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177 TÓPICO 2 O GÊNERO NARRATIVO UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO No Tópico 1, você viu que a literatura se constitui como um campo privilegiado para a compreensão da realidade, especialmente porque estabelece relações com diferentes campos do conhecimento. E que o gênero narrativo se revela como um gênero apropriado para tanto, na medida em que permite representar ou apresentar a complexidade da realidade pela variedade ou pluralidade que o caracteriza. Você viu ainda que o gênero épico, que origina, se não equivale ao gênero narrativo, se caracteriza pela narração, ou seja, pela enunciação de um narrador e de personagens, compreendendo a complexidade do mundo e da vida que narra, característica possibilitada justamente pela narração, como já notava Aristóteles, e que é transmitida ao gênero narrativo. A partir deste segundo tópico você irá se aprofundar no gênero narrativo, estudando suas características, seus tipos, como o romance, o conto, a novela e a crônica, e os seus elementos constitutivos, como enredo, personagem, tempo, espaço e, finalmente, narrador. Ao final deste tópico, você estará ambientado com o gênero narrativo. Vamos lá? 178 UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO 2 O GÊNERO NARRATIVO O gênero narrativo, que, etimologicamente, remete ao ato de narrar acontecimentos reais ou ficcionais, consiste em uma ramificação do gênero épico, sendo, no entanto, escrito em prosa. A prosa, genericamente entendida como oposta ao verso, como nota Marjorie Boulton (1968 apud MOISÉS, 1999, p. 418), apresenta, a partir de uma sistematização tradicional, a narrativa, distinta da demonstrativa, como um tipo que compreende a prosa de ficção. A partir de outra sistematização igualmente tradicional, a prosa se divide em cinco modalidades segundo sua função, entre as quais a narrativa, compreendida igualmente como prosa de ficção. A distinção entre prosa e poesia, contudo, apresenta problemas, como demonstra Umberto Eco, ao procurar diferenciar modelos de prosa e de poesia, concluindo que “os modelos, inclusive os de modalidade poética e de modalidade prosaica, são exatamente modelos, e se realizam depois, de maneira combinada dentro de contextos chamados poesia ou prosa de acordo com a absoluta predominância, não a exclusividade, de um dos dois” (ECO, 1989, p. 248). Da mesma maneira que a definição de prosa, a definição da narrativa impõe dificuldades, como observa Gérard Genette (2008, p. 265): Caso se aceite, por convenção, permanecer no domínio da expressão literária, definir-se-á sem dificuldade a narrativa como a representação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos, reais ou fictícios, por meio da linguagem e, mais particularmente, da linguagem escrita. Esta definição positiva (e corrente) tem o mérito da evidência e da simplicidade; seu inconveniente principal é talvez, justamente, encerrar-se e encerrar-nos na evidência, mascarar aos nossos olhos aquilo que precisamente, no ser mesmo da narrativa, constitui um problema e dificuldade, apagando de certo modo as fronteiras do seu exercício, as condições de sua existência. Definir positivamente a narrativa é acreditar, talvez perigosamente, na ideia e no sentimento de que a narrativa é evidente, de que nada é mais natural do que contar uma história ou arrumar um conjunto de ações em um mito, um conto, uma epopeia, um romance. A evolução da literatura e a consciência literária terão tido, entre outras felizes consequências, a de chamar a atenção, bem ao contrário, sobre o aspecto singular, artificial e problemático do ato narrativo. Ao contestar a naturalidade da narrativa, Genette (2008, p. 266) incita “a reconhecer os limites de certo modo negativos da narrativa, a considerar os principais jogos de oposição por meio dos quais a narrativa se define” em oposição aos demais discursos que circulam socialmente, especialmente aqueles que reivindicam uma condição de verdade natural. Genette (2008, p. 284) conclui conjeturando que “talvez a narrativa”, na “singularidade negativa” em que a reconhece, represente “uma coisa do passado”, que julga preciso considerar “antes que tenha desertado completamente nosso horizonte”. A questão de Genette recorda a questão colocada antes por Walter Benjamin (1994, p. 197) ao constatar que “a arte de narrar está em vias de extinção”. Para Benjamin (1994, p. 198), a “fonte a que recorrem todos os narradores”, ou seja, “a experiência que passa de pessoa a pessoa” está “em TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO 179 baixa”, mas Benjamin se refere a uma modalidade de narração que preserva uma relação com as “histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”, cujos tipos arcaicos são representados, conforme Benjamin (1994, p. 198-199), pelo “camponês sedentário” e pelo “marinheiro comerciante”: “A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção”, postula Benjamin (1994, p. 200-201). Sem lamentos e sem nostalgias, Benjamin (1994, p. 201) afirma que “esse processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular das forças produtivas”. Esse processo resulta no surgimento do romance que, na perspectiva de Benjamin, se diferencia das demais formas narrativas por não manter relações com a tradição oral: O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o romance da narrativa (e da epopeia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa – contos de fada, lendas e mesmo novelas – é que ele nem precede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los (BENJAMIN, 1994, p. 201). Ao preservar, portanto, a relação entre o gênero épico e o gênero narrativo, Benjamin diferencia o romance da narrativa justamente por estar vinculado ao seu suporte escrito, o livro, possibilitado pela invenção da imprensa, enquanto o gênero narrativo permaneceria associado com a tradição oral. “Devemos imaginar a transformação das formas épicas segundo ritmos comparáveis aos que presidiram à transformação da crosta terrestre no decorrer dos milênios”, compara Benjamin (1994, p. 202), reiterando que “poucas formas de comunicação humana evoluíram mais lentamente”. Assim, o romance, embora compreendido como uma forma narrativa, se distinguiria dela, segundo Benjamin, pelas particularidades das condições de produção que refletem na escrita do romance tal como se consolida com a ascensão da burguesia: “O romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade, precisou de centenas de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os elementos favoráveis a seu florescimento” (BENJAMIN, 1994, p. 202). Apesar de suas particularidades, convencionalmente, o romance constitui uma forma do gênero narrativo, e talvez a forma mais representativa da modernidade. Vejamos agora as características do gênero narrativo, os principais tipos de narrativa e os elementos constitutivos da narrativa. 180 UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO 2.1 CARACTERÍSTICAS DO GÊNERO NARRATIVO Vimos antes que as epopeias de Homero representam as “primeiras manifestações” da “forma épica de narrar”, e que “nelas situam-se tambémas fontes do gênero narrativo” (SOARES, 2007, p. 39). Vimos ainda que, ao analisar as epopeias de Homero, Aristóteles destaca a narração e a imitação do discurso dos personagens pelo narrador, bem como a possibilidade de apresentar “muitas ações realizadas simultaneamente” (ARISTÓTELES, 2008, p. 94), justamente por meio da narração. Vejamos agora como essas características permanecem no gênero narrativo, analisando, para tanto, um fragmento de um conhecido romance: Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da Lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso. – Continue, disse eu acordando. – Já acabei, murmurou ele. – São muito bonitos. Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: "Dom Casmurro, domingo vou jantar com você”. – "Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renânia; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo”. – "Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça”. Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto. FONTE: ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov. br/download/texto/ua000194.pdf>. Acesso em: 10 out. 2017. TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO 181 Como podemos perceber, temos o relato de um evento situado temporalmente e espacialmente, relatado da perspectiva de um narrador, que, neste caso, consiste em um personagem que narra em primeira pessoa, mas que apresenta, ao mesmo tempo, os discursos das personagens. Na narração, os tipos de discurso consistem na forma como o narrador apresenta os enunciados dos personagens, de forma direta, indireta ou ambas. Assim, temos: Discurso direto: apresentação direta e integral do enunciado das personagens por meio da transcrição da fala demarcada por sinais de pontuação e verbos de elocução. Exemplo: – Continue, disse eu acordando. – Já acabei, murmurou ele. – São muito bonitos. Discurso indireto: apresentação indireta do enunciado das personagens, de modo que o narrador intermedeia a fala, reproduzida em seu discurso. Exemplo: Capitu um dia notou a diferença, dizendo que os dela eram mais bonitos que os meus; eu, depois de certa hesitação, disse-lhe que eram como a pessoa que sonhava... Fez-se cor de pitanga. Discurso indireto livre: apresentação do enunciado ou do pensamento das personagens por meio de sua inserção no discurso do narrador, de modo que, como que fundindo discurso direto e indireto, parece se confundir com o discurso das personagens. Exemplo: Minha mãe foi achá-lo à beira do poço, e intimou-lhe que vivesse. Que maluquice era aquela de parecer que ia ficar desgraçado, por causa de uma gratificação menor, e perder um emprego interino? Não, senhor, devia ser homem, pai de família, imitar a mulher e a filha... O gênero narrativo se caracteriza, portanto, pelo relato, por parte de um narrador (ou mais de um), de fatos reais ou ficcionais, organizados discursivamente a partir de elementos que desempenham funções primordiais na narração, tais como enredo, personagem, tempo, espaço e narrador, os quais estudaremos adiante. Antes de estudarmos os elementos constitutivos da narrativa, vejamos os seus principais tipos. 182 UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO 2.2 OS TIPOS DE NARRATIVAS O gênero narrativo se subdivide em diferentes tipos de narrativa, entre os quais se destacam o romance, a novela, o conto e a crônica. O romance Jacques Gaillard (1997) situa o surgimento do romance na Antiguidade, em um texto que, como afirma, foi esquecido pela teoria do romance, apesar de apresentar aspectos recorrentemente associados com o romance, como o realismo cotidiano: O Satiricon de Petrônio é, pelo que se pode observar, o primeiro texto ao qual se pode dar o nome de “romance” na história da literatura. Os teóricos do gênero – Lukács, por exemplo – não levaram em conta, como tampouco os romances gregos (sem dúvida, posteriores), o que é um grave erro, posto que toda uma tendência do romance/novela do século XVII, por exemplo, se inspira abertamente nestes textos antigos. Diremos para recordar que novela picaresca implica, por definição, histórias de bandidos, e os romances antigos, latinos ou gregos, fazem desta violência um dos motores da intriga; do mesmo modo, conferem às mulheres (e à relação amorosa ou hostil, entre homens e mulheres) um papel que não existia na historiografia, mas que alcançará grande fortuna no romance do futuro. Poderíamos citar muitos outros indícios aqui (GAILLARD, 1997, p. 88). Confirmando a acusação de Gaillard, Angélica Soares reitera a compreensão dos historiadores da literatura que situam o surgimento do romance depois da Antiguidade: Não tendo existido na Antiguidade, essa forma narrativa aparece na Idade Média, com o romance de cavalaria, já como ficção sem nenhum compromisso com o relato de fatos históricos passados. No Renascimento, aparece como romance pastoril e sentimental, logo seguido pelo romance barroco, de aventuras complicadas e inverossímeis, bem diferente do romance picaresco, da mesma época. Li, no entanto, em D. Quixote, de Cervantes, que podemos localizar o nascimento da narrativa moderna que, apresentando constantes transformações, vem se impondo fortemente, desde o século XIX, quando — quase sempre publicada em folhetins — se caracterizou sobretudo pela crítica de costumes ou pela temática histórica. Estas chegam até nossos dias, juntamente com as narrativas que, nos moldes impressionistas, são calcadas no fluxo de consciência e nas análises psicológicas, ou as que optam por uma forma de realismo maravilhoso ou de ficção-ensaio (SOARES, 2007, p. 42-43). Independentemente do fato de historiadores da literatura divergirem em relação ao surgimento do romance, o romance, como nota Soares (2007, p. 42), representa: a forma narrativa que, embora sem nenhuma relação genética com a epopeia (como nos demonstram as teses mais avançadas), a ela equivale nos tempos modernos. E, ao contrário da epopeia, como forma representativa do mundo burguês, volta-se para o homem como indivíduo. TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO 183 Cândida Vilares Gancho (2002, p. 7) resume o romance como: “Uma narrativa longa, que envolve um número considerável de personagens (em relação à novela e ao conto), maior número de conflitos, tempo e espaço mais dilatados”. Ao confirmar que “este tipo de narrativa consagrou-se sobretudo no século XIX, assumindo o papel de refletir a sociedade burguesa”, Gancho (2002, p. 7) observa: “Podemos classificar o romance quanto à sua temática. Os tipos mais conhecidos são de amor, de aventura, policial, ficção científica, psicológico,pornográfico etc.”. Exemplo: Alguns exemplos de romances da literatura brasileira são: Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida; Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa, entre muitos outros. A novela Proveniente da literatura narrativa medieval, a novela designa uma “narrativa curta, sem estrutura complicada, avessa a longas descrições” (SILVA, 1976, p. 252-253). Resumidamente, a novela consiste em uma narrativa de extensão mediana, situada entre o romance e o conto e que, como o conto, “tende para a conclusão”, como afirma Boris Eikhenbaum (1978 apud GOTLIB, 2006, p. 41). Nesse sentido, Nádia Battella Gotlib (2006, p. 16) observa: “Para alguns, a novela vem do italiano novella, ou seja, pequenas estórias. Em Bocaccio, a novella era breve, não mais de dez páginas, se opondo ao romance medieval, forma mais longa e difusa, que desenvolvia uma intriga amorosa completa”. A novela, como explica Jolles (1972 apud SILVA, 1976, p. 253), caracteriza- se por “contar um fato ou um incidente impressionantes, de tal modo que se tivesse a sensação de um acontecimento real e que esse incidente nos parecesse mais importante do que as personagens que o vivem”. Conforme resume Gancho (2002, p. 7-8), a novela: é um romance mais curto, isto é, tem um número menor de personagens, conflitos e espaços, ou os tem em igual número ao romance, com a diferença de que a ação no tempo é mais veloz na novela. Difere em muito da novela de TV, a qual tem uma série de casos (intrigas) paralelos e uma infinidade de momentos de clímax. Exemplo: Um bom exemplo de novela na literatura brasileira é O alienista, de Machado de Assis. 