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PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 1 PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235, de 06/03/1972 Versão 20 - Atualizada até 28/Fevereiro/2015 Autor: Gilson Wessler Michels (DRJ/Florianópolis/SC) Fone: (0XX48) 3205-6700 E-mails: gilson.michels@receita.fazenda.gov.br e gwmichels@me.com PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 2 Índice Geral Introdução PARTE I Introdução ao Processo Administrativo Fiscal 1. Uma visão processual da atividade administrativa 1.1. A processualização da atividade administrativa 2.2. A teoria geral do processo e o processo administrativo fiscal 2. O Processo administrativo fiscal – Modelo e natureza da atuação administrativa 2.1. O modelo brasileiro de contencioso administrativo fiscal 2.2. A natureza e os limites do julgamento administrativo 2.3. A fase contenciosa do processo administrativo fiscal e a revisão de ofício 2.4. O controle exercido pela Administração sobre seus atos 2.5. As vantagens do processo administrativo fiscal 2.6. As Fontes do Processo Administrativo Fiscal 3. Princípios do processo administrativo fiscal 3.1. Princípio do informalismo 3.2. Princípio da verdade material 3.3. Princípio do devido processo legal 3.4. Princípios da ampla defesa e do contraditório 3.5. Outros princípios informadores do PAF 4. Processo administrativo e processo judicial 5. Uma Visão geral do processo de constituição e exigência de créditos tributários federais - Decreto n.o 70.235, de 06/03/1972, e legislação complementar 5.1. O processo atual de determinação e exigência de créditos tributários federais 5.1.1. Fase I - Ação fiscal (não-contenciosa – DRF, IRF, ALF) 5.1.2. Fase II - Julgamento de primeira instância (DRJ) 5.1.3. Fase III - Julgamento de segunda instância (CARF) 5.1.4. Fase IV - Julgamento de instância especial (CSRF) 5.2. A evolução do rito do Decreto n.º 70.235/1972 e a racionalização do processo administrativo fiscal 6. Recursos no processo administrativo fiscal PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 3 7. Outras espécies do gênero processo administrativo fiscal 7.1. Processo de reconhecimento de direito creditório (restituição, ressarcimento, reembolso e compensação de tributos federais) 7.1.1. Procedimento Ordinário 7.1.2. Procedimento Especial de Ressarcimento 7.1.2.1. Procedimento especial de ressarcimento de créditos do PIS, da Cofins e do IPI (Portaria MF n.º 348/2010) 7.1.2.2. Procedimento especial de ressarcimento de créditos do PIS e da Cofins (Portaria MF n.º 7/2011) 7.1.2.3. Procedimento especial de ressarcimento de créditos do PIS e da Cofins (Portaria MF n.º 348/2014) 7.1.2.4. Processo de ressarcimento em espécie e dedução de ofício do crédito presumido apurado com base em créditos decorrentes de diferenças temporárias oriundos de provisões para créditos de liquidação duvidosa (Instrução Normativa RFB n.º 1.457/2014) 7.2. Processo de consulta 7.2.1. Processo de consulta relativo à interpretação da legislação tributária e aduaneira e à classificação de serviços, intangíveis e outras operações que produzam variações no patrimônio (Instrução Normativa RFB n.º 1.396/2013) 7.2.2. Processo de consulta sobre classificação fiscal de mercadorias (Instrução Normativa RFB n.o 1.464/2014) 7.2.3. Processo de consulta relativo ao Simples Nacional (Lei Complementar n.o 123, de 14/12/2006) 7.3. Processo de revisão de declarações apresentadas à RFB 7.4. Processo de solicitação de revisão do lançamento previamente à apresentação de impugnação - Revisão das DIRPF e DITR 7.5. Processo de arrolamento de bens e direitos 7.6. Processo de solicitação de propositura de medida cautelar fiscal 7.7. Processo de perdimento de mercadorias, veículos e moeda 7.7.1. Processo de aplicação da pena de perdimento de mercadoria e de veículo 7.7.2. Procedimento simplificado para declaração de abandono de mercadorias de procedência estrangeira 7.7.3. Processo de retenção e de perdimento de veículo transportador de mercadoria sujeita a pena de perdimento 7.7.4. Processo de perdimento de moeda 7.8. Processo de aplicação e de exigência de direitos antidumping e compensatórios 7.9. Processo de determinação e exigência das medidas de salvaguarda 7.10. Processo de determinação e exigência de direitos de natureza comercial 7.11. Processo de vistoria aduaneira 7.12. Processo de suspensão da imunidade e da isenção 7.13. Processo de fiscalização do Simples Nacional 7.14. Processo de exclusão do Simples Nacional 7.15. Processo de liquidação de termo de responsabilidade PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 4 7.16. Discussão administrativa da retificação de Documento de Arrecadação de Receitas Federais 7.17. Pedido de restituição de valor pago ao Fundo Especial de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento das Atividades de Fiscalização (Fundaf) 7.18. Processo de reconhecimento do direito à redução de tributo incidente sobre o lucro da exploração na área da SUDENE 7.19. Processo de reconhecimento do direito à redução de tributo incidente sobre o lucro da exploração na área da SUDAM 7.20. Processo de retificação de declarações - Extinção 7.21. Pedido de revisão de ordem de emissão de incentivos fiscais – PERC 7.22. Processo de aplicação de sanções aos intervenientes nas operações de comércio exterior 8. A prova no processo administrativo fiscal 8.1. A Prova no processo administrativo fiscal e a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil e da Lei n.o 9.784/1999 8.2. Os contornos e o conteúdo da decisão administrativa 8.3. A prova e a lide no processo penal e a possibilidade de inovação em sede de contencioso administrativo 8.4. A Presunção de legitimidade dos atos administrativos e o ônus da prova 8.5. Os sistemas de valoração da prova e as fontes normativas vinculantes 8.6. As provas ilícitas 8.7. Os fatos que independem de prova 8.8. Indício, presunção legal e ficção legal – Distinção: 8.9. Algumas regras sobre provas 9. As nulidades no processo administrativo fiscal 9.1. As mudanças no direito administrativo e o alcance do artigo 59 do Decreto n.o 70.235/1972 9.2. Hipóteses de nulidade 9.3. O locus das nulidades e os vícios mais comuns no PAF 9.4. Extensão da declaração de nulidade 10. A comunicação dos atos processuais e a contagem de prazos no processo administrativo fiscal 10.1. As formas de intimação e o momento de aperfeiçoamento das intimações 10.2. A contagem de prazos 11. As súmulas dos antigos Conselhos de Contribuintes e do atual Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF 12. Principais atos legais reguladores do PAF PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 5 PARTE II Comentários e Anotações ao Decreto n.o 70.235/1972 Índice por Assuntos Disposição preliminar Capítulo I – Do Processo Fiscal Seção I – DosAtos e Termos processuais Seção II – Dos Prazos Seção III – Do Procedimento Seção IV – Da Intimação Seção V – Da Competência Seção VI – Do Julgamento em Primeira Instância Seção VII – Do Julgamento em Segunda Instância Seção VIII – Do Julgamento em Instância Especial Seção IX – Da Eficácia e Execução das Decisões Capítulo II – Da Consulta Capítulo III – Das Nulidades Capítulo IV – Disposições Finais e Transitórias Referências bibliográficas PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 6 Introdução Este trabalho se destina a fornecer uma visão eminentemente prática do contencioso administrativo tributário, a partir daqui chamado de processo administrativo fiscal (PAF), pelas razões mais adiante expostas. Não é um exercício de rigor acadêmico e de caráter crítico, muito embora questões polêmicas ou objeto de divergências sejam analisadas de modo pontual. O objetivo é abordar o PAF à luz da evolução legal, doutrinária e jurisprudencial, mas sempre com os olhos voltados à atuação de quem opera nesta importante seara processual. É, neste sentido, uma compilação de informações temperada pela experiência do autor no exercício de suas funções no âmbito do contencioso administrativo fiscal federal e, igualmente, nas atividades de instrutor em cursos de formação intra-institucionais e de professor em cursos de especialização em direito tributário e direito processual tributário. A razão principal para a produção deste trabalho é eminentemente prática e imediata (subsidiar as aulas ministradas pelo autor), mas é preciso ressaltar a importância atual de se estudar o PAF. É notória a progressiva importância da via administrativa para a solução de litígios envolvendo a Fazenda Nacional, estando hoje vencidas grande parte das desconfianças que sempre cercaram a atuação administrativa contenciosa. O aperfeiçoamento da legislação, a imparcialidade nos julgamentos e a criação de unidades especializadas na solução de litígios tributários, são alguns dos fatores que contribuíram para o evidente incremento da confiança no sistema. Mas da mesma forma que o sistema ganhou credibilidade, há preocupações em relação à sua capacidade de dar cabo ao tamanho do desafio que lhe é posto: o aumento excessivo tanto dos estoques de processos quanto do tempo de julgamento, podem neutralizar aqueles ganhos, razão pela qual devem existir esforços no sentido do aperfeiçoamento contínuo do sistema. E tal aperfeiçoamento passa, necessariamente, pela ampliação do conhecimento de tantos quantos atuem no sistema ou façam dele seu objeto de estudo. Espera-se, assim, que esta trabalho contribua de alguma forma para a difusão deste conhecimento. Do ponto de vista da estrutura, são inseridos temas destinados a contextualizar o PAF e a fornecer uma visão de conjunto do ambiente jurídico no qual se insere. São abordados a processualização da atividade administrativa e o modelo brasileiro de contencioso administrativo fiscal, a natureza do julgamento administrativo, as fontes e os princípios informadores desta disciplina jurídica, as relações entre o processo administrativo e o processo judicial e as aplicações subsidiárias da Lei n.o 9.784/1999 e do Código de Processo Civil. Também é fornecida uma visão geral do processo de determinação e exigência de créditos tributários federais, que é o principal dos ritos que compõem o universo do PAF e que está disciplinado nos Decretos n.o 70.235/1972 e n.º PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 7 7.574/2011. E são ainda identificados os outros tipos de processos administrativos existentes no âmbito tributário federal, com resumos de seus ritos ou indicação de suas fontes legais. Por fim, são também enfocados alguns temas específicos que demandam abordagem individualizada, como tais: as nulidades, os atos de comunicação, as provas e os recursos. Algumas observações complementares são necessárias. Primeiro, é preciso ressaltar que optou-se neste trabalho por usar a expressão “processo administrativo fiscal”, ao invés das atualmente muito utilizadas “processo administrativo tributário” ou “processo tributário administrativo”, em razão de seu uso tão disseminado. Há um prejuízo em termos de especificidade, mas aqui se rende homenagem à tradição. Segundo, ao longo do trabalho é utilizada a expressão "contencioso administrativo" para fazer referência à fase do processo administrativo fiscal (em qualquer de suas espécies) em que há litígio estabelecido em razão da insurgência do sujeito passivo quanto a algum ato praticado pela Administração Tributária e seus agentes, demandando, portanto, a atuação dos órgãos julgadores administrativos. Faz-se esta observação com o fim de deixar claro que "contencioso administrativo" não tem, aqui, o significado que assume na esfera judicial, onde é sinônimo de litígios levados ao Poder Judiciário que se relacionam com matérias afetas ao Direito Administrativo. No mais, é desejo do autor que o presente trabalho contribua tanto para a atuação daqueles que militam no processo administrativo fiscal, quanto para aqueles que buscam se familiarizar com esta importante via de tutela dos direitos da Fazenda Nacional e dos cidadãos. PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 8 PARTE I Introdução ao Processo Administrativo Fiscal PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 9 1. Uma visão processual da atividade administrativa 1.1. A processualização da atividade administrativa Com o advento da Constituição Federal de 1988, poucas dúvidas remanescem quanto ao fato de que o processo administrativo teve suas feições sensivelmente modificadas. Com efeito, ao dispor, no inciso LV do artigo 5.º da nova Carta Magna, que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, quis o constituinte, à evidência do que se pode inferir, estender aos atos emanados da Administração Pública, condicionantes que desde há muito já informam as manifestações do Poder Judiciário. Ao dispositivo citado poderiam ser juntados outros preceitos constitucionais, como tal o insculpido no inciso LIV do artigo 5.º - “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” – e na alínea “a” do inciso XXXIV do mesmo artigo - que trata do direito do cidadão de peticionar junto aos Poderes Públicos “em defesa de direito ou contra ilegalidade ou abuso de poder” -, para fins de que reste ainda mais evidenciada a transformação porque passou o processo administrativo. Dentro deste quadro, impõe-se repensar a clássica formulação da doutrina pátria, que define como característica basilar da atividade administrativa a auto-executoriedade de seus atos, para fins de reconhecer que a nova Carta Magna engendra uma verdadeiraprocessualização desta atuação, tornando superada a idéia, vigente por décadas, de que há uma contraposição irredutível entre interesse público e interesse particular. Nestes termos, espelha a Lei Maior a tendência deste início de século de atenuar a separação entre Estado e sociedade – como conformada no século passado - para dar lugar, usando-se as palavras de Odete Medauar, a uma “progressiva aproximação entre Administração e cidadãos da sociedade civil, em que inúmeros grupos sociais colaboram na identificação do interesse público”. 1 Inverte-se a lógica, para fins de definir que os atos administrativos não são irrestritamente voltados à satisfação do interesse da própria Administração, ou mesmo do interesse público unilateralmente por esta formulado. Uma das conseqüências mais veementes desta inovação constitucional foi a intensificação da produção legislativa voltada à criação de novas vias processuais administrativas, e à reformatação das já existentes. Muito embora seja verdade que nem todas estas superveniências legais tenham representado avanços, é inegável que delas resultou uma ampliação das possibilidades de participação do cidadão nos atos administrativos que abordem seus interesses em face do interesse de outro cidadão, ou de 1 Odete Medauar, 1993, p. 32. PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 10 seu interesse diante do da própria Administração. No âmbito do processo administrativo, como gênero, existem hoje inúmeros procedimentos, de variada espécie que, distribuídos ao longo de toda a cadeia burocrática estatal, determinam a atuação concreta do Estado- administrador de forma previsível e transparente, sem prescindir da participação dos interessados nesta atuação. De tal sorte, o cidadão tem hoje não apenas a garantia de acesso ao Poder Judiciário, nos casos em que um ato administrativo já formalizado afronte um direito seu, como também tem a possibilidade de, previamente à formalização deste ato, manifestar-se, de modo concreto e producente, quanto ao seu conteúdo junto à Administração. Tal quadro representa uma importante medida de economia processual – pela possibilidade de que os atos permeados de vícios ou arbitrariedades sejam saneados ou extirpados antes de que se constituam formalmente, e não apenas depois, no âmbito do Poder Judiciário –, mas, mais do que isto, constitui-se em medida de resguardo das garantias individuais – dado que, assim, preserva-se o direito do cidadão de não ver formulada contra si, pretensão em relação a qual não pôde opor suas razões, no âmbito do “devido processo legal”. As mudanças operadas no Direito Administrativo, ao longo dos últimos anos, também contribuíram para a tendência à processualização da atividade administrativa. Tais mudanças resultaram na superação da visão compartimentada dos atos administrativos e na adoção da visão processual da atuação administrativa. Hoje, importa mais o conjunto dos atos que compõem a atuação administrativa, a dinâmica da relação entre Estado e cidadão, com foco no resultado concreto do processo e no equilíbrio final entre direitos e obrigações das partes que compõem a relação jurídica. Assim, um ato administrativo não terá sua regularidade apurada com base, tão-somente, em uma análise desvinculada do processo de que faz parte, mas em especial a partir dos efeitos concretos do conjunto de atos na órbita de interesses das partes (visão dinâmica do processo). FIGURA 1: as mudanças no Direito Administrativo. Estas mudanças no Direito Administrativo não se têm dado, entretanto, como mero resultado de uma evolução da processualística administrativa. Na verdade, é um PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 11 movimento mais amplo, no âmbito do qual a unilateralidade e imperialidade das razões de Estado dão lugar à consensualidade e participação democrática nas decisões administrativas, com um inegável aumento da preocupação com a efetividade dos direitos fundamentais e com o incremento da legitimidade da atividade administrativa. Um dos resultados destas mudanças operadas no Direito Administrativo, é aquilo que se pode chamar de “nova dimensão do processo administrativo”, no âmbito da qual a atuação administrativa, mesmo a vinculada à resolução de casos concretos, acaba se conformando como uma busca contínua de aperfeiçoamento das relações com os cidadãos, ou seja, mesmo na solução das situações específicas, o foco está na efetividade da formulação, implementação e aplicação das regras. No plano processual, a decisão que soluciona casos concretos visa não apenas estes casos concretos, mas a criação de normas de maior alcance, destinadas não apenas aos envolvidos na relação processual específica; ou seja, o foco é a criação de normas genéricas e abstratas, no sentido da indução a manifestações que sejam, num sentido mais amplo, indutoras de condutas e difusoras de uma forma de agir da Administração que seja previsível e consistente no tempo. 