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Camila Borges Dos Anjos SUBJETIVIDADES Sumário INTRODUÇÃO ������������������������������������������������� 3 CONCEITO DE SUJEITO PARA ADF ��������������� 5 AUTOR E SUJEITO ��������������������������������������� 10 SUJEITO E SENTIDO ������������������������������������ 15 INTERTEXTUALIDADE E INTERDISCURSIVIDADE ������������������������������ 21 MEMÓRIA DISCURSIVA E OS DOMÍNIOS DO CAMPO DISCURSIVO ����������������������������� 25 PARÁFRASE E POLISSEMIA: PRINCÍPIOS DE ALTERIDADE ���������������������� 32 CONSIDERAÇÕES FINAIS ���������������������������� 39 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS & CONSULTADAS �������������������������������������������� 42 2 INTRODUÇÃO Caro estudante, iniciaremos este e-book concei- tuando uma das noções centrais na Análise de Discurso (AD) de linha pecheutiana: o sujeito. Como iremos verificar, o sujeito discursivo é uma categoria que se difere do sujeito empírico, indiví- duo, pois a AD não compreende um sujeito dono de si, das duas ideias, mas cindido pela ideologia e pelo inconsciente. Nessa dupla determinação a que está submetido, o sujeito é convidado a interpretar cotidianamente, nas relações que estabelece no mundo, daí sua relação com o sentido, tópico que também abor- daremos aqui. E nos movimentos de interpretação produzidos pelo sujeito, este ocupa posições no discurso, entre elas a de autor, que será mobiliza- da, neste e-book, juntamente com a questão da autoria, buscando investigar como esta se dá no campo discursivo e o modo como nos constituímos sujeitos nesse processo. Na sequência, trabalharemos as noções de inter- textualidade e interdiscursividade, com vistas a problematizar o acontecimento do texto no dis- curso, em sua constituição. Fazem parte desse processo a memória discursiva, atualizada pelo sujeito no momento da enunciação, e a paráfrase e a polissemia, processos que trabalham no limiar 3 do sentido. Todas essas noções teóricas farão parte do escopo desta escrita. Para tanto, dividimos o e-book em seis tópicos, a saber: o conceito de sujeito para ADf; Autor e Sujeito; Sujeito e Sentido; Intertextualidade e Inter- discursividade; Memória discursiva e os domínios do campo discursivo; e Paráfrase e Polissemia: princípios de alteridade. Bons estudos! 4 CONCEITO DE SUJEITO PARA ADF O sujeito, no campo teórico da AD, não é um ser humano individualizado, o sujeito em si, pois ele deixa de ser uma noção idealista, imanente, sendo considerado um sujeito histórico, social e descentrado, uma vez que, respectivamente, não está alienado do mundo que o cerca, é apreendido num espaço coletivo e é cindido pela ideologia e pelo inconsciente. Nessa perspectiva, Grigoletto (2013, p. 26) afirma que o “[...] o sujeito do discurso, para Pêcheux, é sujeito em pelo menos duas dimensões: é o indi- víduo interpelado em sujeito pela ideologia [...]; e é também o sujeito singular que se manifesta nos lapsos do inconsciente, movido pelo desejo”. Assim, o sujeito em AD sofre uma dupla interpe- lação – pelas vias do inconsciente e da ideologia –, não sendo, portanto, a origem do sentido, mas construído/constituído nas relações que estabelece. Nesse percurso, podemos dizer que o inconsciente torna o sujeito dividido, incompleto, desejante; e a ideologia deixa seu lastro no processo de cons- tituição dos sentidos. Assim, o sujeito, na teoria do discurso, é “livre e submisso”, afinal “[...] pode tudo dizer, contanto que se submeta à língua para 5 sabê-la” (ORLANDI, 2013), o que, portanto, o torna assujeitado, pois entram em cena suas dimensões histórica e psicanalítica. Sujeito é o resultado da relação com a linguagem e a história, o sujeito do discurso não é totalmente livre, nem totalmente determinado por mecanismos exterio- res. O sujeito é constituído a partir da relação com o outro, nunca sendo fonte única do sentido, tampouco elemento onde se origina o discurso. Como diz Lean- dro-Ferreira (2000) ele estabelece uma relação ativa no interior de uma dada FD; assim como é determinado ele também a afeta e determina em sua prática discursiva. Assim, a incompletude é uma propriedade do sujeito e a afirmação de sua identidade resultará da constante necessidade de completude (Glossário de Termos do Discurso, 2001, p. 22-23). Nesse entendimento, o sujeito em AD se constitui a partir da interpelação ideológica que o filia às for- mações discursivas (FDs) e enuncia e se manifesta a partir de sua ilusão imaginária de consciência. Paul Henry, nessa direção, considera que “O sujeito é sempre, e ao mesmo tempo, sujeito da ideologia e sujeito do desejo inconsciente, e isso tem a ver com o fato de nossos corpos serem atravessados pela linguagem antes de qualquer cogitação” (2013, p. 182-183). Isso porque é a linguagem que o reveste, REFLITASAIBA MAISFIQUE ATENTO 6 em sua materialidade linguística e histórica, para que ele se torne sujeito do discurso. A AD, nesse entendimento, rompe com uma noção de sujeito centrada, estável, homogênea, abrindo espaço para uma concepção de sujeito, assim como de língua, que não são/estão acabados, fechados. Daí o caráter da incompletude, em que “Nem sujeitos nem sentidos estão completos, já feitos, constituídos definitivamente” (ORLANDI, 2013, p. 52). Nessa abertura ao simbólico, o sujeito assume posição ao repetir