OH (ethanol) CH3CHOHCOOH (lactic acid) HOOCCH2CH2COOH (succinic acid) H2 (hydrogen) CO2 (carbon dioxide) CH3CH2OH (ethanol) CH3CH2O (acetone) CH3CH2CH2COOH (butyric acid) CH3CH2CH2CH2OH (butanol) CH3CHOHOCOOH (lactic acid) CH3COOH (acetic acid) Eletric bactéria (e.g., E. coli, salmonela) Clostridium Streptococcus Lactobacillus Figura 15 – Relação entre a fermentação, o tipo de produto final gerado e o organismo produtor Saiba mais A fermentação é o processo responsável pela formação da cárie dental. Aprofunde seus conhecimento sobre o assunto no livro: MURRAY, P. R, et al. Microbiologia médica. 7. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. 2.2 Genética e reprodução bacteriana Como todo organismo vivo, as bactérias também possuem genes — sequências de nucleotídeos que têm funções biológicas — responsáveis por expressarem características essenciais à sobrevivência da bactéria. 29 MICROBIOLOGIA, IMUNOLOGIA E PARASITOLOGIA O termo genoma se refere ao conjunto de genes de um determinado organismo. Esses genes são responsáveis por conferir as peculiaridades do organismo, bem como por garantir a realização das reações químicas necessárias para mantê-lo em um determinado ambiente. Em uma bactéria, os genes estão organizados num único cromossomo circular, que fica localizado na região nucleoide; é lá que encontramos o genoma bacteriano. Além disso, as bactérias também possuem elementos genéticos extracromossômicos chamados plasmídeos (encontrados em bactérias Gram-), porém não são estruturas obrigatórias nas bactérias. Os genes plasmidiais não são essenciais para a sobrevivência da bactéria, mas podem expressar produtos biológicos que forneçam vantagem seletiva à bactéria e, principalmente, ser transferidos de uma bactéria a outra. A figura a seguir mostra a relação entre o DNA plasmidial e o cromossomo bacteriano. Cromossomo bacteriano localizado na região do nucleoide. Plasmídios são sequências de DNA extracromossômico. Os genes plasmidiais expressam produtos com função bilológica que proporcionam vantagem seletiva à bactéria. Seus genes expressam produtos com funções bilológicas essenciais para a sobrevivência da bactéria. Parede celular Membrana citoplasmática Figura 16 – Comparação entre o cromossomo bacteriano e o DNA plasmidial Para que haja a divisão da célula bacteriana, é imprescindível, assim como nas eucariontes, que aconteça a replicação do cromossomo bacteriano. Ademais, nas bactérias é importante que ocorra a extensão dos elementos citoplasmáticas e da parede celular. 2.2.1 Fissão binária transversal A divisão celular bacteriana é também conhecida por fissão binária transversal porque, para que haja a formação das células-filhas, é necessária a produção de um septo que atravesse a parede celular e separe as células-filhas formadas. Esse septo inicia sua formação no meio da célula e cresce de lados opostos em direção ao centro da célula. Quando os dois lados se encontrarem, existirá a separação 30 Unidade I total das duas células-filhas. Porém, existem situações em que a separação não é total, ou seja, as células-filhas permanecem ligadas, levando à formação de cadeias, como as observadas em colônias de Streptococcus pneumoniae, e dos cachos visíveis em colônias de Staphylococcus aureus. As células bacterianas geradas pelo processo de fissão são geneticamente idênticas, e o tempo que uma célula-mãe leva para originar as duas células-filhas é chamado de tempo de geração. Cálula parental Replicação do DNA Duas células-filhas Figura 17 – Representação esquemática do processo de fissão binária em bactérias 2.3 Aquisição da variabilidade genética Uma vez que o genoma bacteriano é muito menor do que o genoma de qualquer célula eucarionte, as mutações nos genes bacterianos produzem alterações manifestadas pelas bactérias. Chamamos de mutação qualquer mudança na sequência original de nucleotídeos de um gene. Nem toda mutação provoca alterações no produto gênico formado; em contrapartida, podem ocorrer alterações em apenas uma base nitrogenada, o que já provoca modificações no produto gênico formado. 