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Em busca de uma educação musical libertadora: modos pedagógicos identificados em práticas baseadas na aprendizagem informal REVISTA DA ABEM | Londrina | v.23 | n.35 | 62-75 | jul.dez 201562 Em busca de uma educação musical libertadora: modos pedagógicos identificados em práticas baseadas na aprendizagem informal1 In search of a potentIally lIberatIng musIc educatIon: pedagogIc modes emergIng from Informal musIc learnIng practIces Em um projeto de pesquisa-ação conduzido na Universidade de Brasília, planejei, implementei e supervisionei, por três ofertas, um módulo de 8 semanas baseado na aprendizagem musical informal de Lucy Green (2008). Com o objetivo de analisar minha práxis como supervisora do módulo, busquei entender como minhas ações refletiam nas práticas musicais e pedagógicas de meus alunos. Este artigo discute resumidamente alguns modos pedagógicos identificados na análise de aulas de música baseadas na aprendizagem informal proposta por Green. Esses modos foram conceituados de acordo com noções Freireanas de relações dialógicas entre alunos e professor, e do papel diretivo do professor no processo de aprendizagem, buscando uma possível educação libertadora. Essa visão Freireana, em conjunto com a abordagem informal de Green, é uma contribuição teórica para o campo da sociologia da educação musical com possível aplicação prática em cursos de formação de professores de música. palavras-chave: aprendizagem musical informal; educação musical libertadora; modos pedagógicos. Flávia MotoyaMa Narita Departamento de Música/Instituto de Artes, Universidade de Brasília - UnB (Brasília/DF) flavnarita@yahoo.com.br This article will focus on some of the findings drawn from a self-study-action-research project carried out at Universidade de Brasília. An eight-week module based on Lucy Green’s (2008) informal music learning model was designed and implemented three abstract resumo 1. Este texto é um recorte de minha tese de doutorado orientado pela professora Lucy Green e financiado pela Capes. NARITA, Flávia Motoyama REVISTA DA ABEM | Londrina | v.23 | n.35 | 62-75 | jul.dez 201563 A pesquisa de Green (2002) sobre a aprendizagem de músicos populares resultou na sistematização de uma proposta pedagógico-musical baseada na aprendizagem informal daqueles músicos (Green, 2008). Comumente denominado simplesmente “aprendizagem informal”, o modelo de Green faz parte do Musical Futures, “um movimento para reformular a educação musical dirigido por professores para professores”2. Tal movimento e, especificamente, o modelo de Green, vêm instigando reflexões e pesquisas em educação musical (ver Abrahams et al., 2011; Cain, 2013; Feichas, 2010; Finney & Philpot, 2010; Gower, 2012; Hallam, Creech & McQueen, 2011; Jeanneret, McLennan & Stevens-Ballenger, 2011; Karlsen & Väkevä, 2012; Lill, 2014; McPhail, 2013; Narita, 2014; Rodriguez, 2009; Wright & Kanellopoulos, 2010 entre outros). Além da aprendizagem informal, Musical Futures também abarca atividades e recursos educacionais baseados no ensino não-formal3. Resumidamente, o modelo de aprendizagem informal de Green (2008, p. 10) propõe para o contexto formal das escolas a adoção de cinco princípios identificados nas práticas informais de músicos populares: 1) os estudantes escolhem a música que querem trabalhar; 2) tiram a música de ouvido; 3) escolhem os colegas com quem querem trabalhar e aprendem uns com os outros; 4) a aprendizagem parte de um repertório “real” e não segue uma ordem pré-estabelecida; e 5) existe uma profunda integração entre as modalidades de audição, performance e composição, com ênfase na criatividade. Esses princípios foram incorporados em um modelo pedagógico composto por sete estágios, com duração aproximada de 4 a 6 aulas para cada um deles. No primeiro estágio, solicita-se aos estudantes que levem a gravação da música que querem tocar. Eles se agrupam de acordo com seus interesses e afinidades, decidem a música do grupo e tentam tirá-la de ouvido, dirigindo seu processo de aprendizagem de acordo com seus próprios interesses. A integração entre audição, performance e composição pode não ser o foco, mas está implícita neste estágio. No segundo estágio, os estudantes recebem trechos de materiais previamente preparados: áudios, e às vezes notações de músicas escolhidas pelo professor. Novamente introdução: o modelo de aprendizagem informal de Lucy Green 2. Traduzido do site: <https://www.musicalfutures.org/> 3. Além do Reino Unido, o projeto Musical Futures é adotado na Austrália, Canadá e Cingapura. Ver: <https://www. musicalfutures.org/; http://www.musicalfuturesaustralia.org/; http://musicalfuturescanada.org/> Acesso em: 10 ago. 2015. times. Aiming at understanding my own praxis as the module supervisor, I investigated the reflections of my praxis on the pedagogical and musical practices of my students. From the analysis of their lessons, I developed a theoretical model of music teaching conceptualized mainly based on Freire’s notions of a dialogical relationship between teacher and taught, and teacher’s directiveness of the learning process, aiming at a potentially liberating mode of education. The Freirean view of education employed in the interpretation of those pedagogic modes, alongside Green’s framework, is a contribution to the field of the sociology of music education at a theoretical level and with practical application in music teacher education courses. KeYWOrDs: informal music learning practices; liberating music education; pedagogic modes. Em busca de uma