Prévia do material em texto
2 ÍNDICE Capa Rosto Apresentação Introdução Capítulo I - Antecedentes: da Revolução Científica ao Vaticano II 1. Do concordismo tradicional à adoção do neotomismo 2. O endurecimento do magistério e o ápice da apologética 3. A cautela e a ousadia em meados do século XX Capítulo II - A ciência e o Concílio Vaticano II 1. A ciência nos documentos do Vaticano II 2. A ciência como surge na Gaudium et spes 3. Paulo VI e a transição para o pós-Concílio 4. Algumas observações sistemáticas Capítulo III - O magistério e as ciências naturais, de João PAULO II a Bento XVI 1. João Paulo II e o início de um diálogo efetivo com as ciências 2. Persiste a dificuldade com a evolução biológica 2.1. De Joseph Ratzinger a Bento XVI 2.2. Um documento da comissão teológica internacional 2.3. Questões em aberto Conclusão Referências bibliográficas Coleção Ficha Catalográfica Notas 3 kindle:embed:0009?mime=image/jpg O APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO MARCO CONCILIAR Concílio Vaticano II, concluído há cinquenta anos, refez a Igreja Católica em muitos aspectos e, em certa medida, o próprio cristianismo. A intenção de João XXIII de promover um novo pentecostes na Igreja foi não somente anunciada em várias ocasiões, desde sua primeira inspiração, mas uma tarefa de construção assumida por ele; tarefa conduzida pela força de sua autoridade, mas também pelo vigor de seu carisma renovador. Sem a ousada inspiração e a liderança convicta e perseverante desse papa, certamente não teria havido o Vaticano II, ao menos com a dimensão e a profundidade que o caracterizou. Somente pela força carismática de líderes como João XXIII se pode pensar em mudanças como as proporcionadas pelo Concílio numa instituição milenar com doutrinas e regras cristalizadas. Esse grande Concílio, o mais ecumênico de todos, refez a rota fundamental da Igreja ao colocá-la de frente com o mundo moderno. A Igreja, que estava distante da chamada modernidade e segura de sua posição e verdade, foi capaz de reposicionar-se e elaborar uma nova doutrina sobre o mundo e sobre si mesma. De isolada do mundo, assume-se como sinal de salvação dentro do mundo; de detentora da verdade, reconhece a verdade presente nas ciências e passa a dialogar com elas; então definida como poder sagrado, passa a compreender-se como servidora da humanidade. E o mundo torna-se o cenário do drama humano: lugar de pecado e de graça, porém inscrito no plano maior do amor de Deus que nos cria e nos chama para a comunhão consigo. A Igreja e o mundo estão situados nesse plano misterioso de Deus, a ele se referem permanentemente e são compreendidos como realidades distintas e autônomas, porém em diálogo respeitoso e construtivo. O Vaticano II abriu uma temporada nova na Igreja como fruto de inesperada primavera, na intuição do papa João. A essa primavera sucederam-se novos ciclos com climas diferenciados, sem nos poupar de invernos rigorosos. As decisões conciliares foram interpretadas e praticadas de diferentes modos nos anos que se seguiram à grande 4 assembleia, em função de lugares e sujeitos envolvidos no processo de aggiornamento. Por um lado, é fato que muitas renovações aconteceram em diversas frentes da vida da Igreja. Tanto no âmbito das práticas pastorais quanto da reflexão teológica, o pós-Concílio foi um canteiro que fez a primavera produzir muitos frutos: renovação litúrgica em diálogo com as diferentes culturas, Igreja comprometida com os pobres, diálogo ecumênico e inter-religioso, doutrina social da Igreja, experiência de ministérios leigos etc. O novo se mostrou vigoroso, sobretudo nas primeiras décadas do pós-Concílio e particularmente no hemisfério sul, nas Igrejas inseridas em contextos de pobreza e de culturas radicalmente distintas da cultura latino-cristã tradicional. Por outro lado, houve um esfriamento do carisma conciliar, à medida que a história avançava, impondo suas rotinas, mas, sobretudo, uma leitura que buscava evitar a ideia de renovação- ruptura com a tradição anterior. Segundo essa leitura, o Vaticano II teria inovado sem romper com a doutrina tradicional, incluindo a doutrina sobre a Igreja. Essas perspectivas revelam na dinâmica pós- conciliar as lutas por construir o verdadeiro significado do Vaticano II, do ponto de vista teórico e prático. Trata-se de leituras localizadas no ponto de vista geopolítico e teológico-eclesial, com sujeitos e ideias distintos, assim como marcadas por esforços de demonstração da intenção original das decisões dos padres conciliares. Se esse dado revela, de um lado, as dificuldades crescentes de um consenso, expõe, por outro, a atualidade do Concílio como marco eclesial e teológico importante para a Igreja. Pode-se dizer que o Vaticano II começou efetivamente no dia seguinte à sua conclusão em 8 de dezembro de 1965. Na Audiência de 12 de janeiro de 1966, o papa Paulo VI reconhecia esse desafio de colocar o Concílio em prática, comparando-o a um rio que iniciava seu fluxo e se dispunha para a Igreja como tarefa para o futuro. E esse rio avançou certamente por terrenos nunca previstos, fecundou novas terras e produziu frutos com sua água sempre viva. Por outro lado, foi um rio represado por muitas frentes eclesiais que temiam sua força; foi desviado de seu curso e canalizado para diferentes direções. Contudo, o rio jamais secou seu fluxo. Continua correndo na direção do Reino, levando sobre suas 5 torrentes a frágil Barca de Pedro com seus viajantes, ora cansados e temerosos, ora destemidos e esperançosos. O Vaticano II não foi somente um evento do passado, mas constitui, de fato, o hoje da Igreja Católica, a fonte de onde a Igreja retira o sentido fundamental para sua caminhada histórica e para o diálogo com a realidade atual. Esse “Concílio em curso” completa cinquenta anos com uma história e um saldo que merecem ser visitados por todos os que estão atentos a sua importância para a Igreja em permanente sintonia com o mundo, que avança rapidamente em suas conquistas científicas e tecnológicas. Se a modernidade perscrutada pelos padres conciliares já não existe mais, ela deixou, entretanto, suas consequências positivas e negativas para nossos dias; consequências que exigem de novo o olhar atento da fé cristã que busca distinguir os sinais dos tempos e lançar os cristãos como sujeitos ativos no mundo: parceiros de busca da verdade e na construção da fraternidade universal. A presente coleção planejada e oferecida pela Editora Paulus pretende revisitar o Vaticano II por várias entradas e oferecer rápidos balanços sobre questões diversas, nesses cinquenta anos de prática e de reflexão. Cada uma das temáticas é abordada em três aspectos: a orientação conciliar presente nos textos promulgados pelo grande Sínodo, o desenvolvimento da questão no período pós-conciliar e sua análise crítica — balanço e prospectiva. Esse tríplice olhar busca conjugar o desenvolvimento da temática do ponto de vista teórico e prático, ou seja, os seus desdobramentos no âmbito do magistério e da reflexão teológica, assim como as suas consequências pastorais e sociais. A Igreja se encontra, nos dias atuais, num momento fecundo de renovação de si mesma, após o conclave que elegeu o papa Francisco. O Vaticano II se encontra, nesse contexto, numa nova fase e deverá produzir seus frutos, em certa medida tardios, em muitas frentes que ainda não haviam sido enfrentadas pelos pontífices anteriores. A própria figura do atual papa remete à eclesiologia do Vaticano II tanto em suas atitudes como em suas palavras. Está viva a Igreja povo de Deus, a Igreja dos pobres, a Igreja servidora, misericordiosa e dialogal. O Concílio tem fornecido, de fato, a direção das reformas enfrentadas 6 com coragem pelo papa a partir da Cúria Romana. Esse contexto de revisão é animador e permite falar de novo do último Concílio como um marco histórico fundamental para o presente e o futuro da Igreja. É tempo de balanço e reflexão sobre o significado desse marco. Os títulos ora publicados pretendem participar dessa empreitada com simplicidade, coragem econvicção. Cada autor perfila a procissão dos convictos da importância das decisões conciliares para os nossos dias, mesmo sendo o mundo de hoje em muitos aspectos radicalmente diferente daquele visto, pensado e enfrentado pelos padres conciliares na década de 1960. O espírito e a postura fundamentais do Vaticano II permanecem não somente válidos, mas normativos no marco da grande tradição católica. Mas continua, sobretudo, um espírito vivo, na medida em que convida e impulsiona a Igreja para o diálogo com as diferenças cada vez mais visíveis e cidadãs em nossos dias e para o serviço desinteressado a toda a humanidade, particularmente aos mais necessitados. A Igreja que entra para o Concílio, herdeira da longa tradição que a afirmava como mestra da verdade e de uma eclesiologia autorreferenciada formulada pelo Vaticano I, deteve-se com os desafios do diálogo com as diferenças, resultado direto do propósito de aggiornamento lançado por João XXIII. Na imagem do novo Concílio, cuja construção se iniciara desde aquele primeiro anúncio em 25 de janeiro de 1959 e se concluíra com o discurso de abertura do grande evento, estavam contidas de modo latente algumas relações inevitáveis, a saber, entre a Igreja e a sociedade, entre a Igreja e as demais denominações cristãs e entre a tradição católica e o pensamento moderno. A Igreja deveria rever-se para se apresentar perante a sociedade, as religiões e as outras Igrejas cristãs sem ruga e sem mancha, a fim de que a sua doutrina pudesse, mediante revisão da linguagem, se fazer entendida por todos e para que todos fossem atraídos para o Rei do universo. Evidentemente, essas metas introduziam circularidades entre a Igreja e seus interlocutores, de forma que pelo diálogo franco e aberto deveria ouvir o pensamento moderno e as ciências, os irmãos separados, os cristãos ortodoxos e as demais religiões. O diálogo intercultural emergia, desse modo, como 7 convicção, meta e método dos trabalhos conciliares; a