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anais Gastronomia GILBERTO FREIRE

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A N A I S
Fundação Gilberto Freyre
Recife, 2005
© Fundação Gilberto Freyre, 2005
Presidente
Fernando de Mello Freyre
Vice-presidente
Sonia Maria Freyre Pimentel
Superintendente Geral
Gilberto Freyre Neto
Superintendente Adjunta de Administração
Patrícia Kneip de Sá
Coordenação Editorial
Ana Cláudia Araújo
Projeto Gráfico e Diagramação
Mônica Lira
Rua Dois Irmãos, 320, Apipucos - 52071-440 - Recife/PE
Telefone (81) 3441.1733 . Fax (81) 3441.2883
http://www.fgf.org.br . fgf@fgf.org.br
Gastronomia em Gilberto Freyre
Pode-se dizer, sem medo de errar
que, no Brasil, é com Gilberto Freyre
que aspectos vistos como de menor im-
portância pela tradição acadêmica, tais
como a alimentação, a arquitetura, o
vestuário e as práticas corporais e sexu-
ais, ganham valor. De fato, em conso-
nância com um projeto intelectual onde
a cultura é vista a partir das maneiras
pelas quais é vivenciada, estas dimen-
sões corriqueiras do cotidiano são trans-
formadas em objetos privilegiados de
investigação, tornando-se fundamentais
para o entendimento da vida social.
“Através do cotidiano ou quase-
cotidiano é que se fixam, nas culturas,
os seus característicos e se firmam os
seus valores. É que se consolidam nas
sociedades as suas constantes.” (Gilber-
to Freyre, Açúcar)
É este um dos mais importantes
e inovadores aspectos de sua monu-
mental obra de interpretação da cul-
tura brasileira empreendida por Gilber-
to Freyre. Enfocando as múltiplas
dimensões do cotidiano, é inegável
que a alimentação ocupe um lugar
muito particular, surgindo como um
dos principais elementos explicativos
e sendo tratada através de diferentes
ângulos e perspectivas, desde o que se
refere aos aspectos nutricionais até os
que se referem aos significados do que
entendemos por comida. Salientando
as relações sociais estabelecidas e va-
lorizando de maneira inovadora os es-
paços sociais, materiais e simbólicos
“Velhos retratos; receitas
De carurus e guisados
As tortas ruas direitas
Os esplendores passados”
Carlos Drummond de Andrade em
poema dedicado a Gilberto Freyre.
relacionados ao ato de comer, tais
como as cozinhas, os ingredientes, os
rituais, enfim os vários aspectos que en-
volvem o alimentar-se, colocou-o den-
tro de uma perspectiva cultural que
ultrapassa em muito o biológico.
A alimentação tem também uma
importância particular no debate em
que Freyre se contrapôs às idéias vigen-
tes entre a intelectualidade de sua épo-
ca (em especial às dos apologistas da
eugenia racial) revolucionando as idéi-
as sobre os brasileiros e marcando de
forma indelével o pensamento intelec-
tual no Brasil.
“Muito da inferioridade física do
brasileiro, em geral atribuída toda à
raça, ou vaga e muçulmanamente ao
clima, deriva-se do mau aproveitamen-
to dos nossos recursos naturais de nu-
trição. Os quais sem serem dos mais
ricos, teriam dado para um regime ali-
mentar mais variado e sadio do que o
seguido pelos primeiros colonos e por
seus descendentes, dentro da organi-
zação latifundiária e escravocrata.”
(Casa-Grande & Senzala)
Sobre este assunto, cabe também
lembrar esta outra passagem do mes-
mo livro:
“Se a quantidade e a composição
dos alimentos não determinam sozi-
nhas, como querem os extremistas – os
que tudo crêem poder explicar pela di-
eta – as diferenças de morfologia e de
psicologia, o grau de capacidade eco-
nômica e de resistência às doenças entre as socie-
dades humanas, sua importância é entretanto con-
siderável, como o vão revelando pesquisas e inqu-
éritos nesse sentido. Já se tenta hoje retificar a
antropogeografia dos que, esquecendo os regimes
alimentares, tudo atribuem aos fatores raça e cli-
ma; nesse movimento de retificação deve ser in-
cluída a sociedade brasileira, exemplo de que tan-
to se servem os alarmistas da mistura de raças ou
da malignidade dos trópicos a favor da sua tese de
degeneração do homem por efeito do clima ou da
miscigenação. É uma sociedade, a brasileira, que
a indagação histórica revela ter sido em larga fase
do seu desenvolvimento, mesmo entre as classes
abastadas, um dos povos modernos mais
desprestigiados na sua eugenia e mais comprome-
tidos na sua capacidade econômica pela deficiên-
cia de alimento.” (Casa-Grande & Senzala)
Pode-se mesmo afirmar que a alimentação
constitui-se em um importante ponto focal de sua
obra e seu estudo é um dos mais frutíferos cami-
nhos de acesso ao rico e fecundo universo do
pensamento freyriano.
