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323 © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA José Carlos Pachón Mateos Juán Carlos Pachón Mateos Remy Nelson Albornoz Enrique Indalecio Pachón Mateos Marca-passo no Tratamento da Insuficiência Cardíaca14 INTRODUÇÃO Com o avanço no tratamento das cardiopatias e conseqüente aumen- to da longevidade, a insuficiência cardíaca vem duplicando sua prevalên- cia a cada década. A OMS estima que existam atualmente cerca de 90 mi- lhões de casos. Nos Estados Unidos, ocorrem aproximadamente 550.000, e no Brasil, cerca de 250.000 casos novos por ano. Cerca de 35% dos ca- sos podem ser beneficiados pela correção de um distúrbio elétrico asso- ciado tal como bradicardia ou bloqueio intraventricular. CONTRIBUIÇÃO DO MARCA-PASSO NO TRATAMENTO DA INSUFICIÊNCIA CARDÍACA Nesta condição o marca-passo cardíaco pode contribuir, associado ao tratamento clínico, corrigindo a freqüência cardíaca (bradi e taquiarrit- mias) e/ou corrigindo o sincronismo entre as diversas câmaras do cora- ção (interatrial, atrioventricular e ventricular). Correção da Freqüência Cardíaca Bradiarritmias O objetivo original do marca-passo é corrigir as bradiarritmias. Neste sentido, considerando que o débito cardíaco é o produto da freqüência 324 © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA cardíaca pelo volume sistólico, conclui-se que seu papel é decisivo e fun- damental na manutenção do débito cardíaco. Nos casos em que a insufi- ciência cardíaca é induzida ou agravada por bradicardia a indicação de marca-passo torna-se essencial para o tratamento. Resposta de Freqüência Além de corrigir a freqüência cardíaca em repouso, os marca-pas- sos atuais têm importante papel no ajuste da freqüência cardíaca, con- forme as necessidades metabólicas do paciente. Isto é obtido basica- mente com os marca-passos seqüenciais fisiológicos ou através de sis- temas com biossensores. Os marca-passos fisiológicos são atrioventri- culares seqüenciais capazes de seguir a freqüência sinusal. O ajuste da freqüência cardíaca neste caso segue o padrão natural. Quando não se pode utilizar a função sinusal (incompetência cronotrópica ou fibrila- ção atrial permanente), é necessária a utilização de marca-passos com biossensores — “marca-passos responsivos”. Estes aparelhos são dota- dos de biossensores mecânicos (cristal piezoelétrico, acelerômetro), respiratórios ou de contratilidade cardíaca. Nestes casos o biossensor detecta uma variável não metabólica (movimento corporal) ou metabó- lica (respiração, inotropismo, etc.) — proporcional ao esforço físico e ao consumo de oxigênio —, de forma que a freqüência de estimulação pode ser aumentada e reduzida conforme as necessidades metabólicas do paciente. Estes sistemas são importantes no ajuste hemodinâmico do portador de insuficiência cardíaca pelo fato de prevenirem o aumento excessivo da pré-carga em decorrência de uma bradicardia absoluta ou relativa (Fig. 14.1). Taquiarritmias Ablação do Nó AV Eventualmente, a insuficiência cardíaca pode ser provocada ou poten- cializada por freqüência cardíaca anormalmente e permanentemente alta. Esta condição pode levar a uma dilatação progressiva das câmaras cardía- cas conhecida como taquicardiomiopatia. É particularmente freqüente na fibrilação atrial crônica com freqüência alta que não responde a tratamen- to clínico. Nesta situação a ablação do nó atrioventricular associada ao implante de um marca-passo cardíaco tem obtido excelentes resultados clínicos. Diversos estudos têm mostrado que estes pacientes apresentam significativa melhora na qualidade de vida e sobrevida semelhante à da população normal de mesma faixa etária. 