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Teologia e Ciência no Vaticano II - Eduardo Rodrigues da Cruz

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2
ÍNDICE
Capa
Rosto
Apresentação
Introdução
Capítulo I - Antecedentes: da Revolução Científica ao Vaticano II
1. Do concordismo tradicional à adoção do neotomismo
2. O endurecimento do magistério e o ápice da apologética
3. A cautela e a ousadia em meados do século XX
Capítulo II - A ciência e o Concílio Vaticano II
1. A ciência nos documentos do Vaticano II
2. A ciência como surge na Gaudium et spes
3. Paulo VI e a transição para o pós-Concílio
4. Algumas observações sistemáticas
Capítulo III - O magistério e as ciências naturais, de João PAULO II a Bento XVI
1. João Paulo II e o início de um diálogo efetivo com as ciências
2. Persiste a dificuldade com a evolução biológica
2.1. De Joseph Ratzinger a Bento XVI
2.2. Um documento da comissão teológica internacional
2.3. Questões em aberto
Conclusão
Referências bibliográficas
Coleção
Ficha Catalográfica
Notas
3
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O
APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO MARCO CONCILIAR
Concílio Vaticano II, concluído há cinquenta anos, refez a Igreja
Católica em muitos aspectos e, em certa medida, o próprio
cristianismo. A intenção de João XXIII de promover um novo
pentecostes na Igreja foi não somente anunciada em várias ocasiões,
desde sua primeira inspiração, mas uma tarefa de construção assumida
por ele; tarefa conduzida pela força de sua autoridade, mas também
pelo vigor de seu carisma renovador. Sem a ousada inspiração e a
liderança convicta e perseverante desse papa, certamente não teria
havido o Vaticano II, ao menos com a dimensão e a profundidade que o
caracterizou. Somente pela força carismática de líderes como João
XXIII se pode pensar em mudanças como as proporcionadas pelo
Concílio numa instituição milenar com doutrinas e regras cristalizadas.
Esse grande Concílio, o mais ecumênico de todos, refez a rota
fundamental da Igreja ao colocá-la de frente com o mundo moderno. A
Igreja, que estava distante da chamada modernidade e segura de sua
posição e verdade, foi capaz de reposicionar-se e elaborar uma nova
doutrina sobre o mundo e sobre si mesma. De isolada do mundo,
assume-se como sinal de salvação dentro do mundo; de detentora da
verdade, reconhece a verdade presente nas ciências e passa a dialogar
com elas; então definida como poder sagrado, passa a compreender-se
como servidora da humanidade. E o mundo torna-se o cenário do
drama humano: lugar de pecado e de graça, porém inscrito no plano
maior do amor de Deus que nos cria e nos chama para a comunhão
consigo. A Igreja e o mundo estão situados nesse plano misterioso de
Deus, a ele se referem permanentemente e são compreendidos como
realidades distintas e autônomas, porém em diálogo respeitoso e
construtivo.
O Vaticano II abriu uma temporada nova na Igreja como fruto de
inesperada primavera, na intuição do papa João. A essa primavera
sucederam-se novos ciclos com climas diferenciados, sem nos poupar
de invernos rigorosos. As decisões conciliares foram interpretadas e
praticadas de diferentes modos nos anos que se seguiram à grande
4
assembleia, em função de lugares e sujeitos envolvidos no processo de
aggiornamento. Por um lado, é fato que muitas renovações
aconteceram em diversas frentes da vida da Igreja. Tanto no âmbito
das práticas pastorais quanto da reflexão teológica, o pós-Concílio foi
um canteiro que fez a primavera produzir muitos frutos: renovação
litúrgica em diálogo com as diferentes culturas, Igreja comprometida
com os pobres, diálogo ecumênico e inter-religioso, doutrina social da
Igreja, experiência de ministérios leigos etc. O novo se mostrou
vigoroso, sobretudo nas primeiras décadas do pós-Concílio e
particularmente no hemisfério sul, nas Igrejas inseridas em contextos
de pobreza e de culturas radicalmente distintas da cultura latino-cristã
tradicional. Por outro lado, houve um esfriamento do carisma conciliar,
à medida que a história avançava, impondo suas rotinas, mas,
sobretudo, uma leitura que buscava evitar a ideia de renovação-
ruptura com a tradição anterior. Segundo essa leitura, o Vaticano II
teria inovado sem romper com a doutrina tradicional, incluindo a
doutrina sobre a Igreja. Essas perspectivas revelam na dinâmica pós-
conciliar as lutas por construir o verdadeiro significado do Vaticano II,
do ponto de vista teórico e prático. Trata-se de leituras localizadas no
ponto de vista geopolítico e teológico-eclesial, com sujeitos e ideias
distintos, assim como marcadas por esforços de demonstração da
intenção original das decisões dos padres conciliares.
Se esse dado revela, de um lado, as dificuldades crescentes de um
consenso, expõe, por outro, a atualidade do Concílio como marco
eclesial e teológico importante para a Igreja. Pode-se dizer que o
Vaticano II começou efetivamente no dia seguinte à sua conclusão em
8 de dezembro de 1965. Na Audiência de 12 de janeiro de 1966, o papa
Paulo VI reconhecia esse desafio de colocar o Concílio em prática,
comparando-o a um rio que iniciava seu fluxo e se dispunha para a
Igreja como tarefa para o futuro. E esse rio avançou certamente por
terrenos nunca previstos, fecundou novas terras e produziu frutos com
sua água sempre viva. Por outro lado, foi um rio represado por muitas
frentes eclesiais que temiam sua força; foi desviado de seu curso e
canalizado para diferentes direções. Contudo, o rio jamais secou seu
fluxo. Continua correndo na direção do Reino, levando sobre suas
5
torrentes a frágil Barca de Pedro com seus viajantes, ora cansados e
temerosos, ora destemidos e esperançosos.
O Vaticano II não foi somente um evento do passado, mas constitui,
de fato, o hoje da Igreja Católica, a fonte de onde a Igreja retira o
sentido fundamental para sua caminhada histórica e para o diálogo
com a realidade atual. Esse “Concílio em curso” completa cinquenta
anos com uma história e um saldo que merecem ser visitados por todos
os que estão atentos a sua importância para a Igreja em permanente
sintonia com o mundo, que avança rapidamente em suas conquistas
científicas e tecnológicas. Se a modernidade perscrutada pelos padres
conciliares já não existe mais, ela deixou, entretanto, suas
consequências positivas e negativas para nossos dias; consequências
que exigem de novo o olhar atento da fé cristã que busca distinguir os
sinais dos tempos e lançar os cristãos como sujeitos ativos no mundo:
parceiros de busca da verdade e na construção da fraternidade
universal.
A presente coleção planejada e oferecida pela Editora Paulus
pretende revisitar o Vaticano II por várias entradas e oferecer rápidos
balanços sobre questões diversas, nesses cinquenta anos de prática e
de reflexão. Cada uma das temáticas é abordada em três aspectos: a
orientação conciliar presente nos textos promulgados pelo grande
Sínodo, o desenvolvimento da questão no período pós-conciliar e sua
análise crítica — balanço e prospectiva. Esse tríplice olhar busca
conjugar o desenvolvimento da temática do ponto de vista teórico e
prático, ou seja, os seus desdobramentos no âmbito do magistério e da
reflexão teológica, assim como as suas consequências pastorais e
sociais. A Igreja se encontra, nos dias atuais, num momento fecundo de
renovação de si mesma, após o conclave que elegeu o papa Francisco.
O Vaticano II se encontra, nesse contexto, numa nova fase e deverá
produzir seus frutos, em certa medida tardios, em muitas frentes que
ainda não haviam sido enfrentadas pelos pontífices anteriores. A
própria figura do atual papa remete à eclesiologia do Vaticano II tanto
em suas atitudes como em suas palavras. Está viva a Igreja povo de
Deus, a Igreja dos pobres, a Igreja servidora, misericordiosa e dialogal.
O Concílio tem fornecido, de fato, a direção das reformas enfrentadas
6
com coragem pelo papa a partir da Cúria Romana.
Esse contexto de revisão é animador e permite falar de novo do
último Concílio como um marco histórico fundamental para o presente
e o futuro da Igreja. É tempo de balanço e reflexão sobre o significado
desse marco. Os títulos ora publicados pretendem participar dessa
empreitada com simplicidade, coragem econvicção. Cada autor perfila
a procissão dos convictos da importância das decisões conciliares para
os nossos dias, mesmo sendo o mundo de hoje em muitos aspectos
radicalmente diferente daquele visto, pensado e enfrentado pelos
padres conciliares na década de 1960. O espírito e a postura
fundamentais do Vaticano II permanecem não somente válidos, mas
normativos no marco da grande tradição católica. Mas continua,
sobretudo, um espírito vivo, na medida em que convida e impulsiona a
Igreja para o diálogo com as diferenças cada vez mais visíveis e cidadãs
em nossos dias e para o serviço desinteressado a toda a humanidade,
particularmente aos mais necessitados.
A Igreja que entra para o Concílio, herdeira da longa tradição que a
afirmava como mestra da verdade e de uma eclesiologia
autorreferenciada formulada pelo Vaticano I, deteve-se com os
desafios do diálogo com as diferenças, resultado direto do propósito de
aggiornamento lançado por João XXIII. Na imagem do novo Concílio,
cuja construção se iniciara desde aquele primeiro anúncio em 25 de
janeiro de 1959 e se concluíra com o discurso de abertura do grande
evento, estavam contidas de modo latente algumas relações inevitáveis,
a saber, entre a Igreja e a sociedade, entre a Igreja e as demais
denominações cristãs e entre a tradição católica e o pensamento
moderno. A Igreja deveria rever-se para se apresentar perante a
sociedade, as religiões e as outras Igrejas cristãs sem ruga e sem
mancha, a fim de que a sua doutrina pudesse, mediante revisão da
linguagem, se fazer entendida por todos e para que todos fossem
atraídos para o Rei do universo. Evidentemente, essas metas
introduziam circularidades entre a Igreja e seus interlocutores, de
forma que pelo diálogo franco e aberto deveria ouvir o pensamento
moderno e as ciências, os irmãos separados, os cristãos ortodoxos e as
demais religiões. O diálogo intercultural emergia, desse modo, como
7
convicção, meta e método dos trabalhos conciliares; a verdade já não
poderia ser uma posse exclusiva da Igreja e do cristianismo, como se
pensava nos tempos anteriores, e a Igreja colocava-se na atitude de
escuta de acolhida das diferentes tradições religiosas e das distintas
correntes de pensamento. A Igreja deverá dialogar até mesmo com
seus adversários, ensina o Vaticano II (GS 28).
