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LIVROS POÉTICOS E PROFÉTICOS AULA 1 Prof. Marlon Fluck 2 CONVERSA INICIAL Estimados e estimadas estudantes, estamos dando início ao estudo de Livros proféticos e poéticos do Antigo Testamento. Nossa primeira aula abordará os poéticos Jó e Salmos, com suas particularidades. TEMA 1 – OS LIVROS POÉTICOS DO ANTIGO TESTAMENTO Os livros poéticos fazem parte dos Hagiográficos do cânon judaico. Tais livros são classificados como poéticos, pois a poesia é predominante na estrutura do texto, mas neles há também narrativas e profecias. Foram poesias produzidas por inspiração divina para servirem como instrumento de comunhão com Deus. O cume da poesia hebraica aparece na poesia lírica de Cantares de Salomão, tema da próxima aula. Já o livro de Jó está escrito em poesia e em prosa, mesmo que tenha algumas características apocalípticas (Marcos, 2013, p. 9) Os livros poéticos do cânon judaico são Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes e Cantares de Salomão. São também intitulados como livros de Sabedoria. São ponto de partida da teologia sapiencial. A arte sapiencial da vida consiste em reconhecer a ordem abrangente universal no exercício da vida e solidificá-la pela prática da ‘justiça’ (axioma: justiça produz schalom, ‘salvação, paz’). O ponto de partida da arte sapiencial da vida não é uma revelação de Deus, qualquer que seja sua forma, mas a razão do ser humano que visa dominar a vida. Na teologia sapiencial tardia de Israel, é a própria sabedoria divina que inspira as pessoas em sua busca por sabedoria. (Zenger, 2016, p. 284) A sabedoria sapiencial passou a ser compreendida como dádiva divina, transformando-se em “sabedoria de revelação” (Zenger, 2016, p.287). O Antigo Testamento contém uma quantidade considerável de literatura sapiencial. Além dos livros mencionados, há também “adágios, enigmas, poemas, listas científicas e meditações sobre questões cosmológicas ou éticas, de tamanho menor, espalhados pelos demais escritos bíblicos” (Andersen, 1984, p.21). Há várias formas de ver a relação entre a sabedoria em Israel e nos povos vizinhos. Jó é visto como “uma obra cosmopolita, uma miscelânea de ‘sabedoria’ colhida por algum israelita estudioso das bibliotecas doutros povos” (Andersen, 984, p. 22). User Destacar CONCEITO DE SANTO, OU SAGRADO, NOME DADO PELA IGREJA CATÓLICA User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar É UM ANDAMENTO MUSICAL LENTO 3 O que o estudo de Jó nos ensina é que o sofrimento é universal. A resposta humana diante dele manifesta a agonia existente na vida, bem como inúmeros paralelos. A característica peculiar da poesia hebraica é o paralelismo, o qual assume três formas: 1.1 Paralelismo antitético Ele denota contraposição e consta de duas clausulas, uma fazendo contraste com a outra, e, dessa forma, esclarecendo a significação de ambas. Esse tipo de paralelismo é muito usado no livro de Provérbios. Um exemplo é Provérbios 12.1: “Quem ama a disciplina ama o conhecimento, mas o que aborrece a repreensão é estúpido”. Às vezes, há duas frases ou clausulas na primeira afirmação, e duas na segunda, como no Salmo 44.3: “Pois não foi por espada que possuíram a terra, nem foi o seu braço que lhes deu vitória, e sim a tua destra, e o teu braço, e o fulgor do teu rosto, porque te agradaste deles. ” 1.2 Paralelismo sinonímico O segundo tipo de Paralelismo é o sinonímico. Na poesia hebraica aparece nas passagens em que o mesmo pensamento é repetido em duas ou mais cláusulas, e se acentua assim a semelhança. Exemplos disso são Salmo 22.28: “Pois do Senhor é o reino, é ele quem governa as nações”, e Provérbios 19.5: “A falsa testemunha não fica impune, e o que profere mentiras não escapa”. 