325 © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA Prevenção de Taquiarritmias A prevenção de arritmias — notadamente a fibrilação atrial — é im- portante no tratamento da insuficiência cardíaca por melhorar o rendi- mento ventricular e preservar a contribuição atrial. Recentemente, diver- sos trabalhos3-6 têm demonstrado que é possível prevenir episódios de fi- brilação atrial com diversos protocolos automáticos de estimulação inclu- ídos em marca-passos definitivos. Estes sistemas detectam as extra-sístoles deflagradoras e aumentam a freqüência de estimulação de forma a encur- tar o ciclo cardíaco e reduzir a possibilidade de aparecimento de outras taquiarritmias (overpace ou overdrive). Dessincronização e Ressincronização das Câmaras Cardíacas Sempre que existe um retardo anormal na ativação do coração, o ren- dimento cardíaco é comprometido. Estes retardos ou bloqueios podem ocorrer em três níveis: atrial, atrioventricular e ventricular (Fig. 14.2). Os marca-passos modernos têm recursos para corrigir os bloqueios nestes três níveis contribuindo no tratamento da insuficiência cardíaca independente de seu efeito na freqüência cardíaca. Os primeiros marca-passos concebi- dos para ressincronizar as câmaras cardíacas foram os atrioventriculares se- qüenciais, que utilizam dois eletrodos. Recentemente surgiram os sistemas de estimulação multissítio (atrial e ventricular) que utilizam três eletrodos para sincronizar além dos territórios AV os territórios atrial ou ventricular. Fig. 14.1 — Esquema comparando a resposta de freqüência cardíaca no indivíduo normal, no portador de marca-passo sem resposta de freqüência e no portador de marca-passo com biossensor. 326 © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA Ressincronização Atrioventricular A estimulação ventricular isolada, sem sincronismo com a atividade atrial, pode provocar sintomas de palpitações, tonturas, intolerância aos esforços, dispnéia, hipotensão arterial e piora dos sintomas de insuficiên- cia cardíaca. Este quadro é conhecido como “síndrome do marca-passo”. Esta condição, ocasionada pela falta do sincronismo AV fisiológico, pode ocorrer na ausência ou na presença de condução retrógrada (ventricu- loatrial). No primeiro caso existe dissociação completa das atividades ventricular e atrial (ver Cap. 14). No segundo caso verifica-se uma onda P retrógrada após cada QRS estimulado em ventrículo (ver Cap. 14) in- vertendo o padrão fisiológico da mecânica atrioventricular. Nestas con- dições os átrios se contraem em regime de alta pressão, com as valvas AV fechadas favorecendo o refluxo venoso pulmonar e sistêmico, a fibrilação atrial e o tromboembolismo. A condução retrógrada pode ocorrer pela via normal de condução AV, por feixes anômalos ocultos ou pela presença de via beta (via rápida) de uma dupla via nodal. A preven- Fig. 14.2 — Esquema representativo das dessincronizações atrioventricular (AV), interatrial (AA) e interventricular (VV). A primeira predispõe à “síndrome do marca-passo”, a segunda favorece o surgimento de fibrilação atrial, e a terceira, quando associada a cardiomiopatia dilatada, predispõe ao surgimento da “síndrome ventricular do marca-passo”14. Tanto a “síndrome do marca-passo” como a “síndrome ventricular do marca-passo” podem provocar ou agravar a insuficiência cardíaca. 327 © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA ção e o tratamento desta condição são obtidos pelo uso dos marca-pas- sos atriais (na ausência de BAV) ou seqüenciais atrioventriculares (na presença de BAV), também chamados de marca-passos fisiológicos. Es- tes marca-passos, além de manter uma freqüência cardíaca mínima pro- gramada, garantem o sincronismo atrioventricular, ou seja, relação AV 1:1 com intervalo AV normal, em repouso e durante o esforço. O mar- ca-passo unicamente ventricular atualmente é indicado como exceção nos casos de fibrilação atrial crônica ou quando é impossível o acesso atrial. A importância do sincronismo AV no tratamento da insuficiência car- díaca tem sido amplamente demonstrada. Na doença do nó sinusal, o es- tudo PASE (“Pacemaker Selection Elderly Trial”), comparando os marca- passos AV fisiológicos com os marca-passos ventriculares, mostrou que os primeiros reduzem significativamentea incidência de insuficiência car- díaca, de internações hospitalares, de mortalidade, de evolução para fibri- lação atrial e de acidentes vasculares