O diálogo da teologia com as ciências já havia avançado na primeira
metade do século XX, tanto no sentido da acolhida dos resultados das
ciências quanto da adoção dos métodos científicos no labor teológico.
Os estudos bíblicos tomaram forma a partir dessa postura de acolhida e
diálogo com as diversas ciências relacionadas à interpretação dos
textos. Também o próprio magistério se relacionava de modo mais
positivo com as descobertas científicas, estabelecendo uma
epistemologia de nítida raiz tomasiana que permitia distinguir e
relacionar as ciências com os seus objetos e métodos com os objetos e
posturas específicos da fé. O Vaticano II chega num momento propício:
ponto de chegada e ponto de partida para a construção de reflexões
sobre e com as diversas ciências. E mais, bebendo das teologias das
realidades terrestres, os padres conciliares não hesitaram em elaborar
uma teologia das ciências, ainda que expressa de modo fragmentário e
germinal nos textos conciliares. As ciências são vistas como exercício
de uma missão inerente à condição criatural do ser humano. A
positividade das grandes descobertas científicas expressa a grandeza
da criatura humana, imagem e semelhança de Deus, senhor da
história, e cumpridora de um desígnio histórico que tem como autor
primeiro o próprio Deus. A realidade imanente é dotada de uma
autonomia que lhe é própria, bem como as ciências que dela se
ocupam. Diz a Gaudium et Spes, número 36, que o “homem deve
respeitar tudo isso”, respeitando “os métodos próprios de cada ciência
e arte”, e retoma um princípio clássico da relação entre a fé e a razão,
afirmando que “se a pesquisa metódica, em todas as ciências, proceder
de maneira verdadeiramente científica e segundo as leis morais, na
realidade nunca será oposta à fé”, uma vez que Deus é o criador de
todas as coisas. Mas o mesmo número da Constituição vai mais longe
ao afirmar que “aquele que tenta perscrutar com humildade e
8
perseverança os segredos das coisas, ainda que disto não tome
consciência, é como que conduzido pela mão de Deus, que sustenta
todas as coisas, fazendo que elas sejam o que são”.
Após o Concílio, a humanidade deu passos avançados e rápidos nas
descobertas científicas, atingindo pontos extremos da vida, como no
caso da engenharia genética, e integrando de modo definitivo a ciência
e a tecnologia. As ciências vistas e teologizadas pelos padres
conciliares já não são mais as mesmas, como de um modo geral
também o mundo já não é mais o mesmo. Porém, a reflexão sobre as
ciências avançaram pouco além daquela empatia conciliar, sobretudo
nos documentos do magistério. O déficit de diálogo ainda visível clama
por novas reflexões no campo da teologia acadêmica, mas, de modo
particular, por novas posturas da parte da teologia oficial do
magistério. A convicção tradicional da Igreja de que a verdade tem sua
origem em Deus, venha de onde vier (Santo Ambrósio, Santo Tomás),
há que ser afirmada em relação a muitas descobertas científicas que
muitas vezes desconfortam certos lugares comuns da doutrina moral
cristã e desafiam a pastoral da Igreja do ponto de vista dos costumes
que entram para a vida dos cristãos.
As reflexões deste livro mapeiam de modo sintético e indicativo as
ciências no marco conciliar. Elas poderão, de fato, abrir caminhos para
contribuir com o trânsito necessário da fé para as ciências, de forma
que possa falar de modo mais coerente e profético com a cultura e a
sociedade contemporânea. “Quando algumas categorias da razão e das
ciências são acolhidas no anúncio da mensagem, tais categorias
tornam-se instrumentos de evangelização; é a água transformada em
vinho. É aquilo que, uma vez assumido, não só é redimido, mas torna-
se instrumento do Espírito para iluminar e renovar o mundo”
(Evangelii gaudium, 132).
João Décio Passos
Wagner Lopes Sanchez
Coordenadores
9
Q
INTRODUÇÃO
uando se fala de ciência no Concílio Vaticano II, entra-se em
território ainda pouco explorado. De fato, encontra-se na
literatura pouco mais que os artigos de Urbano Zilles (2005) e de Job
Kozhamthadam (2007), que lidam com o tema específico da ciência.
Esses artigos, porém, são mais laudatórios do que críticos, e assim se
faz necessário um esforço de avaliar o tema da ciência no Vaticano II
em toda a sua complexidade. Tentaremos aqui dar uma contribuição
nesse sentido, seguindo uma ordem mais cronológica e sistemática. O
leitor também notará que a estrutura dessa obra difere um pouco das
demais na coleção Marco Conciliar.
De fato, como as referências dos documentos sobre a atividade
científica no Concílio são poucas, e um pouco afastadas de nossas
preocupações cotidianas, começaremos por descrever os antecedentes
mais remotos da discussão do tema. Nesse voo histórico, apresentado
no capítulo I, mostraremos a ambivalência da posição do magistério,
enquanto promotor da ciência, ao mesmo tempo vendo-a como uma
ameaça à doutrina e à fé. Percorreremos o espectro de tempo que
começa com o caso de Galileu e vai de Leão XIII a Pio XII, sob a
sombra do Syllabus de Pio IX e da condenação ao Modernismo.
Indicamos depois uma mudança de inflexão no magistério de João
XXIII, que prepara o que será discutido no concílio.
Em seguida falaremos, no capítulo II, um pouco do lugar da ciência
no processo de redação dos documentos do Vaticano II, entre o
“otimismo” e o “pessimismo” em relação à influência da cultura no
papel da Igreja em testemunhar Jesus Cristo no mundo de hoje. Com
relação aos documentos finais, analisamos o modo como a ciência neles
surge, em especial na Gaudium et spes. Acentua-se nessa análise a
ruptura que se efetua com posicionamentos magisteriais pré-
conciliares, e ao mesmo tempo alguns sinais de continuidade.
Caminhando um poucoem termos históricos, indicamos as reservas
de Paulo VI em relação a alguns posicionamentos do Concílio, em
especial o otimismo quanto ao papel do progresso científico-
10
tecnológico para a consecução dos fins da Igreja. Ao longo dessa
primeira parte, mostramos como foram tratadas nesse momento
histórico certas figuras emblemáticas, como Galileu e Teilhard de
Chardin.
Retomamos também os conteúdos conciliares numa abordagem mais
sistemática. Temas sensíveis são tratados, como o reconhecimento de
erros históricos e o papel profético da Igreja. Enfim, o balanço feito
mostra a importância da postura dialogal aberta pelo concílio, e os
desafios que se colocam para se levar a sério o significado do trabalho
científico, sem se perder o específico da mensagem Cristã.
Já no capítulo III, nos concentraremos nos pronunciamentos dos
dois últimos papas, João Paulo II e Bento XVI, para indicar que o
espírito do Concílio ainda fica a meio caminho, com posições de
continuidade em relação ao magistério pré-conciliar e outras de
ruptura.
Em termos metodológicos, fizemos a opção de tratar mormente de
documentos do magistério papal, com menor recurso a historiadores,
comentadores e o magistério local. Cremos ser esse um bom ponto de
partida para daí dialogar com comentadores e entender as principais
questões envolvidas. Concentramo-nos também só nas ciências
naturais, pois dizem respeito a questões de cosmologia e evolução
pouco (ou mal) conhecidas pelo o leitor médio. Cremos assim
contribuir para um melhor entendimento delas, na medida em que as
controvérsias a respeito de certas questões teóricas e éticas, entre
cientistas e evangélicos, dominam a arena pública brasileira.
Há alguns limites nessa opção para os quais o leitor deve ser
alertado. Primeiro, que por sua própria natureza o magistério necessita
ser prudente (e como veremos, às vezes até demais) em relação a um
grande número de ideias e ações que dizem respeito à fé e à moral
cristãs. Inovações devem ficar para leigos e religiosos mais próximos
da tarefa científica, que aos poucos são filtradas até o magistério de
ordem mais superior.
Outro limite é que a literatura sobre a temática que aqui se
desenvolve é escassa na América Latina e pouco conhecida. A maioria
das obras interessantes encontra-se em língua estrangeira. Autores
11
alemães acabaram por ter um peso desproporcionalmente pequeno
nesse texto. Por todas essas razões, este livro não pretende ser um
texto já acabado, que repousa em bases firmes para apontar caminhos
de inovação, mas um convite a um aprofundamento. As sugestões de
leitura ao final do texto procuram suprir certas lacunas.
Por fim as citações dos documentos conciliares são feitas em
formato mínimo, supondo que o leitor tenha algum conhecimento da
história e dos documentos do Concílio. Eles estão disponíveis, em
português, no site do Vaticano:
<http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/index_po.htm
As traduções empregadas nessa obra são extraídas da tradução oficial.
12
http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/index_po.htm
A
Capítulo I
ANTECEDENTES: DA REVOLUÇÃO CIENTÍFICA AO
VATICANO II
posição da Igreja Católica em relação à ciência moderna, a partir
do séc. XVII, sempre foi ambivalente, mantendo
simultaneamente apoio entusiástico e condenação. Trata-se de uma
atitude compreensível, pois a história da ciência moderna é também
ambivalente: para uma versão muito comum, a “revolução científica”[1]
rompeu com paradigmas medievais e obscurantistas, e assim o
desenvolvimento da ciência se faria contra a Igreja. Também é a versão
adotada por anticlericalistas. Mas os historiadores retiram essas
camadas míticas e sustentam paralelamente outra versão, melhor
embasada nos fatos, na qual se acentua a continuidade com modos
anteriores de se produzir conhecimento, e a contribuição da
racionalidade medieval para o que se seguiu na modernidade europeia.