31 MICROBIOLOGIA, IMUNOLOGIA E PARASITOLOGIA Embora as bactérias possam apresentar altas taxas de mutação, é comum a troca de material genético entre elas. Esse intercâmbio gênico oferece para a bactéria uma série de vantagens adaptativas, em especial, a aquisição de genes que codificam novas toxinas e produtos de resistência a antibióticos. As principais formas de aquisição desses novos genes envolvem a transferência de genes plasmidiais e ainda vetores virais, também denominados bacteriófagos. Os plasmídios são normalmente transferidos por meio de um processo conhecido como conjugação, enquanto os bacteriófagos fazem a transferência de genes durante o processo de infecção das células bacterianas. Outros fatores menos comuns de transferência de genes são os transposons, elementos genéticos móveis que podem transferir elementos gênicos dentro de uma mesma célula, ou seja, a sequência de DNA muda de posição dentro do cromossomo ou ainda “salta” do cromossomo bacteriano para um plasmídio. As bactérias patogênicas apresentam mecanismos especiais para controlar a expressão dos seus fatores de virulência. Os genes que codificam para toxinas bacterianas, mecanismos de escape imunológico, resistência a antimicrobianos, penetração em célula não fagocítica, dentre outros fatores, ficam concentrados em ilhas de patogenicidade. Na presença de um estímulo ambiental, como mudança de temperatura ou pH e contato com superfícies teciduais do hospedeiro, ativam esse conjunto de genes e permitem que a bactéria manifeste sua patogenicidade e cause a doença. Existem vários mecanismos que permitem essa aquisição de material genético, mas os três principais são: a conjugação, a transformação e a transdução. 2.3.1 Conjugação Relatada pela primeira vez em 1946, por Lederberg e Tatum, a conjugação é o principal processo pelo qual bactérias da mesma espécie ou de espécies filogeneticamente próximas podem adquirir variabilidade genética. O processo de conjugação consiste na transferência unidirecional de DNA plasmidial – mas de fita simples – de uma bactéria doadora para uma bactéria receptora. A passagem desse DNA ocorre por meio da fímbria sexual, que está presente na bactéria doadora. Para que a conjugação ocorra, a bactéria doadora precisa possuir um plasmídio conjugativo (ou plasmídio F), que carrega todos os genes necessários a fim de que o processo conjugativo, ou seja, a transferênciado DNA em si, ocorra. Dentre os elementos presentes no plasmídio F, podemos citar aqueles genes que vão expressar as proteínas necessárias à construção das fímbrias sexuais. Os eventos de conjugação são mais comuns em bactérias entéricas (família das enterobactérias) e bactérias Gram-, embora existam relatos desse processo em bactérias dos gêneros Pseudomonas e Streptococcus. Diferentes genes podem ser transmitidos por conjugação. Os mais comuns são os genes de resistência a antibióticos e as colicinas – proteínas capazes de matar outras bactérias. O que esses 32 Unidade I genes têm em comum? Todos vão conferir alguma vantagem seletiva à bactéria receptora, permitindo que ela se adapte mais facilmente a uma situação adversa do que aquela que não receber esses genes. Algumas bactérias possuem plasmídios que só contêm genes de resistência a antibióticos — os chamados fator R —, e as bactérias que os contêm recebem o nome de bactérias R conjugativas, porque podem passar esse plasmídio para outras. Quando uma bactéria receber o fator R por conjugação, ela se tornará resistente a múltiplos fármacos. São as chamadas superbactérias. A figura a seguir resume os principais passos do processo. Célula doadora Cromossomo bacteriano Pilus sexual Célula receptora Plasmídio F F–F+ F+ F+ 0 1 2 3 4 Figura 18 – Etapas do processo de conjugação. (1) Bactéria doadora se liga à bactéria receptora através do pelo F; (2) contato entre as células; (3) uma fita do DNA plasmidial é transferida da bactéria doadora para a bactéria receptora através do pelo F; (4) a bactéria receptora e a bactéria doadora sintetizam a fita complementar de DNA plasmidial 33 MICROBIOLOGIA, IMUNOLOGIA E PARASITOLOGIA 2.3.2 Transformação Chamamos de transformação o processo pelo qual uma bactéria incorpora fragmentos de DNA do meio ambiente, tornando-se geneticamente modificada. Esse processo de transformação foi descrito pela primeira vez em 1928, pelo médico Fredeick Griffith, em um experimento que comprovou a presença de uma molécula da hereditariedade; porém, somente em 1944 Oswald Avery e seus colaboradores comprovaram