verdade já não poderia ser uma posse exclusiva da Igreja e do cristianismo, como se pensava nos tempos anteriores, e a Igreja colocava-se na atitude de escuta de acolhida das diferentes tradições religiosas e das distintas correntes de pensamento. A Igreja deverá dialogar até mesmo com seus adversários, ensina o Vaticano II (GS 28). O diálogo da teologia com as ciências já havia avançado na primeira metade do século XX, tanto no sentido da acolhida dos resultados das ciências quanto da adoção dos métodos científicos no labor teológico. Os estudos bíblicos tomaram forma a partir dessa postura de acolhida e diálogo com as diversas ciências relacionadas à interpretação dos textos. Também o próprio magistério se relacionava de modo mais positivo com as descobertas científicas, estabelecendo uma epistemologia de nítida raiz tomasiana que permitia distinguir e relacionar as ciências com os seus objetos e métodos com os objetos e posturas específicos da fé. O Vaticano II chega num momento propício: ponto de chegada e ponto de partida para a construção de reflexões sobre e com as diversas ciências. E mais, bebendo das teologias das realidades terrestres, os padres conciliares não hesitaram em elaborar uma teologia das ciências, ainda que expressa de modo fragmentário e germinal nos textos conciliares. As ciências são vistas como exercício de uma missão inerente à condição criatural do ser humano. A positividade das grandes descobertas científicas expressa a grandeza da criatura humana, imagem e semelhança de Deus, senhor da história, e cumpridora de um desígnio histórico que tem como autor primeiro o próprio Deus. A realidade imanente é dotada de uma autonomia que lhe é própria, bem como as ciências que dela se ocupam. Diz a Gaudium et Spes, número 36, que o “homem deve respeitar tudo isso”, respeitando “os métodos próprios de cada ciência e arte”, e retoma um princípio clássico da relação entre a fé e a razão, afirmando que “se a pesquisa metódica, em todas as ciências, proceder de maneira verdadeiramente científica e segundo as leis morais, na realidade nunca será oposta à fé”, uma vez que Deus é o criador de todas as coisas. Mas o mesmo número da Constituição vai mais longe ao afirmar que “aquele que tenta perscrutar com humildade e 8 perseverança os segredos das coisas, ainda que disto não tome consciência, é como que conduzido pela mão de Deus, que sustenta todas as coisas, fazendo que elas sejam o que são”. Após o Concílio, a humanidade deu passos avançados e rápidos nas descobertas científicas, atingindo pontos extremos da vida, como no caso da engenharia genética, e integrando de modo definitivo a ciência e a tecnologia. As ciências vistas e teologizadas pelos padres conciliares já não são mais as mesmas, como de um modo geral também o mundo já não é mais o mesmo. Porém, a reflexão sobre as ciências avançaram pouco além daquela empatia conciliar, sobretudo nos documentos do magistério. O déficit de diálogo ainda visível clama por novas reflexões no campo da teologia acadêmica, mas, de modo particular, por novas posturas da parte da teologia oficial do magistério. A convicção tradicional da Igreja de que a verdade tem sua origem em Deus, venha de onde vier (Santo Ambrósio, Santo Tomás), há que ser afirmada em relação a muitas descobertas científicas que muitas vezes desconfortam certos lugares comuns da doutrina moral cristã e desafiam a pastoral da Igreja do ponto de vista dos costumes que entram para a vida dos cristãos. As reflexões deste livro mapeiam de modo sintético e indicativo as ciências no marco conciliar. Elas poderão, de fato, abrir caminhos para contribuir com o trânsito necessário da fé para as ciências, de forma que possa falar de modo mais coerente e profético com a cultura e a sociedade contemporânea. “Quando algumas categorias da razão e das ciências são acolhidas no anúncio da mensagem, tais categorias tornam-se instrumentos de evangelização; é a água transformada em vinho. É aquilo que, uma vez assumido, não só é redimido, mas torna- se instrumento do Espírito para iluminar e renovar o mundo” (Evangelii gaudium, 132). João Décio Passos Wagner Lopes Sanchez Coordenadores 9 Q INTRODUÇÃO uando se fala de ciência no Concílio Vaticano II, entra-se em território ainda pouco explorado. De fato, encontra-se na literatura pouco mais que os artigos de Urbano Zilles (2005) e de Job Kozhamthadam (2007), que lidam com o tema específico da ciência. Esses artigos, porém, são mais laudatórios do que críticos, e assim se faz necessário um esforço de avaliar o tema da ciência no Vaticano II em toda a sua complexidade. Tentaremos aqui dar uma contribuição nesse sentido, seguindo uma ordem mais cronológica e sistemática. O leitor também notará que a estrutura dessa obra difere um pouco das demais na coleção Marco Conciliar. De fato, como as referências dos documentos sobre a atividade científica no Concílio são poucas, e um pouco afastadas de nossas preocupações cotidianas, começaremos por descrever os antecedentes mais remotos da discussão do tema. Nesse voo histórico, apresentado no capítulo I, mostraremos a ambivalência da posição do magistério, enquanto promotor da ciência, ao mesmo tempo vendo-a como uma ameaça à doutrina e à fé. Percorreremos o espectro de tempo que começa com o caso de Galileu e vai de Leão XIII a Pio XII, sob a sombra do Syllabus de Pio IX e da condenação ao Modernismo. Indicamos depois uma mudança de inflexão no magistério de João XXIII, que prepara o que será discutido no concílio. Em seguida falaremos, no capítulo II, um pouco do lugar da ciência no processo de redação dos documentos do Vaticano II, entre o “otimismo” e o “pessimismo” em relação à influência da cultura no papel da Igreja em testemunhar Jesus Cristo no mundo de hoje. Com relação aos documentos finais, analisamos o modo como a ciência neles surge, em especial na Gaudium et spes. Acentua-se nessa análise a ruptura que se efetua com posicionamentos magisteriais pré- conciliares, e ao mesmo tempo alguns sinais de continuidade. Caminhando um poucoem termos históricos, indicamos as reservas de Paulo VI em relação a alguns posicionamentos do Concílio, em especial o otimismo quanto ao papel do progresso científico- 10 tecnológico para a consecução dos fins da Igreja. Ao longo dessa primeira parte, mostramos como foram tratadas nesse momento histórico certas figuras emblemáticas, como Galileu e Teilhard de Chardin. Retomamos também os conteúdos conciliares numa abordagem mais sistemática. Temas sensíveis são tratados, como o reconhecimento de erros históricos e o papel profético da Igreja. Enfim, o balanço feito mostra a importância da postura dialogal aberta pelo concílio, e os desafios que se colocam para se levar a sério o significado do trabalho científico, sem se perder o específico da mensagem Cristã. Já no capítulo III, nos concentraremos nos pronunciamentos dos dois últimos papas, João Paulo II e Bento XVI, para indicar que o espírito do Concílio ainda fica a meio caminho, com posições de continuidade em relação ao magistério pré-conciliar e outras de ruptura. Em termos metodológicos, fizemos a opção de tratar mormente de documentos do magistério papal, com menor recurso a historiadores, comentadores e o magistério local. Cremos ser esse um bom ponto de partida para daí dialogar com comentadores e entender as principais questões envolvidas. Concentramo-nos também só nas ciências naturais, pois dizem respeito a questões de cosmologia e evolução pouco (ou mal) conhecidas pelo o leitor médio. Cremos assim contribuir para um melhor entendimento delas, na medida em que as controvérsias a respeito de certas questões teóricas e éticas, entre cientistas e evangélicos, dominam a arena pública brasileira. Há alguns limites nessa opção para os quais o leitor deve ser alertado. Primeiro, que por sua própria natureza o magistério necessita ser prudente (e como veremos, às vezes até demais) em relação a um grande número de ideias e ações que dizem respeito à fé e à moral cristãs. Inovações devem ficar para leigos e religiosos mais próximos da tarefa científica, que aos poucos são filtradas até o magistério de ordem mais superior. Outro limite é que a literatura sobre a temática que aqui se desenvolve é escassa na América Latina e pouco conhecida. A maioria das obras interessantes encontra-se em língua estrangeira. Autores 11 alemães acabaram por ter um peso desproporcionalmente pequeno nesse texto. Por todas essas razões, este livro não pretende ser um texto já acabado, que repousa em bases firmes para apontar caminhos de inovação, mas um convite a um aprofundamento. As sugestões de leitura ao final do texto procuram suprir certas lacunas. Por fim as citações dos documentos conciliares são feitas em formato mínimo, supondo que o leitor tenha algum conhecimento da história e dos documentos do Concílio. Eles estão disponíveis, em português, no site do Vaticano: <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/index_po.htm As traduções empregadas nessa obra são extraídas da tradução oficial. 