2 FIGURA 2: a nova dimensão do processo administrativo. A ampliação da participação do cidadão no curso da atividade administrativa tem tido, no entanto, alguns ônus. O principal deles, corolário da processualização, é o aumento de complexidade dos procedimentos. Com o acréscimo de novos intervenientes e com a necessidade de definição de suas responsabilidades, os ritos sofisticaram-se, tornando imprescindível, em muitos casos, a defesa técnica, e inevitável, no mais das vezes, a superação dos limites de alguns dos princípios historicamente atribuídos pela doutrina ao procedimento administrativo, entre tais o do informalismo. 2 Para uma ampla visão das novas formas de atuação da Administração Pública, bem como da crise de paradigmas administrativos e das mudanças operadas no Direito Administrativo nos últimos anos, ver Gustavo Binenbojm (2008, p. 9-48). PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 12 Esta é, aliás, outra revisão que acabará por ser feita. Com as novas disposições constitucionais, não há mais como entender aplicáveis ao processo administrativo, todos os princípios que a doutrina lhe atribuiu há já algum tempo, no âmbito de uma realidade que já não existe. Para limitar a discussão aqui ao referido princípio do informalismo, basta dizer que com a enfatização da peremptoriedade dos prazos e o efeito preclusivo dos atos praticados, com a intensificação do conteúdo formal e material das decisões e com a ampliação da complexidade dos procedimentos, não há como falar-se mais em informalismo, ou mesmo, como defendem alguns doutrinadores, em formalismo moderado. Na prática, o formalismo acaba se impondo em face de que a crescente sofisticação de grande parte dos ritos e de seus efeitos práticos torna imprescindível, entre outras medidas, a defesa técnica e a minudente disposição das responsabilidades das partes e dos prazos a serem cumpridos. Pode-se exemplificar, primeiro, com a evolução experimentada pelo procedimento relativo à exigência de créditos tributários federais – o chamado processo administrativo fiscal. No período que se seguiu à promulgação da Constituição de 1988, inúmeros atos legais enrijeceram o rito, com a reafirmação da força preclusiva dos atos já realizados e com as restrições à apresentação de provas fora dos momentos determinados.Da mesma forma, foram criadas, em 1993, unidades administrativas, internas à Administração Tributária, especializadas em julgamento, o que, se por um lado representou um avanço, dado que além de se ter criado um “duplo grau de jurisdição administrativa” – Delegacias de Julgamento e o atual Conselho Administrativo de Recursos Fiscais -, deixaram os lançamentos fiscais de ser julgados pelas mesmas unidades que os formalizavam, por outro trouxe complexidade ao procedimento, sendo hoje difícil imaginar que ao rito posto possam ser associadas “informalidades” – que seriam prontamente argüidas como causas de nulidade – ou que ele possa ser enfrentado pelo cidadão comum sem o assessoramento de um especialista no assunto. Outro exemplo tem-se com o procedimento relativo à apuração de infrações contra a ordem econômica. O artigo 3.º da Lei n.º 8.884/1994 atribuiu ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, organismo responsável pelo julgamento administrativo destas infrações, o status de órgão judicante com jurisdição em todo o território nacional. Muito embora não exista, ainda, um entendimento pacífico quanto à extensão exata desta atribuição, representa ela, ao menos, um claro robustecimento da força da manifestação prolatada pelo ente administrativo, em evidente detrimento da atuação pretoriana. Tais exemplos são suficientes para que reste evidenciado, então, que os procedimentos administrativos deixaram de ser meros impulsionadores da atividade regular do Estado, para, a partir da processualização de seu conteúdo, incorporarem ritos que se assemelham em muito à atuação do Poder Judiciário, pelas repercussões que podem ter sobre a esfera dos interesses de cidadãos e instituições. PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 13 2.2. A teoria geral do processo e o processo administrativo fiscal Quando se fala na relação litigiosa que se estabelece entre o cidadão e o Estado no âmbito do processo administrativo fiscal, com muita frequência vêm à tona a tormentosa questão: há "lide", no sentido que lhe dá a teoria geral do processo, nos litígios entre surgem estes dois entes? Em outras palavras, pode-se falar, adaptando-se as expressões de Carnelutti, em "pretensão do Estado resistida pelo cidadão", ou em "conflito de interesses entre o Estado e o contribuinte"? Do mesmo modo, pode-se dizer que estão presentes, na seara processual administrativa, conceitos-chave para a definição de uma relação processual, como tais os de "ação", jurisdição", "processo" e "defesa"? Tais respostas não existem, ou ao menos ainda não ganharam suficiente consenso para serem tidas como objeto de assertivas cientificamente postas. Na verdade, as especificidades da relação processual jurídico-tributário, no âmbito administrativo, não têm sido objeto de maiores preocupações no que se refere ao seu encaixe dentro de uma teoria geral do processo que pudesse vir a abarcar não apenas o litígio que se estabelece em sede judicial, mas também em sede administrativa. A rigor, os estudiosos do Direito sequer têm conseguido dar tratamento uniforme e de conjunto para aquilo que poderia vir a ser chamado de "processo tributário". Tanto é assim que, o que hoje se tem por "processo tributário", nada mais é que um conjunto assistematizado de instrumentos processuais que buscam, nos limites de cada um destes instrumentos olhados de forma isolada, dar conta das inúmeras controvérsias que se estabelecem entre o cidadão e o Estado na esfera da relação jurídico-tributária. Não é por outra razão que se fala, hoje, em "crise do processo tributário".3 Com efeito, a alta complexidade dos sistemas tributários (traduzida, por exemplo, em incidências tributárias de variada ordem, em excesso de normas e falta de inteligibilidade principiológica do sistema), unida às tensões típicas da relação tributária (sempre espremida em dicotomias do tipo "supremacia do interesse público X defesa dos direitos e garantias individuais" ou "informalidade e celeridade X devido processo legal"), possui um alto potencial para a geração de conflitos de distintas naturezas, dificultando muito a formulação de uma teoria geral que abarque, num só corpo, tamanha diversidade. Isto explica, em parte, o distanciamento do processo tributário, de modo mais amplo, e do processo administrativo tributário, de modo mais estrito, da teoria geral do processo e dos institutos em torno dos quais se estrutura: ação, lide, processo, jurisdição e defesa. Obviamente que em um trabalho como este não se pretende formular uma teoria geral do processo, e nem mesmo uma teoria geral do processo tributário, mas pode-se aqui correr o risco de indicar alguns elementos que sirvam para evidenciar, minimamente, a existência de alguns elos de ligação entre a relações processuais que se estabelecm em sede judicial e em sede administrativa. 3 James Marins, 2002, p. 19-28. PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 14 Do ponto de vista da teoria geral do processo, em sua formulação clássica, é pressuposto para a instauração válida da relação processual, a existência de lide, ou seja, de um “conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida” (Carnelutti). A partir daí, o detentor do direito cujo exercício encontra resistência, tem o direito de ação,4 que é um direito público subjetivo de invocar a prestação jurisdicional, distinto do direito material e da demanda em sentido formal, e que, por óbvio, pressupõe a existência de lide. Proposta a ação, o Estado dirime o litígio por meio da jurisdição, que nada mais é que poder estatal de resolver os litígios surgidos entre os particulares ou entre estes e o Estado.5 A jurisdição, a sua vez, se exterioriza pelo processo,6 instrumento por meio do qual os órgãos jurisdicionais atuam para pacificar as partes litigantes, eliminando os conflitos e fazendo aplicar o preceito jurídico pertinente. Por fim, não há processo sem o direito de defesa,7 que é o reverso do direito de ação e que se constitui no direito do demandado de se contrapor ao pedido do autor da demanda (o direito de defesa exterioriza-se concretamente por via dos princípios do contraditório e da ampla defesa e é um direito público subjetivo de se contrapor à prestação jurisdicional, distinto do direito material). FIGURA 3: a dinâmica processual e os elementos da teoria geral do processo. Do ponto de vista destes elementos nuclerares da teoria geral do processo, é possível traçar alguns paralelos entre a tutela jurisdicional e a tutela administrativa tributária (figura 4). No âmbito tributário, há uma pretensão (o lançamento tributário, efetuado de acordo com o artigo 142 do Código Tributário Nacional), que pode encontrar resistência na insurgência do sujeito passivo, restando configurados o conflito de 4 Marcelo Abelha Rodrigues, 2008, p. 134-136. 