que essa molécula era o DNA. Na natureza, os eventos de transformação são raros e, ao contrário da conjugação, podem ocorrer entre bactérias. São chamadas de bactérias competentes aquelas capazes de absorver esse fragmento de DNA desnudo, ou seja, não associado a uma célula, presente no meio. Ao ser absorvido, esse DNA “estranho” será recombinado com o DNA bacteriano, e a bactéria pode expressar os produtos desse gene, quando necessário, e ainda passá-lo aos seus descendentes pelo processo de fissão binária. O resumo do processo é descrito na figura a seguir. Célula receptora a b c d a b c d 5’ 3’ 5’ 3’ b c d A A A A B B B B D D D D C C C C DNA cromossômo Célula receptora capta o DNA doador Fragmentos de DNA da célula doadora DNA doador alinha-se com as bases complementares A recombinação ocorre entre o DNA doador e o DNA receptor DNA não recombinado degradado Célula geneticamente transformada 1 2 3 Figura 19 – Mecanismo de transformação genética em bactérias. Quanto maior a proximidade genética entre a bactéria receptora e a origem do fragmento de DNA, maiores as chances de sucesso do processo de transformação 34 Unidade I 2.3.3 Transdução A principal diferença da transdução para os dois processos descritos anteriormente é o fato de que nesse mecanismo de transferência genética existe a participação de um vetor de transferência, no caso, um bacteriófago, ou seja, um vírus bacteriano. Quando um bacteriófago infectar uma célula bacteriana, ele recombinará o seu material genético com o cromossomo bacteriano. À medida que o bacteriófago se replica, ocorre a fragmentação do DNA bacteriano, que permanece ligado ao seu material genético. Durante o processo de montagem do novo bacteriófago, esses fragmentos de DNA bacteriano serão incorporados ao novo fago. Assim que o ciclo de replicação do fago estiver completo, a célula bacteriana se romperá, e os fagos maduros serão liberados no meio, carregando no seu material genético fragmentos do DNA bacteriano. Ao infectar uma nova bactéria, esses genes da primeira bactéria hospedeira do fago serão incorporados no novo hospedeiro, que poderá expressar novos produtos biológicos a partir desses novos genes adquiridos. 3 5 4 2 1 Recombinação Capsídeo proteico do fago Ocasionalmente, durante a montagem do fago, fragmentos do DNA bacteriano são empacotados no capsídeo do fago. Então, a célula doadora é lisada e as partículas de fago contendo o DNA bacteriano são liberadas A recombinação pode ocorrer, produzindo uma célula recombinante com um genótipo diferente da célula doadora e da célula receptora Muitas divisões celulares A célula recombinante se reproduz normalmente Um fago carregando o DNA bacteriano infecta a nova célula hospedeira, a célula receptora. O DNA e as proteínas do fago são produzidos, e o cromossomo bacteriano é quebrado em fragmentos Um fago infecta a célula bacteriana doadora DNA do fago DNA do fago DNA bacteriano DNA bacteriano doador DNA bacteriano receptor Célula doadora Célula receptora Cromossomo bacteriano Figura 20 – Mecanismo de transdução generalizada em que o DNA de uma bactéria pode ser transferido para outra através de um bacteriófago 35 MICROBIOLOGIA, IMUNOLOGIA E PARASITOLOGIA 2.4 Resistência bacteriana Os eventos descritos anteriormente permitem que a bactéria adquira novas características, dentre elas a resistência aos antibióticos. Também são fatores que podem levar ao desenvolvimento da resistência aos antimicrobianos, às mutações e transposições — que alteram a sequência original dos nucleotídeos — e ao uso indiscriminado de antibióticos que seleciona as bactérias mais fortes: • Alteração da permeabilidade da membrana: para que o antibiótico atue, é preciso chegar até o citoplasma bacteriano, onde se encontram as proteínas e as enzimas responsáveis pelo metabolismo e pela fisiologia da bactéria. Para tanto, ele tem de atravessar a membrana e a parede celular bacteriana. Alterações na composição química dessas estruturas impedem a absorção do antibiótico e, consequentemente, sua ação. • Inativação enzimática: as bactérias desenvolvem enzimas que alteram a estrutura do antibiótico e impedem sua ação. A penicilinase é uma das principais enzimas descritas, cuja atividade está relacionada à resistência aos antibióticos. As principais bactérias que apresentam