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Conceito de cultura na história
Definição
A palavra cultura vem do latim e significa cultivar, tratar (Ferreira, 1999). Com este mesmo significado da palavra em latim, cultura se refere a tudo que é cultivado pelo homem. Falamos em cultura de soja, em cultura de bactérias ou em cultura de subsistência.
Cícero (106-43 a.C.), cônsul da República romana, fala em cultura animi, que seria o cultivo do espírito, pois a alma era como um campo a ser cuidado. (Vannucchi, 2002). Esse conceito vem sendo discutido pelos homens desde a Antiguidade com vários significados que são válidos até os dias de hoje. Vejamos alguns a seguir:
Meados do século XVI
A palavra cultura vai ser utilizado na Renascença, opondo o homem culto aos animais e aos “bárbaros”. Durante o Iluminismo, cultura será o atributo daquele que tem propriedade em ciências, letras e artes (RIVIÈRE apud BOUDON et al., 1990).
Cultura ainda teve o significado de civilização no século XIX. Ainda hoje, utilizamos o vocábulo com essa acepção, mas cultura e civilização não têm o mesmo sentido. O termo civilização se consolida na Europa durante o século XVII.
Século XVII
A palavra cultura indica certo estado de desenvolvimento, um acúmulo de progressos técnicos, intelectuais e sociais (TAYLOR apud BONTE; IZARD, 1991). Ele se coloca como um ideal a ser alcançado pelos outros povos, e, com a pretensão de “civilizar” outros povos considerados menos evoluídos, cruéis expansões coloniais foram justificadas.
Os civilizados também podem ser aqueles que se opõem aos primitivos ou selvagens.
Século XIX
A palavra cultura se tornará um termo central na Antropologia cultural, ciência que surge nesse momento e vai, logo nos seus primórdios, definir este conceito.
Conceito de cultura na Antropologia
Antes mesmo de existir qualquer ciência que reflita sobre a cultura humana, no sentido que a Antropologia dá a esse termo, desde a Antiguidade, os homens já se surpreendiam com a visão de mundo de outros povos.
Laraia (2007) nos conta que Heródoto (484-424 a.C.) já estranhava o costume dos Lícios, que herdavam o nome de suas mães, e não de seus pais, como era nas cidades-estados gregas. Mas ele teve o discernimento de afirmar, entre todos os costumes de todos os povos, os homens certamente escolheriam os de seu povo, tanto estes lhes parecem os melhores.
Roque de Barros Laraia
A Antropologia cultural, como ciência, surge no século XIX como resultado da expansão neocolonialista europeia em direção à Ásia e a África, que tinha como objetivo a expansão do capital, a busca de mão de obra e matérias-primas. Os pais fundadores da Antropologia vão organizar as informações que chegavam das colônias sobre aqueles povos exóticos, fundando, assim, a disciplina.
Capa do livro Primitive culture, de Edward Tylor
Em um momento de expansão colonial, a definição do conceito de cultura auxiliava os europeus a conhecer os povos que eles estavam dominando. Todo o desenvolvimento teórico inicial da Antropologia se deu através do olhar do europeu sobre tais povos, sobre os quais impunha sua cultura, subjugando-os (SANTOS, 2005).
Nesse início da Antropologia, o conceito de cultura é definido por Edward Tylor, um de seus pais fundadores, da seguinte forma:
Tomada em seu amplo sentido etnográfico, é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade.
(TYLOR, apud LARAIA, 2007, p.14)
A etnografia se refere ao trabalho de campo, o método por excelência da Antropologia, que será detalhado mais adiante. Esta definição é bastante ampla e define a cultura como algo que é inventado pelo homem, e não é ligado à sua biologia, mas transmitido entre os seres humanos através do aprendizado.
Agora, tentaremos compreender melhor este conceito a partir da metodologia de DaMatta (1986), utilizada em um artigo de divulgação científica, na pergunta presente no título do artigo: Você tem cultura?. O que significa essa palavra?