cerebrais. Respeitar o sincronismo AV não significa somente manter a relação AV em 1:1. É necessário o ajuste correto do intervalo AV. Um intervalo AV muito curto (pré-excitação) é prejudicial pela tendência de sobreposição entre as contrações atrial e ventricular. Por outro lado, um intervalo AV muito longo também é indesejável pelo surgimento de refluxo ventrícu- lo atrial depois da contração atrial e antes da contração ventricular (in- suficiência mitral diastólica ou insuficiência mitral do intervalo AV) (Fig. 14.3). Tratamento da Insuficiência Cardíaca com Intervalo AV Curto Na insuficiência cardíaca, após a contração atrial e devido à alta pres- são diastólica final do ventrículo esquerdo, existe uma tendência ao reflu- xo mitral diastólico. Isto, além de reduzir a pré-carga aumenta a conges- tão pulmonar. Foi demonstrado, nesta situação, que a redução do intervalo AV poderia promover a contração ventricular antes do refluxo mitral diastólico, aproveitando a “pré-carga máxima efetiva”. Além de melhorar a contração obtém-se a redução do refluxo mitral melhorando a pressão de pulso. Desta forma Hochleitener e cols. propuseram o implante de mar- ca-passo AV seqüencial com intervalo AV curto para tratamento da insu- ficiência cardíaca sem bradicardia. Houve um bom resultado no grupo estudado, porém a melhora inicial não se manteve e os achados não fo- ram reproduzidos por outros autores. Desta forma, o implante de marca- passo AV convencional com intervalo AV curto não é aceito como tratamento da insuficiência cardíaca. 328 © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA Por que o MP AV + Intervalo AV Curto Não Funcionou no Tratamento da ICC? Os fundamentos teóricos desta proposição estavam bem apoiados na fisiopatologia da insuficiência cardíaca. Entretanto, Hochleitner e cols., na tentativa de reduzir o intervalo AV, estimulavam o ventrículo com um mar- ca-passo AV convencional (QRS largo). Desta forma, obtinham as vanta- gens do encurtamento do intervalo AV, porém criavam as desvantagens do alargamento do QRS pela estimulação artificial, ou seja, na tentativa de sincronizar os territórios atrioventricular dessincronizavam o território ventricular (Fig. 14.4). Certamente este foi o ponto negativo deste traba- lho, que teve o grande mérito de considerar o marca-passo como alterna- tiva no tratamento da insuficiência cardíaca sem bradicardia. Certamen- te se o trabalho tivesse sido realizado com os modernos marca-passos multissítio o resultado teria sido muito melhor e reprodutível. Ressincronização Interatrial A ativação precoce do átrio esquerdo é tão importante que foi proje- tada pela evolução natural criando e preservando o fascículo de Bachmann Fig. 14.3 — Quando a pressão diastólica final do ventrículo esquerdo é elevada, pode ocorrer regurgitação mitral no final da diástole. Neste caso, a redução do intervalo AV diminui este fenômeno melhorando o rendimento cardíaco. Auricchio A., et al. Association between preload and optimal pacing mode in CHF patients. Heart Failure Society of America 1998. Intervalo AV ótimo melhora o sincronismo AV Sinusal Estimulado Pressıo aðrtica Pressıo atrial PP PP Regurgita˘ıo mitral diastðlica Sˇstole A e V sincronizadas Pr˚-carga mÛxima efetiva Inˇcio da sˇstole do VE Pressıo de VE A V A V 329 © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA o qual ativa o átrio esquerdo precocemente no sentido craniocaudal. Quando existe bloqueio deste fascículo ocorre dificuldade na condução interatrial e retardo na contração atrial esquerda. Este fato tende a sobre- por as contrações do átrio e ventrículo esquerdos predispondo o pacien- te a disfunção hemodinâmica (Fig. 14.5, à esquerda) e a taquiarritmias atriais com agravamento da insuficiência cardíaca. O tratamento desta condição é realizado com o implante de marca-passo biatrial. Neste caso, a saída atrial é dividida para dois eletrodos. Um estimula o átrio direi- to de forma convencional e outro estimula o átrio esquerdo sendo co- locado através do seio coronário (Fig. 14.5 à direita). O