184 UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO O conto O conto consiste em uma narrativa curta que, em geral, gira em torno de apenas um conflito, com poucos personagens. Conforme explica Cândida Vilares Gancho (2002, p. 8): É uma narrativa mais curta, que tem como característica central condensar conflito, tempo, espaço e reduzir o número de personagens. O conto é um tipo de narrativa tradicional, isto é, já adotado por muitos autores nos séculos XVI e XVII, como Cervantes e Voltaire, mas que hoje é muito apreciado por autores e leitores, ainda que tenha adquirido características diferentes, por exemplo, deixar de lado a intenção moralizante e adotar o fantástico ou o psicológico para elaborar o enredo. Ao teorizar o conto em sua situação narrativa, ao lado do romance e da novela, Nádia Battella Gotlib (2006) lembra que a necessidade de contar, que fundamenta os diferentes tipos narrativos, antecede a necessidade de sua explicação, de modo que “enumerar as fases da evolução do conto seria percorrer a nossa própria história” (GOTLIB, 2006, p. 7). Embora o início do contar estória seja impossível de se localizar e permaneça como hipótese que nos leva aos tempos remotíssimos, ainda não marcados pela tradição escrita, há fases de evolução dos modos de se contarem estórias. Para alguns, os contos egípcios – Os contos dos mágicos – são os mais antigos: devem ter aparecido por volta de 4000 anos antes de Cristo (GOTLIB, 2006, p. 7). Ao constatar uma transição no século XIV, Gotlib (2006, p. 8-9) apresenta um resumo da história do conto enquanto registro escrito: Se o conto transmitido oralmente ganhara o registro escrito, agora vai afirmando a sua categoria estética. Os contos eróticos de Bocaccio, no seu Decameron (1350), são traduzidos para tantas outras línguas e rompem com o moralismo didático: o contador procura elaboração artística sem perder, contudo, o tom da narrativa oral. E conserva o recurso das estórias de moldura: são todas unidas pelo fato de serem contadas por alguém a alguém. E os Canterbury tales (1386), de Chaucer, são contados numa estalagem por viajantes em peregrinação. Posteriormente, o século XVI mostra o Héptameron (1558), de Marguerite de Navarre. E no século XVII surgem as Novelas ejemplares (1613), de Cervantes. No fim do século surgem os registros de contos por Charles Perrault: Histoires ou contes du temps passé, com o subtítulo de “Contes de ma mère Loye”, conhecidos como Contos da mãe Gansa. Se o século XVIII exibe um La Fontaine, exímio no contar fábulas, no século XIX o conto se desenvolve estimulado pelo apego à cultura medieval, pela pesquisa do popular e do folclórico, pela acentuada expansão da imprensa, que permite a publicação dos contos nas inúmeras revistas e jornais. Este é o momento de criação do conto moderno quando, ao lado de um Grimm que registra contos e inicia o seu estudo comparado, um Edgar Allan Poe se afirma enquanto contista e teórico do conto. TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO 185 Portanto, enquanto a força do contar estórias se faz, permanecendo, necessária e vigorosa, através dos séculos, paralelamente uma outra história se monta: a que tenta explicitar a história destas estórias, problematizando a questão deste modo de narrar — um modo de narrar caracterizado, em princípio, pela própria natureza desta narrativa: a de simplesmente contar estórias. O conto se caracteriza, portanto, pela economia de estilo e de extensão, com destaque, em geral, para a conclusão. Em poucas palavras, “é uma forma breve”, resume Gotlib (2006, p. 83), que se constrói “economizando meios narrativos, mediante contração de impulsos, condensação de recursos, tensão das fibras do narrar”. Exemplo: Alguns contistas da literatura brasileira são: Rubem Fonseca, Machado de Assis, Clarice Lispector, Mário de Andrade, Dalton Trevisan, entre muitos outros. Para conhecer mais sobre contos brasileiros, sugerimos a antologia “Os cem melhores contos brasileiros do século”, organizada por Italo Moriconi. A crônica A crônica consiste em uma narrativa breve que tem por objetivo comentar algo do cotidiano, a partir da perspectiva pessoal do cronista. Segundo Gancho (2002, p. 8): “Por se tratar de um texto híbrido, nem sempre apresenta uma narrativa completa; uma crônica pode contar, comentar, descrever, analisar. De qualquer forma, as características distintivas da crônica são: texto curto, leve, que geralmente aborda temas do cotidiano”. Soares (2007, p. 64) situa a ruptura entre o sentido de crônica “no início da era cristã”, quando o termo designava “uma relação de acontecimentos organizada cronologicamente, sem nenhuma participação do cronista”, e no século XIX, quando “a crônica já apresenta um trabalho literário que a aproxima do conto e do poema, impondo-se, porém, como uma forma especial, porque não se permite classificar como aqueles”. Soares (2007, p. 64-65) explica: Ligada ao tempo (chrónos), ou melhor, ao seu tempo, a crônica o atravessa por ser um registro poético e muitas vezes irônico, através do que se capta o imaginário coletivo em suas manifestações cotidianas. Polimórfica, ela se utiliza afetivamente do diálogo, do monólogo, da alegoria, da confissão, da entrevista, do verso, da resenha, de personalidades reais, de personagens ficcionais..., afastando-se sempre da mera reprodução de fatos. E enquanto literatura, ela capta poeticamente o instante, perenizando-o. Conscientemente fragmentária (e essa é a sua força), pois não pretende captar a totalidade dos fatos, a crônica vem se impondo nos quadros da literatura brasileira, cultivada que foi por um Machado de Assis (ainda quando era conhecida como "folhetim"), Olavo Bilac e João do Rio. Sobressaem-se, entre os cronistas mais recentes, Carlos Drummond de Andrade, Eneida, Millôr Fernandes, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Sérgio Porto. 186 UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO Exemplo: Alguns cronistas da literatura brasileira são: Rubem Braga, Luis Fernando Verissimo, Nelson Rodrigues, Mário de Andrade, Fernando Sabino, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, entre muitos outros. Para conhecer mais sobre crônicas brasileiras, sugerimos a antologia “As cem melhores crônicas brasileiras”,organizada por Joaquim Ferreira dos Santos. Vejamos agora os elementos constitutivos da narrativa. 2.3 OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA NARRATIVA: ENREDO, PERSONAGEM, TEMPO, ESPAÇO E NARRADOR As narrativas, como vimos, se estruturam sobre elementos que a constituem, e que se relacionam entre si, de modo que, como observa Tzvetan Todorov (2008, p. 230), “o sentido de cada elemento da obra equivale ao conjunto de suas relações com os outros”. Estudaremos agora os elementos constitutivos da narrativa, ou seja, enredo, personagem, tempo, espaço e, finalmente, narrador. Para tanto, leiamos o conto “Desenredo”, de João Guimarães Rosa: Desenredo Do narrador a seus ouvintes: – Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro da cerveja. Tinha-o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu. Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tingida a vela e vento. Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas. Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel. Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano. TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO 187 Até que – deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se, também, que de leve a ferira, leviano modo. Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se de vê-la. Proibia-se de ser pseudopersonagem, em lance de tão vermelha e preta amplitude. Ela – longe – sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã. Ele exercitava-se a aguentar-se, nas defeituosas emoções. Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim é impossível? Azarado fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O tempo é engenhoso. Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já medicado. Vai, pois, com a amada se encontrou – ela sutil como uma colher de chá, grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por que forma fosse. Mas. Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios. Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora. De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou fugida a mulher, a desconhecido destino. Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se histórico, quase criminoso, reincidente. Triste, pois que tão calado. Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. Mas, no frágio da barca, de novo respeitado, quieto. Vá-se a camisa, que não o dela dentro. Era o seu um amor meditado, à prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se. Mais. 188 UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã. A bonança nada tem a ver com a tempestade. Crível? Sábio foi Ulisses, que começou por se fazer de louco. Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade – ideia inata. Entregou-se a remir, redimir a mulher, à conta inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e amar, a gente não se desfaz. Ele queria apenas os arquétipos, platonizava. Ela era um aroma. Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cana do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja. Demonstrando-o, amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. O que não era fácil como refritar almôndegas. Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente. O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisa, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado – plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa? Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção manifesta. Haja o absoluto amar – e qualquer causa se irrefuta. Pois, produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima, todos já acreditavam, Jó Joaquim primeiro que todos. Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento. Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram- se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida. E pôs-se a fábula em ata. FONTE: ROSA, João Guimarães. Tutameia (Terceiras Estórias). 9. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 72-75. Vejamos agora em que consiste cada um dos elementos constitutivos da narrativa. TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO 189 Enredo Você percebeu que o conto é constituído de uma sequência de ações? Tais como: a) o encontro entre Jó Joaquim e Livíria, Rivília ou Irlívia; b) o caso amoroso entre Jó Joaquim e Livíria, Rivília ou Irlívia; c) o flagra do marido de Livíria, Rivília ou Irlívia com um outro amante; d) a morte do marido; e) o casamento entre Jó Joaquim e Livíria, Rivília ou Irlívia; f) o novo flagra de uma traição de Livíria, Rivília ou Irlívia; g) a separação de Jó Joaquim e Livíria, Rivília ou Irlívia; h) o perdão de Jó Joaquim; i) a recriação do passado pelo protagonista; j) e, finalmente, a reconciliação? Você percebeu que todas essas ações são realizadas por personagens? E que as ações dos personagens são contadas por um narrador? Pois bem, o enredo consiste no resultado da ação das personagens, apresentada por meio do discurso narrativo, ou seja, do modo como o narrador organiza os acontecimentos. A essa combinação das ações Aristóteles chamou “fábula”, isto é, enredo, dividindo a ação simplesmente em princípio, meio e fim. O “enredo é a imitação da ação, entendendo aqui por enredo a estruturação dos acontecimentos”, explica Aristóteles (2008, p. 48), que divide o enredo em partes: as peripécias e os reconhecimentos, estruturados em nó e desenlace: “Entendo por nó o que vai desde o princípio até o momento imediatamente antes da mudança para a felicidade ou para a infelicidade, e por desenlace, o que vai desde o início desta mudança até o fim” (ARISTÓTELES, 2008, p. 74). Nas narrativas tradicionais, representativas do momento em que a prosa se consagra como uma forma privilegiada, frequentemente o enredo se divide em: 1) Apresentação, exposição ou situação inicial 2) Complicação 3) Clímax 4) Epílogo, desfecho ou desenlace Na apresentação ou situação inicial, o narrador apresenta os elementos da narrativa, como as personagens, o espaço e o tempo do enredo, uma determinada situação historicamente situada e caracterizada geralmente pela estabilidade,com os elementos e personagens em harmonia; na complicação, por motivação de um fato que provoca uma transformação na situação apresentada, a estabilidade ou harmonia inicial se quebra com o desencadeamento de conflitos que geram a tensão; no clímax, a complicação do enredo atinge o seu ponto culminante, que exige uma resolução; e o epílogo ou desfecho, finalmente, constitui a situação final, decorrente das transformações provenientes das ações, informando o destino das personagens. 190 UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO ATENCAO O conflito, como você pode presumir, exerce um papel fundamental na narrativa, constituindo o elemento estruturador que a move. Vejamos, portanto, como Gancho (2002, p. 11) define o conflito: “Conflito é qualquer componente da história (personagens, fatos, ambientes, ideias, emoções) que se opõe a outro, criando uma tensão que organiza os fatos da história e prende a atenção do leitor”. Vejamos agora em “Desenredo” como o narrador de Guimarães Rosa organiza o enredo: 1) A apresentação, em que o narrador apresenta a situação inicial e os elementos da narrativa, como as personagens, pode ser identificada nos parágrafos iniciais: Do narrador a seus ouvintes: - Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro da cerveja. Tinha-o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu. Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram- se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tingida a vela e vento. Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas. Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel. Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano. Observe que o narrador apresenta as personagens, Jó Joaquim, Livíria, Rivília ou Irlívia e seu marido, e a situação inicial da narrativa, ou seja, o caso entre Jó Joaquim, Livíria, Rivília ou Irlívia. Essa situação, apesar do marido valente e ciumento, caracteriza-se por certa estabilidade, garantida pela clandestinidade de seu amor: “Todo abismo é navegável a barquinhos de papel”, comenta o narrador, que antecipa, sugestivamente, uma possibilidade de transformação na situação: “Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano”. Essa possibilidade, no entanto, não se confirma, e temos, então, 2) a complicação: Até que – deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se, também, que de leve a ferira, leviano modo. TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO 191 Note que o narrador, didaticamente, revela a complicação ao afirmar: “Até que – deu-se o desmastreio”, ou seja, o contratempo. A complicação se desenvolve com o flagra da traição de Livíria, Rivília ou Irlívia com um outro amante, não Jó Joaquim, que, sabendo do ocorrido, afasta-se da amante. A complicação se estende até o clímax da narrativa, compreendendo o flagra e o consequente afastamento dos amantes, a morte do marido, que parece condizer com o “enorme milagre” de que dependiam os amantes e, finalmente, o casamento entre os amantes. 3) O clímax ocorre com o flagra de Jó Joaquim da traição de Livíria, Rivília ou Irlívia: Mas. Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios. Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora. De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou fugida a mulher, a desconhecido destino. O clímax compreende o flagra e a expulsão da esposa, que foge para um “desconhecido destino”, e “Mais”, complementa o narrador, em evidente contraste com a conjunção adversativa “Mas” que introduz o clímax: Jó Joaquim, como Ulisses, herói da epopeia homérica, que “começou por se fazer de louco”, redime a mulher e, desejando a felicidade, reinventa sua história: “Nunca tivera ela amantes!”. Operando o passado, como afirma o narrador, Jó Joaquim “criava nova, transformada realidade”, o que explica o título do conto: “desenredo”. A referência à astúcia de Ulisses igualmente se explica: Penélope, esposa de Ulisses, que esperava o marido retornar da Guerra de Troia e, contra a pressão dos pretendentes para um novo casamento, prometeu que costuraria um tapete e que, se seu marido não retornasse antes de finalizar o tapete, casaria com um pretendente. Crente no retorno do marido, Penélope, para retardar o cumprimento da promessa, costurava durante o dia e descosturava durante a noite: “desenredo”. O clímax encerra com a resolução, ou seja, a reconciliação do casal, consolidado com o retorno de Livíria, Rivília ou Irlívia: “Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento”. E, por fim, 4) o epílogo: Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida. E pôs-se a fábula em ata. Como podemos perceber, no epílogo, o narrador informa o destino das personagens ao leitor, propondo um jogo de palavras: “E pôs-se a fábula em ata”, ou seja, a “fábula”, a combinação das ações que, em Aristóteles, compõem o enredo, adquire estatuto oficial de “ata”, palavra que, designando um registro escrito, deriva etimologicamente de ação. 192 UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO Com o surgimento dos estudos da narratologia, ou seja, da teoria da narratividade, iniciada ou aprimorada pelos formalistas russos, os formalistas russos propõem a decomposição