educação musical libertadora: modos pedagógicos identificados em práticas baseadas na aprendizagem informal REVISTA DA ABEM | Londrina | v.23 | n.35 | 62-75 | jul.dez 201564 em grupo, solicita-se que os estudantes escutem os materiais, toquem de ouvido e façam sua própria versão da música. No estágio 3, os estudantes repetem a experiência do primeiro estágio, mas demonstram uma escolha mais cuidadosa do repertório a ser trabalhado. No estágio 4, os estudantes se envolvem com composição. Depois de tirar músicas de ouvido nos estágios anteriores, eles criam sua própria música. No estágio 5, os estudantes recebem um modelo para escrever canções e recebem orientações de músicos ou estudantes mais avançados. Nos últimos dois estágios, trabalha-se com música clássica4 de modo similar ao que fizeram com música popular. No estágio 6, o repertório é baseado em música clássica utilizada em comerciais de TV, e, no estágio 7, as peças são menos familiares (Green, 2008, p. 25-27, 194). É importante ressaltar que Green (2006; 2008, capítulo 7) utilizou música clássica ocidental não porque valorizava esta música mais do que outras ou porque considerou necessário que os estudantes tivessem contato com ela. Green utilizou esse estilo, pois era a música que os estudantes com quais trabalhou mais “odiavam”. Assim, caso essa abordagem de aprendizagem informal tivesse sucesso com um estilo musical que os estudantes não gostassem, poderia ter sucesso com qualquer outro tipo de música. Portanto, sugere-se que outros tipos de música também possam ser trabalhados e adaptados a este modelo. O papel mais ativo dos estudantes, que parecem ter mais “voz” de decisão em seu processo de aprendizagem neste modelo, corresponde a atitudes que busco estimular em minha prática pedagógico-musical. Dessa forma, motivada por essa maior liberdade dada aos estudantes e instigada pelo papel do professor neste modelo, planejei, implementei e supervisionei, por três ofertas, um módulo baseado na aprendizagem musical informal, com duração de 8 semanas cada oferta. Ao refletir sobre minha prática docente neste módulo, percebi que o conceito Freireano de práxis, como “reflexão e ação verdadeiramente transformadora da realidade [e] fonte de conhecimento reflexivo e criação” (Freire, 2014,p. 127) adequava-se ao projeto de pesquisa-ação que norteou minha investigação. Design da pesquisa O módulo foi ofertado entre agosto de 2011 e outubro de 2012 em um curso de graduação, Licenciatura em Música, na modalidade a distância. Integrou atividades presenciais (práticas musicais e práticas de ensino) e atividades online síncronas (videoconferências) e assíncronas (fóruns de discussão, envios de vídeos, textos e áudios)5. Devido à organização do curso na modalidade a distância, além dos estudantes, interagi também com os denominados tutores a distância e tutores presenciais. Os primeiros assessoram os estudantes online e são treinados especificamente para orientá-los em determinada disciplina/módulo. Os segundos assessoram os estudantes presencialmente em todas as disciplinas ofertadas, em encontros semanais nos polos de apoio presencial6. Durante as três ofertas, no total, contei com a participação de 73 estudantes, 9 tutores a distância e 11 tutores presenciais. design da pesquisa 4. O termo “música clássica” é utilizado para referir-se à música de concerto, também denominada “erudita”. 5. A plataforma oficial utilizada é o moodle, em que os estudantes interagem em fóruns de discussões e enviam tarefas. Muitas vezes, colocamos no moodle links para vídeos no canal YouTube. Também utilizamos a plataforma de som SoundCloud para as postagens e comentários dos áudios e fizemos videoconferências via Google+ (Hangout) ou Skype. 6. Os polos de apoio presencial são locais onde ocorrem as atividades pedagógicas e administrativas dos cursos a distância. Ver mais informações em <http://uab.capes.gov.br/index.php/polos-841937/o-que-e-um-polo-de-apoio-presencial> NARITA, Flávia Motoyama REVISTA DA ABEM | Londrina | v.23 | n.35 | 62-75 | jul.dez 201565 Em um projeto de pesquisa-ação formado por três ciclos de ação-reflexão, investiguei: a) o desenvolvimento de minha própria práxis como supervisora do módulo e; b) os reflexos de minha práxis nas ações e aprendizagem dos participantes do módulo. O módulo foi uma adaptação dos estágios 1 e 2 do modelo de Green. A ideia básica era oportunizar que os estudantes vivenciassem práticas musicais baseadas na aprendizagem informal: fazendo música em grupos, escutando áudios previamente preparados (quebrados em linhas melódicas ou riffs), tocando de ouvido e criando suas próprias versões da música. Após essa prática musical, os estudantes prepararam materiais pedagógicos similares aos que lhes foram apresentados, isto é, faixas de áudio com riffs ou linhas melódicas de uma música pré-determinada. Alguns também utilizaram notações musicais como tablatura, indicação de acordes e nome de notas. Esses materiais foram, então, experimentados com alunos de escolas básicas em duas aulas em que os estudantes universitários foram convidados a agir como discutimos durante o módulo, segundo o papel de professor no modelo de Green: explicando a tarefa aos alunos, distribuindo os materiais preparados e inicialmente se afastando, deixando os alunos trabalhando sozinhos. Durante esse “afastamento”, os professores (estudantes universitários) foram orientados a observar os alunos, procurando se colocar em seus lugares para diagnosticar suas necessidades e, caso tivessem de fazer alguma intervenção, agissem como modelos