12 http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/index_po.htm A Capítulo I ANTECEDENTES: DA REVOLUÇÃO CIENTÍFICA AO VATICANO II posição da Igreja Católica em relação à ciência moderna, a partir do séc. XVII, sempre foi ambivalente, mantendo simultaneamente apoio entusiástico e condenação. Trata-se de uma atitude compreensível, pois a história da ciência moderna é também ambivalente: para uma versão muito comum, a “revolução científica”[1] rompeu com paradigmas medievais e obscurantistas, e assim o desenvolvimento da ciência se faria contra a Igreja. Também é a versão adotada por anticlericalistas. Mas os historiadores retiram essas camadas míticas e sustentam paralelamente outra versão, melhor embasada nos fatos, na qual se acentua a continuidade com modos anteriores de se produzir conhecimento, e a contribuição da racionalidade medieval para o que se seguiu na modernidade europeia. O caso Galileu (Galileu Galilei, 1564-1642) ajuda a tornar o cenário mais confuso, pois mostra simultaneamente o alto grau de desenvolvimento da ciência na Itália da época, com o patrocínio de membros da hierarquia eclesiástica, e por outro lado a condenação do sistema heliocêntrico. A mitologia atual (ciência progressista versus Igreja conservadora) começa com a história de Galileu e seu uso da luneta em 1609, mas ignora seu período como catedrático da Universidade de Pisa desde 1589, quando ele ainda trabalhava com a física aristotélica, e que foi muito produtivo. A “revolução” que ele promoveu se faz de fato em continuidade com sua formação anterior e sua inserção no debate com cientistas e teólogos. Em todo caso, hoje se reconhece a complexidade do affair Galileu ao longo dos anos, principalmente em torno da condenação do sistema heliocêntrico, em 1616 e em 1633. Qualquer confronto que tenha havido, ele ocorreu entre facções (que incluem filósofos da natureza e membros da hierarquia eclesiástica) no seio da própria Igreja. Mas sua hierarquia não pode ser isentada da responsabilidade nos eventos da época. Muito do que veio a seguir indica que o 13 reconhecimento da possibilidade de erro por parte do magistério é quase nulo. No caso de Galileu, podemos ouvir o que diz o historiador Don O’Leary (1955-): A Igreja poderia admitir seu erro de modo aberto e mudar decisivamente sua posição. Ou poderia agir discreta, mínima e gradualmente para salvaguardar seu prestígio, para evitar o constrangimento, e proteger a concordância tranquila dos fiéis. Ela escolheu a segunda opção (O’LEARY, 2007, p. 6).[2] De fato, apesar de o heliocentrismo e as obras de Galileu serem admitidas informalmente pelo magistério desde o início do sec. XVIII, a primeira referência claramente positiva a ele, e uma reabilitação considerada, só foi feita por João Paulo II! Voltaremos a esse ponto no capítulo III. Nesse ínterim, cientistas (na época chamados de “filósofos naturais”) católicos continuaram a desenvolver suas atividades normalmente, com variações locais de vigilância. É verdade que, para muitos, o protestantismo foi mais favorável à revolução científica, porém, ainda que menos conhecida, a contribuição de católicos assumidos é também significativa. Pouco conhecida também é a contribuição dos jesuítas para a ciência, inclusive no Brasil. Assim como para os jesuítas, outras ordens religiosas e padres seculares continuaram promovendo a atividade científica até os fins do séc. XVIII, no que alguns autores denominam como “ciência clerical” (HARRIS, 2002, p. 250-251). Na passagem desse século ao XIX, alguns fatores vêm a modificar esse cenário. Podemos citar a extinção da Companhia de Jesus, a perda gradual da riqueza temporal e da autoridade política dos Estados Papais, a consolidação do poder do Estado sob monarquias absolutistas e o anticlericalismo cada vez mais disseminado na esteira do Iluminismo (HARRIS, 2002, p. 251). O processo de secularização, qualquer que tenha sido sua natureza mais precisa, desvestiu em particular a Igreja de centros de saber, como universidades e monastérios, e em geral reduziu sua influência na esfera pública. Apesar de muitos clérigos e cientistas católicos continuarem a desenvolver suas atividades, uma Igreja cada vez mais sob estado de sítio preocupou-se com a obediência à autoridade e a rigidez doutrinal, e o aumento do poder da Cúria Romana. Mais do que isso, em resposta 14 às instituições profanas, são incentivados círculos católicos ligados às várias esferas da vida social europeia, e particularmente o desenvolvimento de uma “ciência católica”. 15 1. Do concordismo tradicional à adoção do neotomismo No século XIX, o magistério católico já aceitava amplamente os dados da física,[3] da astronomia, da química, da zoologia e da botânica, e a discussão girava em torno apenas de quanto as novas ideias cosmológicas tinham (ou não) impacto sobre as concepções teológicas da criação. Voltaremos a esse problema mais adiante. Se problemas houve, eles diziam respeito apenas às ciências que iniciavam seu desenvolvimentona ocasião: a geologia, a biologia evolutiva e a antropologia, e esta será nossa ênfase daqui em diante. Ideias fixistas, ou seja, as que consideram que o mundo foi criado em seis dias há uns poucos milhares de anos, de acordo com o relato bíblico do Gênesis, e que as espécies desde então permaneceram fixas, já estavam desacreditadas em círculos mais ilustrados no início do século XIX. Mas havia pouco consenso sobre os dados geológicos e paleontológicos que surgiam das intensas pesquisas que então se realizavam, tampouco sobre uma teoria adequada do desenvolvimento do planeta Terra e da biosfera (lembre-se de que o passo posterior, a concepção de que o universo tem uma história, só se tornou consensual na astronomia a partir de 1920). O que se nota, até onde esta pesquisa pode mostrar, é certo distanciamento do magistério em relação a esses desenvolvimentos científicos, posições diferenciadas tanto entre cientistas quanto entre clérigos católicos, e muita controvérsia. Os manuais de teologia nos seminários continuaram fixistas, ao que tudo indica, passando muito mais tempo ao largo de desenvolvimentos científicos da época. As instituições científicas eram poucas, e o próprio conceito de “cientista” estava apenas começando a se fixar — até então havia ainda espaço para os amadores, muitos deles sacerdotes. O primeiro registro digno de menção sobre as relações entre ciência e religião são as preleções de 1835 de Nicholas Wiseman (futuro cardeal-arcebispo de Westminster, viveu de 1802 a 1865) em Roma. Estas foram publicadas no ano seguinte sob o título de Twelve lectures (1836). Wiseman, especialista em línguas orientais e entusiasta das ciências naturais, apresentou um extenso sumário de algumas ciências 16 até aquele ano, com destaque para a paleontologia e a geologia. Notam-se duas coisas: primeiro, que o argumento se desenvolve no âmbito das ciências naturais, e as referências a questões doutrinais são poucas e comuns. Segundo, é um crítico do concordismo, ainda que alguns de seus argumentos possam ser lidos nesta linha. Ocorre, por exemplo, um posicionamento contrário a propostas para a história natural que venham de autores que não se preocupam em harmonizá-las com a doutrina da criação, como Buffon, Hutton e Lamarck. Por conta deste, Wiseman não compartilha das teses transformistas, sendo um simpatizante do catastrofismo de Georges Cuvier (1769-1839), então uma teoria tão científica quanto suas contendoras. Como algumas teorias dessa época já indicavam a origem natural do homem, Wiseman defende aquelas que propõem uma cisão entre o desenvolvimento dos animais e plantas e o homem. O que se deduz é que já havia, nos meios católicos, um espírito favorável a algum tipo de evolução das espécies infra-humanas. Uma palavra sobre o concordismo.[4] Durante muito tempo, à medida que o conhecimento geológico se ampliava, cientistas cristãos procuraram compatibilizar o relato do Gênesis com as novas descobertas. Isso se estendeu também às ideias evolucionistas que eram propostas durante o século XIX. A esse empreendimento foi dado um limite no mundo católico pelo neotomismo de Leão XIII, na Encíclica Providentissimus Deus, de 1893: Para penetrarmos bem na justiça desta regra, há de se considerar em primeiro lugar que os escritores sagrados, ou melhor, o Espírito Santo que falava por eles, não quiseram ensinar aos homens estas coisas (a íntima natureza ou constituição das coisas que se veem), pois em nada haviam de servir para a salvação, e assim, mais do que procurar em sentido próprio a exploração da natureza, descrevem e tratam às vezes as mesmas coisas, ou em sentido figurado ou segundo a maneira de falar naqueles tempos, que ainda hoje vigoram para muitas coisas a vida cotidiana até entre os homens mais cultos (§ 42). Aqui é Agostinho que se tem em mente, a mesma proposta que Galileu havia feito séculos antes, e vale tanto para os relatos bíblicos como para os elementos doutrinais. Ainda que os autores posteriores tivessem essa advertência em mente, o concordismo foi uma eterna tentação para a apologética, como veremos abaixo. Mas antes retomemos o fio histórico mais amplo. 17 Podemos falar do ano de 1850 como um divisor de águas, tanto pela fundação do periódico La Civiltà Cattolica, polêmico e influente defensor da ortodoxia católica, como, dez anos mais tarde, pela gradual disseminação do A origem das espécies, de Charles Darwin (1809-1882). Tanto o Syllabus de Pio IX como os documentos do Vaticano I não fizeram uma referência explícita à evolução. Apenas o Concílio regional de Colônia, em 1860, apresentou uma condenação da teoria, mas sua importância foi relativa perante os altos e baixos da controvérsia em torno do assunto. Deixando de lado o que era ensinado nos seminários, a discussão mais acadêmica de cientistas católicos, teólogos e bispos percorria todo o espectro entre a defesa de uma leitura literal do Gênesis e uma tolerância em relação à teoria da evolução, darwiniana ou neolamarckista (versão da teoria da evolução proposta por Lamarck).[5] Na verdade, as críticas eram unânimes em torno dos “-ismos”, como materialismo, evolucionismo e darwinismo. É preciso compreender que, paralelamente, emergia uma postura de fácil apelo na comunidade científica, de rejeição ao cristianismo em geral e da Igreja Católica em particular. A “batalha” se dava em todos os níveis, e acabava deixando em segundo plano o que seria propriamente científico e religioso. Veja-se o caso do discurso de John Tyndall (1820- 1893), eminente cientista, perante a Associação Britânica para o Progresso da Ciência em Belfast (1874): “Todas as teorias, esquemas e sistemas religiosos que envolvam noções de cosmogonia, ou que de outra maneira invadam o domínio da ciência devem, na medida em que o fazem, se submeter ao controle da ciência, e abandonar toda pretensão de controlá-la” (TYNDALL, 1874). O itálico (que é do autor) parece dizer respeito ao fato de que Tyndall ainda concede às religiões um papel de administração das emoções. Sua visão, por outro lado, é inteiramente naturalista. O magistério católico de então afirmava algo inverso, que os católicos poderiam livremente desenvolver suas pesquisas, contanto que pelo mesmo ato venerassem o intelecto divino revelado no cristianismo. O maior problema da então nascente teoria da evolução não era a ciência em si, mas as posturas ideológicas associadas a ela, os tais “- 18 ismos” dos escritos eclesiásticos. Por outro lado, é preciso registrar que os mecanismos propostos por Darwin continuaram sendo questionados (considerados bem diversos uns entre outros) por alternativas neolamarckistas e vitalistas.