1.3 Paralelismo sintético O terceiro tipo de paralelismo é o sintético. O conceito vem da língua grega, significando “reunido” ou “juntado”. Nessa forma de paralelismo é necessária uma cláusula para explicar a significação da outra. Como exemplos, podemos ver Provérbios 19.3: “A estultícia do homem perverte o seu caminho, mas é contra o Senhor que o seu coração se ira”, e Provérbios 27.1: “Não te glories do dia de amanhã, porque não sabes o que trará à luz”. User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar 4 A característica da poesia hebraica é, portanto, esse uso de paralelismos, que se manifestam em forma de três espécies distintos. Há uma correspondência de ideias mais do que de sons. TEMA 2 – A SABEDORIA EM JÓ Jó, Provérbios e Eclesiastes se constituem como os livros sapienciais do Antigo Testamento. Por mais que se tracem paralelos entre as experiências de Jó e os demais seres humanos, Jó fica muito acima dos seus concorrentes mais próximos, na coerência do seu bem fundamentado tratamento do tema da desgraça humana, no escopo do seu exame dos muitos lados do problema, na força e na clareza do seu desafiador monoteísmo moral, na caracterização dos protagonistas, nas alturas de sua poesia lírica, no seu impacto dramático, e na integridade intelectual com que enfrenta o ‘fardo ininteligível da existência humana’. Em tudo isto Jó fica sozinho. Nada que conhecemos antes ou depois dele forneceu um modelo, inclusive suas numerosas imitações, atingiu as mesmas alturas. A comparação serve apenas para ressaltar a grandeza única do livro de Jó. (Andersen, 1984, p.30) Com o tempo se produziu uma “nacionalização da sabedoria universal do Oriente até transformar-se em uma propriedade comum a todo Israel”, bem como também “se reconhece que a existência e a conduta de Israel têm implicações universais” (Marcos, 2013, p.11-12). O que se percebe é que A sabedoria se comunica a todos os homens como fruto de uma experiência universal sobre a vida humana que também é revelação de Deus. É conhecimento do mundo e do homem com suas limitações, que inclui a vulnerabilidade do planeta e a fragilidade da condição humana. Ao final do período do Segundo Templo, na teologia de Israel a sabedoria termina por identificar-se com o “temor de Deus”, ou seja, com o sentido religioso da existência. (Marcos, 2013, p.12) O reino de Salomão é visto “como o início e o ponto de orientação da Sabedoria israelita” (Williams, 1997, p.289). A sabedoria unifica a vida. Ela “deixa a sua assinatura em qualquer coisa bem-feita ou bem julgada, desde uma observação apropriada até ao próprio universo”. Ela “forma uma base única de julgamento” para todos os campos da existência (Kidner, 1980, p. 13). A sabedoria é vista como o fio que percorria o tecido do Antigo Testamento, sendo Deus aquele cuja vontade se expressa. Essa sabedoria é colocada como estando entre os dois caminhos: o da vida e o da morte (Kidner, 1980, p. 15-16). User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar 5 O livro de Jó nos conta sobre a vida de um homem que perdeu a família, a saúde e as suas riquezas. A partir desse relato, As perguntas mais persistentes acerca do relacionamento entre os homens e Deus receberam tratamento teológico poderoso em poesia cuja majestade e emoção não são superadas em qualquer literatura, antiga ou moderna. (Andersen, 1984, p. 26) Jó sonda as profundezas do desespero humano. A agonia do ser humano se mostra. É nesse contexto que a presença de Deus em meio aos sofrimentos humanos se manifesta. Jó mistura surpreendentemente quase todos os tipos de literatura que se acham no Antigo Testamento nessa abordagem. A crença na bondade presente na criação, na justiça de Deus e na possibilidade da redenção é fundamental para o final feliz que caracteriza o relato do livro de Jó, mesmo se caracterizando como diálogo dramático.Em função destes elementos dramáticos, Jó significou para os rabinos dificuldade de classificação. Alguns irão designá-lo como “peça de ficção instrutiva” e cujo “gênero literário é ambíguo” (Andersen, 1984, p. 34). TEMA 3 – O LIVRO DE JÓ E O SOFRIMENTO HUMANO O livro de Jó nos fala da paciência de Jó em forma de prosa (1.1-2.13; 42. 