Quando dizemos que fulano tem cultura e beltrano, não, cultura significa conhecimento. Um significado similar àquele da época do Iluminismo.
O autor usa um procedimento muito eficiente para discutir um conceito que é tão complexo: ele compara o seu sentido no senso comum e na Antropologia.
Efetivamente, no senso comum, cultura significa conhecimento, sabedoria, inteligência etc., mas este conceito também é usado para estabelecer diferenças hierárquicas entre as pessoas, como se aquelas que tivessem mais cultura fossem melhores do que as outras. Podemos ver isso claramente quando dizemos que os pobres não têm cultura.
Na Antropologia, cultura significa o estilo de vida de um povo, a maneira específica como eles vivem. Podemos dizer também que cultura é um conjunto de regras, um mapa ou uma receita que nos diz como devemos nos comportar e agir em sociedade.
O que concluímos a partir daí é que, se enxergamos cultura do ponto de vista da Antropologia, não podemos dizer que existem homens sem cultura. A vida em sociedade implica a aquisição de cultura.
Atenção!
Não se pode considerar também que existam culturas melhores ou piores, pois, quando falamos algo assim, estamos usando conceitos de melhor e pior, que são característicos da nossa cultura. Falamos em complexidade e em desenvolvimento tecnológico, mas não em desenvolvimento cultural.
Em um país desigual, como o nosso, pensar sobre cultura com o sentido atribuído pela Antropologia nos ajuda a descontruir preconceitos. O funk é uma manifestação cultural, assim como a música clássica. Da mesma forma, o samba e o balé clássico são danças. Não existe hierarquia entre manifestações culturais, elas somente são diferentes umas das outras.
Reconhecer que existem culturas diferentes será importante na sua atuação profissional. Não se pode fazer julgamentos de valor sobre as crenças, valores, conceitos e hábitos dos seus pacientes ou do seu público-alvo.
Veja algumas definições de cultura citadas pelos seguintes antropólogos:
Edward Tylor
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Clifford Geertz
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Ruth Benedict
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Culturas ou subculturas
Em uma sociedade complexa e multifacetada, como a nossa, pertencemos a diferentes culturas. Há quem fale em várias subculturas dentro de uma cultura (DAMATTA, 1986).
Devemos ficar atentos a este termo, pois ele pode significar que existe uma cultura maior que contém outras subculturas menores e menos importantes, o que dá uma visão equivocada das relações entre estas várias culturas. Mesmo assim, é um termo bastante utilizado nas Ciência Sociais.
As “subculturas” são culturas à parte. Cada profissional participa da cultura de sua profissão.
Exemplo
Você está entrando em contato com a cultura da Nutrição. Os praticantes do candomblé vivem essa cultura especificamente, e os cristãos, budistas ou muçulmanos também vivem as culturas associadas às suas religiões.
Se você faz dança de salão, joga vôlei na praia, ou frequenta uma academia, no momento em que você está nesses espaços, vê o mundo através da lente de tais culturas.
Quando você está trabalhando como nutricionista, usa uma roupa adequada, utiliza um vocabulário específico. Ao estudar os temas relativos à Nutrição, você, provavelmente, já está vendo o mundo através desta lente, olhando com mais atenção os rótulos dos alimentos, buscando um equilíbrio maior na alimentação etc.
Da mesma forma, quando alguém está lutando capoeira, ou num baile funk, a lente se ajusta a essas culturas. Na capoeira, há uma vestimenta específica, jargões, os instrumentos, a música. No funk, ocorre a mesma coisa, com roupas e danças específicas, conversas, paqueras etc., que representam essa cultura.
Na contemporaneidade, pertencemos aos mais variados grupos culturais e nos identificamos de diferentes formas com cada um deles.
