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Aquisição de Desenvolvimento da Prática da Leitura e Escrita Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Esp. Ivete Palange Revisão Textual: Prof. Me. Claudio Brites Evolução Histórica e Social da Escrita e Leitura Evolução Histórica e Social da Escrita e Leitura • Identificar a importância da escrita no processo de civilização, sua evolução histórica e transformação; • Identificar o papel da leitura em diferentes momentos históricos; • Compreender as diferentes estratégias para a leitura. OBJETIVOS DE APRENDIZADO • A Evolução Social e Histórica da Escrita e Leitura; • Escrita e Civilização; • A Criação do Alfabeto; • A Língua Escrita em Funcionamento; • A Leitura e suas Modalidades. UNIDADE Evolução Histórica e Social da Escrita e Leitura A Evolução Social e Histórica da Escrita e Leitura Educadores que se preocupam com a aprendizagem da leitura e escrita necessitam conhecer e discutir aspectos da natureza do ato de ler e escrever. A escrita é um instru- mento, uma tecnologia inventada pelo ser humano. Essa invenção buscou a modificação da realidade e trouxe também a transformação desse mesmo ser humano no mundo. Como prática social e na evolução histórica, a escrita apresenta aspectos de mudança e de permanência. Identificar algumas das raízes do escrever e ler contribuem para a compreensão da evolução da escrita através dos tempos. O mundo em que vivemos está envolto pela escrita em diferentes formas, tamanhos, cores e suportes no cotidiano das pessoas. Como a comunicação e a transmissão do conhecimento foi se alterando através do tempo? Como o hoje se diferencia do ontem? Quais as marcas históricas da evolução da escrita? Como o significado do ler e escrever se alterou através dos tempos? A escrita é um instrumento de poder? São inúmeras as questões que nos mobilizam diante da escrita. Esse texto é um pe- queno recorte e, como tal, não pretende responder a todas as questões. A expectativa é que você, leitor, complete algumas lacunas, elabore novas questões, atribua significado às informações construindo o conhecimento. A sua inquietação amplia a possibilidade para o conhecimento da escrita e leitura. Escrita e Civilização Você já observou como a escrita está presente nas diversas dimensões da vida humana? A escrita está presente nos mais diversos contextos sociais da vida cotidiana. Ela é usada no dia a dia, nas listas de compras, nas receitas, na comunicação com amigos e familiares nas redes sociais digitais. No deslocamento pela cidade, a encontramos em cartazes, placas de orientação nas ruas e transportes. O universo de letras, palavras, significados diversos, no trabalho, na escola, e em todos os locais que frequentamos, a escrita no instiga a conhecer como tudo isso começou e como foi sua evolução. A comunicação sempre foi uma preocupação do ser humano. Ao viver em grupo, há a necessidade de desenvolver formas para compreender e ser compreendido pelos outros. Inicialmente, a transmissão das ideias e pensamentos era realizada por gestos, expressões e sons que deram origem à fala. As palavras faladas associadas a objetos trazem a memória, (re)apresentam o que está ausente. A palavra cervo, por exemplo, associa um som a um animal, o faz presente na comunicação, mesmo que ele esteja ausente fisicamente. A palavra cervo não é o animal, mas o (re)apresenta à memória. Ao ouvir a palavra, a associamos ao animal que conhecemos. A linguagem ordena o mundo e agrupa em categorias os objetos, eventos e situações. 8 9 Como a fala, os desenhos e pinturas, além de expressarem de forma artística o mundo, ultrapassavam o seu valor estético, registravam símbolos que comunicavam fatos e ideias. Era possível, mesmo sem uma preocupação maior com detalhes, identificar pessoas, ob- jetos e algumas ações – como a caça, por exemplo. Figura 1 – Detalhe de um caçador em um arte rupestre Fonte: Getty Images O desenho é uma escrita, ele comunica e ajuda a memorizar um fato; é um recurso mnemônico. Por meio dos desenhos e pinturas, era possível recontar uma situação vivida, descrever como foi realizada a caça a um animal, por exemplo. O registro, por meio do desenho e da pintura, era realizado, inicialmente, de