5 Luiz Guilherme Marinoni, 2006, p. 89 e seguintes, e Marcelo Abelha Rodrigues, 2008, p. 67. 6 Luiz Guilherme Marinoni, 2006, p. 396, e Marcelo Abelha Rodrigues, 2008, p. 159-161. 7 Luiz Guilherme Marinoni, 2006, p. 307. PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 15 interesses e a contraposição de direitos que dão legitimidade ao exercício do direito de ação, com o consequente estabelecimento da relação processualna esfera da qual o litígio será dirimido com a devida garantia do direito de defesa (o que, em nossa ordem jurídica, se dá, tanto em sede judicial quanto em sede administrativa, por meio da adoção irrestrita dos princípios do contraditório e da ampla defesa). FIGURA 4: tutela jurisdicional e tutela administrativa tributária. Não se pode dizer, assim, que na relação processual que se estabelece no âmbito do processo administrativo fiscal, estejam ausentes os elementos-chave que permitiriam sua abordagem no plano da teoria geral do processo (figura 5): (a) há lide, caracterizada pela resistência do sujeito passivo à pretensão formulada, em regra, de forma unilateral pelo Estado (o lançamento tributário); (b) há exercício de direito de ação por parte do sujeito passivo, caracterizada pelo acionamento do contencioso administrativo fiscal; (c) há jurisdição, na medida em que há autoridades administrativas especializadas em julgamento, que atuam de forma separada das autoridades fiscais responsáveis pela fiscalização, e que prolatam decisões que, embora não façam coisa julgada (em razão do princípio da unicidade de jurisdição), produzem decisões vinculantes e terminativas em relação à Fazenda Nacional (tais decisões vinculantes e terminativas se dão, em regra, quando o lançamento tributário é invalidado de forma parcial ou integral, bem como nos casos em que direitos creditórios são reconhecidos ao sujeito passivo). Tais circunstâncias permitem afirmar, portanto, a existência de uma Administração judicante; e isto não no sentido da relativização do princípio da unicidade de jurisdição, mas no da afirmação de que decisões dos órgãos julgadores administrativos podem, sim, dar solução final aos litígios tributários; PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 16 (d) há processo, na medida em que há ritos, formas e competências expressamente definidos em atos legais (como tal, em especial, o Decreto n.o 70.235/1972), com pouco ou nenhum espaço concedido à discricionariedade administrativa em sede contenciosa ou à relativização da rigidez procedimental (há prazos preclusivos para a apresentação de recursos e para a produção de provas, competências processuais indelegáveis etc.); (e) e há, por fim, direito de defesa, e isto não apenas por conta de imposição constitucional (que, como já se viu, equiparou os processos administrativo e judicial no que se refere à subordinação aos princípios do contraditório e da ampla defesa), mas também porque os ritos procedimentais que compõem o processo administrativo fiscal, expressamente oportunizam ao sujeito passivo o exercício de seu direito de não apenas contestar a exigência contra ele formulada, como também de falar no processo, de saber de tudo quanto se vai produzindo no iter processual etc. FIGURA 5: os elementos da teoria geral do processo na esfera do processo administrativo fiscal. Por óbvio que existem distinções entre os processos judicial e administrativo, mas não são elas de ordem tal a macular o paralelismo acima traçado. De se ver: (a) a relação triangular: no caso do processo administrativo, a tripartição do processo judicial (autor, réu e julgador) subsiste nas figuras da Administração ativa (a que fiscaliza e impõe a exigência resistida), o sujeito passivo (que contesta a imposição da Administração ativa) e a Administração judicante (que atua especificamente na atividade de julgamento, em órgãos separados dentro da Secretaria da Receita Federal do Brasil e do Ministério da Fazenda e dirime os litígios de forma independente); (b) a eficácia das decisões: apesar de as decisões administrativas, mesmo quando proferidas em última instância, serem passíveis de anulação pelo Poder Judiciário, em virtude do princípio da inafastabilidade da apreciação pelo Judiciário (CF, art.5º, inciso XXXV), certo é que, em especial nos casos de decisões favoráveis ao sujeito passivo, tais decisões acabam dirimindo de forma definitiva os litígios; PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 17 (c) caráter expropriatório: as decisões administrativas não têm caráter expropriatório, como o podem ter as decisões judiciais (prolatadas, em regra, em sede de execução fiscal), mas tal caráter, especialmente nos casos de decisões administrativas favoráveis aos sujeitos passivos, deixam de ter razão de ser. De qualquer modo, a propositura da ação judicial que dá ensejo à expropriação de bens, demanda procedimentos administrativos prévios, como tal a geração da certidão de dívida ativa, que tem por detrás dela o conjunto de atos administrativos, contenciosos ou não, que dão validade ao crédito tributário a ser executado; (d) formalidades processuais: muito embora seja usual a afirmação de que o processo judicial é formal e que o processo administrativo é informado pelo princípio do informalismo (o que significaria um certo desapego às formas rígidas no curso do processo), verdade é que hoje, no atual estágio de desenvolvimento do processo administrativo, tal distinção perdeu muito de seu vigor. É que com a drastificação dos ritos procedimentais administrativos e com a adoção de prazos preclusivos para a prática da maior parte dos atos processuais, não há mais informalismo no processo administrativo, e sim, quando muito, formalismo moderado (sobre isto é feita abordagem mais detalhada no item 3.1); (e) condução do processo: apesar de no processo administrativo viger o princípio da oficialidade e no processo administrativo imperar o princípio da inércia da jurisdição, com isto significando que a ausência do autor, no processo, não encerra o processo administrativo, mas dá causa ao encerramento do processo judicial, certo é que tal distinção fica muito minorada no âmbito da fase contenciosa do processo administrativo fiscal. É que na fase contenciosa, a ausência do contribuinte, caracterizada, por exemplo, pela perda do prazo para contestar, tem como consequencia a declaração de definitividade da exigência tributária em sede administrativa. É certo que os procedimentos que se seguem a esta declaração de definitividade - especialmente vinculados à cobrança do crédito tributário - serão regularmente adotados pela Administração Fazendária, mas a fase de dirimição do litígio, em sede administrativa contenciosa, terá tido termo final; (f) a busca da verdade: também é usual a afirmação de no processo judicial vige o princípio da verdade formal e de que no processo administrativo impera o princípio da verdade material. Também isto, porém, já não é mais bem assim. Com o crescente enrijecimento do processo administrativo – operado por disposições como a que prevê prazos preclusivos para a apresentação de provas -, há hoje o reconhecimento de que a verdade material é um mito em qualquer seara, e que o julgador, seja o judicial ou seja o administrativo, na expressiva maioria das vezes acaba chegando apenas a um juízo de verossimilhança, a uma verdade parcial, portanto a uma verdade que é verdade a partir da realidade restrita dos autos que compõem fisicamente o processo (sobre isto é feita abordagem mais detalhada nos itens 3.2 e 8). Assim, esta distinção entre os processos judicial e administrativo, se existe, é mais de grau que de princípio informador. Assim, por fim, identificadas mais similaridades que diferenças entre os processos judicial e administrativo no plano da teoria geral do processo, pode-se intentar a produção de um quadro no qual o iter dos dois processos aparecem lado a lado, como exposto na figura 6, a seguir(no quadro, o processo judicial é posto ao lado do processo PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 18 administrativo de determinação e exigência de créditos tributários federais, previsto no Decreto n.o 70.235/1972). FIGURA 6: os elementos da teoria geral do processo nas esferas do processo judicial e do processo administrativo fiscal. PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 19 2. O Processo Administrativo Fiscal – Modelo e Natureza da Atuação Administrativa 2.1. O Modelo Brasileiro de Contencioso Administrativo Fiscal O Brasil adota um modelo de processo administrativo fiscal peculiar, que não tem aplicação uniforme na cena internacional. A rigor, são muitos os modelos de solução de litígios tributários encontrados no mundo. Na França, tem-se a tão decantada jurisdição administrativa (tribunais administrativos com decisões que fazem coisa julgada); na Espanha há