Mesmo com todas as culturas se equivalendo, porém existem culturas em desacordo com a lei e com nossos valores que desejamos extinguir. Por exemplo, aquelas culturas que representam um atentado à dignidade da pessoa humana, princípio de nossas leis.Que culturas são essas? A cultura da violência, do machismo, do racismo, da xenofobia (aversão aos estrangeiros), da misoginia (aversão às mulheres), da intolerância religiosa, da destruição do meio ambiente etc.
São culturas que têm suas respectivas visões de mundo como todas as outras mencionadas. E existem pessoas que participam dessas culturas e as consideram corretas e válidas, mas, de acordo com a lei e com os valores de outras pessoas que não participam, elas são erradas e deveriam desaparecer.
Características da cultura na alimentação
Para melhor refletirmos sobre o papel da cultura na alimentação, vamos falar sobre algumas características da cultura, que são também características das culturas alimentares.
A cultura condiciona os sistemas alimentares e tem um papel fundamental na visão de mundo dos indivíduos. A categoria comida é culturalmente determinada, assim como as formas de explorar os recursos e de classificar os alimentos. A cultura pode também interferir no plano biológico (LARAIA, 2007) Vamos ver, por exemplo, dois casos bastante conhecidos pelo senso comum:
Quem não conhece o clássico tabu entre a mistura de leite com manga? Ao acreditar que esta mistura seja prejudicial à saúde, o indivíduo pode realmente passar mal se a ingerir.
Por outro lado, como uma espécie de efeito placebo, acreditam que a ingestão do suco do maracujá pode acalmar algumas pessoas. O que elas não sabem é que os compostos químicos calmantes não se encontram no fruto.
O que deve fazer o profissional de saúde a esse respeito? Será que ele deve esclarecer seu paciente, ou, não deve desfazer tal crença, caso este relate efeitos positivos, como o exemplo do suco de maracujá? Provavelmente, o profissional de saúde promoverá mais o bem-estar do paciente omitindo a verdade do que revelando-a, já que a cultura interfere na forma como o corpo vai se portar.
Curiosidade
As diferentes culturas têm suas próprias lógicas, não sendo lógicas pragmáticas nem racionais, e sim culturais. O fato de que uma grande parte das culturas despreza o consumo de insetos demonstra que não há pragmatismo nos hábitos culturais e que eles possuem uma racionalidade própria.
Os mitos, crenças e tabus, assim como todo o complexo de proibições e prescrições, estão relacionados a uma forma de classificar os alimentos, que é própria da lógica de cada cultura.
Outra característica levantada por Laraia (2007) é o dinamismo das culturas. Efetivamente, não podemos pensar as culturas como algo terminado ou estático. A cultura é, antes de mais nada, um processo, que está em constante transformação.
É o caso da linhaça, da chia, da quinoa, da farinha de amêndoas, do goji berry, dos produtos sem glúten, dos laticínios sem lactose. Esses produtos surgiram no esteio da busca por uma alimentação mais saudável e que possibilite o emagrecimento.
Uma preparação que já existia, mas também virou a queridinha do povo fit, é a tapioca, por ser feita de goma da mandioca e não possuir glúten. O mesmo aconteceu com a batata doce e o abacate.
Processo de socialização
Crianças criadas por animais
Você já ouviu falar em crianças que foram criadas por animais?
Certamente você já ouviu falar de Tarzan, criado por macacos, e Mogli, do Livro da Selva. Há também a história dos fundadores de Roma — Rômulo e Remo —, que foram amamentados por uma loba quando pequenos.
Nesses casos, estamos falando de lendas, mas existem histórias verdadeiras de crianças que foram criadas por animais. Conheça a história do menino de Aveyron:
Victor de Aveyron
O menino de Aveyron foi encontrado no início do século XIX na cidade francesa de mesmo nome. Embora andasse ereto, ele se comportava como um macaco: não falava, só grunhia, fazia suas necessidades onde bem entendesse e era agressivo.
Foi recolhido por um médico que tentou adaptá-lo à vida entre os homens.