do enredo em motivos e funções narrativas, e a distinção entre dois planos, um dos acontecimentos considerados em si mesmos, outro dos acontecimentos tal como apresentados literariamente na narrativa. Nesse sentido, o formalista russo Boris Tomachevski, por exemplo, diferencia “fábula” e “trama”. A esse respeito, Tzvetan Todorov (2008, p. 221) confirma que “são os formalistas russos que primeiro isolaram estas duas noções que chamaram fábula (‘o que efetivamente ocorreu’) e assunto (‘a maneira pela qual o leitor toma conhecimento disto’)”. A “fábula” denomina o conjunto de acontecimentos ligados entre si que são comunicados no decorrer da obra, isto é, os fatos organizados e disponibilizados cronologicamente em sua ordem natural, segundo sua causalidade. A “trama” denomina, por sua vez, os acontecimentos conforme sua organização e disponibilização na narração, segundo a intenção do autor ou do narrador. Em outras palavras, a trama designa a representação particular dos acontecimentos ordenados de acordo com a construção discursiva da narração, por meio de recursos narrativos, tais como suspense, digressões, lacunas, intervalos, retrocessos, entre outros. Como explica Todorov (2008, p. 220-221): Em nível mais geral, a obra literária tem dois aspectos: ela é ao mesmo tempo uma história e um discurso. Ela é história, no sentido em que evoca uma certa realidade, acontecimentos que teriam ocorrido, personagens que, deste ponto de vista, se confundem com os da vida real. Esta mesma história poderia ter-nos sido relatada por outros meios; por um filme, por exemplo; ou poder-se-ia tê-la ouvido pela narrativa oral de uma testemunha, sem que fosse expressa em um livro. Mas a obra é, ao mesmo tempo, discurso: existe um narrador querelata a história; há diante dele um leitor que a percebe. Neste nível, não são os acontecimentos relatados que contam, mas a maneira pela qual o narrador nos fez conhecê-los. A distinção entre “fábula” e “trama” proposta por Tomachevski seria reformulada por diversos autores a partir de diversos conceitos para denominar, grosso modo, o “o que” e o “como” da narrativa: “história” e “discurso”, para Émile Benveniste e Tzvetan Todorov; “ficção” e “narração”, para Jean Ricardou; “diegese” e “narração”, para Maurice-Jean Lefebve; “história” e “narração”, para Gérard Genette. Genette (2008), no entanto, observa que, na literatura, o ato de narração produz simultaneamente uma história e uma narração, de modo que sua separação pode ser concebida apenas teoricamente. Corroborando a observação de Genette, Angélica Soares (2007, p. 44) afirma: Se, por um lado, devemos reconhecer a eficácia teórica dessas propostas, por outro, não podemos esquecer que, sendo o romance obra de ficção e, portanto, de desrealização da realidade, a diegese ou a fábula já devem ser entendidas como categorias literárias, não existindo antes da obra na forma como a deduzimos do discurso narrativo. TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO 193 Todorov (2008, p. 221) reitera que “os dois aspectos, a história e o discurso, são todos os dois igualmente literários”. Ao lado da narração, os gêneros narrativos apresentam descrições. Como confirma Genette (2008, p. 272): Toda narrativa comporta com efeito, embora intimamente misturadas e em proporções muito variáveis, de um lado representações de ações e acontecimentos, que constituem a narração propriamente dita, e de outro lado, representações de objetos e personagens, que são o fato daquilo que se denomina hoje a descrição. As descrições desempenham um papel fundamental na narrativa, especialmente nos romances realistas e naturalistas, em que a descrição exerce uma função importante. Genette (2008, p. 273) observa, a respeito da relação entre narração e descrição, que “existem gêneros narrativos, como a epopeia, o conto, a novela, o romance, em que a descrição pode ocupar um lugar muito grande, e mesmo materialmente maior, sem cessar de ser, como por vocação, um simples auxiliar da narrativa”. Nesse sentido, Genette (2008, p. 274) constata que não existem “gêneros descritivos”, e reconhece a dificuldade de imaginar “uma obra em que a narrativa se comportaria como auxiliar da descrição”. Ao analisar o estudo das relações entre o narrativo e o descritivo, ou seja, as funções da descrição na “economia geral da narrativa”, Genette (2008, p. 274) percebe duas funções distintas: uma “de ordem decorativa”, compreendida como um ornamento do discurso; outra “de ordem simultaneamente explicativa e simbólica”. A segunda função da descrição pode ser observada, afirma Genette (2008, p. 274), na tradição do gênero romanesco, especialmente realista: “os retratos físicos, as descrições de roupas e móveis tendem, em Balzac, e seus sucessores realistas, a revelar e ao mesmo tempo justificar a psicologia dos personagens, dos quais são ao mesmo tempo signo, causa e efeito”. Genette (2008, p. 275) conclui, por fim, que: É necessário observar enfim que todas as diferenças que separam descrição e narração são diferenças de conteúdo, que não têm propriamente existência semiológica: a narração liga-se a ações ou acontecimentos considerados como processos puros, e por isso mesmo acentua o aspecto temporal e dramático da narrativa; a descrição, ao contrário, uma vez que se demora sobre objetos e seres considerados em sua simultaneidade, e encara os processos eles mesmos como espetáculos, parece suspender o curso do tempo e contribui para espalhar a narrativa no espaço. Estes dois tipos de discurso podem, portanto, aparecer como exprimindo duas atitudes antiéticas diante do mundo e da existência, uma mais ativa, a outra mais contemplativa. 194 UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO Observe que Genette identifica na narração e na descrição “duas atitudes antiéticas diante do mundo e da existência”, a primeira “mais ativa”, e a segunda “mais contemplativa”. A partir de uma perspectiva semelhante, Georg Lukács (1965) estabelece, em seu ensaio “Narrar ou descrever?”, um contraste entre os dois métodos empregados na representação artística no romance moderno, procurando “saber como e por que a descrição [...] chegou a se tornar um princípio fundamental da composição”. Contrapondo a narração e a descrição, Lukács compreende os dois métodos como alternativas em que “vivemos” os acontecimentos representados, por um lado, ou “observamos” os acontecimentos representados, por outro: participar ou observar, respectivamente. NOTA Georg Lukács (1885-1971) foi um intelectual húngaro e um dos mais influentes críticos literários do século XX. Para Lukács, em “Narrar ou descrever?”, narrar e descrever correspondem a “duas posições socialmente necessárias, assumidas pelos escritores em dois sucessivos períodos do capitalismo”. Ao contrário de Scott, Balzac e Tolstoi, Flaubert e Zola escreveriam numa sociedade burguesa concretizada, em cujo seio se tornam seus observadores e críticos, simultaneamente a “escritores no sentido da divisão capitalista do trabalho”, pois “é o momento em que o livro se transforma completamente em mercadoria e o escritor em vendedor da referida mercadoria”. FONTE: Disponível em: <http://www.joseferreira.com.br/blogs/filosofia/e-books/e- book-prolegomenos-para-uma-ontologia-do-ser-social-georg-lukacs/>. Acesso em: 10 out. 2017. TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO 195 DICAS Caso queira aprofundar seus estudos em relação ao papel da descrição no romance moderno, indicamos a obra de Franco Moretti (1950). FONTE: Disponível em: <https://www.kcl.ac.uk/artshums/depts/complit/ newsrecords/2016-17/franco-moretti-seminar-series-2017.aspx>. Acesso em: 10 out. 2017. Na obra de Moretti (2009), a questão lukácsiana de saber como e por que a descrição chegou a se tornar um princípio fundamental da composição se relaciona com o estudo dos “enchimentos” na narrativa. Segundo Moretti (2009), o enchimento se firmou porque oferecia um tipo de prazer narrativo compatível com a nova regularidade da vida burguesa. O enchimento seria uma tentativa de racionalizar o romance e desencantar o universo narrativo, absorvendo um processo que se inicia nas esferas da economia e da administração. Quanto ao estilo descritivo do século XIX, Moretti afirma que se os conteúdos das diversas descrições podem ser neutros, a forma da descrição, contrariamente, persegue um projeto que nada tem de neutro e que é particularmente típico do ethos da Restauração: deter a história. Cada técnica, portanto, mantém certa independência, captura uma parcela distinta da realidade circunstante e transmite sua mensagem ideológica específica. Surge daí uma estrutura compósita, que distribui as índoles da classe dominante europeia em níveis distintos do texto, conseguindo fazer que se correspondam: ao capitalismo o plano da narrativa, com o ritmo regular do seu novo presente; ao conservadorismo político as pausas descritivas. Personagem Vimos que as ações da narrativa são realizadas por personagens. As personagens, portanto, são os agentes da ação da narrativa ficcional e, enquanto tal, constituem seres de linguagem. Conforme explica Gancho (2002, p. 14): “A personagem ou o personagem é um ser fictício que é responsável pelo desempenho do enredo; em outras palavras, é quem faz a ação. Por mais real que pareça, o personagem é sempre invenção, mesmo quando se constata que determinados personagens são baseados em pessoas reais”. 