dizeres, deslocá-los, dado o movimento dinâmico da língua, sendo ma- terialmente afetado pela ordem do inconsciente e da ideologia. É importante, aqui, ressaltarmos que o sujeito as- sume uma posição revestido do que é chamado, na teoria do discurso, de forma-sujeito, uma vez que, conforme ensina Althusser (1978, p. 67), “[...] todo indivíduo humano, isto é, social, só pode ser agente de uma prática se se revestir da forma-su- jeito”, que pode ser compreendida como: [...] a forma pela qual o sujeito do discurso se identi- fica com a formação discursiva que o constitui. Esta identificação baseia-se no fato de que os elementos do interdiscurso, ao serem retomados pelo sujeito do discurso, acabam por determiná-lo. Também chamado de sujeito do saber, sujeito universal ou 7 sujeito histórico de uma determinada formação discursiva, a forma-sujeito é responsável de ilusão de unidade do sujeito (Glossário de Termos do Discurso, 2001, p. 15). A forma-sujeito do discurso está diretamente ligada à noção de ideologia, afinal é a partir do mecanismo ideológico agindo sobre ela que o sujeito assume uma posição e não outra no interior de uma FD. Para Dorneles e Bressan (2020, p. 104), “Há um apanhado de saberes que faz com que cada um, assujeitado a uma formação ideológica, revista-se da forma-sujeito e constitua-se de materialidade forjada na história”, por isso esse é considerado um conceito-chave em AD. Para aprofundar seu conhecimento em torno da noção de sujeito e forma-sujeito, leia esses artigos publicados sobre o conceito: LEANDRO-FERREIRA, M. C. Quadro atual da análise do discurso no Brasil. Letras (UFSM), Santa Maria, v. 01, p. 39-46, 2003. Disponível em: https://periodicos.ufsm. br/letras/article/view/11896. DORNELES, E. F.; BRESSAN, M. Z. Forma-sujeito. In: LEAN- DRO-FERREIRA, M. C. Glossário de termos do discurso. 1. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2020. p. 103-108. SAIBA MAIS 8 https://periodicos.ufsm.br/letras/article/view/11896 https://periodicos.ufsm.br/letras/article/view/11896 CAMPOS, L. de J.; ALQUATTI, R. Sujeito. In: LEANDRO- -FERREIRA, M. C. Glossário de termos do discurso. 1. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2020. p. 281-286. 9 AUTOR E SUJEITO O que significa ser “autor”? O que faz de um sujeito “autor”? É muito comum, no dia a dia, ouvirmos o termo ‘autor’ associado a alguém que redigiu uma obra, escreveu uma matéria, publicou um artigo etc. Pensando nisso, vamos à definição de autor para a AD: Autor é uma das posições assumidas pelo sujeito [...] no discurso, sendo ela a mais afetada pela exte- rioridade (condições sócio-históricas e ideológicas) e pelas exigênciasde coerência, não contradição e responsabilidade. Ao se converter em autor, o sujeito da enunciação sofre um apagamento no discurso, dividindo-se em diversas posições-sujeito; ou seja, o autor é que assume a função social de organizar e assinar uma determinada produção escrita, dan- do-lhe a aparência de unicidade (efeito ideológico elementar). Foucault (1987) fala em princípio de autoria, uma vez que se trata de considerar o autor não como um indivíduo inserido num determinado contexto histórico-social (sujeito em si), mas como uma das funções enunciativas que este sujeito as- sume enquanto produtor de linguagem (Glossário de Termos do Discurso, 2001, p. 12). A noção de autor, em AD, é bastante mobilizada em diferentes constructos teóricos. Como podemos 10 observar pela definição apresentada pelo Glossário de Termos do Discurso, ser autor representa, na teoria do discurso, assumir posições discursivas, ou seja, o sujeito precisa atribuir sentido àquilo que diz assinando sua produção, responsabilizando-se por ela. Orlandi (2013, p. 76), buscando definir o autor em AD, vai nos dizer que “Não basta falar para ser autor. A assunção da autoria implica uma inserção do sujeito na cultura, uma posição dele no contexto histórico-social”, a mobilização de determinados sentidos em detrimento de outros, a organização do discurso num todo ideologicamente coerente. FIQUE ATENTO Autoria é a marca de singularidade, de sentidos que significam pela repetição ou reformulação de dizeres, que estão sempre em trânsito, sendo determinados pelas condições de produção às quais são expostos. A autoria é a possibilidade de deriva, de mudança, de ruptura. Só existe autor porque o sujeito se coloca numa condição de autoria, quando assume e ocupa um lugar em relação ao que diz. A autoria provém da interpretação, do modo pelo qual se lança o olhar para um objeto, significando-o no âmbito social (ANJOS, 2020, p. 39). REFLITASAIBA MAISFIQUE ATENTO 11 A noção de autoria “[...] tem relação com a pro- dução do ‘novo’ sentido, e ao mesmo tempo, é a condição de maior responsabilidade do sujeito em relação ao sentido que o produz e, por essa razão, de maior unidade” (GALO, 1995, p. 29). Assim, pensar a autoria requer pensar como o sujeito materializa na língua traços de sua singularidade. Não se trata, portanto, da produção de ineditismos, mas de deslocamentos, a partir dos quais o sujeito assume uma posição. Pêcheux, ao investir numa teoria que não trabalhasse com uma língua abstrata, isolada e impermeável aos processos de significação, e um sujeito empírico, cartesiano, mas com o discurso, objeto sócio-his- tórico, permitiu que os processos de significação não fossem únicos, mas sempre outros possíveis, o que determina uma mexida na organização dos saberes pelo modo como o sujeito se relaciona com os modos de dizer. Lagazzi-Rodrigues considera que “Assumir a au- toria colocando-se na origem de seu dizer é fazer do dizer algo imaginariamente ‘seu’, com ‘começo, meio e fim’, que seja considerado original e rele- vante, que tenha clareza e unidade” (2010, p. 93). No entanto, a autora aí não toma o conceito tal como o faz Foucault, por exemplo, que o concebe enquanto origem, princípio, mas um dizer “seu” que é comungado por entre tantos sujeitos. 