uma ampla estrutura administrativa destinada à apreciação dos recursos dos contribuintes e, apesar de suas decisões, como no Brasil, não fazerem coisa julgada, há a exigência legal do prévio esgotamento da via administrativa para o acesso ao Poder Judiciário; no Chile, a opção, recente, foi a da instituição de tribunais especificamente tributários, não vinculados ao Poder Judiciário, com a atuação administrativa, em termos de apreciação de recursos dos contribuintes, limitada a escassos casos de menor relevância. Enfim, a variedade de modelos é muito grande e atende às peculiaridades das sociedades e das ordens jurídicas de cada país. O modelo brasileiro é peculiar porque apesar de estar fundado num sofisticado rito procedimental de até três instâncias de julgamento colegiado, é uma alternativa colocada à disposição dos contribuintes que não traz qualquer limitação para a eventual pendenga judicial posterior. Em outras palavras, no Brasil o acesso às instâncias administrativas é uma faculdade no sentido mais amplo do termo, pois o uso de tal alternativa não resultará em uma decisão final acerca do litígio (pois a decisão administrativa não faz coisa julgada), e nem trará qualquer limitação tanto em termos do posterior acesso ao âmbito judicial quanto em termos da amplitude do que pode vir a ser discutido judicialmente (a discussão pode ser integralmente renovada, sem que o processo administrativo tenha qualquer efeito sobre os limites do litígio na esfera judicial). As razões para a adoção de um sistema tão compartimentado parecem estar fundadas numa visão estrita do princípio da separação dos poderes, qual seja a de que a função do Legislativo é legislar, a função do Judiciário é julgar e a função do Executivo, por fim, é governar. Ocorre, porém, que o princípio evoluiu no sentido de incorporar a noção da interdependência das funções do Estado e, com isto, difundir a idéia de que para além da separação formal destas funções, deve imperar a independência harmônica, calcada não em funções privativas, mas em funções estatais precípuas. Em outras palavras, cada poder exercita as três funções jurídicas do Estado; uma obviamente em caráter predominante e as outras em caráter subsidiário. Dentro deste novo quadro, não há mais razões que justifiquem a excessiva estanqueidade, hoje existente, no Brasil, entre os processos administrativo e judicial. Sim, PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 20 porque não haveria qualquer prejuízo ao princípio da unicidade de jurisdição, caso fossem criados vínculos entre os dois processos no sentido de que os autos do processo administrativo fossem aproveitados no processo judicial e de que a discussão administrativa tivesse influência no que pudesse vir a ser discutido em sede judicial (em termos, por exemplo, de delimitação do litígio). Com isto, se poderia evitar o uso de dois aparelhos estatais para a repetição de atividades já realizadas ou mesmo a discussão do mesmo objeto por via de fundamentos de fato e de direito distintos nestas duas esferas. De se lembrar que há muitos países, como a Espanha e a Alemanha, que impõem como condição para o acesso ao Poder Judiciário, o prévio esgotamento das vias administrativas, com isto condicionando a discussão nas duas esferas a limites, em geral, comuns. Não é lícita, por exemplo, a inovação irrestrita das alegações quando da passagem da via administrativa para via judicial. A produção, perante o Poder Judiciário, de novas provas acerca de alegações já previamente postas à apreciação administrativa, é possível; o que não é possível é inovar nas alegações (até porque, a contrário senso, isto tornaria inócua a exigência do prévio esgotamento das vias administrativas). Por óbvio que a adoção de um tal sistema no Brasil, depende da efetiva profissionalização da atividade de julgamento administrativo, mas não se pode negar que a evolução do contencioso administrativo operada ao longo dos últimos anos (e que está melhor abordada no item 1), cria as condições para mudanças desta natureza. São vários os efeitos indesejáveis da excessiva compartimentação entre as vias administrativa e judicial. Além da possibilidade do uso desvirtuado do sistema (por sua utilização meramente protelatória por parte de litigantes de má-fé), ela impede que o processo administrativo fiscal seja tratado como parte do direito processual tributário. É certo que não existe, no Brasil, um código de processo tributário formalmente editado, mas não se pode dizer que já não existam princípios e normas que sirvam à peculiarização da relação processual de caráter jurídico-tributário. Assim, a aludida compartimentação dificulta a abordagem do processo administrativo fiscal dentro de uma teoria geral do processo tributário, com todos os prejuízos inerentes à ausência de tratamento conciliado das duas esferas. De outro lado, é de se lamentar o ainda hoje vigente distanciamento entre o direito material e o direito processual administrativo fiscal, fonte que é de boa parte das mazelas atualmente vivenciadas pelo processo administrativo fiscal em termos de sua efetividade e da agilidade na solução dos litígios. De há muito se firmou a idéia de que o direito processual, apesar de ser um ramo autônomo do Direito, possui função instrumental em relação ao direito material; e instrumental não no sentido de secundário (como se intentou afirmar em um primeiro momento da chamada "fase instrumentalista" do direito processual), mas na acepção de um direito que serve à satisfação de pretensões jurídicas controversas ou resistidas. E é esta visão instrumentalista que vem informando, em grande parte, as constantes reformas dos códigos processuais judiciais brasileiros ao longo dos últimos anos. A busca pela efetividade do processo tem informado de forma contundente as reformas do nosso codex PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 21 processual ao longo dos últimos anos, fazendo com que as antigas teses da separação entre direito processual e direito material perdessem campo e defensores.8 Exemplos deste movimento de aproximação do direito processual e do direito material são a proliferação das medidas liminares, a intensificação das medidas cautelares, a superveniência da tutelaantecipatória e a criação de ritos diferenciados definidos para determinados tipos de litígios. Todos estes remédios, à evidência, intentam a proteção provisória e/ou a efetividade de bens ou direitos que estão sendo discutidos judicialmente. Esta diversificação do direito processual judicial, entretanto, ainda não chegou ao processo administrativo fiscal. Apesar dos progressivos aumentos do tempo de julgamento administrativo e do estoque de processos, o processo administrativo fiscal continua regido, basicamente, por um rito procedimental de até três instâncias colegiadas; ou seja, todos os litígios, independentemente da matéria sobre que versem ou dos valores envolvidos, passam pelo mesmo rito de cognição exauriente. O fato de haver alguns ritos específicos para algumas situações específicas, não infirma o dito, pois o rito do processo de determinação e exigência de créditos tributários federais acaba sendo aplicado, a partir de determinada etapa da atuação administrativa, como base para a expressiva maior parte daqueles outros ritos. Assim é que, para a discussão de litígios muito díspares em termos de valores ou de relevância da matéria, é adotado um rito longo que traz prejuízos tanto ao contribuinte, pela demora da manifestação administrativa, quanto à Fazenda Nacional, pela postergação da cobrança de créditos tributários. À evidência, tal quadro encontra base na adoção superestimada do princípio da isonomia, traduzida na idéia de que todos os contribuintes devem ter seus litígios apreciados pelas mesmas regras, independentemente de valor, matéria etc. Mas é preciso, porém, sopesar princípios de outra ordem, ou balanceá-los - como é, aliás, da própria natureza dos princípios. Assim, tão importante quanto o princípio da isonomia são os princípios da celeridade, do devido processo legal, da eficiência, do interesse público etc. E é igualmente importante pensar a dinâmica processual administrativa por meio de uma visão de conjunto dos litígios que a compõem a atuação administrativa, hierarquizando situações e formulando tratamentos processuais que sirvam à conformação efetivamente instrumental desta seara jurídica em relação ao direito material que dá fundo aos conflitos de interesses. De se ressaltar, por fim, que a visão instrumental do processo traz efeitos em múltiplas etapas da conformação da norma; para o legislador, impõe a criação de normas processuais que atendam às características do direito material; e para o operador jurídico, demanda que, na interpretação da norma processual, seja ela entendida como meio de satisfação do direito material. 