196 UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO Em virtude da relação entre personagem e ação, A. J. Greimas prefere denominar as personagens de atores. E, preocupado em definir a função das personagens na narrativa, enquanto agentes da ação que promovem as situações e transformações da narrativa, propõe um modelode seis funções que denomina actantes: sujeito-objeto, destinador-destinatário, adjuvante-oponente. Podemos assim resumir as funções das personagens a seis tipos que se combinam na narrativa: 1) Protagonista: condutor da ação, o personagem principal. 2) Antagonista: oponente, o opositor do protagonista de cuja oposição ao protagonista resulta o conflito central. 3) Objeto: fim visado pelo protagonista, representa o interesse do protagonista e do antagonista. 4) Destinador: personagem que influencia decisivamente a destinação do objeto, dirigindo a ação e a resolvendo. 5) Destinatário: beneficiado, personagem que recebe o objeto, o resultado final da ação, e que geralmente condiz com o protagonista. 6) Adjuvante: personagem auxiliar, que oferece uma contribuição a algum dos agentes na busca de seus fins. Conforme a tipologia proposta por Souriau, no conto de Guimarães Rosa, Jó Joaquim, que, como observa o narrador, “proibia-se de ser pseudopersonagem”, exerce a função de protagonista, de personagem principal, e Livíria, Rivília ou Irlívia, de objeto, por exemplo. O seu marido, por sua vez, representa o antagonista, e assim por diante. O protagonista ou o personagem principal pode ser classificado como herói ou anti-herói. Na explicação de Gancho (2002, p. 14), herói “é o protagonista com características superiores às de seu grupo”, ao passo que o anti-herói “é o protagonista que tem características iguais ou inferiores às de seu grupo, mas que por algum motivo está na posição de herói, só que sem competência para tanto”. Podemos denominar como secundárias as personagens “menos importantes na história, isto é, que têm uma participação menor ou menos frequente no enredo; podem desempenhar papel de ajudantes do protagonista ou do antagonista, de confidentes, enfim, de figurantes” (GANCHO, 2002, p. 16). A partir de outra abordagem, Foster (1969) sugere diferenciar as personagens em dois tipos designados: personagens planas ou personagens redondas. Na terminologia de Foster, temos, portanto: 1) personagens planas: personagens simples, que conservam seu comportamento uniformemente, sem surpreender o leitor com imprevisibilidades. Correspondem aos chamados “tipos” ou “caricaturas”; 2) personagens redondas: personagens profundas, complexas, que evoluem no decorrer da narrativa, com transformações e revelações graduais de sua identidade, apresentando uma caracterização elaborada e nunca definitiva. TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO 197 Nessa perspectiva, o protagonista do conto “Desenredo”, de Guimarães Rosa, se classifica como uma personagem redonda, considerando as transformações e revelações de sua identidade desde que conheceu Livíria, Rivília ou Irlívia: “Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro da cerveja. Tinha-o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém?”. O comportamento de Jó Joaquim se caracteriza pela imprevisibilidade de suas ações, como confirma o narrador em passagens como: “Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem”. Da mesma maneira que se apostrofa a si mesmo e se revela em seu ineditismo, a personagem reinventa o seu passado, conforme a profundidade e complexidade que se atribui a personagens redondas. A respeito do papel exercido pelas personagens na literatura ocidental, Todorov (2008, p. 230) afirma: “Nesta literatura, o personagem parece-nos representar um papel de primeira ordem e é a partir dele que se organizam os outros elementos da narrativa”. Nesse sentido, reconhecendo a função das personagens na organização dos elementos da narrativa que estamos estudando, Soares (2007, p. 49) observa: “Tão importante quanto caracterizar as personagens é buscar a funcionalidade dos seus caracteres”, conforme vimos acima ao definirmos os tipos de personagens segundo suas funções no enredo. Vimos que personagens planas podem corresponder a “tipos” ou “caricaturas”. Vejamos, portanto, como se definem: Tipo: “é um personagem reconhecido por características típicas, invariáveis, quer sejam elas morais, sociais, econômicas ou de qualquer outra ordem. Tipo seria o jornalista, o estudante, a dona de casa, a solteirona etc.” (GANCHO, 2002, p. 16). Exemplos de tipos são os personagens de “O pagador de promessas”, de Dias Gomes, alguns identificados por sua função: Repórter, Minha Tia, Padre Olavo, Bonitão etc. Caricatura: “é um personagem reconhecido por características fixas e ridículas. Geralmente é um personagem presente em histórias de humor” (GANCHO, 2002, p. 17). Exemplos de caricaturas são os personagens de “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida. Tempo Enquanto um fator humano importante na percepção de si mesmo e da realidade, o tempo, evidentemente, tem implicações na narrativa ficcional. Afinal, a narrativa se desenvolve no fluxo do tempo, seja o tempo da diegese ou da ficção (o contexto temporal ou epocal), seja o tempo do discurso e da leitura, que, assim como as ações representadas na narrativa, exigem tempo para se desenvolver. 198 UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO O tempo da diegese se relaciona com a duração das ações narradas, correspondendo a uma sucessão temporal apontada, na narração, por meio de indicadores temporais das ações, tais como datas, estações do ano, eventos etc. O tempo do discurso, por sua vez, corresponde ao tempo da narração propriamente dita das ações, estando condicionado a um processo de seleção por parte do narrador. Como nota Todorov (2008, p. 242): O problema da apresentação do tempo na narrativa impõe-se por causa de uma dessemelhança entre a temporalidade da história e a do discurso. O tempo do discurso é, em um certo sentido, um tempo linear, enquanto o tempo da história é pluridimensional. Na história, muitos acontecimentos podem se desenrolar ao mesmo tempo; mas o discurso deve obrigatoriamente colocá-los um em seguida ao outro; uma figura complexa encontra-se projetada sobre uma linha reta. É daí que vem a necessidade de romper a sucessão “natural” dos acontecimentos mesmo se o autor desejava segui-la mais de perto. Mas a maior parte do tempo o autor não tenta encontrar esta sucessão “natural” porque utiliza a deformação temporal para certos fins estéticos. O tempo da diegese do conto “Desenredo”, de Guimarães Rosa, por exemplo, equivale ao tempo natural das ações que, como vimos, compõem cronologicamente o enredo, desde o encontro entre Jó Joaquim e Livíria, Rivília ou Irlívia até sua reconciliação final, o que evidentemente dura mais do que o tempo do discurso, condensado pela seleção do narrador, constituindo uma anisocronia, na terminologia de Gerard Gennete. As indicações da sucessão do tempo da diegese do conto se manifestam tanto por meio dos tempos verbais quanto de expressões como “até que”, “enquanto, ora, as coisas amaduravam”, “daí, de repente”, “no decorrer e comenos”, e assim por diante. O tempo exerce um papel fundamental no conto, como demonstra o narrador ao afirmar, por exemplo, que “o tempo é engenhoso”, que “os tempos se seguem e parafraseiam- se” ou que “o tempo secou o assunto”. Como podemos perceber, a diegese comporta, geralmente, um tempo de ordem pessoal, um tempo subjetivo ou vivencial, relacionado com a percepção das personagens ou do narrador, um tempo interno que constitui um tipo de tempo diferente do tempo externo, o qual pode ser objetivamente mensurado. Assim, podemos diferenciar, nas narrativas, dois tipos de tempo: 1) Tempo cronológico: é o nome que se dá ao tempo que transcorre na ordem natural dos fatos no enredo, isto é, do começo para o final. Está, portanto, ligado ao enredo linear (que não altera a ordem em que os fatos ocorreram); chama-se cronológico porque é mensurável em horas, dias, meses, anos, séculos. 