musicais, tocando ou cantando com os alunos. Durante as três ofertas, fiz algumas modificações tanto no módulo quanto em minhas ações, uma vez que a experiência em cada oferta propiciou novas aprendizagens e reflexões. Assim, em cada oferta, meu saber experiencial foi “atualizado, adquirido e readquirido no curso da profissão de ensino” (Tardif, 2013, p. 113, minha tradução). Na primeira oferta, procurei implementar o modelo de Green o mais próximo possível do original, seguindo as orientações específicas para os estágios 1, com escolha livre de repertório, e 2, com material pré-determinado. Na segunda oferta, com base na participação dos estudantes e dos tutores a distância durante a primeira oferta, decidi esclarecer algumas dúvidas suscitadas anteriormente e focalizar apenas no estágio 2 do modelo de Green, utilizando, portanto, apenas os materiais pré-determinados, disponíveis no site do Musical Futures. Na terceira oferta, modifiquei os estágios 1 e 2 do modelo original para melhor adequar o módulo às demandas do curso, dos estudantes, e à minha própria investigação. Na terceira oferta, a primeira prática musical já foi o início da preparação dos materiais pedagógicos. Assim, desde o início do módulo, os estudantes tiveram de pensar em uma música que eles pudessem fazer um arranjo para seus alunos nas escolas. Uma vez preparados os materiais, estes foram trocados entre os diferentes polos. Esta foi uma ideia sugerida por um estudante durante entrevista conduzida no final da segunda oferta. Foi o estágio 2 de Green (prática utilizando materiais pré-determinados) com materiais de colegas de outros polos. Ao trocar os materiais pedagógicos, os estudantes tiveram a chance de avaliar a qualidade dos áudios e sugerir algumas modificações nesses materiais antes que seus colegas atuassem nas escolas. Em alguns polos, essa prática musical utilizando material dos colegas foi conduzida pelo tutor a distância, que, neste caso específico, se deslocou para o polo a fim de acompanhar a prática. Os tutores a distância tiveram o apoio dos tutores presenciais e foram supervisionados a distância por mim (via Hangout do Google+). As modificações, juntamente com a utilização de diferentes ferramentas online na tentativa de promover mais interações entre os participantes, fizeram com que eu customizasse cada oferta e desenvolvesse maior propriedade sobre o design do módulo. Nesta pesquisa, utilizei quatro diferentes métodos de coleta de dados: entrevistas semi- estruturadas, questionários online, observações e análise documental. Neste último item, incluí Em busca de uma educação musical libertadora: modos pedagógicos identificados em práticas baseadas na aprendizagem informal REVISTA DA ABEM | Londrina | v.23 | n.35 | 62-75 | jul.dez 201566 a análise de todos os materiais produzidos na plataforma moodle, tais como textos em fóruns de discussões, relatórios reflexivos, áudio e vídeos das práticas musicais e das aulas, além de postagens compartilhadas em outros ambientes online fora do moodle. As principais atividades do módulo que utilizei para analisar os reflexos de minha práxis nas ações dos estudantes foram: práticas musicais nos polos, práticas de ensino nas escolas e interações sociais. Este artigo discutirá as práticas de ensino e alguns modos pedagógicos que emergiram durante a análise. O maior número de aulas na terceira oferta do módulo possibilitou que eu observasse uma maior variedade de procedimentos pedagógicos realizados pelos estudantes. Isso me levou a construir um modelo para tentar entender suas ações e classificar as diferentes categorias de ensino observadas. Análise das práticas de ensino: Modos Pedagógicos As práticas de ensino conduzidas pelos estudantes de graduação (licenciandos) foram analisadas por meio de vídeos editados e enviados por eles próprios ou por vídeos de observações que fiz durante minha visita a algumas escolas. Ao assistir aos vídeos das aulas, busquei analisar como os estudantes representavam o papel de professor no modelo de aprendizagem informal: observei como ou se eles se “afastavam” primeiramente, tentavam entender os propósitos de seus alunos e demonstravam como tocar. Durante a análise, buscava por interações “dialógicas” entre os universitários (atuando como professores) e os alunos das escolas. Nessa busca, emergiram questões relacionadas à autoridade do professor, à habilidade musical do professor, e à negociação do professor com os “mundos musicais” dos alunos. Como discutido em Narita (2014), essas questões formaram três domínios de ensino musical que podiam ser mobilizados e inter-relacionadosdurante uma prática pedagógico-musical. FIGURA 1 Modos Pedagógicos7. 1. Educação (Musical) Bancária Habilidade Musical dos professores 3. Laissez-Faire 4. Diálogo não -musical 2. Prática Musical Alienada 8. Colagem 5. Liberdade Ilusória 6. Transitividade Ingênua 7. Educação (Musical) Libertadora 9. Afinando com alunos Autoridade dos professores/ conhecimento teórico e proposicional Relação com os Mundos musicais dos alunos Contexto de aprendizagem e ensino análise das práticas de ensino: Modos Pedagógicos NARITA, Flávia Motoyama REVISTA DA ABEM | Londrina | v.23 | n.35 | 62-75 | jul.dez 201567 Enquanto algumas práticas “claramente” ilustravam características de um domínio específico (identificadas pelos números 1, 2 e 3 na Figura 1, acima), outras apresentavam características mescladas entre um domínio e outro (4, 5, 6 e 7). Outras ainda foram interpretadas como uma combinação de diversas abordagens de ensino, passando por diferentes domínios ou interseções