resultado é uma estimulação simultânea dos dois átrios reduzindo drasticamente o tem- po de ativação atrial total. Este tipo de estimulação é utilizado mais fre- qüentemente para prevenir taquiarritmias atriais, principalmente a fibri- lação atrial. Dessincronização do Miocárdio Ventricular A estimulação ventricular com QRS largo, apesar de corrigir a freqüên- cia cardíaca, é altamente prejudicial do ponto de vista hemodinâmico. O QRS largo ocasionado por bloqueio completo do ramo esquerdo (ou de forma semelhante por marca-passo no ventrículo direito), promove dis- função sistólica, disfunção diastólica e aumento da regurgitação mitral,. Estes efeitos deletérios se devem à “dessincronização do miocárdio ven- Fig. 14.4 — Na tentativa de encurtar o intervalo AV Hochleitner e cols. promoveram o alargamento do QRS. Este efeito normalmente é bem tolerado no coração normal porém provoca ou agrava a insuficiência cardíaca na cardiomiopatia dilatada (síndrome ventricular do marca-passo14). Desta forma, o marca-passo convencional para tratamento de insuficiência cardíaca sem bradicardia não está indicado. 330 © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA tricular”. Desta forma, não fosse pela correção da freqüência, o marca-passo convencional seria definitivamente prejudicial na insuficiência cardíaca. Quando o coração insuficiente e dilatado é ativado com QRS largo, o aumento de pressão pela contração das áreas estimuladas inicialmente tende a ser atenuado pelo relaxamento das áreas que ainda não foram ati- vadas — dessincronização ventricular —, resultando em grande perda de eficiência cardíaca (Fig. 14.6). Este efeito é proporcional à duração do QRS. Trata-se de uma discinesia eletromecânica. Para evitar esta deficiên- cia, a evolução natural criou um sistema de condução intraventricular al- tamente especializado (His-Purkinje e plexos subendocárdicos de Purkinje) com grande velocidade de condução, capaz de ativar todas as células ventriculares num intervalo de tempo muito curto (QRS estreito). Isto previne a discinesia eletromecânica. Além disto, a ativação precoce de todas as células vai induzir uma contração sinérgica exatamente no momento em que a pressão intraventricular é baixa (fim da diástole) au- mentando a eficiência do deslizamento actina-miosina. Estes fatores jus- tificam a alta dp/dt e conseqüentemente a grande eficiência da contração cardíaca com QRS estreito ou seja, sincronizada. “Síndrome do QRS largo” ou “Síndrome Ventricular do Marca-passo” Quando ocorre alargamento do QRS num portador de cardiomiopa- tia dilatada, comumente ocorrem sinais e sintomas de insuficiência car- Fig. 14.5 — O bloqueio interatrial atrasa a ativação do átrio esquerdo causando uma coincidência entre as contrações atrial e ventricular esquerdas, predispondo ao surgimento de fibrilação atrial. Esta disfunção, freqüente na síndrome braditaquicardia, pode ser corrigida com implante de marca-passo biatrial cujo eletrodo de átrio esquerdo pode ser implantado pelo seio coronário através de acesso endocárdico, sem toracotomia. 331 © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA díaca ou agravamento de uma insuficiência cardíaca preexistente. A este fenômeno denominamos “Síndrome do QRS largo” quando o alargamento se deve a bloqueio de ramo esquerdo espontâneo ou “síndrome ventri- cular do marca-passo” quando se deve a estimulação artificial monofocal do ventrículo (implante de um marca-passo monofocal em ventrículo ou falha de comando de um eletrodo ventricular num sistema multissítio). Ressincronização Ventricular A estimulação simultânea de regiões miocárdicasdistantes através do implante de dois ou mais eletrodos ventriculares pode restabelecer o sinergismo contrátil perdido pelo alargamento do QRS. Esta forma de tra- tamento é conhecida como “Estimulação Ventricular Multissítio”. Estimulação Ventricular Multissítio Esta estimulação ventricular tem o objetivo de “ressincronizar” o mio- cárdio ventricular. É obtida com marca-passos especiais (“ressincroniza- Fig. 14.6 — Neste exemplo, o paciente tem fibrilação atrial com QRS estreito. O terceiro batimento marca o início de uma estimulação ventricular com marca-passo provisório numa freqüência semelhante à do ritmo espontâneo. A estimulação artificial promove importante alargamento do QRS e uma significativa perda de rendimento cardíaco evidente pela redução da onda de pulso. 