forma individual, mas aos poucos tornou-se social. A mesma representação passou a ser usada por um grupo de pessoas se transformando em símbolo para aquela comunidade. Todas as pessoas do grupo aprendiam a representar uma ideia ou fato com os mesmos desenhos ou pinturas. Um mesmo desenho, então, passou a ter significados semelhantes, é o que chamamos de logografia. Por exemplo, o desenho do sol podia significar sol e, também, expressar a ideia de brilhante; um pé podia significar pé, caminhar, ficar em pé, apressar-se ou car- regar. A logografia é uma representação ideográfica, em que uma mesma imagem está associada a significados semelhantes. Não se conhece o inventor da escrita, da mesma maneira que não se conhece as pes- soas responsáveis por outras invenções importantes para a humanidade, como a roda, a flecha etc. Contudo, é importante destacar que a invenção da escrita não aconteceu de um momento para outro, seu surgimento está associado ao desenvolvimento de as- pectos relacionados à civilização humana. O ser humano deixou de ser nômade, se fixou na terra, produziu manufaturas, desenvolveu a agricultura, construiu cidades, ampliou o comércio, o transporte, as artes e a cultura, construiu uma civilização. Essas condições geraram a necessidade de se aprimorar a comunicação e favoreceu ao aparecimento da escrita. Como diz Barbosa, (1990, p. 34): “A escrita precisa de civilização para existir, da mesma forma que não existe civilização sem escrita.” A escrita é o marco de passagem da pré-história para a história humana. O desenvolvimento que observamos hoje na humanidade, observado na engenharia, me- dicina, tecnologia, cultura, transporte, educação, seria possível se não houvesse a escrita? 9 UNIDADE Evolução Histórica e Social da Escrita e Leitura A humanidade como a conhecemos hoje não existiria se não houvesse a escrita, que evoluiu através dos tempos, adquirindo diversas formas. As características de cada forma da escrita retratam uma época e o desenvolvimento da humanidade. O primeiro registro escrito encontrado foi uma pequena pedra na base de um templo na Suméria, onde o construtor escreveu o nome do rei da época (3150 a 3000 a.C.). Na Suméria, inicialmente a escrita usava o mesmo símbolo com diversas interpretações. Mas, devido às grandes movimentações comerciais, era necessário obter um registro que ofe- recesse maior precisão. Era necessário registrar o número de mercadorias transportadas do campo para a cidade e vice-versa, quem enviava, quem transportava e quem recebia. Assim, a ambiguidade dos símbolos foi substituída pela escrita cuneiforme, com desenhos que repre- sentavam os sons das palavras. A palavra falada torna-se o signo e então a escrita passa a ser associada à língua oral. Exemplo: a ideia de discórdia era representada de forma ideográ- fica por duas mulheres brigando; evoluiu para a representação de um disco e uma corda (disco + corda), associada agora à sua representação fonética (BARBOSA, 1990, p. 35). Você já viu uma carta enigmática? Ela se assemelha a essa ideia. A junção de duas imagens pode formar uma palavra, como no exemplo da Figura 2. Figura 2 – Sol+dado = soldado Fonte: Adaptado de Getty Images A escrita cuneiforme possui sinais gráficos representando sons e eles eram desenhados em forma de cunha em peças de argila, como na Figura 3. Figura 3 – Escrita Cuneiforme Fonte: Getty Images Observe os sinais da Figura 3, eles representam os sons das sílabas. Os gregos, mais tarde, chamaram a representação dos símbolos desenhados de hieróglifos (hiero = sagrado e glifos (ghiphein) = gravação). Com esses sinais foi possível representar todas as formas linguísticas. 