Mas cabe sublinhar que a alimentação, em
Gilberto Freyre, não é reduzida a inventários de
receitas ou a uma procura genética de elementos
constitutivos de uma dada cozinha. Ao contrário,
como pode ser observado (muito especialmente
em Casa-Grande & Senzala), os elementos pro-
vindos de culturas diferentes e que vão constituir
o patrimônio alimentar brasileiro estão articula-
dos dentro de uma perspectiva onde escolhas,
abandonos, apropriações e transformações fazem
parte de um processo histórico-cultural. Assim, a
alimentação brasileira não é formada por um mero
somatório de itens de procedência distintas, mas
é fruto de um processo onde diferentes elemen-
tos com origens em contextos étnicos e culturais
muito diferentes são articulados resultando em um
sistema alimentar heterogêneo, diverso, variável
e desigual.
Nos últimos anos, a alimentação, estudada
a partir do ponto de vista social e cultural, tem
recebido uma atenção crescente. De fato, na ali-
mentação o biológico e o cultural se encontram.
Porém, mais do que responder à uma necessida-
de básica do organismo, o ato de comer é uma
prática cultural que implica em relações sociais,
crenças, classificações, enfim, formas de conce-
ber o mundo. A alimentação tem, então, um gran-
de poder simbólico, marcando identidades indi-
viduais e sociais e, mais profundamente, algo que
implica na relação natureza e cultura. Trata-se,
assim, de um campo privilegiado para a discussão
antropológica.
A antropologia da alimentação visa o estudo
de práticas, manifestações e representações rela-
cionadas com o ato alimentar dos grupos huma-
nos, abarcando assim tanto os aspectos que tradi-
cionalmente são classificados como “materiais”
quanto os classificados como “simbólicos” – di-
mensões indissociáveis de um mesmo fenômeno.
Neste sentido, organizou-se, no Brasil, o ICAF
(International Commission on the Anthropology of
Food) em janeiro de 2003, possibilitando aos pes-
quisadores brasileiros uma inserção e intercâmbio
internacional, e o GAAB (Grupo de Antropologia
da Alimentação Brasileira), ambos dentro de uma
perspectiva de trabalho em conjunto, com o ob-
jetivo de incentivar os estudos sobre alimentação
e promover a articulação de pesquisadores que
trabalham com este tema.
Não por acaso, o GAAB recebeu acolhida
na Fundação Gilberto Freyre e seu lançamento
deu-se, justamente, dentro das comemorações dos
70 anos de Casa-Grande & Senzala, com o Semi-
nário Gastronomia em Gilberto Freyre, ocorrido
de 15 a 17 de outubro de 2003 e que contou
com o apoio do Senac, do ICAF/Brasil e da Cáte-
dra Gilberto Freyre da Universidade Federal de
Pernambuco.
O Seminário teve como objetivo promover
a discussão em torno das interpretações freyrianas
acerca da alimentação e da gastronomia e difun-
dir o conhecimento sobre a arte-culinária nacio-
nal. Já em sua primeira edição, o Seminário bus-
cou juntar, em um mesmo evento, pesquisadores
tais como antropólogos, historiadores, museólogos,
agrônomos, folcloristas, jornalistas e estudantes, e
também profissionais da área de alimentação,
como cozinheiros, doceiras, proprietários de res-
taurantes e profissionais do Senac, abrindo-se as-
sim para perspectivas as mais diversificadas.
Neste sentido, a presente publicação reflete
esta heterogeneidade de olhares e interpretações.
Como poderá ser observado, os autores partem
de premissas e idéias muito diferentes,demons-
trando o quanto o campo da alimentação pode
ser múltiplo e rico.
O Seminário contou ainda com um momen-
to muito particular: o da apresentação da série
Mesa Brasileira, de Ricardo Miranda. A série pro-
cura registrar e mostrar como se alimenta o brasi-
leiro e assim contar a história a partir da perspec-
tiva da alimentação. Percorrendo o país de norte
a sul, traz a enorme diversidade alimentar do Bra-
sil expressa não apenas em seus pratos típicos, mas
também nas diferentes formas cotidianas do co-
mer no Brasil. Publicamos aqui o pré-roteiro da
série, as sinopses dos documentários assim como
os créditos deste trabalho pioneiro.