[6] Algumas dessas alternativas foram apropriadas pela Igreja, na medida em que à primeira vista seriam mais de acordo com a doutrina. A controvérsia só foi resolvida com a incorporação rigorosa da genética aos mecanismos da evolução, o que ocorreu a partir de 1930. 19 2. O endurecimento do magistério e o ápice da apologética O concílio Vaticano I havia destacado a complementaridade entre fé e razão, enfatizando os aspectos de autonomia e subordinação. O mesmo vale para a encíclica Providentissimus Deus, acima citada. A apologética católica a partir daí incorpora essa concepção, voltando-se para a paleontologia, a geologia e a biologia como fonte de problemas e, ao mesmo tempo, de soluções “adequadas ao dogma” (passa-se de um concordismo bíblico a um concordismo eclesial, por assim dizer). Na verdade, o ponto mais delicado das novas teorias era a ausência de uma direcionalidade evolutiva e da evolução do homem. Quanto à evolução das demais espécies e da biosfera, toda maneira de acordos começou a ser feita. A ausência de uma política unificada em torno do assunto é destacada por um estudo recente das controvérsias (ARTIGAS; GLICK; MARTÍNEZ, 2006). Os autores narram a trajetória de seis cientistas católicos de destaque que, entre 1877 e 1902, apresentaram posturas favoráveis à evolução. Cada história é diferente da outra, da tolerância até pedidos de retratação.No caso específico do biólogo inglês St. George Mivart (1827-1900), seu primeiro livro após o A origem das espécies de Darwin, Genesis of species (1871), faz uma análise crítica da teoria darwiniana. Essa obra recebeu elogios tanto do Cardeal Newman como de Pio IX, ainda que o autor tenha sido ao final excomungado por outros motivos. Artigas et al. também destacam o papel polêmico e negativo da Civiltà cattolica, que auxiliou no endurecimento do Vaticano sobre o assunto entre 1890 e as primeiras décadas do século XX. Mas os “falcões” do Vaticano eram favorecidos por inimigos ilustres e aguerridos do cristianismo. Destaquem-se entre eles dois norte- americanos, John William Draper (1811-1882) e Andrew White (1832- 1918), e o alemão Ernst Haeckel (1834-1919), cujas obras causaram grande impacto e foram muito lidas na época. Nelas, a Igreja é ridicularizada como defensora do obscurantismo e da superstição, e se interpretava a história recente como a gradual substituição de uma visão religiosa por uma visão científica do mundo. Esse também foi o 20 caso da Espanha no século XIX, quando toda discussão sobre o darwinismo era marcada pelas circunstâncias políticas locais, tendo a Igreja como um de seus elementos, e o mesmo pode-se dizer da Itália. A tarefa dos apologetas tornou-se difícil, a de mostrar que na verdade a Igreja era amiga da ciência, e se esta pudesse comprovar para além de qualquer dúvida a teoria da evolução, o magistério poderia então seguir essa orientação. Quanto ao magistério papal, começando com Leão XIII, há várias referências favoráveis na Aeterni patris (1879) ao progresso da ciência, em particular às ciências físicas e naturais. Ao mesmo tempo, adverte- se que estas não devem estar em contradição com a filosofia escolástica, nem com a orientação da Igreja. Essa encíclica é representativa do espírito que caracteriza o período que vai até o Vaticano II: uma atitude, em relação às ciências, paternalista, admonitória, unidirecional, defensiva e excessivamente prudente. A ciência é estimulada, mas deve ficar sob o abrigo seguro do magistério. Ao longo do século XIX, e em especial depois de Leão XIII, diversos esforços se realizaram em prol de uma “ciência católica”, já mencionada, em contraposição à ciência iluminista, “positivista, “germânica” etc. O sucesso, entretanto, não foi muito considerável. Nessas circunstâncias, de qualquer modo, o evolucionismo foi objeto de discussão e apresentação durante todo o período. Saliente-se o livro do cientista e sacerdote J.-B. Senderens (1856-1936), Apologie scientifique de la foi chrétienne (SENDERENS, 1908), com várias edições entre 1903 e 1921. Essa obra por sua vez foi baseada numa homônima de Mons. Duilhé De Saint-Projet (1822-1897), também com várias edições entre 1885 e 1897, sempre com um prefácio favorável de Leão XIII. É uma referência para a apologética da época, e inclinado para a evolução das espécies, com restrições à espécie humana. Senderens apresenta, como critério epistemológico e teológico, a autonomia de três níveis de conhecimento da natureza: o teológico, o metafísico e o físico, uma divisão que vem pelo menos de Tomás de Aquino (cf. CARROLL, 1999). Essa divisão permite afirmar, com o Vaticano I, que as verdades da ciência (na medida em que provadas) não colidem com as verdades da 21 fé (LAMBERT, 2002, p. 131ss). A estratégia permitiu que se pudessem fazer poucas objeções quanto às inovações científicas, como se pode deduzir pelas seguintes citações de Senderens: O que a fé prescreve no que toca ao desenvolvimento do reino orgânico, ou às sucessivas manifestações da vida sobre o globo terrestre? Nada (SENDERENS, 1908, p. 67 e 137). Nunca é demais repetir: do ponto de vista da origem das espécies, o homem permanecendo sempre excluído, o católico não é de forma alguma perturbado pela fé. Ele pode escolher o sistema que lhe convém com a mais completa independência (SENDERENS, 1908, p. 229). O já mencionado Saint-Projet é também responsável por várias edições do “Congrès scientifique international des catholiques”, entre 1888 e 1900, ainda dentro do espírito de uma “ciência católica”, e interrompidas com a morte de Leão XIII, em 1903. Da mesma forma, surge na Bélgica o periódico Revue des questions scientifiques (1877 até o presente momento), tendendo para o lado “liberal” no acompanhamento da ciência contemporânea. Com a gradual emergência da controvérsia do Modernismo e sua condenação por Pio X, era de se esperar que qualquer progresso interpretativo da origem da biosfera fosse um pouco “freado”. Ainda que a condenação a esse movimento não tivesse diretamente nada a ver com a teoria da evolução, esta com certeza era admitida pelos liberais. A partir dessa mesma época podemos citar o aparecimento de uma série de grandes enciclopédias católicas, como síntese dos debates que então ocorriam. Comecemos pela influente Catholic Encyclopedia, norte-americana. O volume que contém os verbetes sobre evolução (“Catholics and evolution” [Wasmann, E. Catholic Encyclopedia, 1909] e “Evolution” [Muckermann, H. The Catholic Encyclopedia, 1909]) surge apenas dois anos após a condenação do Modernismo. Pela leitura deles, deduz-se que o magistério não estava particularmente preocupado com a teoria da evolução. O primeiro autor em pauta, o jesuíta Erich Wasmann (1859-1931), entomologista consagrado, reflete a visão dos cientistas católicos da época. Após apresentar argumentos favoráveis ao fato da evolução, ele no entanto registra em seu verbete: “Até onde a teoria da evolução é baseada em fatos observados? Ela deve ser entendida apenas como uma hipótese” (WASMANN, 1909). Podemos comparar com a postura de Teilhard de Chardin (1881-1955), 22 como veremos a seguir. Wasmann havia apresentado logo antes suas “preleções de Berlim”, defendendo uma variante da teoria da evolução (de cunho vitalista,[7] seguindo Hans Driesch [1867-1941]) contra o monismo de Ernst Haeckel. Este havido sido, por décadas, um dos principais críticos alemães da Igreja Católica e de seu alegado obscurantismo. Quando surge Wasmann e o critica por transformar o darwinismo numa filosofia geral, aceitar a teoria da evolução enquanto hipótese estritamente científica tornou-se uma forma de defender o catolicismo contra inimigos no mundo acadêmico. O próximo documento importante é o extenso verbete “Transformisme” do Dictionnaire apologétique de la foi Catholique, escrito por R. de Sinéty (1922). A perspectiva também é favorável à evolução, com destaque a que só seriam aceitas teorias finalistas e/ou vitalistas, como a que Henry Bergson (1859-1941) expôs em A evolução criadora (1907),[8] “... os argumentos científicos sobre os quais ela [evolução darwiniana] repousa não possuem um valor demonstrativo rigoroso, e assim se julga temerário caso se ensine como demonstrado, ou mesmo como positivamente provável” (col. 1844). Já o Dictionnaire de Théologie Catholique apresenta o verbete com o mesmo título, que se refere ao escrito de Sinéty (AMMAN, 1946). Apesar da distância temporal, o suporte científico, filosófico e teológico é basicamente o mesmo do anterior. O próprio conceito de “transformismo” (associado a Lamarck, contrapondo-se ao “fixismo”) já se tornara obsoleto, como já mencionado acima, substituído em língua francesa gradualmente por “evolução”. Diga-se de passagem, o entusiasmo desses apologetas com o vitalismo de Driesch e Bergson diminuiu na mesma velocidade (mas com uma defasagem) em que este foi gradualmente desacreditado na comunidade científica. Os dois verbetes defendem uma forma de transformismo mitigado, ou seja, não monista, que permite colocar Deus como causa primária da criação. Interessante que ambos citam Teilhard de Chardin copiosamente, mas apenas enquanto paleontólogo — a preocupação com uma filosofia monista está sempre presente. Também é interessante registrar o destino do livro de Henry de Dorlodot (1855-1929), Le darwinisme au point de vue de l’orthodoxie 23 catholique (1921), que trata da origem das