resistência à penicilina e seus derivados são capazes de expressar a penicilinase. • Bomba de efluxo: neste caso, as bactérias possuem genes que expressam uma proteína de membrana capaz de expulsar da célula o antibiótico antes que ele se ligue ao sítio ativo. • Mudança do sítio de ação: todo antibiótico se liga a uma região específica da molécula-alvo. Essa ligação ocorre em sítios específicos em que há afinidade química entre o antibiótico e a molécula-alvo. Para impedir a ligação do antibiótico, a bactéria altera a região do sítio ativo da molécula-alvo, fazendo que o antibiótico não tenha como se ligar e, portanto, não possa alterar o seu funcionamento. Antibiótico Antibiótico Antibiótico Antibiótico Bomba de efluxo Modificação do sítio de ligação do antibiótico Neutralização enzimática Alteração da permeabilidade da membrana Figura 21 – Representação esquemática das principais estratégias desenvolvidas pelas bactérias para neutralizar o efeito dos antibióticos 36 Unidade I Saiba mais A resistência bacteriana é um problema de ordem mundial, e quanto mais nós soubermos sobre o assunto, mais estratégias poderemos desenvolver para reduzir o surgimento de superbactérias. Leia mais sobre o assunto em: MORENO C. M. et al. Mecanismos de resistencia antimicrobiana en patógenos respiratorios. Revista de otorrinolaringología y cirugía de cabeza y cuello. Santiago, v. 69, n. 2, p. 185-92,ago. 2009. Disponível em: http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0718- 48162009000200014&lng=es&nrm=iso. Acesso em: 15 jul. 2016. 2.5 Fatores que interferem no crescimento bacteriano Uma vez que as bactérias são organismos de grande interesse na indústria e na área da saúde, o conhecimento de fatores que estimulem ou inibam seu crescimento e desenvolvimento é vital para garantir o bem-estar e a saúde humana. Inúmeros aspectos ambientais podem afetar o crescimento bacteriano de diferentes maneiras. O conhecimento de quais são essas causas e como afetam o metabolismo e a reprodução bacteriana é importante para o controle desses microrganismos em indústrias, hospitais e laboratórios. Os principais fatores que afetam o crescimento bacteriano são a disponibilidade de nutrientes, a pressão osmótica, a temperatura e a atmosfera gasosa. 2.5.1 Nutrientes Todos os organismos vivos precisam de nutrientes para realizarem suas funções vitais, uma vez que a quebra das ligações químicas de nutrientes libera a energia necessária para a realização das reações químicas essenciais à manutenção da vida, dentre elas a manutenção das taxas de reprodução. Quanto maior a disponibilidade do meio, mais energia disponível para a realização dos eventos reprodutivos. A redução dos nutrientes do meio faz que as bactérias – e outros microrganismos – se tornem incapazes de se reproduzir. Muitas bactérias, inclusive na ausência de alguns aminoácidos, como a alanina, desencadeiam os eventos de esporulação. Os principais nutrientes necessários para o desenvolvimento da bactéria são o carbono, o oxigênio, o nitrogênio, o fósforo, o enxofre e, em menores quantidades, o ferro, o iodo e o zinco. 37 MICROBIOLOGIA, IMUNOLOGIA E PARASITOLOGIA 2.5.2 Temperatura Cada microrganismo possui uma temperatura ótima de crescimento. É nessa temperatura que as enzimas estão na sua eficiência máxima, ou seja, esse organismo estará crescendo e se desenvolvendo em velocidade máxima. Temperaturas abaixo ou acima dessa temperatura ideal influenciam o funcionamento enzimático e, consequentemente, a sua performance reprodutiva. Chamamos de temperatura mínima a mais baixa temperatura em que identificamos crescimento e reprodução bacteriana. Se esse microrganismo estiver exposto a temperaturas inferiores à sua temperatura mínima, a energia de ativação das moléculas se reduzirá; consequentemente, as enzimas não trabalharão, e o microrganismo não crescerá, embora ele também não vá morrer. Por isso, costumamos dizer que temperaturas baixas são microbioestáticas. Já a temperatura máxima é a temperatura mais alta na qual encontramos microrganismos vivos. Acima dessas temperaturas, o microrganismo morre devido à desnaturação de suas proteínas e enzimas. Logo, costumamos dizer que temperaturas altas são microbicidas. Conforme o valor da sua temperatura ótima, os microrganismos são classificados