Finalizando está o texto de Instalação do
Grupo de Antropologia da Alimentação Brasileira
(GAAB), de autoria de Raul Lody, que marca o
início da caminhada do grupo.
Gilberto Freyre, além de grande intelectu-
al, era também um grande apreciador da boa
mesa. Assim, nada mais justo que trabalhos com
alimentação - estudar ou fazer – sejam reunidos
em sua homenagem. Ao final, restou um gostinho
de “quero mais”, deixando a perspectiva de um
novo encontro onde novamente se reúna sabe-
res e sabores.
Maria Eunice Maciel
Presidente do ICAF/Brasil
Sumário
O Seminário .......................................................................................................... 7
· Apresentação ................................................................................................ 7
· Programação ................................................................................................. 7
· Comissão Organizadora ................................................................................. 8
MESA-REDONDA: CASA-GRANDE & SENZALA: COZINHA, GÊNERO E RELAÇÕES SOCIAIS
· A Culinária e a Negra (Fátima Quintas) ............................................................ 9
· Para uma Antropologia da Alimentação Brasileira (Cláudia Maria de Assis
Rocha Lima) .................................................................................................. 14
· Doutor Gilberto Freyre e o Reconhecimento da Culinária como Fenômeno
Cultural (Eliane Asfora da Cunha Cavalcanti) ................................................... 18
MESA-REDONDA: NORDESTE: ECOLOGIA, ALIMENTAÇÃO E CULTURA
· Nordeste: ecologia, alimentação e cultura (Manoel Correia de Andrade -
Coordenador da Mesa) .................................................................................. 20
· Estudo Etnobotânico da Mandioca (Manihot esculenta Crantz - Euphorbiaceae)
na Diáspora Africana (Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo) ..................... 22
· Cozinha e Identidade Nacional: notas sobre a culinária na formação da cultura
brasileira segundo Gilberto Freyre e Luis da Câmara Cascudo (Rogéria Campos
de Almeida Dutra) ......................................................................................... 31
MESA-REDONDA: AÇÚCAR: DOÇARIA E CIVILIZAÇÃO
· Doçaria e Civilização: a preservação do fazer (Roberto Benjamim) ................... 37
· A Formação da Culinária Brasileira (Letícia Monteiro Cavalcanti) ..................... 42
COMUNICADOS LIVRES
· Acarajé 10: sucesso em Salvador - Bahia (Celso Duarte Carvalho Filho) ............ 44
· O Chouriço: uma doce dádiva (Antonio de Pádua dos Santos, Julie Antoinette
Cavignac e Maria Isabel Dantas) ..................................................................... 46
· É Assim que se Faz: etnografia sobre a farinhada no Pêga (Glória Cristiana de
Oliveira Morais) ............................................................................................. 53
· A Culinária de Papel (Laura Graziela Gomes e Lívia Barbosa) ........................... 60
· Gilberto Freyre: a representação social da culinária (Rodrigo Alves Ribeiro) ...... 66
Série Mesa Brasileira, de Ricardo Miranda ............................................................ 70
Instalação Nacional do Grupo de Antropologia da Alimentação Brasileira (GAAB):
em busca do ethos da alimentação, por Raul Lody ........................................... 75
7
O Seminário
APRESENTAÇÃO
Gilberto Freyre realizou uma vasta obra de interpretação da cultura brasilei-
ra, muito especialmente no entendimento das relações sociais nas regiões agrárias
do Brasil, nos quais o patriarcalismo rural e o paternalismo senhorial são faces
dominantes da realidade.
Sua obra aponta e valoriza de maneira pioneira os cenários sociais das cozi-
nhas, dos alimentos, dos muitos rituais que fazem o fazer comida, desenvolver
sistemas e formas de gastronomia tropical brasileira, trazendo esses patrimônios
em diferentes contextos étnicos e culturais.
Assim, Açúcar, Nordeste, Casa Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos,
entre outros, introduzem e trazem o valor dos ingredientes, do gênero, do traba-
lho, da nutrição, dos muitos significados que integram o fazer, o servir e o consu-
mir comida.
O Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre visa promover a discus-
são em torno das interpretações freyrianas acerca da alimentação e da
gastronomia como elemento diferenciador da arte e da cultura dos povos e
também difundir o conhecimento sobre a arte-culinária nacional e suas carac-
terísticas mais marcantes em nossa cultura.