espécies, sem entrar naquestão da origem do homem enquanto corpo e alma. Dos textos vistos até aqui, ele é o mais favorável a Darwin em sua atitude naturalista. Autoridades romanas censuraram o livro, ameaçaram colocá-lo no Index e exigiram retratação. Dorlodot se manteve firme, e a controvérsia terminou por esvair-se ao longo dos anos, sem nenhuma condenação. Os tempos já eram outros… Voltemos por um momento para as ciências físicas. O observatório astronômico do Vaticano é refundado em 1889, e a Academia de Ciências, em 1936. Ambos puderam desenvolver suas atividades com grande autonomia, mas isso não impediu que os papas constantemente recorressem ao paternalismo. Pio XI, no documento que fundou a Academia de Ciências, motu proprio In Multis Solaciis, após declarar que a Igreja sempre fora amiga das ciências, ao mesmo tempo fala dos “filhos pródigos”, aqueles que saíram do rebanho e julgam que a ciência contradiz a fé. Em seguida afirma: “E não nos parece excessivo ter definido esta agremiação de ótimas disciplinas quase como o Senado da Sé Apostólica no campo das ciências”. Isso não chegou a ocorrer, pois de um lado a autonomia dos acadêmicos foi preservada; e por outro, os papas recorreram a outras fontes para formar o juízo a respeito de matérias científicas, o que se mostrou uma opção infeliz. Pio XII também foi um grande entusiasta das ciências físicas, mas o que se nota em suas alocuções é que ele distingue uma ciência “boa” de uma “má”, usando como critério a concordância imediata com o depósito da fé. Esse papa alega que “não é porventura a Igreja mesma o progresso divino no mundo e Mãe do mais alevantado progresso intelectual e moral da humanidade e do viver civil dos povos?” (alocução perante a Academia de Ciências de 3 de dezembro de 1939 [PIO XII, 1957, 319]). Também há uma alusão à época medieval na qual havia harmonia entre fé e razão, quebrada na época moderna pelo “humanismo pagão”. Voltaremos a esse papa na seção seguinte. 24 3. A cautela e a ousadia em meados do século XX Com a ascensão de Pio XI ao papado, o clima tornou-se mais favorável à incorporação de dados científicos na interpretação da doutrina cristã. Com a consagração do Abée Georges Lemaître (1894- 1966) como cosmólogo de ponta, no início dos anos de 1930 (ver o capítulo seguinte deste livro), a imagem da Igreja como amiga da ciência ganha um reforço. Isso ajudou a levar, como dissemos, à refundação da Academia Pontifícia de Ciências, em 1936. Mas o conservadorismo da maioria das posturas em relação à teoria da evolução ainda permanece. Dois autores merecem destaque aqui. O primeiro, o Abbé Jules Paquier (1864-1932), ao falar em 1932, por exemplo, da astronomia, não menciona a cosmologia desenvolvida a partir de 1920. Nota-se também a questão ideológica perpassando o argumento. Pode-se julgar, por exemplo, que Tomás de Aquino, com sua ênfase em processos que levam à perfeição, poderia se perfilar com o progressivismo do século XIX. Entretanto, conforme este se torna uma filosofia monista, o que ocorre, na verdade, principalmente na esfera da moral, é a defesa da contingência e das idas e vindas da história: “A teoria de um progresso necessário, operando fatalmente no universo físico, não é mais que uma afirmação gratuita. No que tange à humanidade, procuraremos em vão como e por que um progresso necessário seria uma vantagem assegurada” (PAQUIER, 1932, p. 315). Essa contingência permite também a Paquier afirmar que: “1) Em nome da própria ciência, a evolução não pode se aplicar à origem da vida; 2) A teoria da evolução não pode se aplicar à alma humana, nem à origem da religião e da moral” (PAQUIER, 1932, p. 65). Note aí que, para a alma, se diz do todo, mas para a religião e a moral, há maior liberalidade, pois só a origem conta. Na mesma linha pode-se destacar a divisão entre fato (ciência) e explicação (teoria, ideologia), defendida por Paquier e a maioria dos apologetas. Qualquer que tenha sido o significado de termos equivalentes em Tomás, essa divisão acaba sendo na modernidade lida à luz do positivismo, que também defende que se parta dos fatos para 25 todo conhecimento. Além de mal-entendidos, essa situação encerra uma ironia, pois também o positivismo pode ser considerado uma ideologia! Alguns anos depois, Pierre-Marie Périer (1865-1938) também destaca os graus de conhecimento, para utilizar a terminologia de Maritain. É o que ele diz: “Inoperante, a crítica exclusivamente científica apresenta graves inconvenientes. Ela parece ligar o destino do dogma às especulações de uma ordem bem diferente e expõe nossa apologética às fatais flutuações de teorias provisórias e caducas” (PÉRIER, 1938, p. 12). Citando o dominicano Sertillanges, ele comenta: “Nada mais simples do que um tomismo evolucionista” (PÉRIER, 1938, p. 150), o que o permite corroborar Jacques Maritain (1882-1973) em oposição ao vitalismo: “Com Jacques Maritain, e muitos outros, nós consideramos que deve haver uma biologia experimental ‘autônoma’, ‘distinta da filosofia do organismo vivente’” (PÉRIER, 1938, p. 168). Na citação a seguir nota-se a oscilação entre destacar a autonomia do trabalho estritamente científico e ao mesmo tempo condicioná-lo à doutrina, numa forma de concordismo: eis o que desejamos, por assim dizer, com clareza e precisão: aonde quer que se chegue com alguma asserção, que se pretenda científica, não se pode ir contra certas verdades filosóficas ou teológicas, às quais nós devemos nos manter fiéis. Ao contrário, há as opiniões científicas que nós não devemos julgar, e aquelas que permitem a cada um dar ou recusar sua adesão. Há todo um domínio que convém abandonar às livres pesquisas dos homens competentes (PÉRIER, 1938, p. 15). A questão de quem decide entre opiniões científicas contrárias será retomada no capítulo III. Avançando um pouco no tempo, o verbete “evoluzione” da Enciclopedia Cattolica do Vaticano (de Giuseppe Bosio e editada em 1950, ao mesmo tempo que a Humani generis) também é favorável à evolução, ainda que seja um pouco anacrônico. Assim como ele termina: “Em conclusão pode-se dizer que a doutrina [sic] da evolução é nos dias de hoje uma boa teoria científica e uma hipótese de trabalho útil, mas seria indubitavelmente excessivo considerá-la no presente como uma verdade já demonstrada” (BOSIO, 1950). Então no mesmo ano Pio XII publica sua encíclica Humani generis. 26 Por tratar de desafios vividos pela Igreja naquele momento, traços que seriam de “modernismo”, o tom também é admonitório. À evolução das espécies é finalmente dado o benefício da dúvida, com uma série de ressalvas — há um cuidado todo especial para mostrar que a Igreja não recuava em relação a posturas anteriores. Ao iniciar sua exposição sobre o “evolucionismo”, Pio XII afirma que Não poucos rogam insistentemente que a religião católica tenha em máxima conta as tais ciências; o que é certamente digno de louvor quando se trata de fatos na realidade demonstrados, mas que hão de admitir-se com cautela quando se trata de hipóteses, ainda que de algum modo apoiadas na ciência humana, que tocam a doutrina contida na sagrada Escritura ou na tradição (Humani generis, 35). Como será reiterado mais adiante, essa colocação que distingue entre ciência “boa” e “má” trai uma teoria de conhecimento escolástica em que ciência, para ser considerada como tal, supõe que as afirmações sejam demonstradas para além de qualquer dúvida. Como a ciência moderna, por seu embasamento empírico, supõe sempre o caráter hipotético de suas afirmações, pode-se especular se, em algum momento, a teoria da evolução seria considerada “digna de louvor”. Fazendo agora um parêntese para as ciências físicas, famosa também é a alocução de Pio XII perante a Academia de Ciências em 22 de novembro de 1951. Longa, e cheia de dados advindos principalmente da física, teve a teoria do Big Bang como foco. O pano de fundo ainda é aristotélico-tomista — fala de causalidade eficiente e causalidade final, e como as cinco vias de S. Tomás seriam congruentes com os avanços das ciências físicas.Cientistas eminentes, como o padre George Lemaître, sentiram-se desconfortáveis com a afirmação feita pelo papa de que o Big Bang seria quase uma prova da existência de Deus. Voltando ao âmbito da biologia, não se nota necessariamente um progresso contínuo na liberalização das posturas. Enquanto a evolução darwiniana (principalmente no que diz respeito ao homem) é tratada como hipótese, continua havendo todo um gradiente de posturas opostas colocadas para debate. Por exemplo, ainda em 1956 podia se entender a evolução como se fosse algo muito controverso na comunidade científica, como se pode ver na Enciclopedia de la religión católica, publicada em Barcelona. Não há o verbete evolução, mas sim 27 “transformismo” (de autoria de Jesús Simon [1956]). O conteúdo é retrógrado, e nenhuma menção é feita aos avanços da biologia evolutiva nas décadas de 1940 e 50, no mundo anglo-saxônico, nem sequer à Humani generis! Na verdade, até o Vaticano II os escritores católicos pouco fizeram dos avanços da genética que ocorriam na mesma época, e a importância deles para a elaboração de uma teoria sintética da evolução. Com isso, esses autores ainda continuaram a usar dados fósseis como fonte de argumentos, certamente uma base muito frágil. Difícil dizer que eles recorreram à melhor ciência disponível... Do mesmo período, e com maior relevância acadêmica, devemos destacar a obra organizada por Jacques Bivort de la Saudée, e escrita por vários especialistas de renome de diferentes países europeus, Deus, homem e o universo (BIVORT DE LA SAUDÉE, 1957).