10 11 Os sumérios padronizaram os sinais, os transformaram em signos, com osmesmos desenhos. Estabeleceram, também, normas e regras para a direção da escrita e sequência de linhas. Para escrever era necessário aprender os signos, a forma de representá-los e os princípios e as normas para a representação. Nessa época, poucas pessoas sabiam escrever, e os que sabiam liam para o restante do grupo. A Criação do Alfabeto Os princípios da escrita suméria espalharam-se pelo Oriente e chegaram ao Egito por volta de 3000 a.C.; e na Grécia, por volta do ano 2.000 a.C. O Egito contribuiu para o desenvolvimento da escrita substituindo o suporte da argila ou de pedras onde os sumérios escreviam pelo papiro. Para registrar os sinais no papiro, usavam penas de caniço embebida em tinta de água e fuligem engrossada com goma. A escrita egípcia estabeleceu 24 sinais que correspondiam às consoantes das palavras. As vogais não tinham representação e eram interpretadas pelo contexto. Os gregos desenvolveram o alfabeto, um conjunto de sinais de escrita que expres- savam os sons individuais da língua. O sistema alfabético, desenvolvido pelos gregos, correspondia a 27 letras, com vogais e consoantes. O alfabeto se espalhou pelo mundo, foi aprimorado pelos romanos. Nosso alfabeto também tem origem no alfabeto grego. A escrita é um sistema de intercomunicação humana que se desenvolve por meio de signos convencionais e visuais. A escrita é mais conservadora do que a língua falada, mas mesmo assim é um processo dinâmico e se altera ao longo do tempo. A evolução da escrita busca sempre simplificação, economia e agilidade. A escrita não evoluiu linearmente, foi movimentada pela história, obedecendo sempre determinada sequência, passando pela logografia, silabografia e alfabetografia. A evo- lução da escrita de um povo segue sempre essa sequência, mas pode parar em uma das etapas, como foi o caso da China, por exemplo. A escrita chinesa se manteve ideográfica possivelmente, porque as representações ideográficas atendiam aos objetivos da elite chi- nesa, embora fosse inacessível a 90% da população. É importante observar que a evolução da escrita também depende do suporte dos registros e da sua reprodução. Em relação ao suporte da escrita, na Idade Média, por exemplo, muitos documentos eram destruídos para se reaproveitar o mesmo papiro para outros registros. Para reproduzir a escrita, eram feitas cópias para preservar os do- cumentos. Copiar documentos tornou-se uma profissão, muitos desses copistas viviam em monastérios. Sendo assim, a Igreja foi a responsável pela preservação de muitos documentos ao longo do tempo, embora limitasse o acesso das pessoas aos escritos que ela considerava hereges, não sagrados. Os chineses criaram, fabricaram e disseminaram o papel, o que contribuiu muito para o desenvolvimento da escrita. Para reproduzir os textos em maior número, a con- tribuição de Gutenberg, ao criar a impressão por meio de tipos móveis, também ampliou a possibilidade de acesso à escrita. Outras invenções importantes, como os óculos, a máquina de escrever e os processos fotográficos também contribuíram para disseminar a escrita e preservar a cultura. 11 UNIDADE Evolução Histórica e Social da Escrita e Leitura O acesso à escrita está relacionado ao desenvolvimento de um povo. O número de analfabetos é muito maior em países não desenvolvidos. Os analfabetos de um país são as pessoas menos favorecidas cultural, econômica e politicamente. Os registros de uma sociedade que possui a escrita são feitos por aqueles que a dominam. Assim, muitos fatos da história são relatados e registrados por uma elite, não pelos “perde- dores” ou menos favorecidos. A escrita também sempre foi alvo daqueles que buscavam subjugar um povo, pois a destruição da escrita destrói o registro de uma cultura. Os nazistas, por exemplo, ao as- sumirem o poder, mandaram queimar todos os livros de ideologias diferentes das deles. Da mesma maneira, os aliados, vitoriosos da Segunda Guerra Mundial, mandaram quei- mar todos os livros de inspiração nazista. A Língua Escrita em Funcionamento Na análise histórica da escrita, observamos a relação do sujeito com a linguagem as- sociada a uma técnica, uma invenção, uma tecnologia, que permite a ele atribuir sentido ao mundo. A oralidade foi nossa primeira via de acesso à linguagem, pela escuta e fala. O acesso à linguagem pela escrita é realizado pelo olhar, pelo visual. O conhecimento que circula pela escrita na pedra, na argila, no papiro, no livro impresso ou na tela do computador pode ser chamada de tecnologia da linguagem. A tecnologia que o ser humano inventa para transformar o mundo, também o trans- forma. A tecnologia usada tem efeito sobre a escrita e sobre a língua. Não se escreve da mesma maneira