PROGRAMAÇÃO
Dia 15/out/2003
15h MESA-REDONDA: Casa-grande & Senzala: cozinha, gênero e relações sociais
Coordenadora: Profa. Dra. Maria Eunice de Souza Maciel (UFRGS)
Dra. Fátima Quintas – A Culinária e a Negra
Dra. Cláudia Maria de Assim Rocha Lima – Para uma Antropologia da
Alimentação Brasileira
Sra. Eliane Asfora da Cunha Cavalcanti – Doutor Gilberto Freyre e o
Reconhecimento da Culinária como Fenômeno Cultural
16h45 SESSÃO DE VÍDEO: série Mesa Brasileira de Ricardo Miranda
O pão nosso de cada dia
Dia 16/out/2003
16h30 Instalação Nacional do Grupo de Antropologia da Alimentação
Brasileira (GAAB)
Raul Lody – Em Busca do Ethos da Alimentação
15h MESA-REDONDA: Nordeste: ecologia, alimentação e cultura
Coordenador: Prof. Dr. Manoel Correia de Andrade (FGF)
Profa. Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo (USP) – Estudo Etnobotânico
da Mandioca (Manihot esculenta Crantz - Euphorbiaceae) na Diáspora Africana
Profa. Rogéria Campos de Almeida Dutra (UFMG) – Cozinha e Identidade
Nacional: notas sobre a culinária na formação da cultura brasileira segundo
Gilberto Freyre e Luis da Câmara Cascudo
8
Sr. Petrucio Nazareno (Restaurante Goya)
16h15 DEMONSTRAÇÃO GASTRONÔMICA: Doce de Gerimum com Coco
Prof. Antonio José de Oliveira Filho e Prof. Antônio José Medeiros Silva
16h45 APRESENTAÇÃO DE COMUNICADOS LIVRES
COMUNICADO 1: Celso Duarte Carvalho Filho – Acarajé 10: sucesso em Salvador -
Bahia
COMUNICADO 2: Antonio de Pádua dos Santos, Julie Antoinette Cavignac, Maria
Isabel Dantas – O Chouriço: uma doce dádiva
COMUNICADO 3: Glória Cristiana de Oliveira Morais – É Assim que se Faz:
etnografia sobre a farinhada no Pêga
17h45 SESSÃO DE VÍDEO: série Mesa Brasileira de Ricardo Miranda
Comedores de Mandioca
Dia 17/out/2003
14h30 MESA-REDONDA: Açúcar: doçaria e civilização
Coordenadora: Sra. Sílvia Pontual (Restaurante Mourisco)
Dr. Roberto Benjamim – Doçaria e Civilização: a preservação do fazer
Dra. Letícia Monteiro Cavalcanti – A Formação da Culinária Brasileira
Dr. Armênio Ferreira Diogo
RELATOS DE EXPERIÊNCIAS
Raul Lody (SENAC) – Série “A Formação da Culinária Brasileira”
Fernando Soares (SESC/PE) – Banco de Alimentos
15h45 APRESENTAÇÃO DE COMUNICADOS LIVRES
COMUNICADO 1: Laura Graziela Gomes e Lívia Barbosa – A Culinária de Papel
COMUNICADO 2: Carlos André de Vasconcelos Cavalcanti – SERTA: a experiência
com produtos orgânicos no campo da sementeira
COMUNICADO 3: Rodrigo Alves Ribeiro – Gilberto Freyre: a representação social
da culinária
17h45 SESSÃO DE VÍDEO: série Mesa Brasileira de Ricardo Miranda
Mar de Açúcar
18h ENCERRAMENTO
Dr. Fernando de Mello Freyre (Presidente da FGF)Profa. Maria Eunice Maciel (Presidente do ICAF/Brasil)
Prof. Raul Lody (Secretário Geral do ICAF/Brasil)
COMISSÃO ORGANIZADORA
COORDENAÇÃO GERAL: Raul Lody
FUNDAÇÃO GILBERTO FREYRE
Gilberto Freyre Neto
Germana Kaercher
Patrícia Kneip
ICAF BRASIL
Maria Eunice Maciel
9
A Culinária e a Negra
Fátima Quintas
Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-graduação em Antropologia Cultural pelo
Instituto de Ciências Sociais e Política Ultramarina (Lisboa – Portugal). Pós-graduação em Museologia pelo Museu das
Janelas Verdes (Lisboa – Portugal). Mestrado em Antropologia Cultural pela Universidade Federal de Pernambuco.
Coordenadora do Núcleo de Estudos Freyrianos da Fundação Gilberto Freyre.