entre esses domínios. O modo que denominei “colagem” de abordagens refere-se a mudanças de procedimentos dos professores de acordo com as tarefas planejadas. Diferentemente da “colagem”, o modo que denominei “afinando com os alunos” refere-se a mudanças em resposta às demandas dos alunos. Dentre as 61 práticas pedagógicas analisadas durante a pesquisa, cerca de 25% (15) foram classificadas como “colagem” e cerca de 13% (8) pareciam “afinar com os alunos”. A classificação e a denominação das práticas pedagógicas foram influenciadas por conceitos Freireanos, tais como “educação bancária”, “educação libertadora”, “transitividade ingênua”, e por literatura correlata, como discutirei posteriormente. A seguir, ilustrarei os diferentes modos pedagógicos que emergiram dessa pesquisa. Iniciarei com as práticas em que os mundos musicais dos alunos parecem ter sido privilegiados em detrimento à autoridade e conhecimento dos professores: os modos “laissez-faire” e “transitividade ingênua”. Pendendo depois para o controle dos professores, apontarei evidências de uma educação musical “bancária”. Logo após, abordarei dois modos que parecem ter sido resultado de uma falta de entendimento sobre a proposta: o “diálogo não-musical” e a “liberdade ilusória”. Em seguida, discutirei a “colagem”, que correspondeu a quase um quarto das práticas analisadas. Por fim, exemplificarei práticas em que os universitários “afinaram” suas ações para atender aos alunos, e práticas que potencialmente poderiam ser chamadas “libertadoras”. Nos exemplos utilizados, todos os nomes foram substituídos a fim de se preservar o anonimato dos participantes da pesquisa. A) Laissez-Faire: alunos dominando as aulas No questionário anônimo online, muitos licenciandos (59%) responderam que foi difícil se afastar e não começar a “ensinar” (no sentido de “depositar” informações que poderiam até ser desnecessárias). Por essa resposta, esperava encontrar uma atitude controladora e a predominância da autoridade e do conhecimento teórico dos professores nas aulas observadas, como alguns participantes sinalizaram em nossas discussões nos fóruns. De fato, algumas práticas pedagógicas foram classificadas nesse domínio. Entretanto, a atitude que foi mais frequentemente demonstrada nos vídeos, depois da colagem de abordagens, foi a de “laissez-faire”, em que os alunos são deixados fazendo o que querem, sem intervenção do professor. Talvez os licenciandos acreditassem ser esse o papel de professor no modelo de aprendizagem informal ou acreditassem ser o que era esperado que fizessem. Identifiquei 10 práticas (cerca de 16%) nesse modo. No vídeo de Jane, podemos observá-la explicando a tarefa para os alunos e estes escutando a música que preparou, gravando faixas com voz e acompanhamento percussivo. Não tivemos acesso ao processo de ensaio dos alunos, nem das ações de Jane como professora de música. Apenas vimos as apresentações dos grupos de alunos tocando e 7. Tradução de figura apresentada em Narita (2014). Em busca de uma educação musical libertadora: modos pedagógicos identificados em práticas baseadas na aprendizagem informal REVISTA DA ABEM | Londrina | v.23 | n.35 | 62-75 | jul.dez 201568 cantando a canção, que já era conhecida. Como eles já sabiam a música, cantaram de cor, parecendo meramente reproduzir o que estava em seus ouvidos, cantando em uníssono sem fazer modificações ou demonstrar um engajamento mais crítico com os materiais sonoros durante a prática musical. A única diferença era o acompanhamento percussivo, mas os padrões eram basicamente o pulso e suas subdivisões. Os alunos pareciam estar gostando da prática. Entretanto, em um momento em que estamos advogando pela contratação de professores de música qualificados (licenciados) nas escolas, precisamos que os professores estejam conscientes de suas contribuições para a aprendizagem dos alunos. Assim, estes últimos poderão efetivamente adquirir ou desenvolver habilidades musicais além daquelas que já possuem em sua relação informal com a música. Analisando o entendimento dos licenciandos a respeito da aprendizagem informal com base em suas atuações como professores, aponto que o período inicial em que eles se “afastam” para observar seus alunos não é sempre bem utilizado. Em vez de observar o que seus alunos já conseguiam fazer ou em quê eles apresentavam dificuldades, o momento de afastar-se foi interpretado algumas vezes como uma ocasião em que os universitários não fariam nada ou apenas filmariam os alunos. No vídeo de Jane, como comentei acima, não vimos nenhuma intervenção. Em sua primeira aula, duas garotas do segundo grupo cantavam fora do tom. Elas pareciam não perceber, mesmo com o violão tocando o acompanhamento harmônico. Jane não fez nenhuma demonstração nem cantou junto com elas para tentar melhorar a afinação das alunas. O modo “laissez-faire” tende a ser adotado em duas situações distintas: quando a falta de confiança nas habilidades musicais impede os professores de fazer intervenções como modelos musicais; e quando os professores não entendem o papel do professor no modelo de aprendizagem informal. O modo “laissez-faire” no primeiro caso pode ser ilustrado com as aulas e relatos de Jane. Ela escreveu em seu relatório que estava um pouco apreensiva porque não tocava violão. Ao encontrar dois alunos que tocavam o instrumento, Jane relata “não ter tido problemas”. Entretanto, devido à sua falta de habilidade nesse instrumento, ela não pôde sugerir ritmos ou levadas diferentes nem transpor os acordes para uma tonalidade que pudesse, talvez, ter ajudado as