O caso Galileu (Galileu Galilei, 1564-1642) ajuda a tornar o cenário
mais confuso, pois mostra simultaneamente o alto grau de
desenvolvimento da ciência na Itália da época, com o patrocínio de
membros da hierarquia eclesiástica, e por outro lado a condenação do
sistema heliocêntrico. A mitologia atual (ciência progressista versus
Igreja conservadora) começa com a história de Galileu e seu uso da
luneta em 1609, mas ignora seu período como catedrático da
Universidade de Pisa desde 1589, quando ele ainda trabalhava com a
física aristotélica, e que foi muito produtivo. A “revolução” que ele
promoveu se faz de fato em continuidade com sua formação anterior e
sua inserção no debate com cientistas e teólogos. Em todo caso, hoje se
reconhece a complexidade do affair Galileu ao longo dos anos,
principalmente em torno da condenação do sistema heliocêntrico, em
1616 e em 1633. Qualquer confronto que tenha havido, ele ocorreu
entre facções (que incluem filósofos da natureza e membros da
hierarquia eclesiástica) no seio da própria Igreja.
Mas sua hierarquia não pode ser isentada da responsabilidade nos
eventos da época. Muito do que veio a seguir indica que o
13
reconhecimento da possibilidade de erro por parte do magistério é
quase nulo. No caso de Galileu, podemos ouvir o que diz o historiador
Don O’Leary (1955-):
A Igreja poderia admitir seu erro de modo aberto e mudar decisivamente sua posição.
Ou poderia agir discreta, mínima e gradualmente para salvaguardar seu prestígio, para
evitar o constrangimento, e proteger a concordância tranquila dos fiéis. Ela escolheu a
segunda opção (O’LEARY, 2007, p. 6).[2]
De fato, apesar de o heliocentrismo e as obras de Galileu serem
admitidas informalmente pelo magistério desde o início do sec. XVIII,
a primeira referência claramente positiva a ele, e uma reabilitação
considerada, só foi feita por João Paulo II! Voltaremos a esse ponto no
capítulo III.
Nesse ínterim, cientistas (na época chamados de “filósofos naturais”)
católicos continuaram a desenvolver suas atividades normalmente,
com variações locais de vigilância. É verdade que, para muitos, o
protestantismo foi mais favorável à revolução científica, porém, ainda
que menos conhecida, a contribuição de católicos assumidos é também
significativa. Pouco conhecida também é a contribuição dos jesuítas
para a ciência, inclusive no Brasil. Assim como para os jesuítas, outras
ordens religiosas e padres seculares continuaram promovendo a
atividade científica até os fins do séc. XVIII, no que alguns autores
denominam como “ciência clerical” (HARRIS, 2002, p. 250-251).
Na passagem desse século ao XIX, alguns fatores vêm a modificar
esse cenário. Podemos citar a extinção da Companhia de Jesus, a perda
gradual da riqueza temporal e da autoridade política dos Estados
Papais, a consolidação do poder do Estado sob monarquias absolutistas
e o anticlericalismo cada vez mais disseminado na esteira do
Iluminismo (HARRIS, 2002, p. 251). O processo de secularização,
qualquer que tenha sido sua natureza mais precisa, desvestiu em
particular a Igreja de centros de saber, como universidades e
monastérios, e em geral reduziu sua influência na esfera pública.
Apesar de muitos clérigos e cientistas católicos continuarem a
desenvolver suas atividades, uma Igreja cada vez mais sob estado de
sítio preocupou-se com a obediência à autoridade e a rigidez doutrinal,
e o aumento do poder da Cúria Romana. Mais do que isso, em resposta
14
às instituições profanas, são incentivados círculos católicos ligados às
várias esferas da vida social europeia, e particularmente o
desenvolvimento de uma “ciência católica”.
15
1. Do concordismo tradicional à adoção do neotomismo
No século XIX, o magistério católico já aceitava amplamente os
dados da física,[3] da astronomia, da química, da zoologia e da
botânica, e a discussão girava em torno apenas de quanto as novas
ideias cosmológicas tinham (ou não) impacto sobre as concepções
teológicas da criação. Voltaremos a esse problema mais adiante. Se
problemas houve, eles diziam respeito apenas às ciências que
iniciavam seu desenvolvimentona ocasião: a geologia, a biologia
evolutiva e a antropologia, e esta será nossa ênfase daqui em diante.
Ideias fixistas, ou seja, as que consideram que o mundo foi criado
em seis dias há uns poucos milhares de anos, de acordo com o relato
bíblico do Gênesis, e que as espécies desde então permaneceram fixas,
já estavam desacreditadas em círculos mais ilustrados no início do
século XIX. Mas havia pouco consenso sobre os dados geológicos e
paleontológicos que surgiam das intensas pesquisas que então se
realizavam, tampouco sobre uma teoria adequada do desenvolvimento
do planeta Terra e da biosfera (lembre-se de que o passo posterior, a
concepção de que o universo tem uma história, só se tornou consensual
na astronomia a partir de 1920).
O que se nota, até onde esta pesquisa pode mostrar, é certo
distanciamento do magistério em relação a esses desenvolvimentos
científicos, posições diferenciadas tanto entre cientistas quanto entre
clérigos católicos, e muita controvérsia. Os manuais de teologia nos
seminários continuaram fixistas, ao que tudo indica, passando muito
mais tempo ao largo de desenvolvimentos científicos da época. As
instituições científicas eram poucas, e o próprio conceito de “cientista”
estava apenas começando a se fixar — até então havia ainda espaço
para os amadores, muitos deles sacerdotes.
O primeiro registro digno de menção sobre as relações entre ciência
e religião são as preleções de 1835 de Nicholas Wiseman (futuro
cardeal-arcebispo de Westminster, viveu de 1802 a 1865) em Roma.
Estas foram publicadas no ano seguinte sob o título de Twelve lectures
(1836). Wiseman, especialista em línguas orientais e entusiasta das
ciências naturais, apresentou um extenso sumário de algumas ciências
16
até aquele ano, com destaque para a paleontologia e a geologia.
Notam-se duas coisas: primeiro, que o argumento se desenvolve no
âmbito das ciências naturais, e as referências a questões doutrinais são
poucas e comuns. Segundo, é um crítico do concordismo, ainda que
alguns de seus argumentos possam ser lidos nesta linha.
Ocorre, por exemplo, um posicionamento contrário a propostas para
a história natural que venham de autores que não se preocupam em
harmonizá-las com a doutrina da criação, como Buffon, Hutton e
Lamarck. Por conta deste, Wiseman não compartilha das teses
transformistas, sendo um simpatizante do catastrofismo de Georges
Cuvier (1769-1839), então uma teoria tão científica quanto suas
contendoras. Como algumas teorias dessa época já indicavam a origem
natural do homem, Wiseman defende aquelas que propõem uma cisão
entre o desenvolvimento dos animais e plantas e o homem. O que se
deduz é que já havia, nos meios católicos, um espírito favorável a
algum tipo de evolução das espécies infra-humanas.
Uma palavra sobre o concordismo.[4] Durante muito tempo, à
medida que o conhecimento geológico se ampliava, cientistas cristãos
procuraram compatibilizar o relato do Gênesis com as novas
descobertas. Isso se estendeu também às ideias evolucionistas que
eram propostas durante o século XIX. A esse empreendimento foi dado
um limite no mundo católico pelo neotomismo de Leão XIII, na
Encíclica Providentissimus Deus, de 1893:
Para penetrarmos bem na justiça desta regra, há de se considerar em primeiro lugar
que os escritores sagrados, ou melhor, o Espírito Santo que falava por eles, não
quiseram ensinar aos homens estas coisas (a íntima natureza ou constituição das coisas
que se veem), pois em nada haviam de servir para a salvação, e assim, mais do que
procurar em sentido próprio a exploração da natureza, descrevem e tratam às vezes as
mesmas coisas, ou em sentido figurado ou segundo a maneira de falar naqueles tempos,
que ainda hoje vigoram para muitas coisas a vida cotidiana até entre os homens mais
cultos (§ 42).
Aqui é Agostinho que se tem em mente, a mesma proposta que
Galileu havia feito séculos antes, e vale tanto para os relatos bíblicos
como para os elementos doutrinais. Ainda que os autores posteriores
tivessem essa advertência em mente, o concordismo foi uma eterna
tentação para a apologética, como veremos abaixo. Mas antes
retomemos o fio histórico mais amplo.
17
Podemos falar do ano de 1850 como um divisor de águas, tanto pela
fundação do periódico La Civiltà Cattolica, polêmico e influente
defensor da ortodoxia católica, como, dez anos mais tarde, pela gradual
disseminação do A origem das espécies, de Charles Darwin (1809-1882).
Tanto o Syllabus de Pio IX como os documentos do Vaticano I não
fizeram uma referência explícita à evolução. Apenas o Concílio
regional de Colônia, em 1860, apresentou uma condenação da teoria,
mas sua importância foi relativa perante os altos e baixos da
controvérsia em torno do assunto. Deixando de lado o que era
ensinado nos seminários, a discussão mais acadêmica de cientistas
católicos, teólogos e bispos percorria todo o espectro entre a defesa de
uma leitura literal do Gênesis e uma tolerância em relação à teoria da
evolução, darwiniana ou neolamarckista (versão da teoria da evolução
proposta por Lamarck).[5]
Na verdade, as críticas eram unânimes em torno dos “-ismos”, como
materialismo, evolucionismo e darwinismo. É preciso compreender
que, paralelamente, emergia uma postura de fácil apelo na
comunidade científica, de rejeição ao cristianismo em geral e da Igreja
Católica em particular. A “batalha” se dava em todos os níveis, e
acabava deixando em segundo plano o que seria propriamente
científico e religioso. Veja-se o caso do discurso de John Tyndall (1820-
1893), eminente cientista, perante a Associação Britânica para o
Progresso da Ciência em Belfast (1874): “Todas as teorias, esquemas e
sistemas religiosos que envolvam noções de cosmogonia, ou que de
outra maneira invadam o domínio da ciência devem, na medida em que
o fazem, se submeter ao controle da ciência, e abandonar toda
pretensão de controlá-la” (TYNDALL, 1874). O itálico (que é do autor)
parece dizer respeito ao fato de que Tyndall ainda concede às religiões
um papel de administração das emoções. Sua visão, por outro lado, é
inteiramente naturalista. O magistério católico de então afirmava algo
inverso, que os católicos poderiam livremente desenvolver suas
pesquisas, contanto que pelo mesmo ato venerassem o intelecto divino
revelado no cristianismo.