“No meio dos graves problemas
sociais cuja solução buscam os
espíritos investigadores no nosso
século, a publicação de um manual de
confeitaria, só pode parecer vulgar a
espíritos vulgares; na realidade, é um
fenômeno eminentemente
significativo. Digamos todo o nosso
pensamento: é uma restauração, é a
restauração do nosso princípio social”
Machado de Assis
O espaço reservado à cozinha da
casa-grande patriarcal agrupou o encon-
tro de raças, combinando emoções com
temperos, sentimentos com receitas
culinárias, saudades com cheiro e gos-
to de condimentos. Nesse desvão, apa-
rentemente resguardado, desfilaram as
enormes proezas da convivência do-
méstica. Oráculo de confissões, de
fuxicos, de troca de sigilos. Zona de
confraternização. Locus de intercâmbio
afetivo. Na “sagrada” cozinha, a con-
versa mole, os mexericos, os segredos,
o disse-me-disse ganharam a moldura
da intimidade. Entre o preparo de um
prato e de outro, muitas narrativas fo-
ram verbalizadas. Tanto quanto o con-
fessionário, o suposto esconderijo do
fabrico das guloseimas, simbolizou o
canal catártico por onde escoraram con-
versações em tom pessoal, segredos re-
cônditos, mistérios femininos. Debaixo
do manto da solidão, a larga e tosca
mesa retangular agasalhou os dispen-
sáveis pudores de mulheres acanhadas.
Lugar de especial atrativo para o trans-
bordamento de dizeres porventura pe-
rigosos ou pecaminosos. Com a devida
reserva, a palavra soada e ressoada no
âmbito da cozinha exerceu importante
função libertadora. Freyre alerta: Creio
que não há um só diário escrito por
mulher. Nossas avós tantas delas anal-
fabetas, mesmo quando baronesas e
viscondessas, satisfaziam-se em contar
os segredos ao padre confessor e à
mucama de estimação; e a sua tagareli-
ce dissolveu-se quase toda nas conver-
sas com as pretas boceteiras, nas tardes
de chuva ou nos meios dias quentes,
morosos (Freyre,1966, p.XLIV).
Pretas velhas, mucamas, sinha-
zinhas, sinhás-donas, nhonhôs coabita-
ram os momentos de relaxamento que
o forno e o fogão possibilitaram. Entre
receitas, o rastro dos apetites – seja qual
for a sua etiologia, sexual ou palatal –
deixou-se verter em discursos reprimi-
dos. Pamonha, milho assado, pão-de-
ló, arroz-doce, alfenins, alféloa, empa-
relharam-se à table da casa-grande, em
uma demonstração de hibridismo de
paladares. As negras, exímias cozinhei-
ras, redondas de tanto comerem, esme-
raram-se no preparo de “acepipes” para
o regalo do menino, da sinhá ou do
patriarca. Imensos panelões compuse-
ram a paisagem da comensalidade pa-
triarcal. Passava-se o dia a beliscar e a
provar pratos temperados ao saibo pre-
ferido da próxima refeição ou à blandí-
cia da donzela enfraquecida, a neces-
sitar de cuidados especiais. Do café da
manhã à ceia noturna, o dedo decisivo
da negra. Do simples caldo de pintainho
à gordurosa feijoada. Da mesa repleta
de convidados ao almoço trivial. A qual-
Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 10
quer hora, a chaminé estimulante. À fumaça do
bueiro, a fruição da comida acalentada pelo “es-
tridente” toque africano. Enfatiza Darcy Ribeiro:
Para Gilberto Freyre [o negro ensinou] o brasileiro
a explorar todas as possibilidades das papilas da
língua, bem como os nervos do faro, com a sua
magia culinária. ( Ribeiro, 1979, p. 94)
Quando se pensa numa comida apetitosa, a
deixar água na boca, tende-se a recordar a ima-
gem da preta velha maquinando pratos de requin-
tes maquiavélicos. No regime alimentar brasileiro,
a contribuição africana afirmou-se principalmen-
te pela introdução do azeite-de-dendê e da pimen-
ta-malagueta, tão característicos da cozinha
baiana; pela introdução do quiabo; pelo maior uso
da banana; pela grande variedade na maneira de
preparar a galinha e o peixe. Várias comidas por-
tuguesas ou indígenas foram no Brasil modifica-
das pela condimentação ou pela técnica culinária
do negro, alguns dos pratos mais caracteristica-
mente brasileiros são de técnica africana: a farofa,
o quibebe, o vatapá (Freyre, 1966, p. 489).
