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Análise Ergonômica do Trabalho em contexto de fiscalização numa Indústria de Calçados PAULO SILVA, GENTE COPPE/UFRJ JOSÉ CARVÃO, GENTE/COPPE/UFRJ MARIO VIDAL, GENTE/COPPE/UFRJ PAULO SOUZA, PETROBRAS Palavras-Chave: Ergonomia, calçados, fiscalização, condições de trabalho. Resumo O trabalho apresenta os resultados da Ação Ergonômica numa fábrica de calçados situada no Espírito Santo, realizada a partir de demanda gerada pela DRT local. Trata-se de empresa de médio porte, cerca de 550 empregados, e posição de destaque na indústria de calçados infantis no Brasil. O artigo permite um painel acerca das condições de trabalho neste ramo industrial, á luz da Norma Regulamentadora 17. Abstract This paper shows the results of an ergonomic action in a shoe manufatcturing plant at Vila Velha, Brazil, following an enforcement action by the regional office of Brazilian Occupational Safety & Health Administration. This plant is a medium size one, with circa 550 employees, having a good market share within its branch. We outline a landscape concerning working conditions enlightened by brazilian ergonomic regulation (NR-17). 1. INTRODUÇÃO O artigo se refere à Análise Ergonômica realizada em empresa do setor calçadista, atendendo à auditoria fiscal nos termos da NR-17. Usamos como metodologia básica a análise ergonômica do Trabalho. 2. Breve Histórico e Características da Empresa · Empresa - localizada em Vila Velha - Espírito Santo, fundada em 1960 · Produção - calçados infantis para as idades de 0 a 4 anos. É líder de mercado nos tamanhos entre 0 até 2 anos. · Certificação Internacional - ISO 9002 - emitido pela DNV (Det Norske Veritas) com acreditação da RVA (Holanda) e no INMETRO em novembro de 1999. · Posição no mercado - Situa-se fora dos maiores pólos calçadistas (Rio Grande do Sul, interior de São Paulo e Ceará), onde estão os principais fornecedores do ramo, encarecendo a aquisição de matéria prima e insumos. Suas vendas direcionam-se também para fora do estado, o que eleva seus impostos. · Ciclos sazonais - a fábrica tem recessos no fim de ano e em julho, com picos entre setembro e princípios de dezembro. Como diz seu supervisor : “a outra linha vai abrir logo, está fechada pelo ciclo sazonal; a fábrica para durante 10 dias depois de julho, cresce de setembro ao início de dezembro, depois vem o recesso de fim de ano, e voltamos a funcionar em meados de janeiro até julho, quando o movimento cai de novo .” A fábrica produz a partir de encomendas devido à grande variedade de modelos em linha, o que traria dificuldades práticas e custos altos para manter estoques. Em conseqüência a produção sente mais os efeitos das vendas que quando há estoques, que agem como amortecedores entre vendas e produção. Assim os trabalhadores têm uma pressão natural provocada pela necessidade de realizar logo as vendas e ajustar os fluxos de caixa. A empresa ocupa cerca de 4100 m2, dividida em duas áreas de produção: A (0 a 2 anos) e B (2 a 4 anos). O esquema geral da Fig. 1 dá uma vista geral da empresa, codificada em cores e padrões visando destacar as áreas de atividade funcional na fábrica, indicadas por escrito. Seu fluxo de produção, análogo para A e B, está ilustrado à direita: Fig. 1 –Fluxo de produção na fábrica As vendas vêm da ADMINISTRAÇÃO para o PCP, que envia as ordens de produção para os demais setores. Do CORTE as peças vão para a COSTURA, dali para a LINHA DE MONTAGEM, de onde a produção é enviada para a expedição. O ALMOXARIFADO distribui matéria prima e utensílios para a produção. 3. O TRABALHO DE CAMPO As observações foram feitas entre 2002 e 2004. Um trabalho preliminar já havia sido feito então, consistindo de contatos e coleta de dados junto ao SESMT da empresa, e contatos com a Direção para estabelecer as condições para realizar o trabalho. 