[9] Nela encontramos um capítulo sobre evolução humana, “A origem do homem e as recentes descobertas das ciências naturais” (VAN DE BROEK, 1957), tão “avançado” para o espírito católico da época (já inclui, por exemplo, dados recentes da genética), que o tradutor para o português (A. Veloso) sentiu-se na obrigação de chamar a atenção do leitor de que o transformismo era ainda apenas uma hipótese competindo com outras. O capítulo que mais diz respeito ao presente argumento, “A origem do homem segundo o livro de Gênesis” (MESSENGER, 1957), é de autoria de Ernest Messenger (1888-1951), um filósofo aberto ao evolucionismo, sempre à frente das controvérsias de seu tempo nos meios católicos, e tradutor de Dorlodot para o inglês. Nesse capítulo ele repete a afirmação de Leão XIII em Providentissimus Deus: “Não pode nunca existir desacordo real entre o teólogo e o físico, enquanto cada um permanecer na sua própria esfera, e desde que um e outro, como adverte Sto. Agostinho, tenha o cuidado ‘de não fazer afirmações temerárias nem afirmar que uma coisa é conhecida, quando de fato não o é’” (MESSENGER, 1957, p. 295), ou seja, a distinção entre hipótese e fato que move o magistério nessa matéria. Isso reforça o dado que antes comentamos, que o problema de Teilhard de Chardin não teve a ver com a evolução como tal, mas sim 28 que, à semelhança de E. Haeckel, ele poderia estar desenvolvendo uma filosofia/teologia monista a partir de sua ciência. Apresentar Chardin como algum “mártir da evolução” é desconsiderar o que acontecia ao redor dele nessa mesma época.[10] Conforme é mais conhecido, a recuperação do pensamento de Teilhard a partir dos fins dos anos 1950 ajudou a configurar os novos ares que cercaram o Vaticano II, e a dar mais respeitabilidade à teoria da evolução no catolicismo. Nomes conhecidos como Karl Rahner (1904-1984) publicaram extensamente sobre o assunto ainda na mesma década. Esse autor, por exemplo, auxiliou a dar toda uma fundamentação teológica ao processo de hominização (RAHNER, 1971), justamente a etapa da evolução que sempre causou tanto embaraço aos apologetas. Da mesma época, a Enciclopédia do Católico no Século XX — “Sei e creio”, francesa, publicada no Brasil pela Ed. Flamboyant para um público mais amplo, traz alguns volumes que trabalham a teoria da evolução. O volume A ciência destrói a religião? (CHAUCHARD, 1962 [1958]), por exemplo, já se baseia nítida e explicitamente em Teilhard de Chardin. Por outro lado, o volume sobre a origem do homem, do mesmo ano e de autoria de Nicolas Corte (1879-1971), traz em seus primeiros capítulos uma apreciação do processo evolutivo compatível com a ciência da época. No entanto, no último capítulo, e por um puro ato de obediência ao magistério, defende o monogenismo (que toda a humanidade teria derivado de um único casal concreto formado por Adão e Eva e, implicitamente, que Adão teria nascido adulto), contra toda a evidência que ele mesmo descreve. Curiosamente, ele recorre a ninguém menos que Teilhard de Chardin para defendê-lo nessa tarefa (CORE, 1962 [1958], p. 123-131). Antes de passar ao próximo capítulo, gostaríamos de retornar ao fato de que esse voo panorâmico do século XVII até o fim dos anos 1950 apenas dá alguns indicativos da complexidade dessa história, e assim o leitor é convidado a aprofundar-se nela. Ele conta para tanto com a bibliografia ao final deste livro. 29 C Capítulo II A CIÊNCIA E O CONCÍLIO VATICANO II om a ascensão de João XXIII, o tom admonitório dos documentos anteriores vai para o segundo plano, destacando-se agora o progresso científico-tecnológico (ainda que as menções à ciência se liguem mais às suas aplicações na tecnologia). Apenas se adverte que os meios da ciência e da tecnologia são apenas instrumentais, servindo a fins mais elevados, nos quais a Igreja tem sua parte. Na Mater et magistra se fala até do caráter soteriológico do progresso científico-tecnológico (cf., no entanto, § 208). Na Pacem in Terris, logo no início, se faz referência positiva ao progresso técnico- científico. O acento aqui é, após essa referência positiva, lamentar-se o processo de secularização (§§ 150-151), justamente nos países de tradição cristã, ligado ao entusiasmo com o progresso da ciência e tecnologia. Na constituição apostólica com a qual é convocado o concílio ecumênico Vaticano II, João XXIII faz uma referência à ciência, que encontrou seu caminho nos documentos conciliares. Logo no início, ele fala do mundo que se exalta em suas conquistas no campo da técnica e da ciência, mas que carrega também as consequências de uma ordem temporal que alguns quiseram reorganizar prescindindo de Deus... Daí o impulso para a procura quase exclusiva dos gozos terrenos, que o avanço da técnica põe (Humanae salutis, 3). Mas, mais adiante, temos uma afirmação no sentido contrário: Mas se voltarmos a atenção para a Igreja, vemos que ela não permaneceu espectadora inerte diante desses acontecimentos, mas seguiu, passo a passo, a evolução dos povos, o progresso científico, as revoluções sociais; posicionou-se, decididamente, contra as ideologias materialistas e negadoras da fé (Humanae salutis, 5). O posicionamento, assim, segue o tom das encíclicas desse papa anteriormente mencionadas. Mas podemos perceber que o avanço da posição do magistério não foi tão significativo assim, para além do de Pio XII. Pode-se notar isso na advertência formal a respeito dos escritos de Teilhard de Chardin, emitido pela Santa Sé em 30 de junho de 1962 (publicado no dia seguinte no L’Osservatore Romano). Num 30 trecho do breve documento, afirma-se: “sem fazer nenhum juízo sobre o que se refere às ciências positivas, é bem manifesto que, no plano filosófico e teológico, estas obras regurgitam de ambiguidades tais e até de erros graves que ofendem a doutrina católica”. Note-se que não se condena a evolução (contanto que permaneça nos limites das “ciências positivas”), mas sim as ideias mais amplas do autor. Essa ambiguidade (“evolução sim, Teilhard não”) percorre as posições magisteriais desde então. Outro sinal do conservadorismo curial veio, como se sabe, do Comitê Preparatório Central do Concílio. Este entregou aos padres conciliares uma série de documentos que deveriam servir de base para as discussões posteriores. O documento intitulado “Defendendo de modo intacto o depósito da fé” é o que trata mais extensamente o tema das ciências e foi entregue aos bispos em 23 de julho de 1962. Ele mantém o tomdefensivo e as advertências contra a falsa ciência, e novamente trai a influência do neoescolasticismo. Logo no primeiro parágrafo, o documento mostra a que veio: Pois a sagrada hierarquia eclesiástica, com seus pastores e mestres, foi estabelecida de tal modo que possamos alcançar “a unidade da fé” e não ser como “crianças, joguetes de ondas, agitados por todo vento de doutrina, presos pelas artimanhas dos homens e da sua astúcia que nos induz ao erro” (Ef 4,11; 14). Sobre essa hierarquia recai apropriadamente o dever para o qual o Apóstolo advertiu Timóteo: “Guarda o depósito da fé. Evita o palavreado vão e ímpio, e as contradições de uma falsa ciência, pois alguns, professando-a, se desviaram da fé” (1Tm 6,21). A “falsa ciência” não é mais uma específica, a gnose antiga como nos tempos de Paulo, mas cobre agora um amplo espectro: teologias heterodoxas, filosofias que divergem da neotomista, concepções secularizantes de mundo, e todos os resultados científicos que não se coadunem com o magistério. Isso fica claro na condenação nesse documento de teorias evolucionistas “errôneas”, tanto aquelas inspiradas pelo materialismo naturalista como aquelas de cunho vagamente panteístas. O modo como essa última posição é expressa subentende nitidamente uma crítica à postura teilhardiana, então cada vez mais aceita em outros círculos (cf. ALBERIGO, 1995, p. 245). E o documento conclui dizendo: (§ 15) Portanto, certas questões concernentes à evolução do mundo, que diretamente ou indiretamente possuam implicações para a fé católica, devem ser tratadas com suprema 31 cautela, de tal modo a que declarações genuínas de fé não sejam contraditas ou colocadas em perigo. Fiéis individuais devem estar prontos a submeter o assunto ao julgamento da Igreja, à qual Cristo confiou a tarefa de guardar e interpretar o depósito da fé. Esse tom excessivamente prudente reflete em letra e espírito a Humani generis. Ainda que o leigo comum possa submeter-se ao juízo proposto, os cientistas, tanto católicos quanto não católicos, consideram essa atitude heterônoma. Curioso, ao mesmo tempo que, numa linha tomista, se proclame a necessidade da autonomia da atividade científica, deixa-se ao magistério a decisão final. Essa decisão, como aconteceu várias vezes, não mostra clara compreensão das questões propriamente científicas. Não há ainda um espírito dialogal. 32 1. A ciência nos documentos do Vaticano II Como é sabido, os documentos das comissões preparatórias foram rapidamente rejeitados pelos bispos, e se passou a redigir documentos intermediários que alcançassem um maior nível de consenso. O tema da ciência é pouco tratado nos documentos do Vaticano II, comparativamente falando, ainda que esteja subentendido (em conjunto com a tecnologia) na ideia de aggiornamento ao mundo moderno. O termo surge principalmente na Gaudium et spes, e as ocorrências em outros documentos não alteram a mensagem desse primeiro. Palavras que se referem às ciências naturais e à tecnologia, como “ciência”, “ciências” e “científico”, surgem quarenta vezes na Gaudium et spes, oito vezes na Gravissimus educationis e seis vezes na Ad gentes (fonte: <http://www.intratext.com/ixt/eng0037/_FAK.HTM>). Os parágrafos mais frequentemente mencionados são GS 36 e 52. Agora falaremos um pouco da história da redação da Gaudium et spes. No processo de redação, os peritos que assessoraram os bispos e as comissões tiveram papel fundamental. Como é sabido, a discussão específica em torno da Gaudium et spes começou efetivamente no último ano do concílio. A maioria dos protagonistas desejava uma mudança significativa em relação às posturas tradicionais do magistério, mas havia, segundo Alberigo, pelo menos dois campos, um mais defendido pelos franceses e um pelos alemães. Os primeiros foram influenciados pela nouvelle théologie, por certa leitura otimista do tomismo e por Teilhard de Chardin, enquanto os segundos optaram por uma versão de agostianismo que colocava em questão a importância das atividades terrestres para a salvação divina (KOMONCHAK, 1999). Durante as discussões, alguns bispos enfatizaram a necessidade de levar a ciência em seus próprios termos e de aprender com o caso Galileu, no trato específico com Teilhard de Chardin (ALBERIGO, 2004, p. 300ss). Mas outros consideraram isso um otimismo demasiado e preferiram uma abordagem mais tradicional. De modo geral, os bispos latino-americanos batalharam por uma Igreja mais contextual, aberta ao mundo moderno e aos pobres. Por exemplo, Talamás 33 http://www.intratext.com/ixt/eng0037/_FAK.HTM Camandari (1917-2005, bispo de Ciudad Juarez, México, argumentou de modo tal que, segundo Alberigo, queria que o Concílio “declarasse enfaticamente a autonomia e a liberdade plenas das investigações científicas conduzidas de modo prudente”, como vários papas já o tinham feito, de modo notável Pio XII, em sua encíclica Divino afflante spiritus, e encorajar cientistas, de modo particular os católicos, em seus trabalhos. A Igreja, além disso, deveria prestar atenção, em seu próprio ensinamento, às novas descobertas dos cientistas (ALBERIGO, 2004, p. 313). Essa última sentença merecerá outra menção mais adiante. Essa postura foi acolhida no documento final que, como é de se esperar nesses casos, termina por incorporar posições divergentes, tanto mais otimistas quanto pessimistas. 