12 De igual maneira, Orlandi afasta-se da noção de autoria foucaultiana “[...] de modo a considerar, à diferença de Foucault, que a própria unidade do texto é efeito discursivo que deriva do princípio de autoria” (2013, p. 75), e ao considerar que “[...] a autoria é uma função do sujeito” (2013, p. 122). Partindo dessa perspectiva, o autor não se constitui como um sujeito proprietário do que diz, mas aquele que ocupa uma posição no discurso e, com (e por) isso, resgata, recupera, e ressignifica sentidos, tornando-os um pouco “seus” também, o que o permite assumir, nesse processo, um lugar de autoria na língua. A produção do novo sentido refere-se, então, à responsabilidade assumida pelo sujeito em relação a um dizer que enuncia, à singularidade que imprime a ele a partir da posição que ocupa. Para ampliar seu conhecimento em AD, principalmente no batimento entre teoria e prática, recomendamos alguns trabalhos na área que trabalham as noções de sujeito, autor e autoria: AUGUSTINI, C. L. H.; GRIGOLETTO, E. Escrita, alteridade e autoria em análise do discurso. Matraga, Rio de janeiro, v. 15, n. 22, p. 145-p.156, jan./jun. 2008 Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/matraga/ article/view/27912/19984. SAIBA MAIS 13 https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/matraga/article/view/27912/19984 https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/matraga/article/view/27912/19984 MITTMANN, S. (Org.). A autoria na disputa pelos sentidos. 1. ed. Porto Alegre: Instituto de Letras/ UFRGS, 2016. Disponível em: https://www.academia. edu/42042740/A_autoria_na_disputa_pelos_sentidos. GALLO, S. L. Novas fronteiras para a autoria. Revista Organon, v. 27, n. 53, p. 53-64, 2012. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/organon/article/view/35724. 14 https://www.academia.edu/42042740/A_autoria_na_disputa_pelos_sentidos https://www.academia.edu/42042740/A_autoria_na_disputa_pelos_sentidos https://seer.ufrgs.br/organon/article/view/35724 SUJEITO E SENTIDO Interpelado pela ideologia e pelo inconsciente, o sujeito é cindido na sua estrutura, porque, confor- me Grigoletto (2013, p. 27-28), este é “[...] consti- tuído no atravessamento das falhas da língua (a impossibilidade de tudo dizer e de dizer de outro modo) [...]”. Assim, o sujeito do discurso se vê na origem do que diz e julga dizer-se em completude pela maneira com a qual o esquecimento o afeta, provocando aí uma ilusão de protagonismo na língua. Esse movimento de não origem do dizer denuncia que a constituição do sujeito e dos sen- tidos se dá pela falha. Carvalho (2008, p. 112), nessa perspectiva, afir- ma que “algo falha, inexoravelmente, quando se considera a relação entre inconsciente e ideolo- gia” e acrescenta que talvez seja mais “[...] uma não relação, ou seja, que o inconsciente é o que descompleta e torna inconsciente o processo de interpelação ideológica dos indivíduos em sujeitos”. O inconsciente, nesse viés, ainda nas palavras de Carvalho, infecta a consciência, ou seja, mascara a ação do mecanismo ideológico no processo de constituição do sujeito e dos sentidos. Ao masca- rar a ação da ideologia, o inconsciente trabalha no sujeito a possibilidade de dizer o mesmo de outras formas, incorrendo, portanto, na falha, e é pela falha 15 que a língua faz sentido e que o indivíduo se torna sujeito. Para Orlandi (2012, p. 79), “Uma falha tem em si um nó, da ligação material entre ideologia e inconsciente [...]”. É, pois, pela falha que ocorre a movência dos sentidos, que se dá a constituição do sujeito, uma vez que esta aponta para o duplo, o que significa que o efeito que provoca desorganiza (ou desestrutura) as fileiras de sentido, possibili- tando aí a inscrição de diferentes dizeres perante um mesmo objeto, irrompendo novos sentidos. O Glossário de Termos do Discurso define que: [...] O sentido de uma palavra, expressão, proposição não existe em si mesmo, só pode ser constituído em referência às condições de produção de um determinado enunciado, uma vez que muda de acordo com a formação ideológica de quem o (re) produz, bem como de quem o interpreta. O sentido nunca é dado, ele não existe como produto acabado, resultado de uma possível transparência da língua, mas está sempre em curso, é movente e se produz dentro de uma determinação histórico-social, daí a necessidade de se falar em efeitos de sentido (2001, p. 22). Como podemos verificar, o sentido, em AD, não é algo dado, mas produzido na relação do sujeito com a língua, num determinado contexto sócio-histórico 16 e ideológico. Nesse âmbito, trabalhar com o sentido é compreender a língua em funcionamento, pela falha que lhe é constitutiva,pelo jogo que deses- tabiliza sua ordem e pelos furos que atravessam e