332 © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA dores”) que apresentam o circuito ventricular com duas saídas conectadas a pelo menos dois eletrodos ventriculares implantados em áreas distan- tes e estimuladas ao mesmo tempo. Os eletrodos podem ser endo ou epi- cárdicos. Dependendo dos pontos estimulados a estimulação multissítio pode ser biventricular, bifocal direita ou trifocal. Estimulação Biventricular A estimulação biventricular foi o primeiro tipo de estimulação ventri- cular multissítio, sendo utilizada desde 1994. Na sua aplicação mais fre- qüente, o ventrículo direito é estimulado por um eletrodo endocárdico implantado de forma convencional e o ventrículo esquerdo é estimulado por um eletrodo posicionado no interior de uma veia cardíaca através do seio coronário (Fig. 14.7). Com esta técnica é possível obter-se estimula- ção biventricular por acesso endocárdico, sem toracotomia. A via epicárdica, entretanto, pode ser utilizada em alguns casos para posiciona- mento do eletrodo no ventrículo esquerdo. A estimulação simultânea dos dois pontos produz um QRS mais estreito que aquele do BCRE obtendo- se a “ressincronização ventricular”. O estudo MUSTIC (Multisite Stimulation in Cardiomyopathies) foi o primeiro estudo randomizado controlado para avaliar o efeito da estimu- lação biventricular em pacientes com insuficiência cardíaca e sem indi- cação convencional de marca-passo. Os resultados mostraram um aumen- to de 23% na distância média caminhada, melhora de 32% no escore de qualidade de vida, aumento de 8% na captação de oxigênio e redução de 66% no número de hospitalizações ao comparar o ventrículo sincroniza- do pelo marca-passo multissítio com o não sincronizado, durante três meses. Ao serem questionados, 86% dos pacientes preferiram o modo de estimulação biventricular, 4% preferiram não ser estimulados e 10% não mostraram nenhuma preferência. As diferenças foram todas estatistica- mente significativas. O estudo multicêntrico MIRACLE (Multicenter InSync Randomized Clinical Evaluation), comparando portadores de insuficiência cardíaca com ventrículo sincronizado (estimulado com marca-passo biventricular) com não-sincronizado (marca-passo inibido — BRE espontâneo) mostrou que houve redução de uma classe funcional (NYHA) em 69% dos casos con- tra 34% e aumento maior que 50m no teste de caminhada de seis minu- tos em 50% dos casos contra 30%, respectivamente. A duração média do QRS não foi significativamente diferente. O benefício da estimulação biventricular na função cardíaca está muito bem estabelecido. Entretanto, temos observado e a literatura tem divul- gado casos de morte súbita, principalmente em pacientes que estavam 333 © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA respondendo muito bem à estimulação biventricular. Aparentemente, a melhora clínica obtida com a ressincronização não estava sendo acom- panhada de melhora na sobrevida. Este fenômeno levou à realização de grandes estudos utilizando o “ressincronizador-desfibrilador” em porta- dores de insuficiência cardíaca grave. Um dos mais importantes é o “Contak CD Trial” que mostrou redução de 23% na mortalidade total, de 13% nas hospitalizações por insuficiência cardíaca, de 26% na pro- gressão da insuficiência cardíaca e de 9% na necessidade de intervenção em taquicardia ou fibrilação ventriculares, quando a estimulação biventricular está acionada. Recentemente foram publicados os resultados do “trial” de maior re- levância a este respeito, o estudo “COMPANION” que randomizou os por- tadores de insuficiência cardíaca em 3 braços: 1. tratamento clínico; 2. tra- tamento clínico + implante de ressincronizador e, 3. tratamento clínico + implante de