duas garotas que cantavam fora do tom. Além da falta de confiança para fazer intervenções musicais, Jane pode ter pensado que não devesse intervir. Ela já havia apontado esse papel não-intervencionista em um fórum de discussões. No entanto, Cain (2012, p. 417) assim como Shor e Freire (1987, p. 206) ressaltam, a influência e intervenção do professor são parte do papel do professor, consideradas uma “prioridade ética”. B) Transitividade Ingênua: evitando o “ensino” Este modo recebeu sua denominação inspirada pelo termo Freireano que explica o processo de conscientização, apontando o despertar de uma “quase intransitividade” para uma transitividade. Freire (1994, p. 68) considera o ser humano um ser “aberto” ou “transitivo”, pois se relaciona com os outros e com o mundo. É também um ser histórico, situado em um tempo e espaço. Entretanto, uma consciência quase que intransitiva pode ser observada quando “representa um quase incompromisso do homem com a existência. O discernimento se dificulta”. À medida que o ser humano “aumenta o seu poder de dialogação, não só com o outro homem, mas com o seu mundo, se “transitiva”. (...) Esta transitividade da consciência permeabiliza o homem” (ibid, p. 68). Entretanto, inicialmente, a consciência transitiva é ingênua e se caracteriza “pela simplicidade na interpretação dos problemas.(...) Pela subestimação do homem comum. Por uma forte inclinação ao gregarismo, característico da massificação. (...) NARITA, Flávia Motoyama REVISTA DA ABEM | Londrina | v.23 | n.35 | 62-75 | jul.dez 201569 Pela fragilidade na argumentação” (ibid, p. 68-69). Assim, o diálogo ainda é “frágil”, pode ser distorcido e não necessariamente levar ao desenvolvimento de uma consciência crítica. As práticas pedagógicas que classifiquei como “transitividade ingênua” são práticas dialógicas que ilustram os professores procurando reconhecer e validar os mundos musicais dos alunos. Os professores também fazem algumas intervenções musicais ou demonstram conhecimento de habilidades musicais práticas; entretanto, parecem evitar mobilizar seus conhecimentos teórico-musicais que poderiam auxiliar os alunos a seguirem além de suas experiências já conhecidas. Um exemplo desse tipo de prática foi a aula do licenciando Armando. Em sua turma, os alunos puderam escutar os áudios em seus telefones celulares e decidir em quê gostariam de focalizar sua prática musical. Um grupo de meninos escolheu focalizar em um ostinato rítmico da música preparada por Armando. No vídeo, pudemos observar os alunos tentando reproduzir o ritmo com palmas. Seguindo nossas orientações, Armando fez algumas intervenções musicais, tais como bater palmas junto com os alunos e depois deixá-los trabalhando sozinhos. Observamos as palmas dos meninos sendo transformadas em batidas nas carteiras escolares e, na apresentação final, em um ostinato diferente tocado em um pandeiro e um cajon. Após a apresentação, Armando perguntou sobre a experiência de “tirar de ouvido” e os meninos responderam que foi fácil tocar o ritmo, mas tiveram dificuldade em cantar. De fato, no vídeo de sua primeira aula, pudemos escutar que os meninos não conseguiam cantar na mesma tonalidade da gravação. Armando poderia ter cantado com eles, transpondo a canção para um registro mais confortável, mesmo que isso implicasse em não ter o acompanhamento do violão tocado por outro aluno. Poderia, também, ter orientado o aluno do violão a transpor os acordes para uma tonalidade mais adequada às vozes dos colegas. Outros dois grupos também tiveram dificuldades com a afinação, talvez porque a canção escolhida não fizesse parte do repertório musical dos alunos. Nesse caso, Armando poderia ter orientado seus alunos a prestarem atenção e compararem o que estavam cantando com os áudios escutados. Como podemos perceber, Armando compartilhou com seus alunos o controle da atividade musical, dando-lhes mais liberdade do que estimamos em uma aula “formal”. Ele também fez algumas intervenções musicais, mas perdeu oportunidades de ser um modelo musical para seus alunos e de ensiná-los como melhorar suas performances musicais, talvez com receio de controlá-los muito. Consequentemente, a impressão é que nem Armando nem seus alunos demonstraram todo seu potencial musical nessa prática. “Ingenuamente”, Armando pode ter achado que estivesse cumprindo seu papel como professor apenas sugerindo formas de manipular os materiais sonoros. Entretanto, o desenvolvimento de uma musicalidade crítica (Green, 2008, p. 91) requer uma audição atenta dos materiais sonoros, que pode ser estimulada com intervenções adequadas do professor. C) Educação Musical Bancária: o poder dos professores Diferentemente das práticas que denominei “laissez-faire” e “transitividade ingênua”, que reconhecem os mundos musicais dos alunos mas não a autoridade dos professores, a abordagem “bancária” de educação musical exemplifica o controle autoritário dos professores. Baseada na concepção de Freire (2014, p. 100), nesse modo de educação “o educador vai “enchendo” os educandos de falso saber, que são os conteúdos impostos”. Contrariamente ao que orientamos, Mariana não permite que seus alunos escolham com quem querem trabalhar. Ela mesma distribui os alunos em grupos e deixa apenas um Em busca de uma educação musical libertadora: modos pedagógicos identificados em práticas baseadas na aprendizagem informal REVISTA DA ABEM | Londrina | v.23 | n.35 | 62-75 | jul.dez 201570 instrumento com cada grupo. Em seguida, reproduz faixa por faixa no aparelho de som e solicita que cada grupo fique responsável por apenas