7-17), mas também em forma de poema (3.1-42.6). O que vem à tona é se há inocentes que sofrem. O fim e o significado de Jó como poema gira em torno disso. Há uma progressão de ideias na sequência dos discursos que aparecem em Jó. Há um processo de “crescente alienação entre Jó e seus amigos, e como uma inclinação cada vez mais intensa de Jó para Deus, expressa no lamento e na esperança”. Deus vai ser destacado como juiz (9.33-35), como sua testemunha (16.19-21) e como redentor (19.25) (Schwienhorst-Schönberger, 2016, p. 294). O sofrimento humano aparece no livro de Jó como forma de exortação divina. O livro de Jó “ensina que os esforços do homem para defender a conduta de Deus só têm como resultado abaixar a divindade ao nível de um ideal humano de justiça e revelam, por isso, uma forma intelectual de idolatria”. Jó, na verdade, mostra “o insucesso da religião em assegurar uma felicidade antropocêntrica” (Terrien, 1994, p. 7). Jó mostra a impaciência dos seres humanos e a incapacidade de se assegurar uma felicidade centrada no ser humano. Os temas especificamente User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar 6 hebraicos – como, por exemplo, a eleição, a aliança, a terra prometida, a missão de Israel, o templo, a lei, o Messias, a escatologia, o julgamento das nações – não fazem parte dos assuntos abordados em Jó. Jó demonstrou ser sem paralelo na literatura hebraica, bem como revela conhecimento íntimo da literatura cultual e profética (Terrien, 1994, p. 10). Ocorre aposta entre Javé e Satã, sendo que o narrador “ignora o valor dos méritos entre os seres divinos e o nega decididamente no tocante aos mortais. Sua finalidade principal era precisamente mostrar que seu herói servia a Deus ‘por nada’” (Terrien, 1994, p.13). Satã é “o acusador e representante da oposição, mas está claramente subordinado a Iaweh” (Wolff, 1978, p.122). O medo permanente da morte mostra a instabilidade emotiva presente no texto, no qual “um infeliz discute com seu amigo o problema da justiça divina e o significado da existência” (Terrien, 1994, p.17). Percebe-se que a sabedoria do Oriente antigo disponibilizou ao “poeta hebreu, senão modelos distintos, pelo menos hábitos retóricos e uma forma literária que sugeria o método de discussão sobre a injustiça num contexto de meditação teológica” (Terrien, 1994, p.18). Terrien comentou que A finalidade da narração em prosa é justamente mostrar que Jó não é culpado, e isso deve ser afirmado sem ambiguidade, como o é nas cenas da corte celeste. Mais ainda: o motivo da aposta entre Lahweh e um membro da assembleia divina tem a qualidade de humor popular que faz pensar em mentalidade politeísta e que é estranho ao monoteísmo piedoso dos escribas da época judaica. A maioria dos críticos aceita, pois, a hipótese da unidade literária da narração em prosa, mas está extremamente dividida na questão de sua relação com a parte poética. 1) Um primeiro grupo de especialistas afirma que o poeta escreveu a história em prosa como ela existe atualmente, se bem que ele se tenha inspirado em antiga tradição oral, em forma já fixada, remontando talvez a uma lenda de origem edomita ou, em todo caso, não hebraica. 