constituem todo discurso. O sujeito é quem dá vida ao sentido ao atribui-lo do lugar que ocupa no discurso, afetado pela ide- ologia e pelo inconsciente. O sentido deriva da interpretação produzida pelo sujeito, afinal “Não há sentido que não se constitua por um gesto de interpretação” (ORLANDI, 2012, p. 157). Interpre- tação, que é definida em AD como: [...]a condição de possibilidade de um discurso, ma- terialidade ao mesmo tempo linguística e histórica, produto social que resulta de um trabalho com a linguagem no qual coincidem o histórico e o social. No âmbito discursivo, a língua é reconhecida por sua opacidade e pela forma como nela intervém a sistematicidade e o imaginário [...], aparecendo o equívoco como elemento constitutivo dela (Glossário de Termos do Discurso, 2001, p. 20). A interpretação é, assim, a condição para a pro- dução de sentido. O enunciado, no entendimento de Pêcheux (1990), oferece lugar à interpretação, daí o processo de constituição dos sentidos na língua em sua relação com a história. O sentido 17 resulta dos gestos de interpretação do sujeito a um dado objeto. Pêcheux (2002, p. 53) afirma ainda que “[...] todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tor- nar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro”, afinal um mesmo enunciado pode sig- nificar diferentemente conforme as condições de produção em que se dá e o lugar ocupado pelo sujeito que o enuncia. E essa possibilidade de derivar dos sentidos, ins- taurada na materialidade da língua, pode ser com- preendida a partir de sua historicidade da língua, na relação constitutiva entre a linguagem e história. A história que determina a língua, aqui, não se trata da história que estuda os acontecimentos históricos da humanidade, uma história linear, cronológica, mas de uma história que intervém como exterioridade, transmitida pela materialidade do texto. Nesse movimento, entendemos que a língua, para a AD, se constitui em torno de uma materialidade histórica, porque pela historicidade ser atingida é que não se pode pensar em língua perfeita, daí o mecanismo de falha. Assim, confirmamos a influ- ência da história na construção dos sentidos e do funcionamento da língua. 18 Magalhães (2013, p. 203) destaca que “[...] não há nenhuma ação do ser social, nem sobre si próprio, que não carregue a marca da historicidade”. Isso significa que a AD vai trabalhar no limiar do homem com a linguagem, a partir dos processos sócio-his- tóricos em que esta se constitui. Grigoletto vem nos reforçar que (2011, p. 80), “[...] o fazer sentido não ocorre fora da historicidade que marca a relação do homem com a linguagem”, isto é, o sentido se dá atravessado pela historicidade da língua. Nesse movimento, o caráter histórico inerente à linguagem se constitui num tripé para a produção dos sentidos. Assim, para Orlandi (2004, p. 22) “[...] os processos de produção de sentido [...] são afetados pela possibilidade de um ‘outro’ sentido sempre possível e que constitui o ‘mesmo’. Dito de outra forma: o mesmo já é produção da histo- ricidade, já é parte do efeito metafórico”. Nesse entendimento, há sempre um outro sentido que é produzido, que se estabelece a partir da relação entre língua e história. A materialidade histórica trabalha no sujeito a possibilidade da construção de sentidos outros. Daí que a autora salienta que “o mundo não é um complexo de coisas acabadas mas processos estando em constante movimento”, o que quer dizer, assim como afirma Baldini (2013, p. 194), que o homem não é uma unidade pronta, mas um 19 indivíduo que, interpelado pela história, se subjeti- va, isto é, se torna sujeito, pois, conforme o autor, “[...] a subjetividade é exatamente esse processo constante e histórico de constituir indivíduos em sujeitos” (2013, p. 194). Essa constituição do su- jeito, portanto, está atrelada ao fazer sentido na língua, nessa relação intrínseca que estabelece com a história. O sentido é da ordem da repetição, da falha, do impossível. 20 INTERTEXTUALIDADE E INTERDISCURSIVIDADE Para que possamos abordar teoricamente estas duas noções – intertextualidade e interdiscursivi- dade –, vamos, primeiramente, compreender em que consistem as noções de texto e discurso. O texto, objeto teórico da Linguística textual, é compreendido como “um propósito comunicativo direcionado a um certo público, numa situação es- pecífica de uso dentro de uma determinada época, em uma dada cultura em que se situam os partici- pantes desta enunciação” (CAVALCANTE, 2016, p. 17). O texto, para a Linguística, serve como base para as relações discursivas serem estabelecidas. FIQUE ATENTO A Linguística Textual toma, pois, como objeto particular de investigação não mais a palavra ou a frase isolada, mas o texto, considerado a unidade básica de manifes- tação da linguagem, visto que o homem se comunica por meio de textos e que existem diversos fenômenos linguísticos que só podem ser explicados no interior do texto. O texto é muito mais que a simples soma das frases (e palavras) que o compõem: a diferença entre frase e texto não é meramente de ordem quantitativa; é sim, de ordem qualitativa (KOCH, 2004, p. 11). REFLITASAIBA MAISFIQUE ATENTO 21 O discurso, objeto de estudo da AD, é compreendido como “[...] palavra em movimento [...]”, (ORLANDI, 2013, p. 15), “[...] um processo em curso” (ORLAN- DI, 