uma faixa. De modo diverso ao que trabalhamos no módulo, seus alunos também não puderam escolher as faixas que gostassem ou as que melhor se adequassem às suas habilidades musicais. Também no controle o tempo todo, Nando inicia sua aula distribuindo a letra da canção que preparou. Assim como Mariana, ele reproduz faixa por faixa, sem deixar que seus alunos escolham como querem trabalhar. Além disso, ele “testa” o conhecimento de seus alunos perguntando qual o instrumento que escutam em cada faixa e pedindo que repitam o padrão rítmico escutado. Depois de explicar sobre o estilo e forma musical, Nando permite que os alunos peguem os instrumentos musicais. Em vez de deixá-los livres para trabalhar em grupos, Nando continua à frente da turma toda e trabalha repetições de ritmos e pulso. Assumindo uma postura “bancária”, deposita seu conhecimento mesmo que não seja necessário aos alunos. Sua tutora a distância comenta que a aula estava bastante distante do modelo de aprendizagem informal. Ela relembra a Nando que o papel do professor, no modelo de Green, é ser um exemplo musical, devendo ensinar tocando e cantando com os alunos; não dando explicações teóricas desnecessárias. D) Diálogo Não-Musical: suprimindo a musicalidade dos professores Cientes de sua autoridade como professores e reconhecendo os mundos musicais de seus alunos, os licenciandos cujas práticas foram classificadas como “diálogo não-musical” parecem ter enfatizado demais o tempo em que se “afastavam”. Diferentemente do modo que identifiquei como “laissez-faire”, quem adotou o “diálogo não-musical” demonstrou insatisfação ao suprimir suas habilidades musicais. Se no modo chamado “transitividade ingênua” os licenciandos não demonstraram um sentimento de realização por não mobilizar seu conhecimento teórico e sua autoridade como professores, aqui eles não se realizaram por não agirem como músicos. De fato, em seus relatórios reflexivos, esses licenciandos demonstram conhecimento de habilidades musicais que poderiam ter sido trabalhadas em suas aulas. Eles refletem sobre as dificuldades musicais de seus alunos e colocam o que poderiam fazer para melhorar sua prática musical. Entretanto, em seus vídeos, não observamos nenhuma intervenção em que atuassem como modelos musicais. Uma das razões pode ter sido o fato de termos apenas duas aulas nas escolas. Portanto, seguindo o modelo original de Green, estaríamos no período inicial de o professor se “afastar” para observar quais são os objetivos de seus alunos e diagnosticar suas necessidades. Nesse sentido, isso foi exatamente o que Jorge fez em suas duas aulas. Suas reflexões demonstram que ele estava bastante atento às necessidades de seus alunos e “sabia” o que deveria fazer caso ele tivesse mais aulas com a turma. Nos vídeos, podemos vê-lo dando sugestões a seus alunos e deixando-os trabalhando sozinhos. Assim, neste caso, a abordagem denominada “diálogo não-musical” foi adotada conscientemente e de modo planejado para as primeiras aulas neste modelo de aprendizagem informal. Tal atitude pode ser uma indicação de que os licenciandos estivessem seguindo o modelo de Green como uma “fórmula” prescrita, como Finney e Philpott (2010) alertaram. Dessa forma, o modelo passou a ditar o que deveriam fazer ou deixar de fazer, desumanizando-os, uma vez que os licenciandos se eximiram de tomar decisões próprias de acordo com seus contextos de atuações. Guilherme também comentou ter se sentido “amarrado” na prática pedagógica, entendendo que havia uma “regra” de não demonstrar como utilizar os materiais pedagógicos. Seguindo NARITA, Flávia Motoyama REVISTA DA ABEM | Londrina | v.23 | n.35 | 62-75 |jul.dez 201571 tal crença, esses licenciandos suprimiram suas identidades como músicos, mostrando uma identidade “fragmentada” como professores de música e experienciando frustração. E) Liberdade Ilusória: professores como músicos no controle Contrabalançando as práticas identificadas como “diálogo não-musical”, mas ainda apresentando uma visão equivocada da proposta, temos o modo denominado “liberdade ilusória”. Aqui, os licenciandos atuaram como músicos, tocando e cantando com e para seus alunos à medida que demonstravam como a música poderia soar. No entanto, houve muito controle e os mundos musicais dos alunos não foram ouvidos. As práticas pedagógicas classificadas como tal foram geralmente musicais, mas os licenciandos que conduziam as aulas pareciam não perceber que não estavam dando liberdade para seus alunos demonstrarem seus conhecimentos ou gostos musicais. As habilidades musicais de Gil são evidenciadas em seu vídeo: ele toca violão, faz percussão corporal e lidera a turma. Como sua tutora a distância comenta, ele é um modelo musical para os alunos mas fica no controle o tempo todo. Outro exemplo de uma prática musical controlada é a de Raul. Em sua aula, ele explica como as meninas podem tocar teclado, orienta os meninos que estão com guitarra e baixo e oferece um padrão rítmico para ser mantido pelas percussões (chocalhos e pandeiros). Como não havia instrumentos para todos, convida os demais alunos para acompanhar seus colegas fazendo percussão corporal. Raul orienta todo o processo, ajudando os alunos em seus instrumentos e conduzindo a performance, indicando quando cada um deveria tocar ou parar. Como podemos perceber, são práticas musicais que podem ser bastante válidas em diversos contextos de ensino. Entretanto, é importante notar que, nesse modo pedagógico, podemos estar negligenciando as contribuições musicais que nossos alunos podem trazer durante as práticas