34 2. A ciência como surge na Gaudium et spes Consideremos agora os documentos em sua forma final. Há alguma repetição entre as várias ocorrências do termo “ciência”, e como dito, o que há de mais relevante se encontra na Gaudium et spes. Então é por ela que vamos começar. O tom é de modo mais geral otimista e aberto quando comparado às manifestações pré-conciliares. A Igreja é menos caracterizada como depositária da verdade e mais como quem perscruta os “sinais dos tempos”.[1] Ranços de escolasticismo também desaparecem, e alguns até enxergam a influência de Teilhard de Chardin no linguajar de certos parágrafos, ainda que as obras deste continuassem (como já dito acima) oficialmente sob censura. Ao contrário dos documentos de Pio XII, não há a preocupação de mencionar descobertas científicas específicas. O parágrafo 5 expressa de modo explícito o otimismo associado ao aggiornamento: Os progressos das ciências biológicas, psicológicas e sociais não só ajudam o homem a conhecer-se melhor, mas ainda lhe permitem exercer, por meios técnicos, uma influência direta na vida das sociedades... A humanidade passa, assim, de uma concepção predominantemente estática da ordem das coisas para uma outra, preferentemente dinâmica e evolutiva. Note-se o surgimento da palavra “evolutiva”. O uso dela, ainda que aqui não seja no sentido darwiniano, representa uma ruptura radical em relação à suspeita antes exercida sobre ela. No caso em pauta, ela indica mais a noção de progresso. No n. 7, há a advertência de que “negar Deus ou a religião... é muitas vezes apresentado como exigência do progresso científico ou de novo tipo de humanismo”. É um tema que reaparece várias vezes nos documentos conciliares, especialmente quando se analisa o ateísmo, mas não há ênfase na ciência como problema. Já no n. 15, encontramos um destaque à questão do pecado original, que enfraquece a capacidade humana de conhecer a verdade por seus próprios recursos. Todavia, aqui também se afirma que o homem é capaz de atingir a verdade inteligível. Há uma diferença sutil e importante com o documento da comissão preparatória, pois este cita o Vaticano I e lembra Rm 1,20, e o sujeito do documento não é mais o 35 homem, mas a razão aristotélica. Esta pode demonstrar sua existência a partir das cinco vias de Tomás. Já a GS muda completamente o fraseado e o recurso à metafísica, acentuando os progressos nas ciências empíricas, nas técnicas e nas artes (todavia, há certo contraponto no n. 19, onde se diz das ciências positivas que elas não mais admitem uma verdade absoluta). O n. 33 também fala do “depósito da fé”, onde se pode buscar firmes “princípios de religião e moral”.Entretanto, aqui se acentua que a Igreja não tem respostas prontas para as indagações humanas, e assim apenas oferece “juntar a luz da revelação à competência de todos os homens” — uma atitude certamente mais dialogal. Depois se chega ao famoso n. 36, o qual fala da “autonomia das realidades terrestres”. Aqui se dá destaque à ”investigação metódica em todos os campos de saber”. A grande novidade é o reconhecimento de que “muitos cristãos” (não se menciona a hierarquia...) não reconheceram devidamente essa autonomia, o que levou a lamentáveis oposições entre ciência e fé. O notável é a nota de rodapé associada a essa última afirmação. Trata-se de uma biografia de Galileu patrocinada pela Academia Pontifícia de Ciências nos anos 1940. Sempre teve um caráter oficioso, mas nunca havia sido autorizada formalmente pelo magistério. Apesar de Galileu não ter sido mencionado no documento, abrem-se as portas para o reconhecimento de erros passados e para a reabilitação dessa importante figura histórica, como veremos em João Paulo II. O n. 39, por sua vez, fala da escatologia. Ainda que não se debruce diretamente sobre a ciência, vale a pena ser citado porque expressa a tensão que percorre a redação de todo o documento: as oscilações constantes entre o otimismo e o pessimismo em relação ao papel do progresso terreno para a consumação da história. É como diz esse trecho: A expectativa da nova terra não deve, porém, enfraquecer, mas antes ativar a solicitude em ordem a desenvolver esta terra, onde cresce o Corpo da nova família humana, que já consegue apresentar certa prefiguração do mundo futuro. Por conseguinte, embora o progresso terreno se deva cuidadosamente distinguir do crescimento do Reino de Cristo, todavia, à medida que pode contribuir para a melhor organização da sociedade humana, interessa muito ao Reino de Deus (Gaudium et spes, 39). 36 Uma redação certamente tortuosa, que pode dar margem a muitas interpretações. Uma pesquisa mais exaustiva se torna necessária, pois o progresso da ciência é visto, em muitos círculos e com frequência, como soteriológico (CRUZ, 2008). O n. 44 inova ao acentuar que também a Igreja recebe benefícios da cultura secular e do pensamento moderno: “A experiência dos séculos passados, os progressos científicos, os tesouros encerrados nas várias formas de cultura humana, que manifestam mais plenamente a natureza do homem e abrem novos caminhos para a verdade, aproveitam igualmente a Igreja”. Novamente, o progresso científico recebe destaque, e a novidade repousa sobre a atitude de escuta do magistério. No n. 52 fala-se da contribuição de vários ramos de ciência para o estudo da procriação humana de um modo moralmente aceitável. É um tema, entretanto, que foge à alçada desse verbete. Apesar de sua história posterior controversa, o que se nota é o modo positivo como o aporte das ciências é representado. O n. 54 é bastante otimista em relação às possibilidades futuras. Numa terminologia inteiramente nova, fala que “as ciências exatas desenvolvem grandemente o senso crítico”, e que “as disciplinas históricas contribuem muito para considerar as coisas sob o seu aspecto mutável e evolutivo”. Também destaca que a ciência, apesar da ameaça da bomba atômica, é um meio poderoso de aproximar as nações e os blocos e assegurar a paz. Esse modo de contribuição positiva da ciência é enfatizado no n. 57. Após uma admoestação da passagem ligeira da autonomia para a autossuficiência (a hybris da ciência), o documento sugere que essa passagem não é uma necessidade da cultura atual. Ao contrário, devem-se destacar seus valores positivos: “o gosto das ciências e a exata objetividade nas investigações científicas; a necessidade de colaborar com os outros nas equipes técnicas; o sentido de solidariedade internacional”. Por fim, a conclusão indica não a preocupação dogmática, mas sim a pastoral e a evangélica: “Tudo isto pode constituir certa preparação para a recepção da mensagem evangélica (um tema típico do Vaticano II), preparação que pode ser 37 enformada com a caridade divina por aquele que veio para salvar o mundo”. Nota-se também que a hierarquia e a Igreja não são apresentadas como condição estrita para que a tentação da autossuficiência não prevaleça. De qualquer maneira, não haveria como ignorar o Vaticano I no que tange à concórdia entre fé e razão. Isso é feito no n. 59 (favorito de João Paulo II), quando se reitera que existem “duas ordens de conhecimento” distintas, a da fé e a da razão, e que a Igreja de modo algum proíbe que “as artes e as disciplinas humanas... usem de princípios e métodos próprios nos seus respectivos campos”; “reconhecendo esta justa liberdade”, afirma por isso a legítima autonomia da cultura humana e sobretudo das ciências. A citação é a mesma, mas a conclusão e o enquadramento são bastante diversos daqueles do primeiro concílio. A metáfora dos “dois livros”, por sua vez, fica em segundo plano, até para evitar quaisquer tentativas de subordinação de um ao outro. A última referência explícita à ciência ocorre no § 62. De certa forma, sintetiza preocupações dos outros parágrafos, e oferece uma espécie de resposta, algo ambígua, à excessiva preocupação com o “depósito da fé”, demonstrada pelo documento preliminar: “porque uma coisa é o próprio depósito ou as verdades da fé, outra o modo pelo qual elas se enunciam, sempre, porém, com o mesmo sentido e significado”. O restante do parágrafo, entretanto, indica a opção pelos “modos de enunciação”, como se pode ver na conclusão dessa seção: “E para que possam desempenhar bem a sua tarefa, deve reconhecer-se aos fiéis, clérigos ou leigos, uma justa liberdade de investigação, de pensamento e de expressão da própria opinião, com humildade e fortaleza, nos domínios da sua competência”. Nos demais documentos conciliares, não há propriamente novidades em relação à Gaudium et spes, apenas nuanças e aplicações mais específicas. É o que se pode ver em Gravissimum educationis, principalmente no Proêmio e nos ns. 10 e 11. Aqui há