 Os serviços culinários, no período colonial,
tiveram um prévio escalonamento. As pretalhonas,
as escolhidas, instigaram o âmbria com mãos de
tecelã. Mas houve negros incapazes de servir no
eito, com tendências a maricas, que foram
inigualáveis no preparo de quitutes. Homens
efeminados a desejarem manifestar os seus pen-
dores no espaço dedicado à mulher, o da cozi-
nha. Talvez até para provar a capacidade de exe-
cutar tarefas de tradição não masculina,
capricharam em sutilezas, agudamente “satânicas”
no que tange à expressão de uma gastronomia
sofisticada. Freyre realça: Dentro da extrema es-
pecialização de escravos no serviço doméstico das
casas-grandes, reservaram-se sempre dois, às ve-
zes três indivíduos, aos trabalhos de cozinha. De
ordinário, grandes pretalhonas; às vezes negros
incapazes de serviço bruto, mas sem rival no pre-
paro de quitutes e doces. Negros sempre
amaricados; uns até usando por baixo da roupa
de homem cabeção picado de renda, enfeitado
de fita cor-de-rosa; e ao pescoço tetéias de mu-
lher. Foram estes, os grandes mestres da cozinha
colonial (Freyre, 1966, p. 489).
Desse modo, a cozinha brasileira
africanizava-se, granjeando a inspiração exótica
dos seus acepipes. Exuberante. Indiscreta.
Histriônica. Com donaires agudíssimos. Gordas e
alegres, as pretas orgulhavam-se dos pratos que
elas próprias elaboravam. Novidades a toda hora.
Temperos excêntricos vindos de uma África não
menos excêntrica. A fortuna aconteceu no brio
do paladar e na adequação a um regime tropical-
mente sensual. Uma dieta que se adaptava ao calor
excessivo de regiões quentes e úmidas. Ao mes-
mo tempo, refeições buriladas em pimentas e
molhos, o que sugeria aparentes incoerências para
um clima de altas temperaturas. As inconexões
demonstraram a versatilidade e a combustão do
temperamento africano, intensamente explosivo.
O clima tropical, com certeza, não determinou,
mas concorreu para a extroversão culinária. O
Nordeste aceitou de muito bom grado as ambrosias
de uma etnia que soube mimetizar origens e
atavismos com o erudito modo de ser de um Oci-
dente “civilizado”. A mistura deu certo.
Criou-se um sincretismo culinário, de saibos
vivos e alguns até berrantes. Senhora de densos
“refogados”, a negra atraiu para si atenções e se-
gredos que se anelavam em “armadilhas” capa-
zes de ofuscar o brilho da portuguesa. Exerceu,
com uma certa maledicência, o desafio da mesa.
Há que se render vênia a essa emulação. Quem
duvidará da competência da negra na arte de co-
zinhar? Mocotós, vatapás, mingaus, pamonhas,
canjicas, acaçás, abarás, arroz-de-coco, feijão-de-
coco, angus, pão-de-ló-de-arroz, pão-de-ló-de-
milho, rolete de cana, isto é, rebuçados etc (Freyre,
1966, p.490). Africano também é o acarajé, prato
precioso na Bahia: feito com feijão-fradinho rala-
do na pedra; como tempero leva cebola e sal; a
massa é aquecida em frigideira de barro onde se
derrama um bocado de azeite-de-cheiro. Além
das receitas genuínas, a africana sobressaiu-se na
práxis da adaptação e no apuro dos doces lusita-
nos à Terra do pau- Brasil. E quebrando arestas,
ajeitandoali ou acolá, os ingredientes foram do-
sados com a mestria do amálgama cultural. É nos-
sa opinião que no preparo do próprio arroz-doce,
tradicionalmente português, não há como o de
rua, ralo, vendido pelas negras em tigelas gordas
donde o guloso pode sorvê-lo sem precisar de
colher. Como não há tapioca molhada como a do
tabuleiro, vendida à maneira africana, em folha
de bananeira ( Freyre, 1966, p. 490, 491).