O maior problema da então nascente teoria da evolução não era a
ciência em si, mas as posturas ideológicas associadas a ela, os tais “-
18
ismos” dos escritos eclesiásticos. Por outro lado, é preciso registrar que
os mecanismos propostos por Darwin continuaram sendo questionados
(considerados bem diversos uns entre outros) por alternativas
neolamarckistas e vitalistas.[6] Algumas dessas alternativas foram
apropriadas pela Igreja, na medida em que à primeira vista seriam
mais de acordo com a doutrina. A controvérsia só foi resolvida com a
incorporação rigorosa da genética aos mecanismos da evolução, o que
ocorreu a partir de 1930.
19
2. O endurecimento do magistério e o ápice da apologética
O concílio Vaticano I havia destacado a complementaridade entre fé
e razão, enfatizando os aspectos de autonomia e subordinação. O
mesmo vale para a encíclica Providentissimus Deus, acima citada. A
apologética católica a partir daí incorpora essa concepção, voltando-se
para a paleontologia, a geologia e a biologia como fonte de problemas
e, ao mesmo tempo, de soluções “adequadas ao dogma” (passa-se de
um concordismo bíblico a um concordismo eclesial, por assim dizer).
Na verdade, o ponto mais delicado das novas teorias era a ausência de
uma direcionalidade evolutiva e da evolução do homem. Quanto à
evolução das demais espécies e da biosfera, toda maneira de acordos
começou a ser feita.
A ausência de uma política unificada em torno do assunto é
destacada por um estudo recente das controvérsias (ARTIGAS; GLICK;
MARTÍNEZ, 2006). Os autores narram a trajetória de seis cientistas
católicos de destaque que, entre 1877 e 1902, apresentaram posturas
favoráveis à evolução. Cada história é diferente da outra, da tolerância
até pedidos de retratação.No caso específico do biólogo inglês St.
George Mivart (1827-1900), seu primeiro livro após o A origem das
espécies de Darwin, Genesis of species (1871), faz uma análise crítica da
teoria darwiniana. Essa obra recebeu elogios tanto do Cardeal Newman
como de Pio IX, ainda que o autor tenha sido ao final excomungado por
outros motivos. Artigas et al. também destacam o papel polêmico e
negativo da Civiltà cattolica, que auxiliou no endurecimento do
Vaticano sobre o assunto entre 1890 e as primeiras décadas do século
XX.
Mas os “falcões” do Vaticano eram favorecidos por inimigos ilustres
e aguerridos do cristianismo. Destaquem-se entre eles dois norte-
americanos, John William Draper (1811-1882) e Andrew White (1832-
1918), e o alemão Ernst Haeckel (1834-1919), cujas obras causaram
grande impacto e foram muito lidas na época. Nelas, a Igreja é
ridicularizada como defensora do obscurantismo e da superstição, e se
interpretava a história recente como a gradual substituição de uma
visão religiosa por uma visão científica do mundo. Esse também foi o
20
caso da Espanha no século XIX, quando toda discussão sobre o
darwinismo era marcada pelas circunstâncias políticas locais, tendo a
Igreja como um de seus elementos, e o mesmo pode-se dizer da Itália.
A tarefa dos apologetas tornou-se difícil, a de mostrar que na
verdade a Igreja era amiga da ciência, e se esta pudesse comprovar
para além de qualquer dúvida a teoria da evolução, o magistério
poderia então seguir essa orientação.
Quanto ao magistério papal, começando com Leão XIII, há várias
referências favoráveis na Aeterni patris (1879) ao progresso da ciência,
em particular às ciências físicas e naturais. Ao mesmo tempo, adverte-
se que estas não devem estar em contradição com a filosofia
escolástica, nem com a orientação da Igreja. Essa encíclica é
representativa do espírito que caracteriza o período que vai até o
Vaticano II: uma atitude, em relação às ciências, paternalista,
admonitória, unidirecional, defensiva e excessivamente prudente.
A ciência é estimulada, mas deve ficar sob o abrigo seguro do
magistério. Ao longo do século XIX, e em especial depois de Leão XIII,
diversos esforços se realizaram em prol de uma “ciência católica”, já
mencionada, em contraposição à ciência iluminista, “positivista,
“germânica” etc. O sucesso, entretanto, não foi muito considerável.
Nessas circunstâncias, de qualquer modo, o evolucionismo foi objeto
de discussão e apresentação durante todo o período. Saliente-se o livro
do cientista e sacerdote J.-B. Senderens (1856-1936), Apologie
scientifique de la foi chrétienne (SENDERENS, 1908), com várias
edições entre 1903 e 1921. Essa obra por sua vez foi baseada numa
homônima de Mons. Duilhé De Saint-Projet (1822-1897), também com
várias edições entre 1885 e 1897, sempre com um prefácio favorável de
Leão XIII. É uma referência para a apologética da época, e inclinado
para a evolução das espécies, com restrições à espécie humana.
Senderens apresenta, como critério epistemológico e teológico, a
autonomia de três níveis de conhecimento da natureza: o teológico, o
metafísico e o físico, uma divisão que vem pelo menos de Tomás de
Aquino (cf. CARROLL, 1999).
Essa divisão permite afirmar, com o Vaticano I, que as verdades da
ciência (na medida em que provadas) não colidem com as verdades da
21
fé (LAMBERT, 2002, p. 131ss). A estratégia permitiu que se pudessem
fazer poucas objeções quanto às inovações científicas, como se pode
deduzir pelas seguintes citações de Senderens:
O que a fé prescreve no que toca ao desenvolvimento do reino orgânico, ou às
sucessivas manifestações da vida sobre o globo terrestre? Nada (SENDERENS, 1908, p.
67 e 137). Nunca é demais repetir: do ponto de vista da origem das espécies, o homem
permanecendo sempre excluído, o católico não é de forma alguma perturbado pela fé.
Ele pode escolher o sistema que lhe convém com a mais completa independência
(SENDERENS, 1908, p. 229).
O já mencionado Saint-Projet é também responsável por várias
edições do “Congrès scientifique international des catholiques”, entre
1888 e 1900, ainda dentro do espírito de uma “ciência católica”, e
interrompidas com a morte de Leão XIII, em 1903. Da mesma forma,
surge na Bélgica o periódico Revue des questions scientifiques (1877 até
o presente momento), tendendo para o lado “liberal” no
acompanhamento da ciência contemporânea.
Com a gradual emergência da controvérsia do Modernismo e sua
condenação por Pio X, era de se esperar que qualquer progresso
interpretativo da origem da biosfera fosse um pouco “freado”. Ainda
que a condenação a esse movimento não tivesse diretamente nada a
ver com a teoria da evolução, esta com certeza era admitida pelos
liberais. A partir dessa mesma época podemos citar o aparecimento de
uma série de grandes enciclopédias católicas, como síntese dos debates
que então ocorriam. Comecemos pela influente Catholic Encyclopedia,
norte-americana. O volume que contém os verbetes sobre evolução
(“Catholics and evolution” [Wasmann, E. Catholic Encyclopedia, 1909] e
“Evolution” [Muckermann, H. The Catholic Encyclopedia, 1909]) surge
apenas dois anos após a condenação do Modernismo. Pela leitura
deles, deduz-se que o magistério não estava particularmente
preocupado com a teoria da evolução. O primeiro autor em pauta, o
jesuíta Erich Wasmann (1859-1931), entomologista consagrado, reflete
a visão dos cientistas católicos da época. Após apresentar argumentos
favoráveis ao fato da evolução, ele no entanto registra em seu verbete:
“Até onde a teoria da evolução é baseada em fatos observados? Ela
deve ser entendida apenas como uma hipótese” (WASMANN, 1909).
Podemos comparar com a postura de Teilhard de Chardin (1881-1955),
22
como veremos a seguir.
Wasmann havia apresentado logo antes suas “preleções de Berlim”,
defendendo uma variante da teoria da evolução (de cunho vitalista,[7]
seguindo Hans Driesch [1867-1941]) contra o monismo de Ernst
Haeckel. Este havido sido, por décadas, um dos principais críticos
alemães da Igreja Católica e de seu alegado obscurantismo. Quando
surge Wasmann e o critica por transformar o darwinismo numa
filosofia geral, aceitar a teoria da evolução enquanto hipótese
estritamente científica tornou-se uma forma de defender o catolicismo
contra inimigos no mundo acadêmico.
O próximo documento importante é o extenso verbete
“Transformisme” do Dictionnaire apologétique de la foi Catholique,
escrito por R. de Sinéty (1922). A perspectiva também é favorável à
evolução, com destaque a que só seriam aceitas teorias finalistas e/ou
vitalistas, como a que Henry Bergson (1859-1941) expôs em A evolução
criadora (1907),[8] “... os argumentos científicos sobre os quais ela
[evolução darwiniana] repousa não possuem um valor demonstrativo
rigoroso, e assim se julga temerário caso se ensine como demonstrado,
ou mesmo como positivamente provável” (col. 1844). Já o Dictionnaire
de Théologie Catholique apresenta o verbete com o mesmo título, que se
refere ao escrito de Sinéty (AMMAN, 1946). Apesar da distância
temporal, o suporte científico, filosófico e teológico é basicamente o
mesmo do anterior. O próprio conceito de “transformismo” (associado a
Lamarck, contrapondo-se ao “fixismo”) já se tornara obsoleto, como já
mencionado acima, substituído em língua francesa gradualmente por
“evolução”. Diga-se de passagem, o entusiasmo desses apologetas com
o vitalismo de Driesch e Bergson diminuiu na mesma velocidade (mas
com uma defasagem) em que este foi gradualmente desacreditado na
comunidade científica. Os dois verbetes defendem uma forma de
transformismo mitigado, ou seja, não monista, que permite colocar
Deus como causa primária da criação. Interessante que ambos citam
Teilhard de Chardin copiosamente, mas apenas enquanto paleontólogo
— a preocupação com uma filosofia monista está sempre presente.
Também é interessante registrar o destino do livro de Henry de
Dorlodot (1855-1929), Le darwinisme au point de vue de l’orthodoxie
23
catholique (1921), que trata da origem das espécies, sem entrar naquestão da origem do homem enquanto corpo e alma. Dos textos vistos
até aqui, ele é o mais favorável a Darwin em sua atitude naturalista.