ressincronizador-desfibrilador. O estudo foi interrompido prematuramente porque o braço do ressincronizador mostrou redução de 19% e o braço do ressincronizador-desfibrilador mostrou redução de 43% no índice composto de internação hospitalar-mortalidade em relação ao tratamento clínico ótimo. Os dados sugerem que a insuficiência cardíaca graus III e IV, devida a cardiomiopatia dilatada irreversível com QRS lar- go, devem ser tratados com implante de ressincronizador-desfibrilador. Fig. 14.7 — Esquema da estimulação multissítio biventricular. A técnica mais freqüentemente utilizada é a endocárdica, sendo o eletrodo de ventrículo esquerdo implantado numa veia cardíaca por cateterismo do seio coronário. Os eletrodos atrial e ventricular direitos são implantados conforme a técnica de implante endocárdico convencional. (Folder da Guidant, Inc.) À direita observa-se uma radiografia PA de um caso com marca-passo biventricular. AD, VD e VE: eletrodos atrial direito, ventricular direito e ventricular esquerdo, respectivamente. 334 © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA Estimulação Ventricular Direita Bifocal Muitas vezes existe impossibilidade ou dificuldade para a estimulação do ventrículo esquerdo (Tabela 14.1). Nessas condições, a estimulação ventricular bifocal direita tem mostrado grande utilidade clínica. Diver- samente à estimulação biventricular — que permite uma ressincroniza- ção transversal — a estimulação ventricular bifocal direita proporciona uma ressincronização longitudinal do coração (Fig. 14.8). Fundamentos da Estimulação Ventricular Bifocal Direita No coração muito dilatado com QRS largo, seja por marca-passo car- díaco ou por BCRE, a estimulação monofocal da ponta promove uma “dis- cinesia eletromecânica ponta-base”. O aumento de pressão originado pela contração apical promove o relaxamento passivo da região basal. Na estimulação ventricular bifocal direita, a ponta e a base do septo interven- tricular são ativadas ao mesmo tempo, reduzindo favoravelmente a “dis- cinesia eletromecânica” da ativação monofocal (Fig. 14.9). Deste modo, pode-se duplicar o número de células que são ativadas antes do aumento da pressão intraventricular. O resultado é QRS mais estreito e contração mais eficaz em decorrência de “ressincronização longitudinal” do miocár- dio. A grande vantagem deste método é a facilidade de acesso e a utiliza- ção de eletrodos convencionais, de baixo custo, todos colocados com a técnica endocárdica tradicional. Resultados da Estimulação Ventricular Direita Bifocal A estimulação ventricular direita bifocal foi avaliada no estudo VERBS (Ventricular Endocardial Right Bifocal Stimulation)19. Neste estudo, o mo- Tabela 14.1 Condi˘þes que Podem Impedir a Instala˘ıo ou a Manuten˘ıo de uma Estimula˘ıo Ventricular Esquerda Adequada, por Via EndocÛrdica A. Dificuldade de Acesso ou de Estimula˘ıo do Ventrˇculo Esquerdo Obstru˘ıo do seio coronÛrio ou de veia cardˇaca Aus¸ncia de veia cardˇaca ou posi˘ıo desfavorÛvel Deslocamento de eletrodo Altos limiares de estimula˘ıo Estimula˘ıo fr¸nica B. Necessidade de Sincroniza˘ıo Adicional Progressıo de IC em portador de estimula˘ıo biventricular regular 335 © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA delo de BCRE foi obtido por estimulação convencional da ponta do ventrículo direito. Os resultados mostraram que a estimulação ven- tricular bifocal direita é significativamentesuperior à estimulação convencional e à estimulação ventricular monofocal septal em com- parações intrapaciente. A comparação imediata pelo ecocardiograma mostra um aumento médio de 12% na fração de ejeção e de 19% no débito cardíaco. Ao mesmo tempo, verifica-se redução média de 32% na área de regurgitação mitral e de 12% na área do átrio esquerdo. Além da melhora significativa na função sistólica e na função mitral existe efeito altamente positivo na função diastólica. Verifica-se au- mento médio de 31% no peak-filling rate (velocidade de enchimen- to/pico) e redução média de 19% na relação E/A e de 18% no tE col. Estes parâmetros denotam