2) Tempo psicológico: é o nome que se dá ao tempo que transcorre numa ordem determinada pelo desejo ou pela imaginação do narrador ou dos personagens, isto é, altera a ordem natural dos acontecimentos.Está, portanto, ligado ao enredo não linear (no qual os acontecimentos estão fora da ordem natural) (GANCHO, 2002, p. 21). TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO 199 NOTA Genette (2008) diferencia isocronia e anisocronia, conceitos com os quais designa a relação entre o tempo da diegese e o tempo do discurso em termos de duração. Assim, a isocronia denomina a conformidade entre a duração da diegese e a do discurso, ao passo que a anisocronia, a inconformidade entre a duração da diegese e a do discurso. Quanto ao tempo do discurso, os seus desacordos com o tempo da diegese em termos de ordem das ações se denomina anacronias. A anacronia constitui um recurso tradicional da narração, a exemplo do “in medias res” e do “in ultimas res”, que designam narrativas que iniciam no meio e no final da diegese, respectivamente. Compondo narrativas temporalmente deslocadas da narrativa em que se inserem, as anacronias podem apontar para o passado, as denominadas analepses, ou para o futuro, as denominadas prolepses. Espaço O espaço consiste na ambientação da narração ou da ação das personagens, a paisagem que pode ser exterior (espaço físico) ou interior (espaço psicológico). A ambientação desempenha um papel fundamental na narração, e sua função se evidencia especialmente nos romances realistas e naturalistas, que, influenciados pelas ideias deterministas do positivismo, partem do pressuposto de que o ambiente influencia o homem. Como explica Gancho (2002, p. 23): “o espaço tem como funções principais situar as ações dos personagens e estabelecer com eles uma interação, quer influenciando suas atitudes, pensamentos ou emoções, quer sofrendo eventuais transformações provocadas pelos personagens”. Gancho (2002, p. 24) elenca algumas funções do ambiente na narrativa, tais como: situar os personagens nas condições em que vivem, projetar os conflitos vividos pelos personagens, estar em conflito com os personagens e indicar o andamento do enredo. No conto “Desenredo”, de Guimarães Rosa, por exemplo, embora o narrador se prive de delimitar espacialmente os fatos narrados, seja por meio da localização espacial, seja por meio de descrições, podemos identificar o ambiente de narração, presumivelmente um bar, como sugerimos a seguir, e o ambiente narrado como um ambiente povoado, uma vez que a opinião do povo constitui um dos conflitos principais do conto, contra o qual atua o protagonista. Outras referenciações espaciais aparecem em passagens como: “E viajou fugida a mulher, a desconhecido destino”, que, mesmo sem identificar o lugar, situa o leitor em relação ao distanciamento espacial da personagem: “Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava”. 200 UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO Narrador O narrador consiste na voz que narra e que pode, eventualmente, ser um personagem, mas jamais deve ser confundido com o autor, pois, enquanto um elemento do enredo, representa uma criação do autor. No conto de Guimarães Rosa, o autor o anuncia na primeira frase: “Do narrador a seus ouvintes”. Sua narração, ao apresentar o protagonista, revela, ao mesmo tempo, informações sobre o narrador: - Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro da cerveja. Tinha-o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu. Se o protagonista é, como informa o narrador, um “cliente”, cujo caráter compara com o “cheiro da cerveja”, podemos presumir que o narrador é um dono ou um atendente de um bar, que conta a história de Jó Joaquim a seus clientes, e que o bar é o espaço da narração, uma narração de caráter oral, como confirma o autor ao se referir os narratários do narrador como “ouvintes”. Podemos ainda perceber que o narrador não é onisciente: “Diz-se, também, que de leve a ferira, leviano modo”, afirma o narrador, como quem conhece a história que narra de outras fontes, desconhecidas: “Diz-se”. Da mesma maneira, o narrador demonstra não saber ao certo o nome da personagem: “Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia”, afirma, concluindo sua narração com um quarto nome, diferente dos três primeiros: “Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida”. O narrador pode ser identificado e classificado pelo pronome pessoal que utiliza na narração, ou seja, primeira pessoa ou terceira pessoa. Vejamos como, a partir da tipologia proposta por Norman Friedman, Gancho (2002, p. 27) explica os tipos de narrador se apoiando em pronomes pessoais: Terceira pessoa: é o narrador que está fora dos fatos narrados, portanto seu ponto de vista tende a ser mais imparcial. O narrador em terceira pessoa é conhecido também pelo nome de narrador observador, e suas características principais são: a) onisciência: o narrador sabe tudo sobre a história; b) onipresença: o narrador está presente em todos os lugares da história. TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO 201 NOTA Embora preponderem indiscutivelmente narrativas em primeira ou em terceira pessoa, existe a chamada narrativa em segunda pessoa, introduzida por Michel Butor, com o romance La modification, de 1957, e empregada por muitos novelistas e contistas. Gancho (2002) elenca duas variantes de narrador em terceira pessoa: o narrador “intruso”, ou seja, o narrador que dialoga com o leitor ou julga diretamente o comportamento das personagens. E o narrador “parcial”, ou seja, o narrador que se identifica com determinado personagem. Vejamos agora como Gancho (2002, p. 28) explica o outro tipo de narrador de acordo com o pronome: Primeira pessoa ou narrador personagem: é aquele que participa diretamente do enredo como qualquer personagem, portanto tem seu campo de visão limitado, isto é, não é onipresente, nem onisciente. No entanto, dependendo do personagem que narra a história, de quando o faz e de que relação estabelece com o leitor, podemos ter algumas variantes de narrador personagem. Assim, Gancho (2002) define duas variantes do narrador em primeira pessoa: narrador “testemunha”, ou seja, narrador que narra acontecimentos dos quais participou, sem ser protagonista. E, finalmente, o narrador “protagonista”, ou seja, o narrador que atua como personagem principal do enredo que narra. Jean Pouillon sugere uma classificação dos aspectos da narrativa enquanto percepção interna que o narrador oferece ao leitor em relação ao personagem. Pouillon (1974) denomina os diferentes tipos de relação entre o narrador e o personagem como visões, que podem ser simplificadas como: 1) Visão “por trás”: o narrador sabe mais que as personagens, equivalendo a um narrador onisciente em terceira pessoa. 2) Visão “com”: o narrador sabe tanto quanto os personagens, podendo narrar em primeira pessoa, o que justifica o processo, ou em terceira pessoa, a partir da visão que um mesmo personagem tem dos acontecimentos. Visão “de fora”: o narrador sabe menos que qualquer um dos personagens, podendo narrar apenas o que percebe externamente, sem ter acesso ao interior das personagens. 