3.1 – LEVANTAMENTO DE INFORMAÇÕES Em relação à afastamento por lesões ou doenças, os dados abaixo foram obtidos também junto ao SESMT da fábrica. Em razão de sua extensão, cabe sintetizar os principais resultados concernentes aos índices de afastamento, discriminados por ano, mês e dias da semana: · Entre 2001/2002, o setor de COSTURA tem o maior índice de afastamento, com doze ocorrências, índice 6 vezes maior que os setores de MONTAGEM, CORTE e ALMOXARIFADO, com 2 ocorrências cada no mesmo período; · No mesmo período, porém discriminando por mês, março, junho e outubro apresentam os maiores índices, coincidindo com períodos de aquecimento da demanda na fábrica; · Para os dias da semana, os picos observados ocorreram nas terças e na quinta feiras, embora a rigor só as sextas feiras haja um número menor de ocorrências. 3.2 – DADOS COLHIDOS DE ENTREVISTAS E QUESTIONÁRIOS Algumas questões tiveram alto índice de respostas comuns, assim podemos considerá-las quase consensuais, sendo portanto pouco relevante apresentá-las na forma de gráficos ou tabelas. Como manda a boa ergonomia, investigamos para ratificar ou retificar as situações avaliadas. O questionário foi aplicado individualmente na presença dos pesquisadores da equipe, visando obter depoimentos mais espontâneos e fiéis à realidade vivida na empresa. Sempre foi reforçado em sua aplicação o caráter sigiloso das respostas, não identificando os depoentes. Esta tática funcionou bem no sentido de obtermos respostas e comentários adicionais que nos ajudaram a formar um quadro da cultura organizacional que foi útil para avaliar as observações a serem feitas na continuidade do processo da AET. Os pontos são os seguintes: · Intervalos para descanso - Não há intervalos por turno, exceto para a ginástica laboral que é feita à tarde, mas que é também foi solicitada pela manhã, às vezes com expressões do tipo: “É bom… descansa… parada… alívio... quebra a monotonia etc.” Isto nos indicou os efeitos sobre os operadores do regime intenso de trabalho. · Ginástica laboral - como visto, sua aprovação foi quase unânime, vide respostas do tipo “deviam ser mais tempo”, ou “devia ter de manhã e de tarde”, mas as poucas desfavoráveis apontam fatores como “aumenta a dor, cansaço, sono, não vejo resultado, atrasa a produção”, “deveria ser participativa e não obrigada”, “não faço devido à dor nas pernas”, por exemplo. Tais opiniões, junto com “na hora da ginástica o banheiro fica cheio” constituíram indícios para que a quase unanimidade fosse melhor observada, para melhor avaliar os alegados objetivos de prevenção de problemas ósteo-musculares. · Rodízio de atividades - não é formalmente realizado na fábrica. Eventualmente, quando não há serviço em algum posto por alguma instância de produção, o operador procura ajudar noutro posto. Isto porém constitui uma estratégia eventual e informal de cooperação no trabalho, ao invés de uma prática oficialmente estimulada. · Expectativa quanto aos resultados da AET - as respostas foram quase unânimes quanto a uma expectativa favorável, mas muitas vezes com ressalvas como “... já vimos muitas coisa assim antes e não deu em nada”, motivo também alegado nas poucas respostas desfavoráveis. 