Autoridades romanas censuraram o livro, ameaçaram colocá-lo no
Index e exigiram retratação. Dorlodot se manteve firme, e a
controvérsia terminou por esvair-se ao longo dos anos, sem nenhuma
condenação. Os tempos já eram outros…
Voltemos por um momento para as ciências físicas. O observatório
astronômico do Vaticano é refundado em 1889, e a Academia de
Ciências, em 1936. Ambos puderam desenvolver suas atividades com
grande autonomia, mas isso não impediu que os papas constantemente
recorressem ao paternalismo. Pio XI, no documento que fundou a
Academia de Ciências, motu proprio In Multis Solaciis, após declarar
que a Igreja sempre fora amiga das ciências, ao mesmo tempo fala dos
“filhos pródigos”, aqueles que saíram do rebanho e julgam que a
ciência contradiz a fé. Em seguida afirma: “E não nos parece excessivo
ter definido esta agremiação de ótimas disciplinas quase como o
Senado da Sé Apostólica no campo das ciências”.
Isso não chegou a ocorrer, pois de um lado a autonomia dos
acadêmicos foi preservada; e por outro, os papas recorreram a outras
fontes para formar o juízo a respeito de matérias científicas, o que se
mostrou uma opção infeliz.
Pio XII também foi um grande entusiasta das ciências físicas, mas o
que se nota em suas alocuções é que ele distingue uma ciência “boa” de
uma “má”, usando como critério a concordância imediata com o
depósito da fé. Esse papa alega que “não é porventura a Igreja mesma
o progresso divino no mundo e Mãe do mais alevantado progresso
intelectual e moral da humanidade e do viver civil dos povos?”
(alocução perante a Academia de Ciências de 3 de dezembro de 1939
[PIO XII, 1957, 319]). Também há uma alusão à época medieval na
qual havia harmonia entre fé e razão, quebrada na época moderna pelo
“humanismo pagão”. Voltaremos a esse papa na seção seguinte.
24
3. A cautela e a ousadia em meados do século XX
Com a ascensão de Pio XI ao papado, o clima tornou-se mais
favorável à incorporação de dados científicos na interpretação da
doutrina cristã. Com a consagração do Abée Georges Lemaître (1894-
1966) como cosmólogo de ponta, no início dos anos de 1930 (ver o
capítulo seguinte deste livro), a imagem da Igreja como amiga da
ciência ganha um reforço. Isso ajudou a levar, como dissemos, à
refundação da Academia Pontifícia de Ciências, em 1936. Mas o
conservadorismo da maioria das posturas em relação à teoria da
evolução ainda permanece.
Dois autores merecem destaque aqui. O primeiro, o Abbé Jules
Paquier (1864-1932), ao falar em 1932, por exemplo, da astronomia,
não menciona a cosmologia desenvolvida a partir de 1920. Nota-se
também a questão ideológica perpassando o argumento. Pode-se
julgar, por exemplo, que Tomás de Aquino, com sua ênfase em
processos que levam à perfeição, poderia se perfilar com o
progressivismo do século XIX. Entretanto, conforme este se torna uma
filosofia monista, o que ocorre, na verdade, principalmente na esfera
da moral, é a defesa da contingência e das idas e vindas da história: “A
teoria de um progresso necessário, operando fatalmente no universo
físico, não é mais que uma afirmação gratuita. No que tange à
humanidade, procuraremos em vão como e por que um progresso
necessário seria uma vantagem assegurada” (PAQUIER, 1932, p. 315).
Essa contingência permite também a Paquier afirmar que: “1) Em
nome da própria ciência, a evolução não pode se aplicar à origem da
vida; 2) A teoria da evolução não pode se aplicar à alma humana, nem
à origem da religião e da moral” (PAQUIER, 1932, p. 65). Note aí que,
para a alma, se diz do todo, mas para a religião e a moral, há maior
liberalidade, pois só a origem conta.
Na mesma linha pode-se destacar a divisão entre fato (ciência) e
explicação (teoria, ideologia), defendida por Paquier e a maioria dos
apologetas. Qualquer que tenha sido o significado de termos
equivalentes em Tomás, essa divisão acaba sendo na modernidade lida
à luz do positivismo, que também defende que se parta dos fatos para
25
todo conhecimento. Além de mal-entendidos, essa situação encerra
uma ironia, pois também o positivismo pode ser considerado uma
ideologia!
Alguns anos depois, Pierre-Marie Périer (1865-1938) também
destaca os graus de conhecimento, para utilizar a terminologia de
Maritain. É o que ele diz: “Inoperante, a crítica exclusivamente
científica apresenta graves inconvenientes. Ela parece ligar o destino
do dogma às especulações de uma ordem bem diferente e expõe nossa
apologética às fatais flutuações de teorias provisórias e caducas”
(PÉRIER, 1938, p. 12).
Citando o dominicano Sertillanges, ele comenta: “Nada mais simples
do que um tomismo evolucionista” (PÉRIER, 1938, p. 150), o que o
permite corroborar Jacques Maritain (1882-1973) em oposição ao
vitalismo: “Com Jacques Maritain, e muitos outros, nós consideramos
que deve haver uma biologia experimental ‘autônoma’, ‘distinta da
filosofia do organismo vivente’” (PÉRIER, 1938, p. 168).
Na citação a seguir nota-se a oscilação entre destacar a autonomia
do trabalho estritamente científico e ao mesmo tempo condicioná-lo à
doutrina, numa forma de concordismo:
eis o que desejamos, por assim dizer, com clareza e precisão: aonde quer que se chegue
com alguma asserção, que se pretenda científica, não se pode ir contra certas verdades
filosóficas ou teológicas, às quais nós devemos nos manter fiéis. Ao contrário, há as
opiniões científicas que nós não devemos julgar, e aquelas que permitem a cada um dar
ou recusar sua adesão. Há todo um domínio que convém abandonar às livres pesquisas
dos homens competentes (PÉRIER, 1938, p. 15).
A questão de quem decide entre opiniões científicas contrárias será
retomada no capítulo III.
Avançando um pouco no tempo, o verbete “evoluzione” da
Enciclopedia Cattolica do Vaticano (de Giuseppe Bosio e editada em
1950, ao mesmo tempo que a Humani generis) também é favorável à
evolução, ainda que seja um pouco anacrônico. Assim como ele
termina: “Em conclusão pode-se dizer que a doutrina [sic] da evolução
é nos dias de hoje uma boa teoria científica e uma hipótese de trabalho
útil, mas seria indubitavelmente excessivo considerá-la no presente
como uma verdade já demonstrada” (BOSIO, 1950).
Então no mesmo ano Pio XII publica sua encíclica Humani generis.
26
Por tratar de desafios vividos pela Igreja naquele momento, traços que
seriam de “modernismo”, o tom também é admonitório. À evolução das
espécies é finalmente dado o benefício da dúvida, com uma série de
ressalvas — há um cuidado todo especial para mostrar que a Igreja não
recuava em relação a posturas anteriores. Ao iniciar sua exposição
sobre o “evolucionismo”, Pio XII afirma que
Não poucos rogam insistentemente que a religião católica tenha em máxima conta as
tais ciências; o que é certamente digno de louvor quando se trata de fatos na realidade
demonstrados, mas que hão de admitir-se com cautela quando se trata de hipóteses,
ainda que de algum modo apoiadas na ciência humana, que tocam a doutrina contida na
sagrada Escritura ou na tradição (Humani generis, 35).
Como será reiterado mais adiante, essa colocação que distingue
entre ciência “boa” e “má” trai uma teoria de conhecimento escolástica
em que ciência, para ser considerada como tal, supõe que as
afirmações sejam demonstradas para além de qualquer dúvida. Como a
ciência moderna, por seu embasamento empírico, supõe sempre o
caráter hipotético de suas afirmações, pode-se especular se, em algum
momento, a teoria da evolução seria considerada “digna de louvor”.
Fazendo agora um parêntese para as ciências físicas, famosa
também é a alocução de Pio XII perante a Academia de Ciências em 22
de novembro de 1951. Longa, e cheia de dados advindos
principalmente da física, teve a teoria do Big Bang como foco. O pano
de fundo ainda é aristotélico-tomista — fala de causalidade eficiente e
causalidade final, e como as cinco vias de S. Tomás seriam congruentes
com os avanços das ciências físicas.Cientistas eminentes, como o
padre George Lemaître, sentiram-se desconfortáveis com a afirmação
feita pelo papa de que o Big Bang seria quase uma prova da existência
de Deus.
Voltando ao âmbito da biologia, não se nota necessariamente um
progresso contínuo na liberalização das posturas. Enquanto a evolução
darwiniana (principalmente no que diz respeito ao homem) é tratada
como hipótese, continua havendo todo um gradiente de posturas
opostas colocadas para debate. Por exemplo, ainda em 1956 podia se
entender a evolução como se fosse algo muito controverso na
comunidade científica, como se pode ver na Enciclopedia de la religión
católica, publicada em Barcelona. Não há o verbete evolução, mas sim
27
“transformismo” (de autoria de Jesús Simon [1956]). O conteúdo é
retrógrado, e nenhuma menção é feita aos avanços da biologia
evolutiva nas décadas de 1940 e 50, no mundo anglo-saxônico, nem
sequer à Humani generis! Na verdade, até o Vaticano II os escritores
católicos pouco fizeram dos avanços da genética que ocorriam na
mesma época, e a importância deles para a elaboração de uma teoria
sintética da evolução. Com isso, esses autores ainda continuaram a
usar dados fósseis como fonte de argumentos, certamente uma base
muito frágil. Difícil dizer que eles recorreram à melhor ciência
disponível...
Do mesmo período, e com maior relevância acadêmica, devemos
destacar a obra organizada por Jacques Bivort de la Saudée, e escrita
por vários especialistas de renome de diferentes países europeus,
Deus, homem e o universo (BIVORT DE LA SAUDÉE, 1957).[9] Nela
encontramos um capítulo sobre evolução humana, “A origem do
homem e as recentes descobertas das ciências naturais” (VAN DE
BROEK, 1957), tão “avançado” para o espírito católico da época (já
inclui, por exemplo, dados recentes da genética), que o tradutor para o
português (A. Veloso) sentiu-se na obrigação de chamar a atenção do
leitor de que o transformismo era ainda apenas uma hipótese
competindo com outras. O capítulo que mais diz respeito ao presente
argumento, “A origem do homem segundo o livro de Gênesis”
(MESSENGER, 1957), é de autoria de Ernest Messenger (1888-1951),
um filósofo aberto ao evolucionismo, sempre à frente das controvérsias
de seu tempo nos meios católicos, e tradutor de Dorlodot para o inglês.