no computador e na pedra ou no papiro, pois os instrumentos mudam, e com eles a relação do sujeito com a linguagem, com a escrita, com o conhecimento sobre a língua, com a construção das relações sociais. Inicialmente o domínio da escrita era para poucos. Com o crescimento das cidades, o surgimento das indústrias, o desenvolvimento econômico, cultural e social, o acesso à escrita tornou-se necessário e restrito àqueles que podiam pagar. O ensino da escrita era individual, orientado por preceptores que dominavam a arte da escrita. Ler e es- crever eram atividades distintas. Havia preceptores diferentes conforme a especialização em escrita, leitura ou matemática. A partir da reprodução da escrita na forma de livros, almanaques, panfletos, entre outros formatos, o acesso à cultura exigia que a maioria das pessoas aprendesse a ler e escrever. Assim, as escolas foram construídas para substituir os preceptores e transformaram o ensino individual em ensino de massa. O ensino transferido para a escola se preocupa com o processo que passou a ser chama- do de alfabetização, buscando desenvolver metodologias que permitissem a aprendizagem da leitura e escrita. Herdamos, em nossas escolas, essa concepção de alfabetização escolar. A escrita pode ser analisada buscando-se entender como as diferenças gráficas in- dicam as variedades sonoras, pois, na sua origem, a tentativa era essa, de desenvolver um sistema gráfico espelhado na fala. O problema é que esse referencial passou a ser o mesmo para alfabetizar, e os alfabetizados foram convencidos, por muito tempo, que, 12 13 para dominar a escrita, bastava seguir com o olhar o texto escrito transformando em sons as letras, sílabas e palavras. Uma coisa é o princípio da construção da escrita, outra bem diferente é a dinâmica do uso. Para analisar o uso da escrita é preciso observar a importância que ela tem no mundo em que se vive, a variedade presente no cotidiano das pessoas, a pluralidade de intenções na leitura, ou como se busca uma informação diante da escrita, o que é preciso fazer para compreender o significado do que está escrito. Tanto a língua escrita como a oral são compostas de algumas características físicas chamadas de estrutura de superfície. Por exemplo, o som de uma palavra ou as letras da palavra fazem parte da estrutura de superfície de uma língua. O significado da palavra é chamado de estrutura profunda. Quando ouvimos uma pessoa falar, não ouvimos apenas os sons, mas os classificamos pelo significado que possuem. Ou seja, quando ouvimos uma pessoa falar, não nos preocupamos apenas com os sons, mas com seu significado, com a estrutura profunda da língua. Uma pa- lavra pode ter mais de um significado, pode variar dependendo da frase, pode ser um substantivo ou um adjetivo etc. No mundo há mais ou menos de 3 a 4 mil línguas e todas possuem uma estrutura de superfície diferente da estrutura profunda e palavras que têm mais de um significado. Além do significado, uma palavra pode ter um sentido. Por exemplo, a palavra automóvel pode ter o mesmo significado para duas pessoas, mas terá sentidos diferentes para quem sofreu recentemente um acidente de automóvel e para quem irá adquirir pela primeira vez um automóvel novo. Há histórias e experiênciasdiferentes associadas às palavras. Importante! Um educador precisa estar atento à estrutura profunda da linguagem de seus alunos, ao significado e sentido que eles atribuem às palavras. A comunicação pode ser alterada pelas diferenças atribuídas a estrutura profunda da língua. As pessoas que vivem num mesmo meio cultural desenvolvem uma mesma organi- zação do mundo e a linguagem tende a refletir esse mundo. Nesse nosso século, temos acesso a infinitas informações, tecnologias digitais, mobile, internet das coisas, com novos suportes, reprodução e formas de comunicação. A escrita permeia as novas tec- nologias e introduz uma variedade de significados e sentidos na interpretação do mundo. As crianças nascem explorando as tecnologias digitais, mergulham em um mundo de palavras espalhadas pela cidade, manuseiam jornais, revistas, assistem televisão. Nesse complexo contexto da escrita, não parece ser eficaz usar como única estratégia o prin- cípio fundamental