8 Para uma visão detalhada do processo de aproximação entre Direito Processual e Direito Material, no sentido da busca pela efetividade da prestação jurisdicional, ver José Roberto dos Santos Bedaque (2001, p.9- 23). PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 22 2.2. A Natureza e os Limites do Julgamento Administrativo Quanto à questão da natureza do julgamento efetuado em sede administrativa, também há variações de país para país, de acordo, por óbvio, com o modelo de contencioso administrativo adotado. Entretanto, mesmo diante da definição quanto ao modelo, podem remanescer dúvidas acerca do que é o julgamento administrativo. No Brasil, por exemplo, nem mesmo no âmbito da própria Administração Pública se encontra uma visão uniforme acerca do que seja o julgamento efetuado no âmbito das Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento – DRJ. A rigor, chega a surpreender que mesmo depois de transcorridos mais de vinte anos da criação destas unidades especializadas em julgamento dentro da Receita Federal do Brasil, ainda persistam dúvidas acerca de qual sejam o conteúdo e a extensão de suas atuações. E tais dúvidas, é de se ressaltar, são suscitadas em vários âmbitos: entre os próprios julgadores que compõem as turmas de julgamento das DRJ; na esfera de algumas coordenações-gerais da RFB; e, igualmente, entre as unidades descentralizadas da RFB que atuam sob as superintendências regionais. As razões para este estado de coisas são de variada ordem. A primeira delas é, para além de qualquer dúvida, a inexistência de disposição legal estabelecendo quais sejam os limites da atuação do julgador administrativo. Muito embora tais limites possam ser definidos a partir de uma interpretação sistemática das atuais normas processuais administrativas, certo é que na via administrativa não há uma disposição análoga a que se encontra no Código de Processo Civil – CPC acerca dos limites de atuação dos órgãos julgadores no processo judicial; com efeito, o artigo 128 do CPC estabelece, de forma expressa, que o juiz decide a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões não suscitadas. Não se quer aqui afirmar a similaridade irrestrita entre os contornos da atuação dos órgãos julgadores nas esferas administrativa e judicial, mas apenas enfatizar a inexistência, em sede administrativa, de disposição legal que defina, com a mesma clareza e literalidade do dispositivo do CPC, os limites do julgamento administrativo. Outra razão se refere à excessiva proximidade institucional das DRJ em relação às demais unidades descentralizadas da RFB. Por certo, pouco contribui para a criação de uma cultura de “julgamento administrativo”, a excessiva fluidez dos limites institucionais que separam as DRJ das DRF, IRF, ALF etc. Tal excessiva fluidez se reflete – ou encontra justificativa - nas intensas e freqüentes trocas de pessoal entre estas unidades, na proximidade entre “quem investiga e lança” e “quem aprecia e julga” e na resistência ao acatamento de uma distinção bastante bem difundida na doutrina entre a Administração Ativa e a Administração Judicante. Com efeito, por vezes são chamados à discussão argumentos como o de que “julgadores” também são “autoridade fiscal” e que por possuírem, portanto, prerrogativas e deveres similares aos dos agentes públicos ligados à fiscalização, não estariam restritos a uma visão processual do litígio. O argumento, por óbvio, não leva em conta, ou ao menos minimiza muito a chamada imparcialidade orgânica, na medida em que não considera característica distintiva das DRJ a natureza especializada de sua atuação e faz tábula rasa de um importante corolário desta atuação especializada: os julgadores, apesar de poderem ser caracterizados genericamente de PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 23 “autoridade fiscal”, não detêm, e aí de forma inequívoca, competência legal para efetuar o lançamento tributário (e tal delimitação subentende não apenas a prática do ato de lançamento em si, mas também daqueles outros que, por vias indiretas, se conformem como assemelhados àquele ato impositivo). O resultado destas divergências é a proliferação de visões distintas acerca da natureza do julgamento administrativo de primeira instância. De um lado, há aqueles que vêem o julgamento administrativo como algo em tudo e por tudo assemelhado ao julgamento judicial, com os limites do litígio sendo determinados pelos motivos do ato impugnado e pela contestação do contribuinte e com todos os formalismos inerentes à disciplina processual; de outro lado, há alguns que adotam posição diametralmente oposta, defendendo que a contestação do contribuinte inaugura uma fase de ampla revisão da legalidade do lançamento, em nada limitada pelos motivos do ato contestado e pelos pedidos do contribuinte e sem apegos a formalidades processuais; e há,ainda, posições intermediárias, como, por exemplo, a que entende que a contestação do contribuinte define, em princípio, os limites do litígio a ser apreciado, mas que tal delimitação não exclui a análise, de ofício, de questões de direito aferíveis de plano (ou seja, ter-se-ia um meio termo entre um julgamento com feições judiciais e um ato administrativo de controle de legalidade). O dado interessante é que as divergências acima indicadas não se estendem, em regra, aos julgamentos de segunda instância e de instância especial; é que apesar de as DRJ e o CARF comporem o contencioso administrativo e deverem estar, por conta disto, alinhados quanto aos marcos normativo-processuais de suas atuações (até para que não se torne inócuo, em sede administrativa, o princípio do duplo grau de apreciação), apenas as DRJ têm tido seus limites de atuação vinculados a um litígio concretamente posto colocados reiteradamente em questão na esfera institucional. E isto talvez se explique pela acima mencionada proximidade institucional entre as DRJ e as demais unidades descentralizadas da RFB. É preciso, entretanto, dissipar divergências desta ordem. E isto porque a manutenção de posições díspares e extremadas acerca da natureza do julgamento das DRJ traz implicações que não são meramente retóricas, mas repercussões práticas contundentes para a identidade do julgamento administrativo e para a própria sobrevivência do contencioso administrativo na forma como está hoje estruturado. Diz-se isto, porque a Administração Tributária vive hoje a realidade do tratamento massificado de dados, com grande incremento tanto da lavratura de atos de ofício (em especial por via eletrônica) quanto da litigiosidade tributária envolvendo tais atos, e se aos órgãos julgadores for atribuída a responsabilidade por tratar estes litígios a partir da ideia de que em sede contenciosa eles devem merecer toda a análise minudente que, por efeito da via sumária de fiscalização, deixou de ser efetuada antes da formalização daqueles atos de ofício, comprometida restará a capacidade de a primeira instância julgadora administrativa (e, igualmente, da segunda instância, por efeito reflexo) cumprir sua tarefa. No mesmo sentido, se aos órgãos julgadores for atribuída a responsabilidade por decidir os litígios sem se limitar à apreciação da regularidade dos motivos indicados no ato de ofício contestado (seja um lançamento de ofício ou um despacho decisório PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 24 denegatório de direito creditório), se terá, na prática, um sistema inquisitório, no âmbito do qual aqueles contribuintes que recorrerem ao contencioso administrativo – e tão só os que recorrerem - terão não um julgamento de suas razões, mas uma extensão do procedimento fiscalizatório. E tal atribuição aos órgãos julgadores por certo ampliará, em muito, o tempo de julgamento dos feitos fiscais; mas mais grave do que a ampliação do prazo de julgamento, será a perda em termos da imparcialidade da atuação judicante. O que se quer dizer com tudo isto é que não se pode subverter o julgamento administrativo de primeira instância de modo tal a que ele se distancie do julgamento que é feito no âmbito do CARF e se aproxime da atividade realizada nas DRF. É preciso definir com clareza o que é o julgamento administrativo e, neste sentido, apesar de não existir mesmo uma posição uniforme sobre a questão, a opção que parece mais se coadunar com a ordem vigente é aquela intermediária, dentre as anteriormente veiculadas. Com efeito, na medida em que o próprio Decreto n.o 70.235/1972 estabelece que "a impugnação da exigência instaura a fase litigiosa do procedimento" (artigo 14) e que "considerar-se-á não impugnada a matéria que não tenha sido expressamente contestada pelo impugnante" (artigo 17), há que se concluir que os motivos do ato contestado e a contestação da exigência fiscal delimitam, sim, o litígio a ser apreciado (dado que matéria não expressamente impugnada não instaura litígio), ficando afastada, em princípio, a possibilidade de a autoridade julgadora ir para além da petição que lhe foi encaminhada. Tal regra, entretanto, não afasta a possibilidade de a autoridade julgadora ampliar seu campo de análise nos casos específicos em que estiverem envolvidas questões de direito aferíveis de plano e que, em razão de sua função administrativa, tem a obrigação de levantar de ofício (por exemplo, não seria lícito a um julgador manter a exigência de Imposto de Renda Pessoa