2013, p. 71), sendo esta uma expressão muito comum utilizada para defini-lo: “efeito de sentido entre locutores” (ORLANDI, 1986, p. 115), conside- rando aí as possibilidades de deriva, os distintos gestos de interpretação, a movência do sentido, o movimento da língua, as posições ideológicas que os sujeitos ocupam, a historicidade a exterioridade pelas quais todo discurso é afetado. Importante destacar que “discurso” e “texto” não são sinônimos, como reforça o Glossário de Ter- mos do Discurso: Discurso é o objeto teórico da AD (objeto históri- co-ideológico), que se produz socialmente através de sua materialidade específica (a língua); prática social cuja regularidade só pode ser apreendida a partir da análise dos processos de sua produção, não dos seus produtos. O discurso é dispersão de textos e a possibilidade de entender o discurso como prática deriva da própria concepção de linguagem marcada pelo conceito de social e histórico com a qual a AD trabalha. É importante ressaltar que essa noção de discurso nada tem a ver com a noção de de parole/fala referida por Saussure (2001, p. 14). 22 Como podemos observar a partir das definições apresentadas e com base no que nos alerta Orlandi (2013), ao dizer que o discurso não é sinônimo de texto, podemos depreender, mobilizando as noções que subsidiam esta seção – intertextualidade e interdiscursividade –, que, enquanto a primeira se refere à relação que se dá entre textos, a segunda diz respeito à relação existente entre discursos. Nesse sentido, quando um texto cita o outro, nós estamos diante de um processo de intertextua- lidade. Um exemplo de intertexto é a paráfrase, que consiste num retorno aos mesmos espaços de dizer, ou seja, nela o sujeito mantém o sentido considerado “original” quando de sua leitura. Assim, por exemplo, ao contar uma história presente num livro, o sujeito reproduz, repete os mesmos termos, mobiliza os mesmos sentidos ali presentes. Trata- -se, portanto, de um processo de intertextualidade. Na interdiscursividade, considerando que o discurso “não se fecha”, há espaço para outros domínios de sentido. O interdiscurso dissimula a determinação do sujeito – que tem a ilusão de estar na origem do sentido. No entanto, um discurso nunca é novo, ele é transformado pelos sujeitos, em diferentes situações, retomando já-ditos. Pêcheux ([1983] 1997, p. 314) afirma que “A noção de interdiscurso é introduzida para designar o ‘exterior específico’23 de uma FD enquanto este irrompe nesta FD para construí-la em lugar de evidência discursiva”. Nesse entendimento, os processos interdiscursivos ocorrem por meio do atravessamento de um ou de vários discursos em outro, de sentidos que vêm à tona por já estarem materializados na língua. O dizer do sujeito, assim, já é afetado por discursos outros aos quais se relaciona, que são retomados, repetidos, reformulados, ressignificados. Para diferenciar intertextualidade de interdiscursi- vidade, é importante, então, lembrar que a primeira se refere à presença de outros textos dentro de um mesmo texto, enquanto a segunda toma o texto em sua materialidade histórica, buscando compre- ender como produz sentido, como significa, sendo necessário apreendê-lo na relação entre língua e história, para se chegar ao nível do discurso. 24 MEMÓRIA DISCURSIVA E OS DOMÍNIOS DO CAMPO DISCURSIVO Antes de darmos início à reflexão sobre a memó- ria discursiva em AD, é importante explicitar que esta não se trata de uma memória cronológica ou cognitiva, que conduz à lembrança/recordação de acontecimentos do passado. No trabalho com o sentido, a noção de memória discursiva é fundamental, uma vez que é por meio dela que o sujeito recupera, reformula e ressignifica dizeres. A memória discursiva é conceituada por Pêcheux ([1975] 2014, p. 149) como “algo [que] fala antes, em outro lugar, independentemente”, ou seja, trata-se do meio pelo qual o sujeito aciona os saberes/sentidos presentes no interdiscurso e os materializa na língua. FIQUE ATENTO Memória discursiva são as possibilidades de dizeres que se atualizam no momento da enunciação, como efeito de um esquecimento correspondente a um processo de deslocamento da memória como virtualidade de signifi- cações. A memória discursiva faz parte de um processo histórico resultante de uma disputa de interpretações REFLITASAIBA MAISFIQUE ATENTO 25 para os acontecimentos presentes ou já ocorridos (MA- RIANI, 1996). Courtine e Haroche (1994) afirmam que a linguagem é o tecido da memória. Há uma memória inerente à linguagem, e os processos discursivos são responsáveis por fazer emergir o que, em uma memória coletiva, é característico de um determinado processo histórico. Orlandi (1993) diz que o sujeito toma como suas as palavras de uma voz anônima que se produz no interdiscurso, apropriando-se da memória que se manifestará de diferentes formas em discursos distintos (Glossário de Termos do Discurso, 2001, p. 20). Compreendendo que os sentidos são produzidos na relação língua-história, podemos depreender que os sentidos chegam ao sujeito por intermédio da memória discursiva, que dá acesso, nesse caso, ao interdiscurso. Nesse processo, o sujeito retoma já-ditos e os ressignifica no fio do discurso, em outras condições históricas de produção. Indursky (2011, p. 86-87) reflete que, [...] se a memória discursiva se refere aos enunciados que se inscrevem em uma FD, isto significa que ela diz respeito não a todos os sentidos, como é o caso do interdiscurso, mas aos sentidos autorizados pela Forma-sujeito no âmbito de uma formação discursiva. 