do sistema alfabético. Nem todos que vivem em uma mesma cidade têm acesso aos mesmos meios culturais e tec- nológicos. A escrita terá diferentes sentidos para crianças que têm ou não acesso aos mes- mos meios. Como educador, então, como incluir essas crianças na compreensão da escrita? A escrita se transforma e as estratégias de leitura, também. A seguir, exploraremos essa transformação e alguns aspectos que estão presentes no ato de ler. 13 UNIDADE Evolução Histórica e Social da Escrita e Leitura A Leitura e suas Modalidades Ler na Antiguidade tinha uma relação estreita com a oralidade. A leitura era em voz alta. A escrita era pouco valorizada. O diálogo era usado como a principal forma para a transmissão das informações. Sócrates nada escreveu. Platão, discípulo de Sócrates, apesar de suas restrições em relação à escrita, escreveu suas ideias em forma de diálogo para preservar a metodologia do mestre. Para esses dois filósofos da Antiguidade, a comunicação deveria ter alma, emoção e ser pública. No coletivo, surgiam diversas opiniões sobre um assunto e o contraditório permitia o debate das ideias. Para eles, a escrita se mostrava fria, porque não trazia o debate de ideias, não contemplava o contraditório e, ainda mais, não estimulava a memória. Para alguns estudiosos, pode-se interpretar a resistência dos filósofos à escrita por ela ser uma nova tecnologia. A resistência sempre está associada ao surgimento de novas tecnologias, como, por exemplo, muitos consideraram que o computador iria destruir o livro, o DVD iria destruir o cinema, a televisão o rádio. A escrita em documentos antigos era produzida em rolos de papiro com as palavras escritas em colunas, sem que houvesse espaço em branco entre elas. Para ler, era preciso segurar o rolo com as duas mãos, o que dificultava a leitura da obra toda, permitindo o acesso somente a alguns trechos da obra. Ler e escrever ao mesmo tempo era impensável. Os rolos eram chamados de volumen (Figura 4). Figura 4 – Exemplo de volumen Fonte: Getty Images Apesar das dificuldades para a leitura, foram criadas, na Antiguidade, grandes biblio- tecas, como a de Alexandria, no Egito, século II, que possuía mais de 500 mil obras. 14 15 Figura 5 – Códice Fonte: Getty Images A partir do século II, o pergaminho permitiu organizar o texto em códice, lâminas de folhas sobrepostas, o qual foi um precursor do livro O códice facilitou a leitura. Os centros de cultura da Antiguidade foram destruídos pelas invasões bárbaras e a leitura passou para dentro dos templos e das igrejas, realizada a partir das Sagradas Escrituras cristãs. Até o século X, poucas pessoas sabiam ler e a leitura era pública, ou seja, uma pessoa lia e as outras escutavam. Acreditava-se que as palavras lidas pro- vocavam bons sentimentos naqueles que as ouviam. Eram poucos os textos copiados manualmente por profissionais chamados copistas, a partir de uma espécie de “ditado”. A leitura silenciosa foi uma revolução no ato de ler, sendo registrada pela primeira vez por Santo Agostinho, que testemunhou a leitura de Santo Ambrosio, sem que ele mo- vesse os lábios e a língua. Ler em silêncio exige mais concentração, é mais rápido do que em voz alta e liberta o leitor para seguir o seu ritmo de leitura, voltar ou pular parte do texto. Alguns críticos da época censuravam o ato de ler silenciosamente, considerando perigosa essa forma de leitura, que era um sonhar acordado, podendo despertar o ócio no leitor. Apesar das críticas, a leitura silenciosa se disseminou e foi necessário introduzir a pontuação e os espaços em branco entre as palavras para facilitar o ato de ler. A Igreja cuidava da escrita, preservando e copiando os textos produzidos, e, também, ensinava a ler àqueles que desejassem seguir carreira religiosa. A aprendizagem era em Latim, decorando o Livro dos Salmos. A Igreja desenvolvia também, nas suas casas pa- roquiais, o catecismo para as crianças. Esta forma de ensino coletivo irá inspirar, mais tarde, as salas de aula das escolas e o contato das crianças com a escrita e leitura. Lutero abalou o equilíbrio existente nos monastérios. Comprometido com a reforma da Igreja ele precisava de adeptos, de ampliar o acesso às suas ideias. A escrita foi o caminho que ele seguiu e passou a fazer campanha para a escolarização das crianças, alfabetização de todos e começa a propagar a ideia que o melhor amigo do ser humano é o livro. Nessa época, a reprodução dos textos era facilitada pelos tipos móveis desen- volvidos por Gutenberg. Lutero produziu na sua tipografia trinta publicações com suas ideias e em três anos (1517 a 1520) vendeu mais de 300 mil exemplares. 