2) Um segundo grupo pensa que a narração em prosa foi acrescentada ao poema por um redator de uma época posterior. 3) Um terceiro grupo considera que o prólogo e o epílogo existiam na forma escrita de um Volksbuch muito antes da época do poeta, que o usou como base para apresentar sua meditação teológica dialogada. Foram propostas também muitas variantes desses três grupos de hipóteses principais, e parece que todas as soluções possíveis foram examinadas. O problema literário de Jó é uma das questões mais difíceis da crítica bíblica. (Terrien, 1994, p. 20-21) Jó será apresentado como “modelo supremo da fé, da piedade e do caráter moral (1.21, 22; 2.10)” (Terrien, 1994, p. 22). No prólogo e epílogo do livro Jó é descrito como inocente com relação a todos os crimes possíveis. Ele recebe aprovação divina, sendo apresentado como modelo de fé e de vivencia moral. User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar PRÓLOGO= TEXTO INTRODUTÓRIO EPÍLOGO= CONCLUSÃO, RESUMO DO DESFECHO DA HISTÓRIA User Destacar 7 No epílogo, o julgamento de Yahweh, e, por consequência, do narrador, sobre os amigos é extremamente severo (42.7-10), ao passo que na discussão o poeta mostra a respeito deles uma atitude de imparcialidade notavelmente objetiva. É verdade que as simpatias do poeta são claramente por Jó. Não obstante, ele não oferece uma caricatura grosseira dos amigos. Ao contrário, dá-lhes ampla ocasião de falar e de lhes atribui uma capacidade de compreensão muitas vezes perspicaz. Em suma, ele consegue uma proeza: mostrar seu erro no interior de sua submissão à ortodoxia. É difícil pensar que as palavras dos amigos, como são referidas no poema, justifiquem a cólera divina do epílogo (42.7). Devemos concluir que a narração não chegou até nós em sua forma integral, mas sofreu cortes bastante consideráveis. (Terrien, 1994, p. 23) Nessa porção do livro ocorre uma “grande penetração psicológica”. O poeta deixa transparecer ser o “homem que sofreu as agonias que traduziu em versos” (Terrien, 1994, p. 24). Temas fundamentais são a transcendência de Deus e a precariedade do homem. Os pensamentos de Deus são vistos como fora da capacidade de compreensão do ser humano (Terrien, 1994, p. 30). É para ficar clara a onipotência de Deus, mostrando “a loucura de Jó e a necessidade de sua submissão (42.1-6)” (Terrien, 1994, p. 33). Apesar de não haver clareza completa, há uma tendência a relacionar o livro ao século VI a.C., período da destruição de Jerusalém (587 a.C.). A catástrofe havia atingido o povo, sendo que o poeta “enfrentou resolutamente a existência e levou até o fim a lógica interna de sua fé no Deus que escapava às pretensões do homem” (Terrien, 1994, p. 43). Jó expressou um “senso agudo da incerteza dramática e da psicologia do isolamento religioso”. Ele quis mostrar a “divindade de Deus, a humanidade do homem e a natureza específica da relação entre o Deus que é verdadeiramente Deus e o homem que é realmente homem” (Terrien, 1994, p. 44-45). Jó é descrito como experimentando “tortura fundamental: ele está isolado de Deus”, “abandonado não só dos homens, mas também de Deus” (Terrien, 1994, p. 46). Ele não só leva o leitor “para além da resignação, mas o arrasta também na rebelião contra o Deus dos teólogos” (Wolff, 1978, p. 121). O que se percebe no relato é que Jó “se opõe às tentativas de seus amigos para reduzir o seu sofrimento e a justiça de Deus a um denominador comum de sabedoria tradicional”. Ele se vê “como vítima do uso arbitrário do poder”. Jó provoca Deus a fazer justiça (Wolff, 1978, p. 123). User Destacar User Destacar User Destacar 8 Na parte final, onde ocorre a argumentação com Elihu, a teologia ressalta sobretudo “o caráter de