26 Esse é um ponto importante porque a memória discursiva não é sinônimo do interdiscurso, embora ambos estejam estreitamente ligados. A memória discursiva é o que retém do interdiscurso alguns sentidos: aqueles autorizados pela Forma-sujeito no interior de uma FD. Isso representa dizer que é pela forma-sujeito que o sujeito se identifica com os saberes de uma FD – presente no interdiscurso –, os quais acessa via memória. De maneira que possamos compreender melhor como se dá esse processo, elaboramos um exem- plo abaixo contemplando as noções teóricas aqui discutidas: Figura 1: Acesso ao Sentido Via Memória FD FD FD FD FD FD FD FD FD FD FD FDFD FD FD FD Interdiscurso MD FS Ideologia Fonte: Elaboração Própria. Conforme podemos observar, o interdiscurso “[...] constitui-se um complexo de formações discursivas” (INDURSKY, 2011, p. 86), e o sujeito, ao enunciar, se reveste de uma forma histórica, a forma-sujeito, 27 que é atravessada pela ideologia, e a partir dela tem acesso os sentidos presentes numa FD por ação da memória. Assim, de maneira prática, se formos materializar essa discussão trazendo como exemplo a guerra na Ucrânia (2022), sabemos que há sentidos de ordens distintas em jogo: há russos contra as de- cisões de Vladimir Putin (presidente da Rússia), há russos a favor delas; há ucranianos a favor das decisões de Volodymyr Zelensky (presidente da Ucrânia) e há ucranianos contra as decisões dele, e há o resto do mundo que se posiciona de uma maneira ou de outra. Nessa seara, há um rol de FDs povoando a zona do interdiscurso. A maioria dos brasileiros, pelo que têm assistido na mídia, é contra a violência instaurada por Putin na Ucrânia, ao massacre, à tragédia, à destruição de todo um país. Esse posi- cionamento do sujeito ocorre por sua identificação a determinados saberes no interior de uma FD – paz, amor, vida, Deus etc. –, que vão fazê-lo ser contra a insurgência da guerra. O sujeito se posiciona assim por efeito da ideologia, que o atravessa e o faz se filiar a um conjunto de sentidos (FD) e não outros, aos quais se vincula por meio da memória discursiva. 28 Há também uma parcela de brasileiros que não necessariamente é a favor da guerra, mas ao posi- cionamento assumido pela Rússia de “se defender” da entrada da Ucrânia na OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), aliança liderada pelos Estados Unidos, criada em 1949, durante a Guerra Fria, com vistas a fazer frente à União Soviética. Tal posicionamento os inscreve em outra FD, por acessarem no interdiscurso, via memória, pela forma-sujeito, sentidos que percorrem a ameaça imposta pelos EUA à Rússia com a adesão da Ucrânia à OTAN. Dando continuidade à essa discussão, para Indur- sky (2011, p. 87), ainda “[...] a memória discursiva também diz respeito aos sentidos que devem ser refutados. Ou seja: ao ser refutado um sentido, ele o é também a partir da memória discursiva que aponta para o que não pode ser dito na referida FD”. Pensando na materialidade que estamos discutindo aqui, é possível dizer que a memória discursiva “repele” aquilo que não deve integrar a FD que o sujeito se filia: no primeiro posicionamen- to que apresentamos, os sentidos refutados são guerra, morte, dor, perda, destruição, bombardeio, ódio etc.; no segundo: a hegemonia, o domínio e o poder norte-americano, o fim do socialismo russo, a expansão da Otan etc. 29 Frente a isso, podemos perceber que, diante dos interesses que estão em jogo nesse conflito armado, há distintos posicionamentos sendo assumidos pelos sujeitos, daí sua filiação a uma ou a outra FD, a partir dos sentidos que são autorizados pela forma-sujeito e, então, “selecionados” (e não, nesse caso, refutados) pela memória discursiva. Indursky (2011, p. 87) vai nos dizer que “[...] a me- mória discursiva é regionalizada, circunscrita ao que pode ser dito em uma FD e, por essa razão, é esburacada, lacunar”, pois a FD também o é, dada sua porosidade: “[...] o fechamento das FDs não é rígido e suas fronteiras são porosas, permitindo migração de saberes”. Isso, portanto, é o que faz com que o sujeito, pela forma-sujeito, assuma um posicionamento que pode vir a ser outro mais adiante. Nessa instância, podemos pensar que a memória discursiva rege tanto o já-dito, numa retomada do sujeito ao mesmo, quanto aponta para outros sentidos, que passam a ser autorizados ideologica- mente a integrá-la. A esse respeito, no limiar entre o mesmo e o diferente, trabalharemos na seção a seguir mobilizando as noções de paráfrase e polissemia. 30 SAIBA MAIS Para ampliar seus conhecimentos em torno da noção de memória discursiva, leia o texto “A memória na cena do discurso”, de Freda Indursky: INDURSKY, F. A memória na cena do discurso. In: IN- DURSKY, F.; LEANDRO-FERREIRA, M. C.;MITTMANN, S. Memória e história na/da Análise do discurso. Campinas. SP: Mercados das Letras, 2011. p. 67-90. SAIBA MAIS 31 PARÁFRASE E POLISSEMIA: PRINCÍPIOS DE ALTERIDADE A paráfrase e a polissemia são dois processos que trabalham o sentido na língua e muito debatidos na AD. Para que possamos compreendê-los melhor, vamos às suas definições no campo discursivo: y Paráfrase Processo de efeitos de sentido que se produz no interdiscurso, retorno ao já-dito na produção de um discurso que, pela legitimação deste dizer, possibi- lita sua previsibilidade e a manutenção no dizer de algo que é do espaço da memória [...]