Ele morreu com aproximadamente 40 anos de idade e nunca aprendeu a falar. Sua história deu origem ao filme O Garoto Selvagem (França, 1970, direção de François Truffaut).
Existem outras histórias de crianças cuidadas por animais, geralmente por lobos e macacos. Elas apresentam, no geral, muitas dificuldades de viver entre os seres humanos. Essas crianças pertencem obviamente à nossa espécie.
Será que, no sentido amplo e filosófico do termo, elas são humanas? Como podemos compreender o pensamento de um ser humano que não fala, não chora e não sorri?
Essas crianças são verdadeiras aberrações, e o fato de não terem convivido entre humanos faz com que elas se comportem como animais, pois elas não passaram pelo processo de socialização primário.
É nesse processo que ela aprende a falar, a andar ereta e que há horários para as diferentes atividades. Dessa forma, ela vai tornar suas essas formas de pensar, de agir e de sentir (CHERKAOUI, 1990).
Durkheim foi um dos primeiros a falar em socialização. Ele se referia sobretudo à criança (GRIGOROWITSCH, 2008). Mas o processo de socialização não termina nunca, e ele nunca é perfeito, pois todos temos comportamentos desviantes. Cada vez que entramos em um novo grupo, ou em uma nova cultura, temos que nos socializar.
Atenção!
Para os nutricionistas, é muito importante compreender que é nesse processo que os indivíduos de determinada cultura vão aprender a gostar de certos alimentos, vão desenvolver seus hábitos e suas preferências alimentares, vão criar conceitos sobre o que é uma alimentação saudável etc.
Como a Antropologia estuda a cultura e o processo de socialização? Por meio da etnografia, nosso próximo assunto. Vamos lá!
Etnografia e observação participante
Como a Antropologia coleta seus dados para poder realizar suas pesquisas, elaborar seus conceitos e suas teorias? Nos seus primórdios, os antropólogos não iam a campo conhecer os povos “exóticos” sobre quem escreviam. Eles recebiam informações de terceiros e até de livros de curiosidades.
Como esses antropólogos falavam de pessoas que estavam do outro lado do mundo e elaboravam teorias sobre elas sem nunca as ter visto, a Antropologia deste período é chamada de Antropologia de gabinete.
Com Bronislaw Malinowski (1884-1942), antropólogo polonês que trabalhou na Inglaterra, a Antropologia mudou sua forma de obter dados. Esse pesquisador trabalhou muitos anos com habitantes da Nove Guiné, instituindo o trabalho de campo e ressaltando sua importância.
Desde então, a etnografia é o método por excelência da Antropologia. Etnografia vem do prefixo grego etno, que significa povo ou nação, e do sufixo grafia, cujo significado é escrever, ou seja, é a descrição do modo de vida de determinada sociedade.
Dessa forma, o antropólogo procura se imbuir da visão de mundo daqueles que está pesquisando para poder melhor compreendê-los. A partir de então, a Antropologia não é somente aquela ciência que estuda os povos “exóticos”, mas aquela que estuda o “Outro”, com O maiúsculo, que significa aquele que é diferente de mim.
A etnografia é o método por excelência da Antropologia. Assim, o antropólogo é quem produz os dados necessários para sua pesquisa. Para isso, ele precisa ir a campo e estar em contato com seu objeto de estudo, seja na Nova Guiné ou em um baile funk. A técnica utilizada é a da observação participante.
Este tipo de observação consiste no fato de que o pesquisador não somente observa seu objeto de estudo a distância, mas também procura participar, na medida do possível, das mais variadas atividades daqueles com quem está convivendo durante o trabalho de campo.
O método da etnografia e a técnica da observação participante são bastante utilizados por outras ciências na atualidade. Em relação à Nutrição, não poderia ser diferente. Pesquisadores da área utilizam a etnografia em enquetes nutricionais e na implementação de programas e políticas de saúde pública relacionados à nutrição.

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