3.3 – OBSERVAÇÕES DE CAMPO As observações de campo foram realizadas em quatro visitas à fábrica, num total de três a quatro dias para cada visita. Alguns aspectos mais específicos merecem uma solução melhor em termos do binômio produtividade - conforto dos trabalhadores: · Cadeiras – as cadeiras utilizadas, notadamente na COSTURA, não são adequadas às funções desempenhadas. São do tipo “concha” em plástico, para uso em salas de espera, refeitórios etc. Ao longo de um jornada causam posturas inadequadas, refletindo as queixas registradas nos questionários/entrevistas: dores nas costas, pernas, pescoço etc. Observar o uso de almofadas para apoio das costas, provocado pela necessidade de inclinação para a frente,necessária à execução das tarefas. Ver Figs 3 e 5 a seguir ; · Acionamento das máquinas – algumas máquinas têm mecanismos de acionamento incômodos para os operadores. Observar na Fig. 2 um pano claro na coxa direita da costureira: um comando é feito afastando a coxa lateralmente. Com o tempo forma-se pequeno hematoma pela pressão da peça na coxa, daí a regulação (DE MONTMOLLIN, 1995) do “paninho" utilizado. · Prensas de Corte – estas não têm possibilidade de ajuste pelos operadores, que devem se adequar às dimensões da máquina. Não havia na época qualquer recurso que lhes permitisse compensar tal restrição. · Operações repetitivas – a Fig. 3 ilustra o “virar sapatinho” no jargão local. Como a costura é ao avesso, a operadora desvira cada sapatinho. Ao fim do dia desvirou centenas. O Médico do Trabalho local relatou muitas queixas dela quanto a dores no pulso e braço. Há outras operações similares devidas à produção de grandes lotes e ao processo produtivo em si que determinam operações repetitivas. · Almoxarifado – as estantes para estoque têm 5m de altura – 4 prateleiras com 1m entre si, sem empilhadeiras manuais ou motorizadas. Uma escada com roletes é usada para a estocagem, com evidente risco de acidentes por queda do operador ou do material sobre outros – rolos de tecido com 1,5 m de comprimento são bastante pesados. Ver Fig. 4. O transporte de material demanda também esforços penosos dos operadores. Saindo do estoque, o material é acomodado em carrinhos pesados e pouco práticos. O corte dos rolos de tecido também implica em posturas forçadas devido ao tamanho dos rolos. De um modo geral os operadores dali trabalham de pé, devido à constante pressão por movimentar matariais pesados e executar serviços de preparação neles. As atividades de Corte de tecidos na Mesa de Corte e dublagem de tecidos provocam posturas altamente nocivas à saude, com flexões de tronco e levantamento de pesos de 15 a 25 kg a cada operação, sendo que centenas delas são executadas por turno. Não há máquinas facilitando tais ações. Fig 2 – Postura das costureiras na máquina de costura e na rebitadeira Fig. 3 – Operação “desvirar sapatinho” · Ventilação – é feita por centenas de ventiladores próximos aos postos de trabalho, próximos inclusive à cabeça dos operadores. São aparelhos com motores relativamente grandes, gerando calor e aumentando a temperatura interna local, embora dando sensação de alívio a quem está perto. Há portanto que se buscar solução com um sistema de exaustão para a fábrica que resolva a questão de forma mais eficaz (Fig. 5). Fig. 4 - Estantes no almoxarifado Fig. 5 - Ventiladores · Linha de montagem – do modo como é operada, foi difícil entrevistar seus integrantes sem interferir no processo produtivo: sem um rodízio previsto, cada operador tem importância crítica para suas funções em seu posto. Pudemos observar a intensidade do trabalho ali, com a demanda de produção já vendida pressionando o pessoal via prazos e metas de produção 4 – OPORTUNIDADES DE MELHORIA Com base no levantamento realizado, hierarquizamos as pendências para cada setor na fábrica. Os tópicos abaixo discriminam as soluções apresentadas para cada setor listado: · Setor de COSTURA - sua maior incidência de casos de afastamento foi corroborada por observações de campo e dados do questionário. Uma das causas é o acidente típico de perfurar a mão com agulhas ou ilhoses. A Fig. 2 mostra