Nesse capítulo ele repete a afirmação de Leão XIII em
Providentissimus Deus: “Não pode nunca existir desacordo real entre o
teólogo e o físico, enquanto cada um permanecer na sua própria esfera,
e desde que um e outro, como adverte Sto. Agostinho, tenha o cuidado
‘de não fazer afirmações temerárias nem afirmar que uma coisa é
conhecida, quando de fato não o é’” (MESSENGER, 1957, p. 295), ou
seja, a distinção entre hipótese e fato que move o magistério nessa
matéria.
Isso reforça o dado que antes comentamos, que o problema de
Teilhard de Chardin não teve a ver com a evolução como tal, mas sim
28
que, à semelhança de E. Haeckel, ele poderia estar desenvolvendo uma
filosofia/teologia monista a partir de sua ciência. Apresentar Chardin
como algum “mártir da evolução” é desconsiderar o que acontecia ao
redor dele nessa mesma época.[10]
Conforme é mais conhecido, a recuperação do pensamento de
Teilhard a partir dos fins dos anos 1950 ajudou a configurar os novos
ares que cercaram o Vaticano II, e a dar mais respeitabilidade à teoria
da evolução no catolicismo. Nomes conhecidos como Karl Rahner
(1904-1984) publicaram extensamente sobre o assunto ainda na mesma
década. Esse autor, por exemplo, auxiliou a dar toda uma
fundamentação teológica ao processo de hominização (RAHNER,
1971), justamente a etapa da evolução que sempre causou tanto
embaraço aos apologetas.
Da mesma época, a Enciclopédia do Católico no Século XX — “Sei e
creio”, francesa, publicada no Brasil pela Ed. Flamboyant para um
público mais amplo, traz alguns volumes que trabalham a teoria da
evolução. O volume A ciência destrói a religião? (CHAUCHARD, 1962
[1958]), por exemplo, já se baseia nítida e explicitamente em Teilhard
de Chardin. Por outro lado, o volume sobre a origem do homem, do
mesmo ano e de autoria de Nicolas Corte (1879-1971), traz em seus
primeiros capítulos uma apreciação do processo evolutivo compatível
com a ciência da época. No entanto, no último capítulo, e por um puro
ato de obediência ao magistério, defende o monogenismo (que toda a
humanidade teria derivado de um único casal concreto formado por
Adão e Eva e, implicitamente, que Adão teria nascido adulto), contra
toda a evidência que ele mesmo descreve. Curiosamente, ele recorre a
ninguém menos que Teilhard de Chardin para defendê-lo nessa tarefa
(CORE, 1962 [1958], p. 123-131).
Antes de passar ao próximo capítulo, gostaríamos de retornar ao
fato de que esse voo panorâmico do século XVII até o fim dos anos
1950 apenas dá alguns indicativos da complexidade dessa história, e
assim o leitor é convidado a aprofundar-se nela. Ele conta para tanto
com a bibliografia ao final deste livro.
29
C
Capítulo II
A CIÊNCIA E O CONCÍLIO VATICANO II
om a ascensão de João XXIII, o tom admonitório dos documentos
anteriores vai para o segundo plano, destacando-se agora o
progresso científico-tecnológico (ainda que as menções à ciência se
liguem mais às suas aplicações na tecnologia). Apenas se adverte que
os meios da ciência e da tecnologia são apenas instrumentais, servindo
a fins mais elevados, nos quais a Igreja tem sua parte.
Na Mater et magistra se fala até do caráter soteriológico do
progresso científico-tecnológico (cf., no entanto, § 208). Na Pacem in
Terris, logo no início, se faz referência positiva ao progresso técnico-
científico. O acento aqui é, após essa referência positiva, lamentar-se o
processo de secularização (§§ 150-151), justamente nos países de
tradição cristã, ligado ao entusiasmo com o progresso da ciência e
tecnologia.
Na constituição apostólica com a qual é convocado o concílio
ecumênico Vaticano II, João XXIII faz uma referência à ciência, que
encontrou seu caminho nos documentos conciliares. Logo no início, ele
fala do
mundo que se exalta em suas conquistas no campo da técnica e da ciência, mas que
carrega também as consequências de uma ordem temporal que alguns quiseram
reorganizar prescindindo de Deus... Daí o impulso para a procura quase exclusiva dos
gozos terrenos, que o avanço da técnica põe (Humanae salutis, 3).
Mas, mais adiante, temos uma afirmação no sentido contrário:
Mas se voltarmos a atenção para a Igreja, vemos que ela não permaneceu espectadora
inerte diante desses acontecimentos, mas seguiu, passo a passo, a evolução dos povos, o
progresso científico, as revoluções sociais; posicionou-se, decididamente, contra as
ideologias materialistas e negadoras da fé (Humanae salutis, 5).
O posicionamento, assim, segue o tom das encíclicas desse papa
anteriormente mencionadas. Mas podemos perceber que o avanço da
posição do magistério não foi tão significativo assim, para além do de
Pio XII. Pode-se notar isso na advertência formal a respeito dos
escritos de Teilhard de Chardin, emitido pela Santa Sé em 30 de junho
de 1962 (publicado no dia seguinte no L’Osservatore Romano). Num
30
trecho do breve documento, afirma-se: “sem fazer nenhum juízo sobre
o que se refere às ciências positivas, é bem manifesto que, no plano
filosófico e teológico, estas obras regurgitam de ambiguidades tais e até
de erros graves que ofendem a doutrina católica”. Note-se que não se
condena a evolução (contanto que permaneça nos limites das “ciências
positivas”), mas sim as ideias mais amplas do autor. Essa ambiguidade
(“evolução sim, Teilhard não”) percorre as posições magisteriais desde
então.
Outro sinal do conservadorismo curial veio, como se sabe, do Comitê
Preparatório Central do Concílio. Este entregou aos padres conciliares
uma série de documentos que deveriam servir de base para as
discussões posteriores. O documento intitulado “Defendendo de modo
intacto o depósito da fé” é o que trata mais extensamente o tema das
ciências e foi entregue aos bispos em 23 de julho de 1962. Ele mantém
o tomdefensivo e as advertências contra a falsa ciência, e novamente
trai a influência do neoescolasticismo.
Logo no primeiro parágrafo, o documento mostra a que veio:
Pois a sagrada hierarquia eclesiástica, com seus pastores e mestres, foi estabelecida de
tal modo que possamos alcançar “a unidade da fé” e não ser como “crianças, joguetes de
ondas, agitados por todo vento de doutrina, presos pelas artimanhas dos homens e da
sua astúcia que nos induz ao erro” (Ef 4,11; 14). Sobre essa hierarquia recai
apropriadamente o dever para o qual o Apóstolo advertiu Timóteo: “Guarda o depósito
da fé. Evita o palavreado vão e ímpio, e as contradições de uma falsa ciência, pois
alguns, professando-a, se desviaram da fé” (1Tm 6,21).
A “falsa ciência” não é mais uma específica, a gnose antiga como nos
tempos de Paulo, mas cobre agora um amplo espectro: teologias
heterodoxas, filosofias que divergem da neotomista, concepções
secularizantes de mundo, e todos os resultados científicos que não se
coadunem com o magistério. Isso fica claro na condenação nesse
documento de teorias evolucionistas “errôneas”, tanto aquelas
inspiradas pelo materialismo naturalista como aquelas de cunho
vagamente panteístas. O modo como essa última posição é expressa
subentende nitidamente uma crítica à postura teilhardiana, então cada
vez mais aceita em outros círculos (cf. ALBERIGO, 1995, p. 245).
E o documento conclui dizendo:
(§ 15) Portanto, certas questões concernentes à evolução do mundo, que diretamente ou
indiretamente possuam implicações para a fé católica, devem ser tratadas com suprema
31
cautela, de tal modo a que declarações genuínas de fé não sejam contraditas ou
colocadas em perigo. Fiéis individuais devem estar prontos a submeter o assunto ao
julgamento da Igreja, à qual Cristo confiou a tarefa de guardar e interpretar o depósito
da fé.
Esse tom excessivamente prudente reflete em letra e espírito a
Humani generis. Ainda que o leigo comum possa submeter-se ao juízo
proposto, os cientistas, tanto católicos quanto não católicos,
consideram essa atitude heterônoma. Curioso, ao mesmo tempo que,
numa linha tomista, se proclame a necessidade da autonomia da
atividade científica, deixa-se ao magistério a decisão final. Essa
decisão, como aconteceu várias vezes, não mostra clara compreensão
das questões propriamente científicas. Não há ainda um espírito
dialogal.
32
1. A ciência nos documentos do Vaticano II
Como é sabido, os documentos das comissões preparatórias foram
rapidamente rejeitados pelos bispos, e se passou a redigir documentos
intermediários que alcançassem um maior nível de consenso.
O tema da ciência é pouco tratado nos documentos do Vaticano II,
comparativamente falando, ainda que esteja subentendido (em
conjunto com a tecnologia) na ideia de aggiornamento ao mundo
moderno. O termo surge principalmente na Gaudium et spes, e as
ocorrências em outros documentos não alteram a mensagem desse
primeiro. Palavras que se referem às ciências naturais e à tecnologia,
como “ciência”, “ciências” e “científico”, surgem quarenta vezes na
Gaudium et spes, oito vezes na Gravissimus educationis e seis vezes na
Ad gentes (fonte: <http://www.intratext.com/ixt/eng0037/_FAK.HTM>).
Os parágrafos mais frequentemente mencionados são GS 36 e 52.
Agora falaremos um pouco da história da redação da Gaudium et spes.
No processo de redação, os peritos que assessoraram os bispos e as
comissões tiveram papel fundamental. Como é sabido, a discussão
específica em torno da Gaudium et spes começou efetivamente no
último ano do concílio. A maioria dos protagonistas desejava uma
mudança significativa em relação às posturas tradicionais do
magistério, mas havia, segundo Alberigo, pelo menos dois campos, um
mais defendido pelos franceses e um pelos alemães. Os primeiros
foram influenciados pela nouvelle théologie, por certa leitura otimista
do tomismo e por Teilhard de Chardin, enquanto os segundos optaram
por uma versão de agostianismo que colocava em questão a
importância das atividades terrestres para a salvação divina
(KOMONCHAK, 1999).