. A paráfrase é responsável pela produtividade na língua, pois, ao proferir um discurso, o sujeito recupera um dizer que já está estabelecido e o reformula, abrindo espaço para o novo. Essa tensão entre a retomada do mesmo e a possibilidade do diferente desfaz a dissociação entre paráfrase e polissemia (RADDE, 2020, p. 225). y Polissemia Deslocamento, ruptura, emergência do diferente e da multiplicidade de sentidos no discurso. Processo de linguagem que garante a criatividade na língua pela 32 intervenção do diferente no processo de produção da linguagem, permitindo o deslocamento das regras e fazendo resultar em movimentos que afetam o sujeito e os sentidos na sua relação com a história e a língua (ORLANDI, 1999). Essa possibilidade do novo criada pela polissemia é a própria razão de existência da linguagem, já que a necessidade do dizer é fruto da multiplicidade dos sentidos. São os processos polissêmicos que garantem que um mesmo objeto simbólico passe por diferentes processos de ressignificação (Glossário de Termos do Discurso, 2001, p. 20-21). A partir dessas definições, podemos perceber que, enquanto a paráfrase está para a produtividade na língua, a polissemia está para a criatividade. Mas o que isso significa? Para fazermos essa distinção, podemos pensar que a paráfrase consiste na repro- dução do que Pêcheux ([1975] 2014) compreende como “matriz de sentido”, ou seja, há um retorno aos mesmos espaços de dizer; enquanto na po- lissemia não ocorre esse retorno, pois o sentido fura com o previsível, se desloca. De maneira mais detalhada, Orlandi nos explica que a paráfrase consiste na reiteração do mesmo, enquanto a polissemia refere-se à produção da dife- rença: no mesmo, “apesar da variedade da situação e dos locutores, há um retorno ao mesmo espaço 33 dizível (Paráfrase)”; e no diferente, “nas mesmas condições de produção imediatas (locutores e situação), há no entanto um deslocamento, um deslizamento de sentidos (Polissemia)” (ORLANDI, 1998, p. 15). De maneira que possamos compreender melhor esses processos, analisemos os enunciados da tabela a seguir: Tabela 1: paráfrase x polissemia A guerra é cruel. A guerra é poder. A guerra é desumana. A guerra é hedionda. A guerra é atroz. A guerra é impiedosa. Fonte: Elaboração Própria. Como podemos observar na tabela 1, há uma se- quência de enunciados, na primeira coluna, que perfazem um retorno aos mesmos espaços de dizer ao caracterizar uma guerra: cruel, desumana, hedionda, atroz, impiedosa, o que caracteriza, nesse caso, as relações de paráfrase, uma vez que “Os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória” (ORLANDI, 2013, p. 36), por isso as diferentes formulações em torno de um mesmo enunciado. 34 Diferentemente, na segunda coluna, temos aí uma quebra na rota dos sentidos que vinham sendo mobilizados em torno da guerra e, portanto, um movimento polissêmico da língua, pois ocorre um deslocamento em relação aos processos de significação, afinal, conforme nos explica Orlandi (2013, p. 38), “A polissemia é justamente a simul- taneidade de movimentos distintos de sentido no mesmo objeto simbólico”. Buscando, então, representar visualmente os mo- vimentos parafrásticos e polissêmicos na língua, trazemos as figuras 2 e 3 a seguir: Figura 2: Paráfrase Cruel Desumana Hedionda Fonte: Elaboração Própria. Nessa imagem, como podemos perceber, os sen- tidos perfazem um mesmo caminho, uma mesma rota de significação, o que os torna estáveis – or- dem da estabilização –, por isso esse processo é caracterizado como paráfrase. De outro modo, buscamos representar a polissemia da seguinte maneira: 35 Figura 3: Polissemia Cruel Poder Fonte: Elaboração Própria. Conforme podemos visualizar na figura 3, com a caracterização da guerra como poder ocorre a irrupção de um sentido diferente daquele que vi- nha sendo mobilizado, apontando, portanto, para outra direção. Isso, porque o processo polissêmico implica a “[...] ruptura do processo de produção da linguagem, pelo deslocamento das regras, fazendo intervir o diferente, produzindo movimentos que afetam os sujeitos e os sentidos na sua relação com a história e com a língua” (ORLANDI, 2013, p. 37). Com isso, não queremos dizer que a paráfrase não movimenta a cadeia de significação, afinal, ao recu- perar um dizer do interdiscurso e o reformulá-lo, o sujeito é instado a um novo sentido. Na polissemia, esse processo se mostra mais aparente, pois há ruptura dos processos de significação, abertura esta proporcionada pelo equívoco da língua: Equívoco é a marca de resistência que afeta a regularidade do sistema da língua, este conceito 36 surge da forma como a língua é concebida na AD (enquanto materialidade do discurso, sistema não homogêneo e aberto). Algumas de suas ma- nifestações são as falhas, lapsos, deslizamentos, mal-entendidos, ambiguidades, que fazem parte da língua e representam uma marca de resistência e uma diferenciação em relação ao sistema. Dizemos, com Pêcheux (1990), que todo o enunciado pode sempre tornar-se outro, uma vez que seus sentidos podem ser muitos, mas não qualquer um (Glossário de Termos do Discurso, 2001, p. 14-15). A noção de equívoco, em AD, nos permite compre- ender como ocorre a ruptura com a regularidade da língua, com os sentidos que retomam já-ditos, pois este marca a resistência da língua no processo discursivo. Bressan (2020, p. 128) afirma, nessa perspectiva, que “O atravessamento do equívoco no interior da suposta homogeneidade que ca- racteriza os espaços de formulação logicamente estabilizados promove a ruptura com o efeito de transparência”, daí que os enunciados podem sempre vir a serem outros. 