15 UNIDADE Evolução Histórica e Social da Escrita e Leitura A Igreja excomungou Lutero e elaborou uma ideologia para a escola baseada na for- mação cristã. Desenvolveu muitos textos para se contrapor às ideias de Lutero. Embora o embate entre Lutero e a Igreja fosse religioso, a história da escolarização da alfabeti- zação em massa, voltada a todas as classes sociais, tem origem na luta entre a Reforma Protestante e a Contrarreforma. Com o desenvolvimento das cidades entre o século XI e XIV, o acesso à escrita, restrito à aristocracia, amplia-se para a população. As escolas tornam-se responsáveis pela alfa- betização, os livros, instrumentos do saber, e as bibliotecas, espaços de leitura silenciosa. Havia, inicialmente, poucos livros e eles eram caros. Eram produções artesanais e cada artesão colocava sua arte na composição de cada uma das folhas. O contato físico com o livro, com seu padrão gráfico, despertava um prazer estético, na manipulação de uma verdadeira obra de arte. Além de admirar o aspecto gráfico, o leitor lia da primeira até a última linha, aproveitando a rara e especial oportunidade de contato com uma obra de arte. Era muito comum ler e reler diversas vezes o mesmo livro. As leituras eram comentadas em rodas familiares e sociais e nos clubes de leitura. Nas escolas, os professores ditavam para os alunos os conteúdos dos livros. Estudantes e professores realizavam anotações em cadernos que os acompanhavam pela vida. O ditado foi uma herança que, por muito tempo, se reproduziu na educação. O desenvolvimento urbano trouxe a necessidade de um número maior de pessoas educadas social, profissional e culturalmente preparadas. O analfabetismo passou a ser discriminado, pois uma pessoa que não dominava a escrita era considerada um ser eco- nomicamente desadaptado, sem acesso à cultura dominante da sociedade. A técnica de reprodução da escrita, por meio das prensas, permitiu o aumento do número de livros e o surgimento de outros formatos de publicações. O cordel, impressos de venda ambulante, almanaques, jornais e revistas propiciaram o desenvolvimento de novas estratégias de leitura, mais rápidas e variadas, em comparação com a dos livros. As novas publicações passaram a ser consumidas como entretenimento. Se até o final do século XVI a leitura era somente de livros sacros, no séculoXVII as obras profanas invadiram o mundo, na forma de almanaques, contos populares e amo- rosos. Considerava-se, então, dois tipos de leitores: os que liam em família conteúdos sacros e edificantes e aqueles que liam individual e silenciosamente conteúdos profanos. No século XVIII, a produção de romances era mal vista pela maioria das sociedades, pois essas consideravam que as histórias de amor poderiam abalar os princípios das lei- toras solteiras, com ideias consideradas impróprias. A preferência dos leitores era pelos textos de história e de acontecimentos de viagem. Os clubes de leitura reuniam pessoas interessadas em ler e discutir os diversos textos. Não existiam também direitos autorais e os escritores eram profissionais como mé- dicos, advogados, padres, funcionários públicos, entre outros. Um dos almanaques, La France Litteraire, em 1756, publicou uma relação com os 1187 escritores vivos, na época, sendo que apenas 16 eram mulheres. Rolf Engelsing e David Hall, em pesquisas independentes sobre a leitura, consideram que, no século XVIII, houve uma revolução na leitura, classificando-a em dois modelos: 16 17 Importante! • Da Idade Média até 1750: a leitura era intensiva. Lia-se em voz alta e em grupo várias vezes a Bíblia, almanaques e catecismos; • A partir de 1750: a leitura era extensiva. Lia-se principalmente romances, novelas e jornais. Nos clubes de leitura, as pessoas liam uma obra rapidamente apenas uma vez e passava-se para a