Durante as discussões, alguns bispos enfatizaram a necessidade de
levar a ciência em seus próprios termos e de aprender com o caso
Galileu, no trato específico com Teilhard de Chardin (ALBERIGO,
2004, p. 300ss). Mas outros consideraram isso um otimismo demasiado
e preferiram uma abordagem mais tradicional. De modo geral, os
bispos latino-americanos batalharam por uma Igreja mais contextual,
aberta ao mundo moderno e aos pobres. Por exemplo, Talamás
33
http://www.intratext.com/ixt/eng0037/_FAK.HTM
Camandari (1917-2005, bispo de Ciudad Juarez, México, argumentou
de modo tal que, segundo Alberigo,
queria que o Concílio “declarasse enfaticamente a autonomia e a liberdade plenas das
investigações científicas conduzidas de modo prudente”, como vários papas já o tinham
feito, de modo notável Pio XII, em sua encíclica Divino afflante spiritus, e encorajar
cientistas, de modo particular os católicos, em seus trabalhos. A Igreja, além disso,
deveria prestar atenção, em seu próprio ensinamento, às novas descobertas dos
cientistas (ALBERIGO, 2004, p. 313).
Essa última sentença merecerá outra menção mais adiante. Essa
postura foi acolhida no documento final que, como é de se esperar
nesses casos, termina por incorporar posições divergentes, tanto mais
otimistas quanto pessimistas.
34
2. A ciência como surge na Gaudium et spes
Consideremos agora os documentos em sua forma final. Há alguma
repetição entre as várias ocorrências do termo “ciência”, e como dito, o
que há de mais relevante se encontra na Gaudium et spes. Então é por
ela que vamos começar.
O tom é de modo mais geral otimista e aberto quando comparado às
manifestações pré-conciliares. A Igreja é menos caracterizada como
depositária da verdade e mais como quem perscruta os “sinais dos
tempos”.[1] Ranços de escolasticismo também desaparecem, e alguns
até enxergam a influência de Teilhard de Chardin no linguajar de
certos parágrafos, ainda que as obras deste continuassem (como já dito
acima) oficialmente sob censura. Ao contrário dos documentos de Pio
XII, não há a preocupação de mencionar descobertas científicas
específicas. O parágrafo 5 expressa de modo explícito o otimismo
associado ao aggiornamento:
Os progressos das ciências biológicas, psicológicas e sociais não só ajudam o homem a
conhecer-se melhor, mas ainda lhe permitem exercer, por meios técnicos, uma
influência direta na vida das sociedades... A humanidade passa, assim, de uma
concepção predominantemente estática da ordem das coisas para uma outra,
preferentemente dinâmica e evolutiva.
Note-se o surgimento da palavra “evolutiva”. O uso dela, ainda que
aqui não seja no sentido darwiniano, representa uma ruptura radical
em relação à suspeita antes exercida sobre ela. No caso em pauta, ela
indica mais a noção de progresso.
No n. 7, há a advertência de que “negar Deus ou a religião... é muitas
vezes apresentado como exigência do progresso científico ou de novo
tipo de humanismo”. É um tema que reaparece várias vezes nos
documentos conciliares, especialmente quando se analisa o ateísmo,
mas não há ênfase na ciência como problema.
Já no n. 15, encontramos um destaque à questão do pecado original,
que enfraquece a capacidade humana de conhecer a verdade por seus
próprios recursos. Todavia, aqui também se afirma que o homem é
capaz de atingir a verdade inteligível. Há uma diferença sutil e
importante com o documento da comissão preparatória, pois este cita o
Vaticano I e lembra Rm 1,20, e o sujeito do documento não é mais o
35
homem, mas a razão aristotélica. Esta pode demonstrar sua existência
a partir das cinco vias de Tomás. Já a GS muda completamente o
fraseado e o recurso à metafísica, acentuando os progressos nas
ciências empíricas, nas técnicas e nas artes (todavia, há certo
contraponto no n. 19, onde se diz das ciências positivas que elas não
mais admitem uma verdade absoluta).
O n. 33 também fala do “depósito da fé”, onde se pode buscar firmes
“princípios de religião e moral”.Entretanto, aqui se acentua que a
Igreja não tem respostas prontas para as indagações humanas, e assim
apenas oferece “juntar a luz da revelação à competência de todos os
homens” — uma atitude certamente mais dialogal.
Depois se chega ao famoso n. 36, o qual fala da “autonomia das
realidades terrestres”. Aqui se dá destaque à ”investigação metódica
em todos os campos de saber”. A grande novidade é o reconhecimento
de que “muitos cristãos” (não se menciona a hierarquia...) não
reconheceram devidamente essa autonomia, o que levou a lamentáveis
oposições entre ciência e fé. O notável é a nota de rodapé associada a
essa última afirmação. Trata-se de uma biografia de Galileu
patrocinada pela Academia Pontifícia de Ciências nos anos 1940.
Sempre teve um caráter oficioso, mas nunca havia sido autorizada
formalmente pelo magistério. Apesar de Galileu não ter sido
mencionado no documento, abrem-se as portas para o reconhecimento
de erros passados e para a reabilitação dessa importante figura
histórica, como veremos em João Paulo II.
O n. 39, por sua vez, fala da escatologia. Ainda que não se debruce
diretamente sobre a ciência, vale a pena ser citado porque expressa a
tensão que percorre a redação de todo o documento: as oscilações
constantes entre o otimismo e o pessimismo em relação ao papel do
progresso terreno para a consumação da história. É como diz esse
trecho:
A expectativa da nova terra não deve, porém, enfraquecer, mas antes ativar a solicitude
em ordem a desenvolver esta terra, onde cresce o Corpo da nova família humana, que já
consegue apresentar certa prefiguração do mundo futuro. Por conseguinte, embora o
progresso terreno se deva cuidadosamente distinguir do crescimento do Reino de Cristo,
todavia, à medida que pode contribuir para a melhor organização da sociedade humana,
interessa muito ao Reino de Deus (Gaudium et spes, 39).
36
Uma redação certamente tortuosa, que pode dar margem a muitas
interpretações. Uma pesquisa mais exaustiva se torna necessária, pois
o progresso da ciência é visto, em muitos círculos e com frequência,
como soteriológico (CRUZ, 2008).
O n. 44 inova ao acentuar que também a Igreja recebe benefícios da
cultura secular e do pensamento moderno: “A experiência dos séculos
passados, os progressos científicos, os tesouros encerrados nas várias
formas de cultura humana, que manifestam mais plenamente a
natureza do homem e abrem novos caminhos para a verdade,
aproveitam igualmente a Igreja”. Novamente, o progresso científico
recebe destaque, e a novidade repousa sobre a atitude de escuta do
magistério.
No n. 52 fala-se da contribuição de vários ramos de ciência para o
estudo da procriação humana de um modo moralmente aceitável. É um
tema, entretanto, que foge à alçada desse verbete. Apesar de sua
história posterior controversa, o que se nota é o modo positivo como o
aporte das ciências é representado.
O n. 54 é bastante otimista em relação às possibilidades futuras.
Numa terminologia inteiramente nova, fala que “as ciências exatas
desenvolvem grandemente o senso crítico”, e que “as disciplinas
históricas contribuem muito para considerar as coisas sob o seu
aspecto mutável e evolutivo”. Também destaca que a ciência, apesar da
ameaça da bomba atômica, é um meio poderoso de aproximar as
nações e os blocos e assegurar a paz.
Esse modo de contribuição positiva da ciência é enfatizado no n. 57.
Após uma admoestação da passagem ligeira da autonomia para a
autossuficiência (a hybris da ciência), o documento sugere que essa
passagem não é uma necessidade da cultura atual. Ao contrário,
devem-se destacar seus valores positivos: “o gosto das ciências e a
exata objetividade nas investigações científicas; a necessidade de
colaborar com os outros nas equipes técnicas; o sentido de
solidariedade internacional”. Por fim, a conclusão indica não a
preocupação dogmática, mas sim a pastoral e a evangélica: “Tudo isto
pode constituir certa preparação para a recepção da mensagem
evangélica (um tema típico do Vaticano II), preparação que pode ser
37
enformada com a caridade divina por aquele que veio para salvar o
mundo”. Nota-se também que a hierarquia e a Igreja não são
apresentadas como condição estrita para que a tentação da
autossuficiência não prevaleça.
De qualquer maneira, não haveria como ignorar o Vaticano I no que
tange à concórdia entre fé e razão. Isso é feito no n. 59 (favorito de João
Paulo II), quando se reitera que existem “duas ordens de
conhecimento” distintas, a da fé e a da razão, e que a Igreja de modo
algum proíbe que “as artes e as disciplinas humanas... usem de
princípios e métodos próprios nos seus respectivos campos”;
“reconhecendo esta justa liberdade”, afirma por isso a legítima
autonomia da cultura humana e sobretudo das ciências.
A citação é a mesma, mas a conclusão e o enquadramento são
bastante diversos daqueles do primeiro concílio. A metáfora dos “dois
livros”, por sua vez, fica em segundo plano, até para evitar quaisquer
tentativas de subordinação de um ao outro.
A última referência explícita à ciência ocorre no § 62. De certa
forma, sintetiza preocupações dos outros parágrafos, e oferece uma
espécie de resposta, algo ambígua, à excessiva preocupação com o
“depósito da fé”, demonstrada pelo documento preliminar: “porque
uma coisa é o próprio depósito ou as verdades da fé, outra o modo pelo
qual elas se enunciam, sempre, porém, com o mesmo sentido e
significado”. O restante do parágrafo, entretanto, indica a opção pelos
“modos de enunciação”, como se pode ver na conclusão dessa seção: “E
para que possam desempenhar bem a sua tarefa, deve reconhecer-se
aos fiéis, clérigos ou leigos, uma justa liberdade de investigação, de
pensamento e de expressão da própria opinião, com humildade e
fortaleza, nos domínios da sua competência”.