em termófilos, mesófilos e psicrófilos. A figura a seguir mostra essas categorias de acordo com a sua faixa de temperatura. –10 0 10 20 30 Psicrófilos Psicotróficos Bactérias patogênicas Bactérias da flora normal Mesófilos Temperatura (ºC) Ta xa d e cr es ci m en to Termófilos Termófilos extremos 40 50 60 70 80 90 100 110 Figura 22 – Classificação de bactérias de acordo com a sua temperatura ótima de crescimento. As bactérias patogênicas se enquadram na categoria de mesófilas As bactérias termófilas crescem bem em temperaturas acima de 60 ºC, ou seja, são incapazes de sobreviver no corpo humano, cuja temperatura ótima é em torno de 35 ºC. Essas bactérias são normalmente encontradas em fontes de águas termais, no interior e nas proximidades de fendas hidrotermais, em covas com adubos e em silagens. Já as bactérias psicrófilas são o oposto, pois têm sua 38 Unidade I temperatura ótima de reprodução em torno de 15 ºC, isto é, também não se adaptam ao organismo humano. São bactérias encontradas na neve e nas águas frias do oceano. As bactérias que possuem uma temperatura ótima em torno de 30 ºC a 35 ºC são as chamadas bactérias mesófilas. Nesse grupo se enquadram as bactérias que colonizam plantas e animais. As bactérias patogênicas e as que constituem a flora endógena do organismo humano são na sua maioria mesófilas, pois crescem em uma temperatura ótima de 36 ºC a 37 ºC. 2.5.3 Oxigênio Anteriormente falamos sobre como o oxigênio atmosférico pode interferir no crescimento bacteriano por influenciar o tipo de estratégia metabólica adotada pela bactéria. Assim, não apenas o tipo de gás encontrado na atmosfera, mas também a sua concentração são fatores que podem estimular ou inibir o desenvolvimento de um microrganismo específico. A figura a seguir resume a classificação dos microrganismos de acordo com a disponibilidade de oxigênio. Ae ró bi co s ob rig at ór io s Ae ró bi co s fa cu lta tiv os M ic ro ae ro fíl ic o An ae ró bi co s ob rig at ór io s Ae ro to le ra nt es Figura 23 – Classificação dos microrganismos de acordo com a sensibilidade ao oxigênio. Observação A disponibilidade do oxigênio é maior na superfície do líquido; portanto, quanto maior a carga microbiana próxima a superfície, maior a necessidade de oxigênio do microrganismo. Microrganismos que se concentram no fundo do frasco são intolerantes ao oxigênio. 39 MICROBIOLOGIA, IMUNOLOGIA E PARASITOLOGIA 2.5.4 Pressão osmótica Por definição, a pressão osmótica é a pressão que soluções intracelulares e extracelulares exercem na membrana de uma célula. No entanto, uma célula sempre vai procurar igualar a pressão entre os dois meios para garantir suas funções vitais. Quando a célula bacteriana for colocada em uma solução hipertônica, ou seja, mais concentrada do que seu meio interno, ela tenderá à crenação em decorrência do movimento de saída de água do meio intracelular para o meio extracelular. Porém, não podemos esquecer que as bactérias possuem parede celular e que, dentre suas muitas funções, está a de impedir esse tipo de movimento. Assim, ocorre um evento chamado plasmólise (lembra um encolhimento do citoplasma). Essa condição inibe radicalmente a reprodução bacteriana. Entretanto, se a célula bacteriana estiver colocada em uma solução hipotônica, ou seja, menos concentrada que o meio intracelular, existirá a tendência de a água entrar na célula, levando à ocorrência da plasmoptise, ou seja, do rompimento da membrana plasmática e, consequentemente, do extravasamento do citoplasma. A bactéria Vibrio cholerae, agente causador da cólera, apresenta duas peculiaridades: consegue sobreviver em ambiente alcalino e é considerada halofílica, ou seja, prefere sobreviver em ambientes hipertônicos. A figura a seguir resume a classificação dos microrganismos, segundo sua tolerância à concentração de sal: Ta xa d e cr es ci m en to 6 – 15% NaCl 1 – 6% NaCl Escherichia coli Staphylococcus aerus Halobacterium salinarum Vibrio fischeri 15 – 30% NaCl NaCl (%)0 Halotolerante Não halófilo Halófilo Halófilo extremo Figura 24 – Classificação dos microrganismos segundo sua tolerância à concentração de NaCl (cloreto de sódio) 40 Unidade I 2.5.5 Potencial hidrogeniônico (pH) O termo potencial hidrogeniônico (pH) é normalmente utilizado quando nos referimos à acidez ou à alcalinidade do meio, isto é, à alta concentração de íons hidrogênio do meio (pH ácido) ou à baixa concentração de íons hidrogênio no meio (pH alcalino). Embora a maioria das bactérias cresça preferencialmente em pH neutro (pH 7,0-7,4), existem algumas bactérias que podem crescer em meios cujos valores sejam pH ácidos ou alcalinos. As bactérias acidofílicas sobrevivem em pH ácido como o do estômago, ao passo que as bactérias alcalífilas sobrevivem em pH acima de 8,0. 