musicais. F) Colagem de abordagens Foram identificados diferentes tipos de “colagem” de abordagens nas práticas pedagógicas dos licenciandos. Algumas davam a impressão de que o estudante estava um pouco “perdido” em seu papel como professor, tentando diversas abordagens para se ajustar à situação de sala de aula. Outras combinações pareciam ser sistematicamente planejadas, de acordo com tarefas específicas. Ilustrarei o tipo de colagem identificada como “diálogo não- musical/prática musical alienada”. Diálogo não-musical/ Prática Musical Alienada Aparecendo apenas como parte de uma “colagem” de abordagens, a tendência de uma “prática musical alienada” foi detectada nas práticas pedagógicas de Ivan e Erasmo. Em ambos os casos, em vez de fazer música com seus alunos, eles tocaram para eles. Enquanto Erasmo adotou uma atitude inicial de educador “bancário”, Ivan estabeleceu um diálogo não-musical com seus alunos, parecendo ser direcionado por suas sugestões, talvez não entendendo o que seria o respeito aos mundos musicais dos alunos. Desde o planejamento de suas aulas, Ivan demonstrou abertura para dialogar com seus alunos. Ele trabalhou com uma música escolhida pela turma, preparou diversas faixas de áudio utilizando diferentes instrumentos e fez as modificações e melhorias nos áudios de acordo Em busca de uma educação musical libertadora: modos pedagógicos identificados em práticas baseadas na aprendizagem informal REVISTA DA ABEM | Londrina | v.23 | n.35 | 62-75 | jul.dez 201572 com as orientações de sua tutora a distância. Entretanto, em sua aula, Ivan levou apenas instrumentos de percussão. Com isso, restringiu a atividade a um acompanhamento percussivo e as faixas melódicas tornaram-se irrelevantes. Apesar de Ivan não ter adotado uma postura permissiva como identificada no modo “laissez-faire”, ele atuou mais no controle da bagunça do que como professor de música, como a tutora Laura comentou. Em sua segunda aula, em vez de os alunos fazerem suas próprias versões da música trabalhada, eles cantaram uma outra canção escolhida e tocaram instrumentos de percussão. Em outro trecho do vídeo, observamos Ivan tocando uma outra música em seu instrumento para seus alunos. Pareceu que Ivan apenas conseguiu agir como músico, e não como professor como modelo musical. Em vez de tocar com seus alunos, integrando-os na prática musical, eles ficaram alienados dessa prática e Ivan também estava alienado das práticas de seus alunos. G) Afinando com as necessidades dos alunos: harmonizando os mundos dos alunos e professores Muitos licenciandos, de um modo ou de outro, incorporaram em suas práticas pedagógicas algumas atitudes que discutimos durante o módulo, especialmente dar liberdade para que seus alunos explorassem os materiais preparados e agir como modelo musical. Entretanto, essas atitudes nem sempre foram incorporadas desde o início das aulas. Assim, esta categoria corresponde a um tipo de combinação de abordagens na tentativa de “afinar” suas atitudes com as necessidades de seus alunos. Ataulfo mudou de uma atitude que denominei “diálogo não-musical” para “transitividade ingênua”. Se inicialmente ele suprimiu suas habilidades musicais práticas, posteriormente ele abriu mão de sua autoridade. No entanto, essa mudança foi uma tentativa de melhor afinar com as demandas de seus alunos. Em sua segunda aula, quando solicitou que seus alunos criassem sua própria versão da música que levou, alguns deles responderam que eles só fazem rap e que só fariam a atividade se Ataulfo participasse também. Ao aceitar esse desafio, Ataulfo mobilizou seu próprio domínio de habilidade musical ao fazer o rap com seus alunos. Isso fez com que ele se colocasse no lugar de seus alunos e dialogasse com seus mundos musicais. H) Educação Musical Libertadora: em direção a um entendimento crítico dos mundos dos alunos e professores As práticas que identifiquei como potencialmente “libertadoras” utilizam elementos dos três domínios de ensino musical de modo que alunos e professores estabeleçam uma relação dialógica e que os professores: 1) ofereçam modelos musicais aos alunos; 2) reconheçam os mundos musicais dos alunos e; 3) ao mesmo tempo, não se eximam de exercer sua autoridade como professores durante as aulas. Além disso, os licenciandos que adotaram uma abordagem “libertadora” apresentaram um certo grau de reflexividade, demonstrando conscientização de seus papéis no mundo e com o mundo dos alunos e professores. Tanto o vídeo quanto o relatório de Alcione ilustram sua consciência crítica sobre seu papel como professora de música. No vídeo, podemos observá-la explicando a tarefa para seus alunos, permitindo que eles se agrupem e lidem com os áudios como quisessem. Em seu relatório, Alcione aponta sua preocupação inicial com a euforia dos alunos, mas percebe que, aos poucos, começam a se organizar. Durante o período em que se “afastou”, Alcione NARITA, Flávia Motoyama REVISTA DA ABEM | Londrina | v.23 | n.35 | 62-75 | jul.dez 201573 coloca em seu relatório que ficou surpresa ao perceber algumas habilidades musicais de seus alunos. Ao final da aula, observamos no vídeo que ela pega seu violão para acompanhar seus alunos. Assim, ela integra suas habilidades musicais com a prática musical de seus alunos. Apesar da limitação de espaço e de falta de instrumentos musicais, Alcione negociou com as ideias musicais de seus alunos sem perder o controle de sua autoridade, agindo também como modelo musical. Às vezes, a habilidade musical dos professores foi demonstrada pelo tipo de intervenção e não propriamente por ações de cantar