a mão direita do operador posicionando a peça para acionar a máquina: com o tamanho do lote, a operação é repetida muitas vezes, e a chance de errar aumenta. Isto poderia ser resolvido instalando um kit em acrílico, permitindo posicionar sem perder e a visão da peça. Sugerimos assim a instalação destes, vide Fig. 6 [costura e ilhós]. Quanto às cadeiras, sugerimos sua troca por outras em conformidade com a NR-17. Fig 6 – Guarnição para máquinas de costura e para máquinas de ilhós Ainda na COSTURA, há uma questão recorrente no setor calçadista – a idéia que “trabalho de pé é melhor para a saúde”, decorrente do incrível laudo de um Médico do Trabalho do Sul do país, espalhando rápido tal prática pelo setor. O supervisor da fábrica era gaúcho, pólo relevante da indústria de calçados, e reforçou tal versão com toda convicção – “lá no Sul todos fazem assim”. Em contato com colegas ergonomistas do Sul soubemos que o laudo já tinha sido contestado, não sendo aceito pelas DRTs ou pelo Ministério Público do Trabalho, mas o estrago estava feito – a fábrica, usando máquinas para posições de pé e sentado, estava em vias de trocar todas suas máquinas sentado para de pé, o que pudemos evitar a tempo. Recomendamos a alternância entre as máquinas e, como havia o caso de funções diferentes nas máquinas de pé e sentado, indicamos cadeiras próximas aos postos de pé, permitindo pausas para descanso em conformidade com a NR-17. Para ilustrar, segue seqüência de movimentos de uma operadora de baixa estatura na posição de pé: da esquerda para a direita ela recua para descansar uma perna, vide Fig. 7. Fig. 7 – movimento da operadora na máquina para posição de pé · CORTE – indicamos ali o uso de pequenos tablados com alturas variáveis, para ajustar as diferenças de altura dos operadores em relação às prensas. Também indicamos a mudança do fluxo operacional na fábrica A, onde as peças transitavam pelo CORTE fora da seqüência física das máquinas, num vai e vêm inútil dentro do setor até sair para a Costura. Com a mudança o fluxo produtivo teria um caminho natural . · ALMOXARIFADO – para reduzir o risco e desconforto encontrados, recomendamos: - Aquisição de empilhadeira para movimentar carga das prateleiras; - Aquisição de carrinhos para distribuição e circulação interna e externa, para aliviar e agilizar o transporte de carga; - A NR 17.3.1 justifica a postura de pé se a tarefa demanda deslocamentos contínuos. Mas recomenda a organização de pausas de 10 minutos a cada 50 minutos, para descansar o pessoal envolvido no trabalho de pé; - Foi projetado para a dublagem de tecidos um kit para passagem do rolete sobre os tecidos colados, evitando seu levantamento a cada operação; · LINHA DE MONTAGEM – em face dos aspectos já descritos, recomendamos o estabelecimento da macropausa -10 minutos de descanso a cada 50 trabalhados. 3. CONCLUSÃO Observa-se que a operação da fábrica não pode ser “esquartejada” em análises de setores separados. Aspectos como a ventilação geral da empresa e o fluxo do processo da produção, devem ser vistos na perspectiva da melhoria global dos processos, para a qual também indicamos soluções como o uso do kanban, por exemplo. Buscamos aliar o conforto dos operadores com as necessidades de aprimoramento das metas e processos de produção. 4. REFERENCIAS VIDAL, M. C. R. – Ergonomia na Empresa: Útil, Prática e Aplicada –Ed. Virtual Científica – RJ – Brasil - 2001 GRANDJEAN, E. – Manual de Ergonomia - 4 ed., Ed. Bookman, Porto Alegre, Brasil, 1998 NR-17 – Manual de Aplicação da Norma Regulamentadora 17 do Ministério do Trabalho SLACK, N., et al. - Administração da Produção - 1 ed., Ed. Atlas S. A., S. Paulo, Brasil, 1997
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