melhora na capacidade hemodinâmica aspirativa do ventrículo. Do ponto de vista eletrocardiográfico, ocor- reu significativo estreitamento do QRS com redução média de 25% em sua duração. A cintilografia mostra que as áreas de ativação tar- dia existentes nas estimulações monofocais convencional e septal são claramente reduzidas pela estimulação bifocal. Além disto, o estudo de fase mostra que a estimulação bifocal promove adiantamento e en- curtamento da sístole com aumento na duração da diástole. O estu- do de qualidade de vida feito com o Minnesota Living with Heart Failure Questionnaire, tendo-se randomizado no mesmo paciente os Fig. 14.8 — À direita, representação esquemática da estimulação multissítio AV bifocal direita. Um dos grandes objetivos desta estimulação é ativar ao mesmo tempo as regiões dos fascículos ântero-superior e póstero-inferior do ramo esquerdo do feixe de His recuperando o sincronismo do miocárdio ventricular esquerdo. À direita observam-se as derivações D2 e D3 comparando-se o QRS largo da estimulação monofocal e o estreitamento subseqüente da estimulação bifocal direita. FAS: fascículo ântero-superior, RD: porção inicial do ramo direito, FPI: fascículo póstero-inferior, VD: ventrículo direito. 336 © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA modos bifocal e convencional, mostrou uma significativa redução da sin- tomatologia (30% em média) com o modo bifocal e retorno dos sintomas com a estimulação convencional. No estudo VERBS, também tem sido observado que esta nova forma de estimulação ventricular é superior do ponto de vista hemodinâmico ao bloqueio completo do ramo esquerdo nos portadores de cardiomiopatia dilatada com insuficiência cardíaca. Estimulação Ventricular Trifocal Alguns pacientes apresentam miocárdio muito dilatado, de forma que tanto a estimulação biventricular quanto a bifocal podem ser insuficien- tes. Estes casos podem ser tratados com a estimulação biventricular e bifocal ao mesmo tempo, no mesmo paciente. Esta forma de estimulação é denominada “Estimulação Ventricular Trifocal”. Apresenta a vantagem de permitir uma ressincronização “transversal” e “longitudinal” ao mes- mo tempo (Fig. 14.10). Fig. 14.9 — À esquerda, esquema da estimulação monofocal do miocárdio dilatado (BCRE ou marca-passo endocárdico convencional). O aumento de pressão decorrente da contração das áreas inicialmente estimuladas promove a distensão das áreas distantes, ativadas tardiamente (discinesia eletromecânica). À direita, esquema da estimulação bifocal direita. A ativação simultânea de áreas distantes estreita o QRS reduzindo a discinesia eletromecânica. 337 © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA Indicação da Estimulação Ventricular Multissítio A estimulação ventricular multissítio está indicada nos portadores de insuficiência cardíaca com as seguintes características: 1. Cardiomiopatia dilatada com FE < 35%; 2. Insuficiência cardíaca NYHA ≥ II estabilizada com terapia clínica ótima pelo menos nos dois últimos meses; 3. QRS largo por BCRE ou por marca-passo convencional (≥ 150ms). O procedimento não é recomendado quando existe insuficiência re- nal grave, expectativa de vida < 6 meses por outra razão, infarto do mio- cárdio há menos de três meses, angina instável, estenose aórtica ou mitral, cardiomiopatia hipertrófica ou amiloidose miocárdica. Fig. 14.10 — Representação esquemática dos quatro eletrodos sobre uma radiografia de tórax em PA de uma portador de estimulação ventricular trifocal. Neste caso foi realizada a ressincronização atrioventricular, inter e intraventricular. AD: eletrodo de átrio direito, VD base: eletrodo implantado na região septal da via de saída do ventrículo direito; VD ponta: eletrodo implantado na ponta do ventrículo direito; VE: eletrodo implantado na parede posterior do ventrículo esquerdo. 338 © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Engel TR, Bush CA, Schaal SF. Tachycardia-aggravated heart disease. Ann Intern Med Mar;80(3):384-8, 1974. 2. 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