2.5.6 Métodos de controle do crescimento bacteriano Em ambientes hospitalares, é essencial a inibição do crescimento de microrganismos para que eles não causem infecções nos pacientes, que, muitas vezes, já estãodebilitados. O crescimento de microrganismos pode ser inibido por intermédio de métodos físicos e químicos, que eliminam totalmente os patógenos, ou apenas pela criação de condições que impeçam sua reprodução. Chamamos de microbioestático aquele agente, físico ou químico, que apenas impede a replicação do microrganismo, sem, no entanto, matá-lo. Neste caso, quando o meio voltar a se tornar propício, o microrganismo voltará a crescer. Entretanto, no momento em que o agente, físico ou químico, destruir totalmente o microrganismo, ele será considerado um agente microbicida. As técnicas de esterilização são todas técnicas microbicidas, porque envolvem a eliminação total de todas as formas metabolicamente ativas e vegetativas dos microrganismos. As técnicas de esterilização podem ser físicas, como a temperatura alta, a radiação e a filtração, ou ainda químicas, como o glutaraldeído, o formaldeído e o óxido de etileno. Em contrapartida, as chamadas técnicas desinfetantes levam apenas à redução da carga microbiana, ou seja, à redução do número de microrganismos em uma superfície ou em um material inanimado. Normalmente é feita mediante o uso de agentes químicos e podem ser classificadas em três níveis: • Desinfecção de baixo nível: o agente químico tem ação sobre a maioria das bactérias, alguns fungos e vírus, porém é incapaz de destruir formas mais resistentes, como os endósporos e as micobactérias. • Desinfecção de nível intermediário: embora destrua a maioria das bactérias, incluindo as micobactérias, ainda é ineficiente contra os endósporos, alguns vírus e fungos. • Desinfecção de alto nível: capaz de destruir todas as formas biologicamente ativas de microrganismos, mas ineficiente contra os endósporos. 41 MICROBIOLOGIA, IMUNOLOGIA E PARASITOLOGIA Finalmente, a antissepsia é uma técnica semelhante à desinfecção, porém aplicada a tecidos vivos, portanto deve usar agentes químicos que não sejam tóxicos ou nocivos ao indivíduo que vai recebê-la. Também é realizada por agentes químicos de concentração e tipo selecionados de acordo com o tecido que vai recebê-la. Continua sendo eficiente para a redução da carga microbiana, mas inadequada para eliminar os endósporos. A escolha do método a ser utilizado depende do tipo de material, do nível de controle desejado e de qual o microrganismo está contaminando o meio. Diferentes estruturas podem ser alvo do método escolhido. No caso de fungos e bactérias, a parede celular é um alvo importante, uma vez que impede a lise osmótica. Assim, qualquer alteração na composição e na estruturação da parede faz que ela não exerça sua função adequadamente, levando o microrganismo à morte. A membrana plasmática também pode ser alvo desses agentes, já que é uma estrutura de suma importância no controle de fluxo de substâncias entre os meios interno e externo do microrganismo, principalmente no que diz respeito à eliminação de substâncias tóxicas. Agentes físicos, como a temperatura, bem como alguns agentes químicos, têm como alvo as enzimas e as proteínas estruturais. Tais agentes alteram, em diferentes níveis, o metabolismo bacteriano, por modificarem as ligações químicas que mantêm a estrutura de enzimas e proteínas. Quando essa estrutura for alterada totalmente ou parcialmente, a macromolécula perderá sua função e, consequentemente, diferentes etapas do metabolismo poderão ser afetadas. Nesse sentido, danos nos ácidos nucleicos (DNA e RNA), por esses mesmos agentes, também levarão à morte da célula ao impedir tanto a replicação celular como a síntese de novas enzimas e proteínas estruturais. 