Nos demais documentos conciliares, não há propriamente novidades
em relação à Gaudium et spes, apenas nuanças e aplicações mais
específicas. É o que se pode ver em Gravissimum educationis,
principalmente no Proêmio e nos ns. 10 e 11. Aqui há uma especial
preocupação em enfatizar a presença de faculdades de ciências nas
instituições de ensino superior católicas, em que o diálogo entre fé e
razão possa se concretizar. Para tanto, acentua-se a autonomia das
38
ciências, sem se preocupar em distinguir a ciência “sã” da “falsa”. Fala-
se inclusive da contribuição dessas instituições para a própria
renovação da Igreja: “se esforcem por se tornar de tal modo eminentes
na arte pedagógica e no estudo das ciências que não só promovam a
renovação interna da Igreja, mas também conservem e aumentem a
sua presença benéfica no mundo hodierno, sobretudo no ambiente
intelectual”.
A Apostolicam actuositatem, no que diz respeito à ciência, segue um
caminho um pouco diferente, dando destaque aos perigos da
autossuficiência por conta da distorção introduzida pelo pecado
original.
Assim, logo no início (n. 1), diz que o apostolado dos leigos deve
atentar para desvios de ordem ética e religiosa facilitados pelo
progresso tecnocientífico. O n. 7, além de destacar o pecado original,
fala do perigo do progresso das ciências fazê-las cair na “Idolatria das
coisas temporais, tornando-se delas mais escravos que senhores”.
Ainda que não se repita o modo magisterial dos textos pré-Vaticano II,
nota-se certa desconfiança em relação à ordem temporal, e daí a
postura profética que o apostolado deve ter. Entretanto, um posterior
juízo a esse respeito depende de uma análise mais aprofundada desse
documento, o que não é o caso aqui.
Em Ad gentes, o tom também é de abertura ao mundo moderno. Só
há duas referências à ciência, uma no n. 11, que ecoa, ainda que de
modo mais suave, a crítica à idolatria de AA 7. A outra é no n. 34, que
fala da importância de várias disciplinas modernas para a missiologia,
inclusive a ciência das religiões.
39
3. Paulo VI e a transição para o pós-Concílio
Encerra-se o concílio e imediatamente se inicia a interpretação dele.
O intérprete mais insigne é Paulo VI, mas, até por conta de sua posição
de mantenedor da ordem,adota uma postura de maior cautela no que
diz respeito à ciência. Tendo recebido a influência do neotomista
Maritain (que se tornou um crítico do Vaticano II), o papa se afasta do
tom e da linguagem da Gaudium et spes, de influência teilhardiana.
Adota um tom mais admonitório, já visível na homilia de conclusão
do Concílio, em 07/12/1965:
os homens estão voltados mais para a conquista da terra do que para o reino de Deus;
foi num tempo em que o esquecimento de Deus se torna habitual, como se os progressos
da ciência o aconselhassem; foi num tempo em que o ato fundamental da pessoa
humana, mais consciente de si e da sua liberdade, tende a exigir uma liberdade total,
livre de todas as leis que transcendam a ordem natural das coisas.
Mesmo que haja muitas razões objetivas que justifiquem essa
atitude, ela não é propriamente dialogal. Paulo VI se expressou de
modo semelhante na mensagem “aos homens de pensamento e
ciência”, de 08/12/1965. Ao contrário da Gaudium et spes, a questão da
verdade ganha proeminência, em seu sentido tomista. Após dizer que a
Igreja é amiga dos esforços científicos e que razão e fé são compatíveis,
assim exorta os cientistas: “Não impeçais este precioso encontro [entre
a verdadeira fé e a verdadeira ciência]. Tende confiança na fé, a
grande amiga da inteligência”. Dado o passado de desconfiança de
muitos cientistas em relação aos pronunciamentos magisteriais, esse
apelo dificilmente encontraria maior ressonância entre eles.
Pode-se notar a mesma atitude de reserva numa audiência geral de
2 de abril de 1969.
Quase poderíamos ver no Concílio uma intenção de tornar aceitável e amável o
cristianismo, um cristianismo indulgente e aberto, despido de todo rigorismo medieval e
de toda interpretação pessimista sobre os homens, sobre seus costumes, sobre suas
mutações e suas exigências. Isto é verdade. Mas prestemos atenção. O Concílio não
esqueceu que a Cruz está no centro do cristianismo. Também ele teve uma rigorosa
fidelidade à palavra de São Paulo: “Que não se torne inútil a Cruz de Cristo: ut non
evacuetur crux Christi” (1Cor 1,17).
Alguns autores, em seu entusiasmo acrítico pelas realizações do
Vaticano II, citam apenas a primeira sentença (p.ex.,
40
KOZHAMTHADAM, 2007, p. 615), mas ignoram a exortação contida na
segunda parte da citação.
Semelhante é o caso de Zoltan Alszeghy (1915-1991), num número
da revista Concilium dedicado à evolução biológica: “Uma alocução
recentemente proferida por Paulo VI a um grupo de teólogos já não
apelida o evolucionismo de hipótese, mas de ‘teoria’” (ALSZEGHY,
1967, p. 29). Entretanto, vejamos o trecho completo da alocução de
11/07/1966 aos participantes de um simpósio sobre o pecado original:
“Mas também a teoria do evolucionismo não vos parecerá aceitável caso
não concorde decididamente com a criação imediata de toda e qualquer
alma humana por Deus, e caso não tenha por decisiva a importância
que, para o destino da humanidade, teve a desobediência de Adão,
protoparente universal”. Nota-se que tanto faz usar-se “hipótese” ou
“teoria”, o que importa aí é a firme aderência ao monogenismo estrito
da Humani generis.
Não se pode terminar o magistério de Paulo VI sem mostrar seu
lado mais aberto, numa despretensiosa alocução de 24/02/1966, na qual
destaca que o estudo da matéria leva ao encontro com o espírito: “E o
Santo Padre cita Teilhard de Chardin, que deu uma explicação do
universo e, entre tantas fantasias, tantas coisas inexatas, soube ler
dentro das coisas um princípio inteligente que se deve chamar Deus. A
ciência mesma, então, obriga a ser religioso, e quem for inteligente
deve ajoelhar-se e dizer: aqui está Deus”. De fato, essa alusão a
Teilhard de Chardin surpreende, indicando que a transição para o
espírito do Vaticano II ficou cheia de idas e vindas.
Mas ainda se compreende o evolucionismo como um processo
progressista, o que entra em choque com uma concepção estritamente
darwiniana, já prevalente na época (não há no magistério anterior a
João Paulo II nenhuma referência a essa figura [Darwin] tão crucial na
história da ciência).
Uma breve menção agora a João Paulo II, que será retomada com
mais detalhes no capítulo III. Na mensagem de 22/10/1996, dirigida aos
membros da Academia Pontifícia das Ciências e que foi muito
mencionada depois, o papa falou:
Hoje, quase cinquenta anos após a publicação da Encíclica Humani generis, os novos
conhecimentos levam ao reconhecimento de que a teoria da evolução é mais do que
41
uma hipótese. É, na verdade, notável que esta teoria tenha sido progressivamente aceita
por investigadores, após uma série de descobertas em campos diversos do
conhecimento. Esta convergência, não pensada nem fabricada, de resultados de
trabalhos conduzidos com independência uns dos outros é, em si própria, um
significativo argumento a favor desta teoria.
Finalmente, um pronunciamento magisterial indica que o fato da
evolução é plenamente reconhecido (mas o restante do documento
indica outra atitude, como veremos no capítulo 3). Nossa história
poderia ter aqui chegado ao final, mas, assim como a ciência, uma
conclusão sempre abre a janela para outros problemas. O status da
teoria darwiniana permanece aberto a controvérsias no ambiente
científico, e nos meios católicos a recepção desses indicativos de João
Paulo II é heterogênea.
Além de alguns remanescentes criacionistas no catolicismo, nota-se
em vários círculos mais conservadores uma simpatia pelo “Plano
inteligente” (ou “Design inteligente”) de William Dembski, Michael
Behe e outros.[2] Aparentemente, a questão da ordem, da finalidade e
do sentido da emergência da vida e do homem sempre intervém na
escolha e aceitação do dado científico. É um novo tipo de concordismo
que emerge. E isso não só no âmbito conservador, por assim dizer, mas
também naquele “liberal”, na forma de uma “nova gnose”, expressões
monistas que são assumidas por filósofos e teólogos. Mas vamos
retornar a esse ponto no capítulo seguinte.
42
4. Algumas observações sistemáticas
Em termos históricos, há que se destacar a ambiguidade da posição
magisterial em relação à ciência e sua autonomia. De um lado, o
interesse e o patrocínio, sem contar a participação de muitos
sacerdotes e religiosos em atividades científicas nos quatro últimos
séculos. De outro lado, a admoestação, a censura e a desconfiança em
relação a avanços científicos. Refletindo-se a respeito, dá para se notar
um critério: contanto que nenhum princípio de fé e moral seja
ameaçado, a atividade científica é acolhida e incentivada. No momento
em que o magistério vê aquele avanço como perigoso, então as
restrições e a defensiva surgem. Veja-se o caso de Galileu e a teoria
heliocêntrica: quando finalmente se notou que não havia nenhuma
incoerência com a doutrina católica, a astronomia galileana e
newtoniana passou a ser acolhida com entusiasmo. Outro critério é a
associação de uma teoria ou modelos científicos com filosofias
materialistas e movimentos anticlericais, suposta ou real. Nos dois
casos, quem decide se há ameaça ou não? O próprio magistério,
assessorado por teólogos próximos às cúrias. A palavra não parece ter
sido concedida à própria comunidade científica. Há, pois, um problema
da fonte de autoridade e do entendimento da autonomia do
pensamento secular. O Vaticano II rompe com esse ciclo não porque
endossa uma teoria e coloca outra sob suspeita, mas porque aponta
para a possibilidade de se ouvir o que a ciência fala em seus próprios
termos.
A ambiguidade também se reflete no apoio ao Observatório Vaticano
e à Academia Pontifícia de Ciências, que tiveram desde o início
suficiente autonomia em suas atividades. Entretanto, essas instituições
parecem não ter colaborado nas discussões relativas à ciência no
Vaticano II.
Uma exceção diz respeito apenas à figura de Galileu, como já
dissemos na discussão da Gaudium et spes 36. A Academia Pontifícia
de Ciência encomendou em 1942 ao historiador Mons. Pio Paschini
(1878-1962) uma biografia de Galileu, com aprovação tácita do papa.
Escrita a obra, a academia não quis

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