mistério de Deus e do seu agir, mas por outro lado estaria complementando essa teologia pela ideia da função pedagógica do sofrimento” (Schwienhorst-Schönberger, 2016, p. 298). O discurso conclusivo de Jó (nos capítulos 29 a 31) vai se direcionar para os discursos de Deus, nos capítulos 38 a 40 (Schwienhorst-Schönberger, 2016, p. 299). No autotestemunho de Deus, Jó se calou e confessou: “Eu não te conhecia senão por ouvir dizer; mas agora meus olhos te viram” (42.5). “O próprio Deus – e somenteele – venceu o rebelde” (Wolff, 1978, p. 124). A abordagem de Jó gerou afirmações teológicas de que Deus permite o sofrimento. O sofrimento não provém diretamente de Deus, nem é causado pela iniciativa dele. Quem toma a iniciativa é Satanás, e ele também executa a desgraça, porém mediante concessão e também sob claras delimitações do sofrimento por parte de Deus. A permissão do sofrimento por Deus, contudo, atende à finalidade de refutar uma acusação levantada contra Jó, a saber, de que a religiosidade de Jó não seria desinteressada. Assim, por mais paradoxo que possa parecer, na narrativa da moldura a calamidade causada por Satanás ao ser humano (Jó) é permitida por Deus ‘por causa da dignidade do ser humano’. Deus não duvida da natureza desinteressada da fé de Jó, pelo contrário: aposta nela. [...]. O sofrimento é o teste de aprovação do fiel. No sofrimento mostra- se se sua fé e sua justiça são autênticas. (Schwienhorst-Schönberger, 2016, p. 303-304) O livro de Jó não esconde que há elementos caóticos na criação, mas é um “caos sempre de novo controlado pelo Criador. A ordem reiteradamente imposta ao caos não pode nem ser produzida nem suas causas totalmente perscrutadas pelo ser humano (Jó). Ela é ao mesmo tempo maravilhosa, terrível e majestosa” (Schwienhorst-Schönberger, 2016, p. 305). Jó é mencionado como modelo de paciência em Ezequiel 14.12-20 e Tiago 5.10-11, enquanto no diálogo poético foi descrito como impaciente. Satanás sugere que Jó pode ter tido uma piedade não desinteressada. Deus aceita o desafio e deixa o adversário testar Jó. Na sucessão, calamidades recairam sobre Jó. Sua própria mulher o estimulou a amaldiçoar Deus (Greenberg, 1997, p. 306-307). O livro de Jó testemunha que “Javé em última instância se revelará como um Deus que quer e pode concretizar vida abundante justamente para as pessoas atormentadas até a morte” (Schwienhorst-Schönberger, 2016, p. 306). User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar 9 TEMA 4 – OS SALMOS E SUA APLICAÇÃO À VIDA HUMANA Os Salmos são tidos como “poemas provavelmente escritos num período de ao menos cinco séculos”, sendo o 137 um dos tardios, de depois da destruição do primeiro templo, em 586 a.C., enquanto os primeiros são dos séculos X e XI a.C. (Alter, 1997, p. 264). As súplicas e o louvor compreendem mais de dois terços da coleção de salmos. Os salmos falam da “transitoriedade da mera existência humana contra o pano de fundo da eternidade de Deus” (Alter, 1997, p. 270). Os salmos mostram que Os recitadores dos vários poemas representam o estado de proteção que procuram em Deus ou pelo menos agradecem a ele como um escudo ou couraça, uma torre ou fortaleza, uma asa protetora, um dossel ou tenda, sombra refrescante, os perigos que os assediam são animais de rapina, serpentes, flechas, carvões em brasa, pestilência. Os poetas parecem perfeitamente à vontade com esse repertório de imagens, tentando apenas raramente ir além dele. De fato, a familiaridade das metáforas e das locuções familiares pelas quais são geralmente transmitidas é sua vantagem principal. Os contornos do idioma poético foram gastos até chegar a uma agradável maciez pelo longo uso, e é por isso que eles pousam