uma especial preocupação em enfatizar a presença de faculdades de ciências nas instituições de ensino superior católicas, em que o diálogo entre fé e razão possa se concretizar. Para tanto, acentua-se a autonomia das 38 ciências, sem se preocupar em distinguir a ciência “sã” da “falsa”. Fala- se inclusive da contribuição dessas instituições para a própria renovação da Igreja: “se esforcem por se tornar de tal modo eminentes na arte pedagógica e no estudo das ciências que não só promovam a renovação interna da Igreja, mas também conservem e aumentem a sua presença benéfica no mundo hodierno, sobretudo no ambiente intelectual”. A Apostolicam actuositatem, no que diz respeito à ciência, segue um caminho um pouco diferente, dando destaque aos perigos da autossuficiência por conta da distorção introduzida pelo pecado original. Assim, logo no início (n. 1), diz que o apostolado dos leigos deve atentar para desvios de ordem ética e religiosa facilitados pelo progresso tecnocientífico. O n. 7, além de destacar o pecado original, fala do perigo do progresso das ciências fazê-las cair na “Idolatria das coisas temporais, tornando-se delas mais escravos que senhores”. Ainda que não se repita o modo magisterial dos textos pré-Vaticano II, nota-se certa desconfiança em relação à ordem temporal, e daí a postura profética que o apostolado deve ter. Entretanto, um posterior juízo a esse respeito depende de uma análise mais aprofundada desse documento, o que não é o caso aqui. Em Ad gentes, o tom também é de abertura ao mundo moderno. Só há duas referências à ciência, uma no n. 11, que ecoa, ainda que de modo mais suave, a crítica à idolatria de AA 7. A outra é no n. 34, que fala da importância de várias disciplinas modernas para a missiologia, inclusive a ciência das religiões. 39 3. Paulo VI e a transição para o pós-Concílio Encerra-se o concílio e imediatamente se inicia a interpretação dele. O intérprete mais insigne é Paulo VI, mas, até por conta de sua posição de mantenedor da ordem,adota uma postura de maior cautela no que diz respeito à ciência. Tendo recebido a influência do neotomista Maritain (que se tornou um crítico do Vaticano II), o papa se afasta do tom e da linguagem da Gaudium et spes, de influência teilhardiana. Adota um tom mais admonitório, já visível na homilia de conclusão do Concílio, em 07/12/1965: os homens estão voltados mais para a conquista da terra do que para o reino de Deus; foi num tempo em que o esquecimento de Deus se torna habitual, como se os progressos da ciência o aconselhassem; foi num tempo em que o ato fundamental da pessoa humana, mais consciente de si e da sua liberdade, tende a exigir uma liberdade total, livre de todas as leis que transcendam a ordem natural das coisas. Mesmo que haja muitas razões objetivas que justifiquem essa atitude, ela não é propriamente dialogal. Paulo VI se expressou de modo semelhante na mensagem “aos homens de pensamento e ciência”, de 08/12/1965. Ao contrário da Gaudium et spes, a questão da verdade ganha proeminência, em seu sentido tomista. Após dizer que a Igreja é amiga dos esforços científicos e que razão e fé são compatíveis, assim exorta os cientistas: “Não impeçais este precioso encontro [entre a verdadeira fé e a verdadeira ciência]. Tende confiança na fé, a grande amiga da inteligência”. Dado o passado de desconfiança de muitos cientistas em relação aos pronunciamentos magisteriais, esse apelo dificilmente encontraria maior ressonância entre eles. Pode-se notar a mesma atitude de reserva numa audiência geral de 2 de abril de 1969. Quase poderíamos ver no Concílio uma intenção de tornar aceitável e amável o cristianismo, um cristianismo indulgente e aberto, despido de todo rigorismo medieval e de toda interpretação pessimista sobre os homens, sobre seus costumes, sobre suas mutações e suas exigências. Isto é verdade. Mas prestemos atenção. O Concílio não esqueceu que a Cruz está no centro do cristianismo. Também ele teve uma rigorosa fidelidade à palavra de São Paulo: “Que não se torne inútil a Cruz de Cristo: ut non evacuetur crux Christi” (1Cor 1,17). Alguns autores, em seu entusiasmo acrítico pelas realizações do Vaticano II, citam apenas a primeira sentença (p.ex., 40 KOZHAMTHADAM, 2007, p. 615), mas ignoram a exortação contida na segunda parte da citação. Semelhante é o caso de Zoltan Alszeghy (1915-1991), num número da revista Concilium dedicado à evolução biológica: “Uma alocução recentemente proferida por Paulo VI a um grupo de teólogos já não apelida o evolucionismo de hipótese, mas de ‘teoria’” (ALSZEGHY, 1967, p. 29). Entretanto, vejamos o trecho completo da alocução de 11/07/1966 aos participantes de um simpósio sobre o pecado original: “Mas também a teoria do evolucionismo não vos parecerá aceitável caso não concorde decididamente com a criação imediata de toda e qualquer alma humana por Deus, e caso não tenha por decisiva a importância que, para o destino da humanidade, teve a desobediência de Adão, protoparente universal”. Nota-se que tanto faz usar-se “hipótese” ou “teoria”, o que importa aí é a firme aderência ao monogenismo estrito da Humani generis. Não se pode terminar o magistério de Paulo VI sem mostrar seu lado mais aberto, numa despretensiosa alocução de 24/02/1966, na qual destaca que o estudo da matéria leva ao encontro com o espírito: “E o Santo Padre cita Teilhard de Chardin, que deu uma explicação do universo e, entre tantas fantasias, tantas coisas inexatas, soube ler dentro das coisas um princípio inteligente que se deve chamar Deus. A ciência mesma, então, obriga a ser religioso, e quem for inteligente deve ajoelhar-se e dizer: aqui está Deus”. De fato, essa alusão a Teilhard de Chardin surpreende, indicando que a transição para o espírito do Vaticano II ficou cheia de idas e vindas. Mas ainda se compreende o evolucionismo como um processo progressista, o que entra em choque com uma concepção estritamente darwiniana, já prevalente na época (não há no magistério anterior a João Paulo II nenhuma referência a essa figura [Darwin] tão crucial na história da ciência). Uma breve menção agora a João Paulo II, que será retomada com mais detalhes no capítulo III. Na mensagem de 22/10/1996, dirigida aos membros da Academia Pontifícia das Ciências e que foi muito mencionada depois, o papa falou: Hoje, quase cinquenta anos após a publicação da Encíclica Humani generis, os novos conhecimentos levam ao reconhecimento de que a teoria da evolução é mais do que 41 uma hipótese. É, na verdade, notável que esta teoria tenha sido progressivamente aceita por investigadores, após uma série de descobertas em campos diversos do conhecimento. Esta convergência, não pensada nem fabricada, de resultados de trabalhos conduzidos com independência uns dos outros é, em si própria, um significativo argumento a favor desta teoria. Finalmente, um pronunciamento magisterial indica que o fato da evolução é plenamente reconhecido (mas o restante do documento indica outra atitude, como veremos no capítulo 3). Nossa história poderia ter aqui chegado ao final, mas, assim como a ciência, uma conclusão sempre abre a janela para outros problemas. O status da teoria darwiniana permanece aberto a controvérsias no ambiente científico, e nos meios católicos a recepção desses indicativos de João Paulo II é heterogênea. Além de alguns remanescentes criacionistas no catolicismo, nota-se em vários círculos mais conservadores uma simpatia pelo “Plano inteligente” (ou “Design inteligente”) de William Dembski, Michael Behe e outros.[2] Aparentemente, a questão da ordem, da finalidade e do sentido da emergência da vida e do homem sempre intervém na escolha e aceitação do dado científico. É um novo tipo de concordismo que emerge. E isso não só no âmbito conservador, por assim dizer, mas também naquele “liberal”, na forma de uma “nova gnose”, expressões monistas que são assumidas por filósofos e teólogos. Mas vamos retornar a esse ponto no capítulo seguinte. 42 4. Algumas observações sistemáticas Em termos históricos, há que se destacar a ambiguidade da posição magisterial em relação à ciência e sua autonomia. De um lado, o interesse e o patrocínio, sem contar a participação de muitos sacerdotes e religiosos em atividades científicas nos quatro últimos séculos. De outro lado, a admoestação, a censura e a desconfiança em relação a avanços científicos. Refletindo-se a respeito, dá para se notar um critério: contanto que nenhum princípio de fé e moral seja ameaçado, a atividade científica é acolhida e incentivada. No momento em que o magistério vê aquele avanço como perigoso, então as restrições e a defensiva surgem. Veja-se o caso de Galileu e a teoria heliocêntrica: quando finalmente se notou que não havia nenhuma incoerência com a doutrina católica, a astronomia galileana e newtoniana passou a ser acolhida com entusiasmo. Outro critério é a associação de uma teoria ou modelos científicos com filosofias materialistas e movimentos anticlericais, suposta ou real. Nos dois casos, quem decide se há ameaça ou não? O próprio magistério, assessorado por teólogos próximos às cúrias. A palavra não parece ter sido concedida à própria comunidade científica. Há, pois, um problema da fonte de autoridade e do entendimento da autonomia do pensamento secular. O Vaticano II rompe com esse ciclo não porque endossa uma teoria e coloca outra sob suspeita, mas porque aponta para a possibilidade de se ouvir o que a ciência fala em seus próprios termos. A ambiguidade também se reflete no apoio ao Observatório Vaticano e à Academia Pontifícia de Ciências, que tiveram desde o início suficiente autonomia em suas atividades. Entretanto, essas instituições parecem não ter colaborado nas discussões relativas à ciência no Vaticano II. Uma exceção diz respeito apenas à figura de Galileu, como já dissemos na discussão da Gaudium et spes 36. A Academia Pontifícia de Ciência encomendou em 1942 ao historiador Mons. Pio Paschini (1878-1962) uma biografia de Galileu, com aprovação tácita do papa. Escrita a obra, a academia não quis