próxima leitura. A leitura transforma-se em entretenimento. A partir do século XVIII, há uma preocupação em formar leitores para consumir mais livros. Os educadores, preocupados com o incentivo exagerado a leitura, divulgavam alertas para os riscos de excesso de leitura. Inicia-se, também, nesse período, a produção de livros didáticos para permitir uma boa formação das crianças. Rousseau publica, em 1761, o romance Nouvelle Héloise, o maior bestseller do século XVIII. A procura do livro superou o fornecimento dos livreiros e ele foi alugado por dia e até por hora. O romance explora um amor proibido em um contexto de natureza e cultura. A escrita, hoje, está presente na maioria das atividades da nossa vida. A escrita social com caracteres e funções diferentes propicia leituras diferentes. Para retirar a informação desejada da leitura, são usadas diversas estratégias. A flexibilidade na atenção, a identifi- cação de diferentes formas de leitura são fundamentais para que o ser humano moderno possa apreender o sentido de um texto. Infelizmente nem sempre a escola leva em conta a escrita diversificada da vida social e a evolução das modalidades de leitura. A escola costuma centrar a leitura em livros, na escrita literária. Contudo, há uma abundância de informações no nosso tempo, e se lê apenas uma pequena parcela do que é produzido. É preciso estimular a leitura de cartazes, cardápios, placas de rua, embalagens, entre outros meios da escrita, além dos livros. Ler é uma atividade complexa é ideovisual, envolve o que está na frente e atrás do olhar. É uma atividade visual porque depende de um texto, da iluminação do ambiente e, às vezes, de um par de óculos. Mas o leitor também precisa de informações que estão na sua cabeça, na sua estrutura cognitiva. Leitura pressupõe previsão, antecipar natureza e conteúdo do texto. A previsão da natureza do texto está relacionada com as palavras e letras. Há letras e palavras que são mais frequentes em uma língua. Ao praticarmos a leitura, aprendemos quais são as letras e palavras mais frequentes e como isso conseguimos antecipar a leitura, eliminar a incerteza diante do texto. No dicionário Aurélio, em 2020, constata-se 435.000 palavras com significado (ver- betes). O número de palavras que uma pessoa de instrução média usa é em torno de 1500 palavras. A antecipação das palavras conhecidas e letras mais frequentes ajuda na leitura de um texto. O que diferencia um texto fácil de um texto difícil em relação ao conteúdo? 17 UNIDADE Evolução Histórica e Social da Escrita e Leitura Em relação ao conteúdo, a previsão, a antecipação, depende do conhecimento que temos sobre o assunto a ser lido. Algumas pesquisas indicam que a facilidade da leitura de um texto está relacionada a 80% de informações conhecidas e 20%, desconhecidas. Para uma boa leitura, o leitor depende mais de informações não visuais do que visuais. Ler é atribuir significado a um texto escrito. O significado que o leitor atribuirá ao texto depende do que já conhece sobre o assunto, do seu interesse e das questões que ele se coloca. A leitura depende do que se conhece e do que se procura conhecer. A leitura não é um saber, é uma prática. Quais as consequências dessas ideias para o ensino da escrita e leitura na escola? Em Síntese Em amplos saltos históricos e sem maiores aprofundamentos, viajamos pelo tempo no processo de construção da escrita e da leitura. Condições sociais, políticas e econômicas levaram ao desenvolvimento da escrita, como forma de intercomunicação humana e marco da passagem da pré-história para a história. Observamos como a partir dos regis- tros escritos é possível conhecer melhor a vida e o desenvolvimento dos povos. A escrita depende de um processo de civilização. Como toda tecnologia, a escrita também sofreu resistência. Apesar disso, sua existência se aprimorou nos suportes e nas técnicas de reprodução que permitiram sua disseminação por todo planeta. Nas lutas de poder dos povos, a escrita é alvo de destruição, pois nela encon- tramos o pensamento e a cultura de um grupo social. Embora importante para a vida em diferentes povos e culturas, é, também, inacessível à camada das populações mais vulneráveis. A escrita se transforma