Jurídica de uma pessoa física, mesmo que a ilegalidade desta medida não tivesse sida argüida na impugnação do lançamento). Outra disposição legal constante do Decreto n.o 70.235/1972 reafirma a importância da definição dos contornos do litígio para o julgamento administrativo. Trata-se do inciso III do artigo 16. Na redação que lhe foi dada pelo ato que criou as DRJ, a Lei n.o 8.748/1993, foi estabelecida a obrigação do contribuinte de, na contestação do lançamento, delimitar o objeto do litígio por meio da indicação, na impugnação, dos “motivos de fato e de direito em que se fundamenta, os pontos de discordância e as razões que possuir”. Este comando legal, associado ao acima referido artigo 17 do mesmo Decreto ("considerar-se-á não impugnada a matéria que não tenha sido expressamente contestada pelo impugnante"), representam, na posição de Alberto Xavier, “inegáveis aflorações do princípio dispositivo, de índole subjetiva, no processo administrativo tributário. A nova redação do artigo 16, III do PAF, no sentido da obrigatoriedade de alegação expressa dos motivos, visou a coibir a tendência jurisprudencial do Conselho de Contribuintes, registrada no passado, no sentido de admitir a legalidade da chamada ‘negação geral’, ou seja, o recurso interruptivo, segundo a qual ‘a impugnação que não questiona item da autuação, de forma direta e objetiva, mas que termina pedindo o cancelamento do lançamento, ou equivalente, deve ser tomada como negação geral, no processo administrativo fiscal. Rejeitou-se, assim, a visão objetivista, segundo a qual a causa de pedir seria a ilegalidade do ato administrativo em tese ou em abstrato, abrangedora da totalidade dos seus fundamentos possíveis [...]. Em matéria de causa de pedir a lei optou, pois, claramente pela teoria da substanciação, que requer a sua função individualizadora do objeto do processo, em PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 25 contraste com a teoria da individualização, segundo a qual bastava ao autor indicar o pedido, com o que todas as possíveis causas de pedir podiam ser consideradas no processo”. Dentro deste quadro, na medida em que a lei estabelece ao contribuinte o poder de iniciativa processual e de delimitação do objeto do processo (este sob pena de preclusão acerca das questões não alegadas), por óbvio que se há de ter a contrapartida na atuação da Administração: se ao contribuinte não é lícito se valer da negação geral, também não é lícito à Administração Judicante ir para além dos motivos do ato administrativo contestado. Se o contribuinte tem de definir/especificar suas causas de pedir, não podem os órgãos julgadores administrativos produzir novos fundamentos para a manutenção do ato contestado. É preciso ter em conta, aqui, aquilo que bem ressalta Alberto Xavier acerca do critério que se deve ter em conta na definição da natureza dos recursos administrativos. A partir da distinção entre o recurso do tipo reexame (no âmbito do qual o recurso tem por fim a plena reapreciação da questão decidida pelo órgão a quo, representandoum julgamento ex novo do litígio – recurso renovatório) e o recurso do tipo revisão (no âmbito do qual o recurso tem por objeto exclusivo a apreciação do ato recorrido, limitando-se à verificação da correção ou incorreção do ato impugnado – recurso eliminatório), destaca o doutrinador que a opção por um ou outro modelo está indissociavelmente ligada à extensão da competência da autoridade ad quem e aos limites dos poderes de cognição do órgão de julgamento.9 Assim, se a autoridade ad quem também possui poderes próprios para a prática do ato primário impugnado, o recurso deve ser modelado como reexame (já que não faria sentido que a autoridade ad quem se limitasse a apreciar o ato impugnado quando ela própria tem poderes para praticá-lo); se, entretanto, a autoridade ad quem não tem poderes próprios para praticar o ato impugnado, em virtude de uma competência exclusiva ou reservada da autoridade a quo, deve limitar-se a um pronunciamento sobre a regularidade do mesmo. O que resulta desta distinção é que, na medida em que no contencioso administrativo brasileiro foi adotada a separação entre órgãos de lançamento (Administração Ativa) e órgãos de julgamento (Administração Judicante), não sendo dada a estes a competência para praticar os atos primários de que são exemplos o lançamento e o despacho denegatório do pleito repetitório, mas sim a de praticar o ato secundário de reapreciação daqueles atos primários, só podem os órgãos julgadores administrativos prolatar decisões na esfera das quais anulam ou confirmam, parcial ou integralmente, o ato contestado (modalidade de revisão), e jamais decisões nas quais substituem tal ato (modalidade reexame). Esta distinção entre Administração Ativa e Administração Judicante é que define primordialmente o papel de cada órgão dentro da estrutura administrativa. O fato de as DRJ estarem vinculadas à RFB e o CARF compor a estrutura do Ministério da Fazenda, não autoriza a conclusão de que são duas instâncias de natureza distinta (passíveis de atuarem sob marcos normativos e contextos diferenciados). Obviamente se tratam se 9 Xavier, 2005, p.50-51. PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 26 órgãos submetidos a hierarquias distintas e, por conta disto, vinculados a controles administrativos igualmente diversos, mas o que prevalece em suas atividades-fim é a natureza de revisão dos atos primários da Administração Tributária. Assim, o fato de as DRJ estarem subordinadas à RFB não as torna órgãos funcionalmente distintos do CARF. Esta é, com efeito, a questão relevante. Na medida em que os atos secundários produzidos pelos órgãos que compõem a Administração Judicante (acórdãos), não substituem os atos primários praticados pela Administração Ativa (auto de infração, notificação de lançamento ou despacho decisório), limitando-se a aferir a regularidade destes nos planos formal e material em face de contestação apresentada pelos contribuintes (impugnação, manifestação de inconformidade, recursos voluntário e especial), não há possibilidade jurídica de que ocorram duas situações que, apesar de distintas, possuem íntima conexão: (a) primeiro, a prolação de decisões cujos fundamentos não estejam relacionados aos motivos do ato administrativo contestado e às alegações do contribuinte contra aqueles motivos (exceção feita às questões de direito prolatáveis de ofício); e (b) segundo, a prolação de decisões citra, extra e ultra petita. A razão pela qual não podem os órgãos julgadores prolatar decisões cujos fundamentos não estejam relacionados aos motivos do ato administrativo contestado e às alegações do contribuinte contra aqueles motivos, é a de que para decidir com base em outros fundamentos, estaria a autoridade julgadora deixando de julgar o ato contestado e, na prática, produzindo um novo ato primário, competência esta que, organicamente, não detém. Para que este ponto fique claro, é importante ressaltar que os fundamentos de fato e de direito compõem o núcleo de validade do ato administrativo, o que faz com que a alteração destes fundamentos, para fins de pretenso saneamento do ato de ofício ou a título de melhoria da instrução probatória (o que efetivamente não é, pois se trata de novo fundamento de fato), não possa ser feita sem que fique juridicamente caracterizada a prática de um novo ato administrativo. Uma coisa é aferir se os fundamentos de fato e de direito se sustentam ou não, parcial ou integralmente; outra, bastante distinta, é substituir tais fundamentos por outros. Importa aqui ter em conta a distinção entre alegação acerca de um fato e prova do fato. Tanto a autoridade fiscal que pratica o ato administrativo quanto o contribuinte que contesta tal ato, se utilizam de fundamentos de fato e de provas acerca da ocorrência destes fatos. Pois bem, da ocorrência de um determinado fato, podem decorrer várias alegações acerca dele. Neste contexto, a atuação do órgão julgador destinada a perquirir a efetiva ocorrência do fato especificamente alegado (pela autoridade fiscal ou pelo contribuinte), pode se estender à produção de novas provas em face da insuficiência dos elementos probatórios trazidos pelas partes. O que não pode o órgão julgador fazer é alterar o fundamento de fato, pois isto representaria ir para fora do litígio posto. Em outras palavras, pode o órgão julgador, por via do princípio da verdade material, demandar por novas provas acerca de um fato alegado; o que não pode é alterar o fato alegado – o fundamento de fato -, pois aí estaria, juridicamente, produzindo novo ato primário. Outra conseqüência prática da referida distinção se refere à regra da proibição ou não da reformatio in pejus. Se os órgãos julgadores administrativos apenas anulam ou PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 27 confirmam o ato primário, exercem cognição restrita, não podendo avançar para além dos motivos do ato impugnado e das alegações contra eles apresentadas pelo contribuinte; se, de outro lado, suas decisões substituem o ato primário, exercem cognição ampla, sendo