ou tocar com os alunos. Nas aulas de Priscila, ela encorajou seus alunos a imitarem o padrão rítmico que escutavam utilizando os materiais percussivos à disposição. Ela também deu dicas para as alunas que estavam procurando as notas no teclado. Assim, ao mesmo tempo em que deu liberdade para seus alunos explorarem os instrumentos musicais enquanto escutavam os áudios preparados, todas as vezes que julgou necessário,Priscila fez intervenções. Ela sugeriu formas de trabalhar com a canção e estabeleceu uma interação dialógica com seus alunos que possibilitou a construção de seus conhecimentos como alunos e professora. Durante a implementação do modelo de aprendizagem informal de Green, três atitudes pareceram “essenciais” para que os professores de música cumprissem o papel “diferente” requisitado neste modelo: permitir que os alunos demonstrem o que já sabem, ensiná-los agindo como modelos musicais, e assumir sua autoridade como professores. Tendo isso em mente, e buscando relações dialógicas na análise das práticas pedagógicas dos licenciandos, três domínios de ensino musical emergiram: o da relação dos professores com os mundos musicais dos alunos, o da habilidade musical dos professores, e o da autoridade dos professores. A análise das práticas pedagógico-musicais a partir da mobilização desses domínios de forma integrada, segregada, ou combinada resultou na identificação de nove modos pedagógicos. Influenciada pela literatura Freireana, encontrei paralelos entre as práticas analisadas e os conceitos de Freire sobre “educação bancária”, “transitividade ingênua”, e “educação libertadora”. Além disso, seu conceito sobre diálogo foi a inspiração para o modo pedagógico denominado “diálogo não-musical”. Este modo e o chamado “laissez-faire” pareceram resultar de um equívoco sobre o papel do professor ou de uma ênfase demasiada no período inicial de “afastamento”. A atuação como modelo musical mobilizando também seu domínio de autoridade, mas não tendo contato com os mundos musicais dos alunos foi classificada como “liberdade ilusória”. Apesar do modo chamado “prática musical alienada” não ter surgido isoladamente nesta pesquisa, foi conceituada como uma prática pertencente apenas ao domínio da habilidade musical dos professores. Além desses modos, identifiquei duas combinações de abordagens. Uma é voltada para o cumprimento de momentos distintos do ensino, resultando em uma “colagem” de abordagens. A outra focalizou as necessidades dos alunos, combinando diferentes abordagens para “afinar” suas ações às demandas dos alunos. Identificar esses modos pedagógicos me auxiliou a ficar mais consciente a respeito dos domínios de ensino que mobilizo em cada prática pedagógico-musical. Dessa forma, procuro balancear esses três domínios para atingir uma possível educação libertadora que busco em minha práxis como professora de música. Apesar desse modelo teórico ser resultado de práticas baseadas na aprendizagem musical informal, ele pode ser utilizado em outros contextos de ensino musical em que os professores possam mobilizar seus domínios de habilidade musical, considerações finais Em busca de uma educação musical libertadora: modos pedagógicos identificados em práticas baseadas na aprendizagem informal REVISTA DA ABEM | Londrina | v.23 | n.35 | 62-75 | jul.dez 201574 de autoridade e conhecimento teórico-musical, e de relação com os mundos musicais de seus alunos. Assim, sugere-se que tal modelo teórico possa ter uma aplicação na análise de práticas pedagógico-musicais variadas, contribuindo para reflexões na área de formação de professores de música. Outra contribuição dessa pesquisa refere-se às práticas de aprendizagem informal. Apesar da pesquisa relatada não ter a intenção de “testar” o modelo de Lucy Green, as discussões levantadas durante a implementação, adaptação e reformulação desse modelo em um contexto cultural diferente do modelo original, bem como os ajustes realizados para atender aos aspectos online e do curso a distância, podem interessar os estudiosos da aprendizagem informal e da educação a distância. Por fim, aponto a retomada de valores e ideais de Paulo Freire para uma educação musical mais humanizadora e libertadora, dialogando com os mundos musicais de nossos alunos. Além disso, a busca por uma conscientização dos atores (alunos, professores e tutores) envolvidos no processo de aprendizagem e ensino da música ressalta a importância de lembrarmos que “Além de um ato de conhecimento, a educação é também um ato político. É por isso que não há pedagogia neutra” (Shor & Freire, 1987, p. 25). Assim, em nossas atitudes como professores, tutores e alunos, tomamos posições que demonstram nossos valores educacionais, pessoais e musicais. A conscientização de sermos atores “inacabados” em um processo constante de “estar sendo” auxilia a análise de nossa (trans)formação humana na busca de afinar nossos valores e discursos com nossas ações. Assim, esses conceitos Freireanos, além daqueles relacionados aos modos pedagógicos, são contribuições que podem ser utilizadas na formação de professores. ABRAHAMS, Frank; RAFANIELLO, Anthony; WESTAWSKI, David; VODICKA, Jason; WILSON, John & ABRAHAMS, Daniel. Going Green: The Application of Informal Music Learning Strategies in High School Choral and Instrumental Ensembles, 2011. Disponível em: <http://www.rider.edu/wcc/academics/center- critical-pedagogy/our-research> Acesso em: 10 ago. 2015. CAIN, Tim. Too hard, too soft or just about right: paradigms in music teachers’ action research. 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