Dentre os pratos africanos que se impuseram
na mesa patriarcal, e firmaram-se até com uma certa
arrogância, distinguem-se: o caruru e o vatapá. Os
eleitos. Os mais apreciados. Os que se fixaram com
uma autenticidade quase intocada. Sem retoques
Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 11
significativos. Puros e absolutamente distintos. En-
sina Freyre: Prepara-se o caruru com quiabo ou fo-
lha de capeba, taioba, oió, que se deita ao fogo
com pouca água. Escoa-se depois a água, espreme-
se a massa que novamente se deita na vasilha com
cebola, sal, camarão, pimenta-malagueta seca, tudo
ralado na pedra de ralar e lambuzado de azeite-de-
cheiro. Junta-se a isto a garoupa ou outro peixe as-
sado (Freyre, 1966, p. 492)
Por muito tempo, a mesa do engenho foi afri-
cana. Pelo menos, até meados do século XIX. O
paladar girou em torno das variações da negra, que,
habilmente, articulou doses “marotas” de condi-
mentos. Arte, acima de tudo arte, subscreveu a
mescla das influências, misturando especiarias e
retirando-lhes as possíveis indisposições. Graduan-
do o alimento com ternura e ofertando-o ao meni-
no ou à menina com gesto maternal. Freyre asse-
vera: A ama negra fez muitas vezes com as palavras
o mesmo que com a comida: machucou-as, tirou-
lhe as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando
para a boca do menino branco as sílabas moles.
(...) Palavras que só faltam desmanchar-se na boca
da gente (Freyre, 2003, p. 387).
Não se pode falar em culinária nacional sem
remeter ao mastro balizador da espaventosa
glicose. A arte do doce espargiu-se do Nordeste
para o Brasil afora. A sua expressão sociológica,
econômica, sentimental advém da família patriar-
cal, gorda, extensiva, horizontal, a repousar na
imensidão de um monopólio canavieiro, orgulhoso
de exclusivismos. A escravidão propiciou o culto
da hipérbole da sacarose. A cana ofertava-se com
largueza, e a mão-de-obra escrava concretizava,
em dispendiosas e complicadas receitas, o telúrico
e o bucólico degustar da invejada especiaria.
Na gangorra do açúcar, não se mediram es-
tímulos para açular o paladar – e já asseverava
Eduardo Prado que o paladar corresponde à últi-
ma sensação a desnacionalizar-se no homem. A
escrava foi fundamental na produção do doce. As
intermináveis receitas reivindicavam o ofício da
persistência, longas tardes à beira do fogão, a vigi-
ar as panelas em que se preparavam caldas em
ponto de visgo. Porções estrambóticas entornaram
quilos de açúcar, de rapadura, de mel – o mel de
abelha indígena que, segundo José de Alencar,
morava nos lábios de Iracema. Ovos e mais ovos
esbanjavam dos tachos, borbulhando o creme, que
se transformaria em refinados postres. Exigiu-se o
máximo de perseverança para levar a termo os
“preciosismos” da doçaria. A constância, a resig-
nação, a firmeza da africana acentuaram-se na
realização das fórmulas prescritas.
Somente a pasmaceira da casa-grande per-
mitia operacionalizar o fabrico de doces compli-
cadíssimos. Tempo. Horas. Pacatez. O complexo
da cana, com as suas derivações, jamais teria se
validado com tamanha efervescência, não fora a
quantidade de escravas, o tédio das horas mornas
e intermináveis, o pausado badalar do relógio, os
minutos por consumir, o longo intervalo do nada...
Cedo começava o preparo. Receitas demoradas,
demoradíssimas, só explicadas pelo excesso de
ócio. Sinhás-donas gulosas e adictas de glicídios à
espera da catarse alimentar. Houve, no Brasil, uma
maçonaria do doce, isto é, um poder coeso de
mulheres sobre o sigilo das receitas de bolo de
família. O caderno de receitas – período em que
as mulheres já escreviam – foi repassado de gera-
ção a geração, através de um inventário sentimen-
tal. Não se banalizou o receituário gastronômico
em mãos à-toa. Prevaleceu uma intencional e es-
merada escolha na descendência dos bolos e do-
ces de família. A doçaria patriarcal, recebeu-a a
filha/sobrinha eleita, aquela que garantisse a dis-
crição do claustro da glutonaria. A história do açú-
car guarda fortes veios de privacidade. De misté-
rios de família. De endogamia culinária.
O doce e a escravidão combinaram-se em
prolongados passadios de fartíssimos manjares. Um
e outro estiveram tão juntos que parece difícil elidi-
los. O Padre Antônio Vieira identificava o Brasil
com o Nordeste, e o Nordeste com o açúcar, ou
mais especificamente, com o negro a serviço do
açúcar. A paisagem dulcificou o desenvolvimento
de requintadas guloseimas, em razão da matéria-
prima abundante. A cana, o massapê, a escravi-
dão. Subtraindo um desses elementos, com cer-
teza, a doçaria não teria alcançado o paroxismo
da culinária brasileira dos tempos de outrora.