37 SAIBA MAIS Para compreender melhor as noções de paráfrase e po- lissemia, leia esses verbetes no livro Glossário de termos do discurso e assista também ao vídeo indicado abaixo: RADDE, Augusto. Paráfrase x Polissemia. In: LEANDRO- -FERREIRA, M. C. Glossário de termos do discurso. 1. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2020. p. 225-230. Vídeo 1 – Paráfrase e Polissemia - Intertexto: Discurso e Linguagem Link de acesso: https://www.youtube.com/ watch?v=nJ7CtMA4O3k SAIBA MAIS 38 https://www.youtube.com/watch?v=nJ7CtMA4O3k https://www.youtube.com/watch?v=nJ7CtMA4O3k CONSIDERAÇÕES FINAIS Caro estudante, ao longo deste e-book buscamos apresentar uma série de noções teóricas que in- tegram o quadro epistemológico da AD francesa. Apresentamos, inicialmente, a noção de sujeito, que, como estudamos, trata-se daquele apreendido na relação que tece com a língua e com a história. Isso significa que o sujeito resulta de uma interpelação, ao estar duplamente assujeitado pelo inconsciente e pela ideologia. O sujeito, assim, embora se considere na origem daquilo que diz, retoma já-ditos, os ressignifica, produzindo novas discursividades, daí seu duplo afetamento: que é da instância do inconsciente, em que o sujeito não toma consciência de que a ideologia o afeta e, portanto, considera o que diz totalmente seu; e pelo efeito da ideologia, quando o sujeito, entre tantos sentidos possíveis, “esque- ce” outras possibilidades de dizer para “eleger” uma maneira possível. Afetado duplamente pelo mecanismo ideológico e do inconsciente, o sujeitoassume um posicionamento, conforme discutimos, revestido da forma-sujeito, forma pela qual se identifica a uma FD. As noções de sujeito e autor, em AD, são muito próximas, afinal, para ser autor, é preciso, em pri- meiro lugar, que o indivíduo se constitua sujeito – e 39 foi sobre essas noções que nos debruçamos na segunda seção deste e-book. Verificamos, assim, que o autor é aquele que “[...] assume a função social de organizar e assinar uma determinada produção [...]” (ANJOS, 2020, p. 45), responsabili- zando-se por aquilo que diz. Por meio da autoria, nos constituímos sujeito no processo discursivo. A autoria consiste, assim, numa posição que é assumida pelo sujeito, como autor, tendo, portanto, relação direta com as noções de intertextualidade e interdiscursividade, apresentadas na terceira seção. Isso porque no intertexto, ou paráfrase, também ocorre autoria, visto que o sujeito, ao tomar a palavra, mesmo que retorne aos mesmos espaços dizíveis, pelo mecanismo da repetição, vai dizer de outra forma, marcando sua singularidade no texto. A intertextualidade marca, na língua, a referência a outros textos. Na interdiscursividade, o sujeito cruza discursos, realiza um diálogo entre ditos e não-ditos, retoma discursividades, assume novos dizeres. O discurso do sujeito é afetado por outros discursos, pelos sentidos que o constituem. Ele filtra, pela memória discursiva, saberes que o filiam a determinadas FDs entre outras presentes na zona do interdiscurso. A noção de memória discursiva integrou nossa discussão para que pudéssemos problematizar 40 seu funcionamento no discurso, a partir do modo pelo qual o sujeito, por sua forma histórica, retém do interdiscurso determinados saberes, recortan- do-os via memória e, por consequência, filiando-se às FDs. Exemplificamos esse processo trazendo à baila a guerra na Ucrânia, de modo a representar as filiações discursivas do sujeito e o modo como se relaciona com o sentido no interdiscurso ao tomar uma posição, que se dá pela ação da me- mória discursiva. Por fim, a partir do acesso do sujeito ao interdiscur- so, sua relação com o sentido pode se dar de duas maneiras: paráfrase e polissemia. Na paráfrase, o sujeito acessa os saberes e os reproduz, retornando ao mesmo, perfazendo a estabilização do sentido. Na polissemia, por sua vez, o sujeito rompe com a regularidade da língua e aponta para o diferente, causando ruptura, deslocamento. Foi possível per- cebermos de maneira mais clara como se dá esse processo em análise às imagens que trouxemos: em que uma aponta para uma mesma direção de sentido, e a outra, para direções distintas. Esperamos que você tenha apreciado a leitura e desejamos um longo caminho de descobertas e aprendizado na teoria do discurso pecheutiana! 41 Referências Bibliográficas & Consultadas ALTHUSSER, L. Observação sobre uma categoria: “Processo sem sujeito nem fim(s)”. In: ALTHUSSER, L. Posições. Rio de Janeiro: Graal, 1978. ANJOS, C. B. dos. Autor/autoria. In: LEANDRO- FERREIRA, M. C. (Org.). Glossário de Termos do Discurso. Campinas: Pontes, 2020, v. 1. p. 39-46. BALDINI, L. J. S. Sujeito e subjetividade: psicanálise e análise do discurso. 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