tão confortavelmente na mão do poeta, ou – o que talvez seja mais relevante – na mão do crente comum, nos tempos bíblicos e, desde então, para quem tais poemas foram compostos. (Alter, 1997, p. 272) Há a manifestação da intervenção ativa de protetores, que venham a conduzir os seres humanos para que não se machuquem. A atuação de Deus visa a “resolução inabalável de protegê-lo e garantir-lhe vida longa” (Alter, 1997, p.273). A súplica muitas vezes levanta questões bem explícitas sobre a eficácia da fala do homem a Deus, a possibilidade de uma fala de resposta de Deus ao homem, as tensões entre fala e silêncio, as diferentes funções da linguagem para clamar em aflição e para explorar os enigmas duradouros da condição criatural do homem. [...] No todo, a preocupação com a linguagem nos diz muita coisa sobre o tipo de poesia que foi reunida no Livro de Salmos. A visão de um horizonte de ‘discurso puro’ sugere um esforço confiante para fazer que a poesia sirva como uma expressão adequada e autêntica, dos lábios do homem ao ouvido de Deus, e daí a sensação frequente de poderosa fraqueza, de sentimento sem adornos, nesses poemas. Mas a consciência da linguagem como instrumento, como consciência geralmente explicitada nos textos, reflete uma astúcia de artista em relação aos artifícios verbais por meio dos quais o poeta realiza seus significados. Ambas essas percepções sobre linguagem e poesia têm de ser mantidas em mente se quisermos avaliar a grandeza dos poemas. Os diversos salmos são finamente elaborados com os documentos mais perspicazes do artifício poético, dispondo e reelaborando sutil e conscientemente um conjunto específico de convenções literárias; e apesar de seu tradicionalismo estilístico e alcance arquetípico, conseguem com frequência transmitir a ilusão User Destacar User Destacar 10 persuasiva de uma simplicidade perfeita além dos cálculos e expedientes da arte. (Alter, 1997, p.280-281) Os Salmos foram integrados à bíblia hebraica no final do século II a.C. (Díaz-Caro, 2013, P.15). Em 81 salmos aparece o título “de Davi”, que pode também ser traduzido como “para Davi” ou “do repertório de Davi” (Díaz-Caro, 2013, p. 16). Os salmos estão impregnados de religiosidade popular, cobrindo todos os tipos de registro da alma humana, expressam os desejos da alma em diálogo permanente com Deus. Apresentam também análises sociais, buscando a força de Deus, que guia a moral dos povos, apresentando as queixas dos seres humanos, em forma de súplica (Díaz-Caro, 2013, p. 17). TEMA 5 – DIVISÕES E USO DOS SALMOS Certamente Davi procurou embelezar o culto no santuário. Entre os 288 levitas que escolheu para cantar e tocar os instrumentos musicais achamos menção dos filhos de Coré (1 Cronicas 6.19), Hemã (1 Cronicas 6.33), Asafe (1 Cronicas 6.39) e Etã (1 Cronicas 6.44). A Asafe se atribuem 12 salmos, aos filhos de Coré, onze, inclusive o 88, o qual se atribui também a Hemã, sendo este o único caso em que se menciona o nome do ‘filho’ (ou descendente); e a Etã, um. O nome de Salomão aparece diante do Salmo 72 e 127; e o de Moisés antes do 90. O nome “Saltério” foi a tradução que a Septuaginta escolheu para o instrumento de cordas: saltério. Os 150 Salmos foram divididos em cinco livros, fazendo um paralelo com os temas do Pentateuco. Isto indica também fases distintas de “compilação sucessiva de coletâneas parciais”. Orígenes falou da subdivisão em cinco partes já na metade do século III d.C., bem como em Qumran já há a menção ao livro pentâmero, que se refere à divisão em cinco partes, assim como a Torá. Os Salmos, portanto, “constituem a resposta de Israel à Torá que lhe foi dada”. O Salmo 1 é visto então como “chave hermenêutica” para o livro todo (Zenger, 2016, p.313). A tradução dos salmos pela Septuaginta é situada, o mais tardar, na primeira metade do século I a.C. A carta de Qumran, de cerca de 150 a.C., menciona: “Para que tenhas uma percepção no livro de Moisés e nos livros dos profetas e nos salmos de David” (Zenger, 2016, p. 318). User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar 11 Seguindo a imagem do pentateuco, os salmos são divididos em cinco livros: 1 a 40, como de Davi (menos 1 e 2), pré-exilicos; 41 a 71, como dos filhos de Coré, pósexílicos; 72 a 88, como de Asafe; 89 a 105 e 106 a 150. Essa divisão é de origem litúrgica hebraica. Mesmo que se tenha tentado descobrir algum motivo mais amplo para essa divisão, não há mais nada a relatar do que esseparalelismo com o Pentateuco (os cinco primeiros livros do Antigo Testamento) que podem ser lidos em paralelo. O seu característico era o teor devocional. O conteúdo didático, histórico, profético ou prático forma a base da oração e do louvor cantado. Os Salmos devem ser “lidos como Torá, no sentido da orientação de vida por excelência, dada por Deus” (Zenger, 2016, p.315). O temor desse Deus é o princípio da sabedoria, a fonte e propósito para a vida. Esse princípio se revela no conteúdo dos Salmos e é expresso nas variadas temáticas trabalhadas nos 150 cânticos, advindos da vida concreta do povo de Deus. Os especialistas defendem que os salmos de Qumran foram utilizados liturgicamente. Devem também ter sido utilizados nas sinagogas em Israel. Eram “salmos de resposta” a leituras da lei realizadas nos cultos judaicos. No Novo Testamento há menção a cultos domiciliares em que foram utilizados salmos bíblicos, como Atos 4.24-30 (Zenger, 2016, p. 316). Os Salmos são o “livro predileto do cristianismo”. Isto se percebe pelo fato de que um terço das citações do Antigo Testamento que ocorrem no Novo Testamento procede do livro de Salmos (Zenger, 2016, p. 317). Há nos Salmos quatro gêneros básicos: salmo de lamentação (Sl 6 e 13), salmo de súplica (Sl 5 e 17), salmo de louvor (Sl 113 e 117) e salmo de gratidão (Sl 30 e 116) (Zenger, 2016, p. 318-319). Os Salmos são anotações do diálogo entre Israel e Deus. Os Salmos expressam a resposta de Israel ao que Deus manifestou, muitas vezes mostrando o confronto de Israel diante do que Deus está fazendo ou do seu ocultamento. Às vezes, o “eu” e o “nós” se fundem num mesmo Salmo. Fica claro também que a “comparação dos salmos de Israel com os do mundo em redor mostra: as orações na forma do ‘nós’ são uma especificidade de Israel” (Zenger, 2016, p. 319). Cada um dos Salmos atesta “a convicção de que a vida humana unicamente pode se realizar e se consumar como vida perante e com o Deus User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar 12 vivo”. Os salmos são “as orações de esperança messiânica”. São entoados na esperança pela vinda do reino de Deus (Zenger, 2016, p. 320). O Novo Testamento mostra Jesus se utilizando dos Salmos como base para a oração no meio cristão. Por isso, o Cristianismo não produziu nenhum hinário ou livro de oração nos primeiros séculos. A Igreja se atinha aos salmos de Davi “por fidelidade a Jesus, que orou os salmos”. Em termos teológicos, temos de reconhecer que a “cristologia do Novo Testamento é, em boa extensão, “ cristologia de salmos”. O que se estimulava era o uso de Salmos e cânticos espirituais, como se percebe em 1 Co 14.15, 26; Cl 3.16; Ef 5.19. Tertuliano é o primeiro pai da igreja latino que “recorre aos salmos de David, que ele contrapõe aos hereges platonizantes como testemunhos bíblicos da verdadeira humanidade de Jesus” (Zenger, 2016, p. 322). NA PRÁTICA Estudamos os livros Poéticos do Antigo Testamento, de forma introdutória. Vimos que Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes e Cantares são os livros poéticos do Antigo Testamento, os quais são também intitulados como livros de Sabedoria. A característica da poesia hebraica é o paralelismo, sendo que assumem três formas: antitético, sinonímico e sintético. Nessa aula nos concentramos em Jó e Salmos. Jó trouxe à tona o tema da desgraça humana. A sabedoria é colocada como estando entre os dois caminhos: o da vida e o da morte. A agonia do ser humano se mostra. É nesse contexto que a presença de Deus em meio aos sofrimentos humanos se manifesta. O que vem à tona é se há inocentes que sofrem. No livro, se manifesta também a ação de Satã, o acusador e representante da oposição, mas que não pode realizar nada a não ser que Deus permita. A finalidade da narração em prosa é mostrar que Jó não é culpado das tragédias que lhe sobrevieram. Temas fundamentais são a transcendência de Deus e a precariedade do ser humano. Vêm à tona a incerteza dramática e a psicologia do isolamento de Jó. Jó se opõe às tentativas de seus amigos de reduzir o seu sofrimento e a justiça de Deus a um denominador comum de sabedoria tradicional. Depois de vermos o conteúdo de Jó, abordamos o conteúdo dos Salmos. Eles testemunham sobre a atuação de Deus, o qual protege e garante uma vida User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar 13 longa aos seres humanos. Os Salmos expressam os desejos da alma em diálogo permanente com Deus. No Novo Testamento, os cultos utilizavam os Salmos, o qual aparece como livro predileto do Cristianismo. Neles aparece o diálogo entre Deus e o seu povo. Os Salmos expressam a resposta ao que Deus manifestou. Os Salmos mostram o confronto de Israel diante do que Deus está fazendo ou do seu ocultamento. As orações de “nós” são uma especificidade de Israel. Os Salmos são orações de esperança messiânica, entoados na esperança pela vinda do reino de Deus. A igreja usou os Salmos como hinário cristão. Não há outros hinários no século II d.C. FINALIZANDO A crença na bondade presente na criação, na justiça de Deus e na possibilidade da redenção é fundamental para o final feliz que caracteriza o relato de Jó. Jó provocou Deus a fazer justiça. Essa visão é complementada teologicamente pela ideia da função pedagógica do sofrimento. Diante do auto testemunho de Deus, Jó se calou e confessou que conhecia Deus somente por ouvir dizer, mas agora seus olhos o viram (Jó 42.5). O próprio Deus venceu o rebelde Jó. Os Salmos são a resposta de Israel à Torá (os mandamentos), são orientação de vida por excelência, dada por Deus. Os temas dos Salmos são advindos da vida concreta do povo de Deus. Que Deus nos ajude e desafie a partir dos livros poéticos do Antigo Testamento. Continue firme em seus estudos! User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar User Destacar 14 REFERÊNCIAS ALTER, R. Salmos. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank (org.). Guia literário da Bíblia. São Paulo: UNESP, 1997. p.263-281. ANDERSEN, F. 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Antiguo testamento, 7) TERRIEN, S. Jó. São Paulo: Paulus, 1994. (Coleção grande comentário bíblico). WILLIAMS, J. Provérbios e eclesiastes. In: ALTER, Robert; KERMODE, F. (org.). Guia literário da Bíblia. São Paulo: UNESP, 1997. p.283-304. WOLFF, H. Bíblia: Antigo Testamento: introdução aos escritos e aos métodos de estudo. São Paulo: Paulinas, 1978. ZENGER, E. III. O livro dos Salmos. In: ZENGER, Erich et alii. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2016. p.306-323. _____. Peculiaridade e importância da sabedoria em Israel. In: ZENGER, E. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2016, p.283-291.