202 UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO NOTA O conceito de visão proposto por Pouillon se aproxima das concepções de ponto de vista, foco narrativo ou focalização. Ao propor o conceito de focalização, Genette distingue quem narra (voz) e quem percebe (modo), separando, definitivamente, a narração e a focalização. A focalização se refere a uma restrição de perspectiva, ou seja, uma seleção de informação narrativa que orienta o narrador. O narrador pode ser ainda caracterizado, conforme a tipologia proposta por Genette (2008), como heterodiegético, homodiegético ou autodiegético: 1) Narrador heterodiegético: narrador que não integra, como personagem, o universo diegético da narrativa. 2) Narrador homodiegético: narrador que participa, como personagem, do universo diegético da narrativa, sem, no entanto, ser o protagonista. 3) Narrador autodiegético:narrador que participa, como personagem principal, do universo diegético, sendo ao mesmo tempo, portanto, o protagonista. NOTA Genette (2008) considera inadequadas as tipologias de narrativa pelo emprego de pronomes pessoais, como narrativa em primeira ou terceira pessoa, pois colocariam o acento da variação sobre o elemento invariante da situação narrativa. Para Genette, em vez de formas gramaticais, o romancista escolhe atitudes narrativas: narrar por um personagem (narrador homodiegético ou autodiegético ou por um narrador heterodiegético). Por fim, a determinação da pessoa do narrador implica, em uma situação de enunciação, a pessoa a quem o narrador se dirige, o destinatário da narrativa, denominado narratário. O narratário participa como elemento constitutivo da narração, compreendido, muitas vezes, como a contraparte do narrador, como comprova Todorov (2008, p. 257): A imagem do narrador não é uma imagem solitária: desde que aparece, desde a primeira página, ela é acompanhada do que se pode chamar “a imagem do leitor”. Evidentemente, esta imagem tem tão poucas relações com um leitor concreto quanto a imagem do narrador, com o autor verdadeiro. Os dois encontram-se em dependência um do outro, e desde que a imagem do narrador começa a sobressair mais nitidamente, o leitor imaginário encontra-se também desenhado com mais precisão. Estas duas imagens são próprias a toda obra de TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO 203 ficção: a consciência de ler um romance e não um documento leva-nos a fazer o papel deste leitor imaginário e ao mesmo tempo apareceria o narrador, o que nos relata a narrativa, já que a própria narrativa é imaginária. Esta dependência confirma a lei semiológica geral segundo a qual “eu” e “tu”, o emissor e o receptor de um enunciado, aparecem sempre juntos. O interesse pelo narratário ou pelo leitor, relativamente recente nos estudos literários, produziu diferentes conceitos: narratário (Gerard Prince), arquileitor (Michael Riffaterre), leitor ideal (Cleanth Brooks), leitor implícito (Wolfgang Iser), leitor modelo (Umberto Eco) etc. Ao constatar que “a história literária não ignorara tudo da recepção”, Antoine Compagnon (2001, p. 146) observa que, com a obsessão pelas fontes e influências, considerava-se a recepção, não sob a forma da leitura, mas sob a forma como uma obra originava outras obras: “Os leitores, na maioria das vezes, só eram levados em consideração quando se tornavam outros autores, através da noção de ‘destino de um escritor’” (COMPAGNON, 2001, p. 147). Recentemente, no entanto, os estudos da recepção se comprometeram com a leitura como reação individual ou coletiva ao texto, com o leitor ao mesmo tempo ativo e passivo, com o ato de leitura e o sentido como um efeito experimentado pelo leitor, como demonstram a semiótica da interpretação, de Umberto Eco, a estética da recepção, de Hans Robert Jauss, a teoria do efeito, de Wolfgang Iser, a teoria do efeito de leitura, de Stanley Fish etc. Ao evidenciar a relação do leitor como modelo de recepção com a teoria dos gêneros literários, ou o gênero como modelo de leitura, Compagnon (2001, p. 157) afirma que a pertinência teórica do gênero é não classificar as obras, mas “funcionar como um esquema de recepção, uma competência do leitor”. O gênero, do ponto de vista da leitura, desempenha, segundo Compagnon (2001, p. 158), “um papel de mediação entre a obra e o público – incluindo aí o autor –, como o horizonte de expectativa. Inversamente, o gênero é o horizonte do desequilíbrio, da distância produzida por toda grande obra”, complementa Compagnon, que conclui: “Assim revisto, o gênero torna-se realmente uma categoria legítima da recepção”: A concretização de que toda leitura realizada é, pois, inseparável das imposições de gênero, isto é, as convenções históricas próprias ao gênero, ao qual o leitor imagina que o texto pertence, lhe permitem selecionar e limitar, dentre os recursos oferecidos pelo texto, aqueles que sua leitura atualizará. O gênero, como código literário, conjunto de normas, de regras do jogo, informa o leitor sobre a maneira pela qual ele deverá abordar o texto, assegurando desta forma a sua compreensão. [...] Assim, a estética da recepção – mas é ainda o que a torna demasiado convencional aos olhos de seus detratores mais radicais – não seria outra coisa senão o último avatar de uma reflexão bem antiga sobre os gêneros literários (COMPAGNON, 2001, p. 158). Por fim, o leitor, enquanto um elemento de intermediação entre a literatura e o mundo, e o gênero como modo de leitura, como sugere Compagnon, conduzem a uma reflexão sobre as relações da literatura com a história e a sociedade, que desenvolveremos na unidade seguinte. 204 UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO DICAS Assista ao filme “Mais estranho que a ficção” (2006), dirigido por Marc Forster, para se envolver mais profundamente e de forma divertida no mundo da narração. 205 Neste tópico, você aprendeu que: • O gênero narrativo se define como o relato, geralmente em prosa, de acontecimentos reais ou ficcionais, derivado do gênero épico. • O relato dos acontecimentos no gênero narrativo se realiza pela intermediação de um narrador, que representa o discurso dos personagens por meio de discurso direto, indireto e indireto livre. • O gênero narrativo se subdivide em tipos de narrativas entre os quais se destacam o romance, a novela, o conto e a crônica. • A narrativa se constitui de elementos relacionados entre si, tais como o enredo, as personagens, o tempo, o espaço, o narrador e o foco narrativo. RESUMO DO TÓPICO 2 206 AUTOATIVIDADE 1 Qual foi a última narrativa que você leu? Foi um romance, uma novela ou um conto? Retome-a e analise-a a partir dos conhecimentos sobre o gênero narrativo que você aprendeu neste tópico. Para tanto, divida o enredo, classifique os personagens, observe o tempo e o espaço, classifique o narrador e observe o foco narrativo. 2 Leia os dois textos a seguir e depois proceda conforme a instrução. Texto 1 Esta imensa campina, que se dilata por horizontes infindos, é o sertão de minha terra natal. Aí campeia o destemido vaqueiro cearense, que à unha de cavalo acossa o touro indômito no cerrado mais espesso, e o derriba pela cauda com admirável destreza. Aí, ao morrer do dia, reboa entre os mugidos das reses, a voz saudosa e plangente do rapaz que aboia o gado para o recolher aos currais no tempo da ferra. Quando te tornarei a ver, sertão da minha terra, que atravessei há muitos anos na aurora serena e feliz da minha infância? Quando tornarei a respirar tuas auras impregnadas de perfumes agrestes, nas quais o homem comunga a seiva dessa natureza possante? FONTE: ALENCAR, José de. O sertanejo. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov. br/download/texto/bv000140.pdf>. Acesso em: 10 out. 2017. Texto 2 – NONADA. TIROS QUE O SENHOR ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos;onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens 207 de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte. FONTE: ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. São Paulo: Nova Aguilar, 1994, p. 3-4. Considerando os textos 1 e 2, redija um texto dissertativo acerca do seguinte tema: O lugar de enunciação na narração Em seu texto, você deverá traçar um paralelo entre o narrador nos romances de José de Alencar e de Guimarães Rosa.