os motivos do ato impugnado e as alegações do contribuinte meros pontos de partida do julgamento administrativo, pois aí o que estará em jogo é a legalidade objetiva, em sentido amplo, do ato administrativo. Na primeira hipótese, o agravamento da situação do recorrente é inadmissível; já na segunda, é uma decorrência natural da competência do órgão julgador. Ora, na medida em que, como acima visto, no contencioso administrativo brasileiro foi adotada a distinção entre órgãos de lançamento e órgãos de julgamento, conclui-se que por aqui a regra é a da proibição da reformatio in pejus. É certo que o Decreto n.o 70.235/1972 traz, no parágrafo 3.o de seu artigo 18, a previsão da possibilidade de agravamento da exigência inicial em face dos resultados de exames posteriores, diligências e perícias.10 Entretanto, tal disposição mereceu tratamento bastante mitigado quando de sua incorporação ao recém-editado Decreto n.o 7.574/2011 (ato que regulamenta os processos administrativos referentes a matérias administradas pela RFB). Com efeito, o artigo 41 deste Decreto estabelece que o referido agravamento só é cabível, em regra, nas hipóteses em que dos referidos exames posteriores resta constatada a existência de matéria que, apesar de não incluída no lançamento, assim não o foi não porque se trata de matéria nova, mas sim de matéria que foi devidamente trabalhada no procedimento fiscal e só não restou incluída na matéria tributávelpor erro material e/ou lapso manifesto da autoridade fiscal.11 Ou seja, não se trata mais aqui de agravamento propriamente dito – já que não há inovação a fundamentar a ampliação da exigência inicial -, mas de mera correção daquilo que se pode classificar de inexatidão material. No que se refere à vedação à prolação de decisões citra, extra e ultra petita, tem ela especial aplicação nos processos de reconhecimento de direito creditório, que são inaugurados por iniciativa do contribuinte. Nas palavras de Marcos Vinicius Neder e Maria Tereza Martínez López, para estes processos, em regra, “a demanda é feita pelo impugnante, cabendo ao julgador decidir de acordo com os limites fixados no pedido. Incidem, nesse 10 “Art. 18. [...] § 3.º. Quando, em exames posteriores, diligências ou perícias, realizados no curso do processo, forem verificadas incorreções, omissões ou inexatidões de que resultem agravamento da exigência inicial, inovação ou alteração da fundamentação legal da exigência, será lavrado auto de infração ou emitida notificação de lançamento complementar, devolvendo-se, ao sujeito passivo, prazo para impugnação no concernente à matéria modificada.” (Redação dada pelo art. 1.º da Lei n.º 8.748/1993) 11 “Art. 41. Quando, em exames posteriores, diligências ou perícias realizados no curso do processo, forem verificadas incorreções, omissões ou inexatidões, de que resultem agravamento da exigência inicial, inovação ou alteração da fundamentação legal da exigência, será efetuado lançamento complementar por meio da lavratura de auto de infração complementar ou de emissão de notificação de lançamento complementar, específicos em relação à matéria modificada (Decreto no 70.235, de 1972, art. 18, § 3o, com a redação dada pela Lei no 8.748, de 1993, art. 1o). § 1o O lançamento complementar será formalizado nos casos: I - em que seja aferível, a partir da descrição dos fatos e dos demais documentos produzidos na ação fiscal, que o autuante, no momento da formalização da exigência: a) apurou incorretamente a base de cálculo do crédito tributário; ou b) não incluiu na determinação do crédito tributário matéria devidamente identificada; ou II - em que forem constatados fatos novos, subtraídos ao conhecimento da autoridade lançadora quando da ação fiscal e relacionados aos fatos geradores objeto da autuação, que impliquem agravamento da exigência inicial. [...]” (grifou-se) PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 28 sentido, os princípios do dispositivo e o da correlação (ou congruência), sendo defeso ao julgador proferir decisão extra, citra e ultra petita [...]. Na verdade, a autoridade julgadora acolhe ou rejeita no todo ou em parte o pedido do interessado, podendo atuar tão somente negativamente em relação ao indeferimento do Delegado. Do contrário, o julgador se afastará da imparcialidade requerida ao exercício de sua função para se imiscuir na esfera de decisão do contribuinte, que pode desejar outra destinação aos eventuais créditos tributários excedentes”. E complementam, afirmando que “no momento da apresentação da manifestação de inconformidade pelo contribuinte, definem-se a profundidade e a extensão da apreciação do julgador do órgão a quo sobre a decisão denegatória. Esta limitação é rigorosa nos processos iniciados a partir de pedido do interessado, pois a autoridade está limitada a julgar nos termos requeridos”.12 As razões pelas quais se disse que há íntima conexão entre as duas vedações (“a prolação de decisões cujos fundamentos não estejam relacionados aos motivos do ato administrativo contestado e às alegações do contribuinte contra aqueles motivos” e “a prolação de decisões citra, extra e ultra petita”), se deve ao fato de que quando o órgão julgador se manifesta sobre as razões do contribuinte opostas ao ato administrativo contestado, deve fazê-lo “dando ou não provimento ao recurso”. Se houver pronunciamento com base em motivos/fundamentos distintos (e sobre os quais o contribuinte, por óbvio, não se manifestou), levantados com o objetivo de manter o ato administrativo contestado, caracterizados estarão dois vícios importantes: primeiro, o julgamento extra petita, exteriorizado pela inovação de fundamentos em sede contenciosa; e, segundo, a reformatio in pejus, resultado ilógico da apreciação de um recurso que, ao final e ao cabo, foi apresentado pelo contribuinte com o objetivo de obtenção de uma decisão mais favorável (é difícil justificar, processualmente – e mesmo em sede de processo administrativo -, a ideia de que a apresentação de um recurso administrativo pelo contribuinte pode, na prática, servir de oportunidade para que a Administração Tributária tenha renovada, por vias transversas e muitas vezes intempestivamente – dado o eventual decurso, à época do julgamento administrativo, dos prazos decadenciais que detinha para praticar determinados atos de ofício - a oportunidade de sanear seus atos ou de baseá-los em novos fundamentos). Mas é importante ter em conta que a inviabilidade de julgamento com base em novos fundamentos não é irrestrita. Para além das já referidas questões de direito aferíveis de plano e, portanto, passíveis de serem levantadas de ofício, deve haver possibilidade de inovação naqueles casos em que determinadas razões, apesar de não terem sido levadas à condição de fundamentos do ato administrativo recorrido (em razão da adoção, pela autoridade fiscal, de uma questão prejudicial ou antecedente), restaram abordadas/veiculadas no processo, tendo sido objeto do procedimento fiscal preparatório do lançamento ou do despacho decisório. Nesta hipótese, o prévio conhecimento da matéria por parte do contribuinte e a já produção de provas em relação a ela, autoriza o julgador a levantá-la como fundamento de sua decisão, ou mesmo de requerer diligências destinadas a complementar o quadro probatório acerca daquela matéria específica (já que em relação já há, ao menos, princípio de prova). Trata-se, aqui, de ponderar a vedação à inovação em sede contenciosa (que existe com o fim de preservar o direito à ampla defesa 12 Neder e López, 2010, p.440. PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL Comentários e Anotações ao Decreto n.º 70.235/1972 . Elaborado por: Gilson Wessler Michels (DRJ/FNS/SC) - Fevereiro/2015 - Versão 20 29 e a imparcialidade do julgador), com a natureza específica da relação jurídico-tributária (influenciada que é pelos princípios do interesse público, da indisponibilidade dos interesses em questão etc.). Mas é importante destacar a necessária referibilidade que deve haver entre o novo fundamento e a matéria já veiculada anteriormente no processo. Esta possibilidade de abordagem, em sede contenciosa, de matéria que, apesar de não levada a fundamento do ato de ofício contestado, foi veiculada no procedimento fiscal, é análoga à possibilidade, expressamente prevista nos parágrafos 1.o e 2.o do artigo 515 do CPC, de que no julgamento da apelação, o tribunal, ao conhecer da matéria impugnada, aprecie também “todas as questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que a sentença não as tenha julgado por inteiro” e que “quando o pedido ou a defesa tiver mais de um fundamento e o juiz acolher apenas um deles, a apelação devolverá ao tribunal o conhecimento dos demais”. Justifica-se a exceção pelo respeito ao princípio da vedação à decisão surpresa13 e pela circunstância de a matéria ter sido já trabalhada e conhecida pelas partes na fase pré- decisão. 2.3. A Fase Contenciosa do Processo Administrativo Fiscal e a Revisão de Ofício Sempre foi polêmica a questão da convivência entre
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