3 INTRODUÇÃO À MICOLOGIA E VIROLOGIA 3.1 Fungos Os fungos são microrganismos eucariontes pertencentes ao Reino Fungi. Devido à sua natureza eucarionte, possuem uma organização celular mais complexa do que as bactérias, que, como visto anteriormente, são organismos procariontes. A principal característica dos fungos é o fato de o seu material genético não estar em contato direto com o citoplasma, mas envolto por uma membrana nuclear. Também são encontradas no meio intracelular organelas citoplasmáticas e um citoesqueleto organizado, que são delimitados por uma membrana plasmática típica cujo componente esteroide recebe o nome de ergosterol. Sua parede celular é composta majoritariamente por quitina – nunca por proteoglicanos –, o que a diferencia grandemente da parede celular bacteriana. De acordo com a morfologia, os fungos podem ser classificados em unicelulares e filamentosos. Os fungos unicelulares recebem o nome de leveduras — fungos esféricos. Já os fungos filamentosos são comumente chamados de bolores e podem ser multicelulares e, ainda, macroscópicos. A figura a seguir mostra a comparação entre fungos filamentosos e unicelulares. 42 Unidade I A) B) Figura 25 – Comparação morfológica entre os fungos. (A) Fungos unicelulares (*leveduras); (B) fungos pluricelulares (filamentosos); as hifas estão sinalizadas pela seta Todos os fungos são heterotróficos e podem se reproduzir de forma sexuada e assexuada, independentemente da sua morfologia. A reprodução sexuada é mais comum nos fungos de vida livre, ou seja, naqueles encontrados no solo ou associados ao sedimento e a dejetos fecais. Os fungos patogênicos, que vivem associados aos seres humanos, a outros animais e às plantas, tendem a se reproduzir de forma assexuada por ser uma estratégia reprodutiva mais rápida, contribuindo para a disseminação. As infecções causadas por fungos recebem o nome de micoses e são classificadas de acordo com a sua profundidade. Ao contrário das infecções bacterianas e virais, que já têm sua patogênese bem-descrita e estudada, as doenças fúngicas ainda não possuem seu mecanismo de patogenicidade bem-estabelecido na literatura médica. Poucos fungos são virulentos o suficiente para tornarem-se os agentes primários de uma infecção. Chamamos de patógenos fúngicos primários aquelas espécies fúngicas capazes de desencadear quadro infeccioso. Mesmo que o hospedeiro esteja imunocompetente, basta que ele encontre nesse organismo um microambiente rico em substratos nutricionais suficientes para a sua multiplicação e permita a neutralização das respostas imunológicas. Enquadram-se na categoria de patógenos fúngicos primários as espécies: • Blastomyces dermatitidis: infecção respiratória. • Coccidioides immitis: infecção pulmonar, cutânea, oftálmica, meningite. • Histoplasma capsulatum: doença pulmonar, pericardite. • Paracoccidioides brasiliensis: doença crônica em órgão único ou multifocal, linfonodos. A maioria dos patógenos fúngicos anteriormente citados apresenta dimorfismo, ou seja, altera sua morfologia conforme o microambiente que coloniza. Assim, esses fungos podem ser encontrados no ambiente, em especial no solo ou associado à vegetação em decomposição, na forma de hifas septadas. Essa fase é chamada de saprofítica e, durante esse período, são produzidas as células infecciosas que serão disseminadas principalmente pelo ar. Por outro lado, quando encontrar um microambiente 43 MICROBIOLOGIA, IMUNOLOGIA E PARASITOLOGIA adequado em um hospedeiro “vivo” – onde a temperatura é em torno de 37 ºC – sua forma passará a ser esférica e sua reprodução assexuada. Esse é um comportamento típico da fase parasitária. Uma característica desses fungos é capacidade de sobreviver dentro de macrófagos. Para tanto, eles desenvolvem várias estratégias que são capazes de neutralizar a ação da célula. Os quadros seguintes resumem algumas das estratégias mais utilizadas pelas espécies citadas: Quadro 1 – Fatores de virulência e suas consequências para o organismo de alguns fungos considerados patógenos primários Espécie Fator de virulência Consequência Blastomyces dermatitidis Dimorfismo térmico Escapam do reconhecimento de neutrófilos e macrófagos. Colonização tecidual e disseminação hematogênica. Coccidioides immitis Produção de uréase Aumento da concentração de íon amônia/amônio. Alcalinização da superfície celular