diante das mudanças culturais, econômicas e tecnológicas. A escri- ta se modifica nos novos suportes e ambientes, os quais vão das pedras aos computadores. A leitura dos registros escritos representados por desenho evoluiu para sons de letras e pala- vras em diversas línguas. Mas, além deles, a escrita também traz na sua estrutura profunda o significado. A forma como interpretamos o mundo e a experiência com as palavras é social, do nosso grupo, mas também é individual, depende da nossa estrutura cognitiva. O significado da escrita é social, mas também individual. Construímos estratégias de leitura para responder- mos às questões que nos formulamos diante dos textos, nos mais diversos formatos, da nossa sociedade. Quem atribui significado ao texto é o leitor. Educadores que somos, preocupados com o acesso à escrita e à leitura das crianças das nossas comunidades, precisamos conhecer e aprofundar conteúdos associados ao ato de escrever e ler. O desenvolvimento da escrita e leitura, os contextos históricos e culturais, os diversos suportes e reprodução, as características estruturais da língua geram reflexão e alguns critérios para a seleção de estratégias de ensino para o ler e escrever. Esperamos que este texto, um pequeno recorte da história e evolução da escrita e lei- tura, tenha mobilizado você para a formulação de muitas outras questões e que sua curiosidade encontre em outros textos e recursos formas para completar, aprofundar, discutir alguns dos pensamentos aqui registrados. 18 19 Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros A importância do ato de ler em três artigos que se completam Nesta obra, Paulo Freire apresenta em três artigos a importância da leitura e as- pectos relacionados à educação de adultos. No primeiro artigo, A importância do ato de ler, que recomendamos para sua leitura, Freire retoma o ato de ler o mundo, ilustrando com fatos da sua infância e nos faz refletir sobre aspectos como a leitura de mundo precede e interfere na leitura dos textos. Freire explora aspectos do sig- nificado da leitura que contribuem para o aprofundamento da questão da relação da leitura como o momento histórico e social do sujeito. https://bit.ly/3qbZb8lVídeos A História da Escrita A História da Escrita de Milton Karam, Turma dos Escribas, Mistérios da Escrita e Papiros. É um vídeo de seis minutos que apresenta por meio de uma trilha sonora e animação a história da escrita, das pinturas rupestres até o alfabeto. https://youtu.be/yzbWClcROPo Ler é um ato de poder Ler é Poder. É um trecho editado de 5 minutos de uma palestra na Fronteira do Pensamento, de Alberto Manguel, que é o autor de obras como Dicionário de luga- res imaginários, Uma história da leitura e A cidade das palavras – as histórias que contamos para saber quem somos. A palestra é em espanhol, com tradução para o português. No trecho da palestra, Manguel explora a importância de um leitor em uma sociedade, o poder que ele dispõe de ser crítico e o perigo que isso representa. Faz uma retrospectiva do leitor desde os escribas até a sociedade atual. https://bit.ly/3p5wxEs Leitura Apontamentos sobre a história da leitura Esse texto apresenta um breve resumo da história da leitura com o resultado de pesquisa de alguns autores em relação à leitura e ao ensino da leitura no passado. https://bit.ly/2ZakbQJ Julia a Nova Heloísa: entre a literatura e a filosofia A autora do texto traz uma análise do romance Julia ou Nova Heloísa de Rousseau, o bestseller do século XVIII. A partir dele, você pode conhecer a história do amor proibido e como Rousseau explorou literariamente o romance e aspectos importan- tes educacionais e de concepção do ser humano. https://bit.ly/3tX4tqD 19 UNIDADE Evolução Histórica e Social da Escrita e Leitura Referências BARBOSA, J. Alfabetização e Leitura. São Paulo: Cortez, 1990. DICKSON, D. Alfabetização, Escrita e Leitura: Lugares (não) escondidos na História. Contexto e Educação, Ano 28, n. 90, maio/ago. 2013. Disponível: <https://www.revistas. unijui.edu.br/index.php/contextoeducacao/article/view/499>. Acesso em: 01/06/2020. PALANGE, I. Texto, hipertexto, hipermídia: uma metamorfose ambulante. Boletim Técnico do SENAC, v. 38, n. 1, jan./abr. 2012. 20