Há de se particularizar a tipologia das frutas,
essas dulcíssimas, a aliarem-se à cana na conjuga-
ção do supinamente melífluo. O paladar ajustou-
se, pois, ao que vinha de fora – de Portugal e da
África. O endógeno e o exógeno acasalaram-se.
Tudo contribuiu para que na Nova Lusitânia as
receitas com base nos glicídios proliferassem. De
Portugal, sobretudo dos mouros, chega-nos uma
herança singularmente açucarada. Freyre elucida:
Note-se do açúcar que se tornou abundante na
cozinha e na doçaria européias, a partir do século
Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 12
XVI, que grande parte dele era de engenhos do
Brasil. Tanto que a palavra, de uso tão brasileiro,
mascavo tornou-se, desde então, inglesa. E a mar-
melada e a goiabada brasileira ganharam, desde
velhos dias, apreciadores europeus. Inclusive a
goiabada apreciadíssima pela gente nordestina..
(...) O que é doce, afinal? Dizem os dicioná-
rios que é aquilo que tem um sabor como o de
açúcar ou de mel; e que, assim sacarino, não é
amargo, nem salgado, nem picante; e – ainda – a
composição que é temperada com açúcar, mel ou
outro ingrediente sacarino (Freyre, 1987, p. 34,
44). A representação do doce no Nordeste se dá
com tamanha veemência que aponta para a for-
mulação de uma Sociologia do Doce, eivada de
traços de confeitaria, pastelaria, e estética de so-
bremesa, o que leva a implicações socioculturais
da maior relevância.
O açúcar venceu. E venceu com a escravi-
dão. De mãos dadas com o massapê. Na casa-
grande vicejaram os “torpedos” do doce. E o luxo
da sobremesa, dos doces e das guloseimas de açú-
car [são] de criação mais pernambucana do que
baiana. (Freyre, 2000, p. 508, 509)
O regime escravista não só possibilitou a arte
da sobremesa através do exercício da paciência
bíblica como aprimorou a estética da sua apre-
sentação. Os caprichos foram completos. Em tor-
no do doce brotou uma ritualística quase mitoló-
gica. O doce exigiu finas devoções: homens,
mulheres, crianças à sua volta. A liturgia reivindi-
cou o máximo de reverência. Crianças adultizadas,
mulheres subjugadas, patriarcas hipnotizados pelo
poder econômico. E a escravidão, a selar a vitória
do imperialismo açucareiro. Gilberto Freyre afi-
ança: Sem a escravidão não se explica o desenvol-
vimento, no Brasil, de uma arte de doce, de uma
técnica de confeitaria, de uma estética de mesa,
de sobremesa e de tabuleiro tão cheias de compli-
cações e até de sutilezas e exigindo tanto vagar,
tanto lazer, tanta demora, tanto trabalho no pre-
paro e no enfeite dos doces, dos bolos, dos pra-
tos, das toalhas e das mesas. Só o grande lazer das
sinhás ricas e o trabalho fácil das negras e das
molecas explicam as exigências de certas receitas
das antigas famílias das casas-grandes e dos so-
brados; receitas quase impossíveispara os dias de
hoje (Freyre, 1987, p. 55, 57,58).
Os pratos ou tabuleiros nos quais se acomo-
davam as guloseimas eram enfeitados de modo a
alucinar os olhos. As negras recortadoras esmera-
vam-se em detalhes e mais detalhes: ritmos
inventivos, inspirações fantásticas, visando a
embelezar a oferenda do produto. E o princípio
da gula é, antes de mais nada, plástico, com acen-
tos pictóricos. O olhar antecipa o olfato na “fer-
mentação” do apetite. A estética da ornamenta-
ção aprimorou o espetáculo “pirotécnico”.
E a arte fez-se no açúcar e por meio do açú-
car. Os tabuleiros ficaram famosos pela delicade-
za do rendilhado e pela coreografia poética. Do-
ces produzidos por negras e embelezados por
negras. Algumas delas forras, que iam vendê-los
na rua, exibindo, assim, dotes físicos e culinários.
Bolos e doces, coisas de doçaria, de pastelaria e
de cozinha, estão entre as que o autor vem consi-
derando mais atraentes do ponto de vista pictóri-
co e não apenas gastronômico; do artístico e não
apenas do sociológico. (...) Mas o legítimo doce
ou quitute de tabuleiro foi o das negras forras. O
das negras doceiras. Doce feito ou preparado por
elas. Por elas próprias enfeitado com flor de papel
azul ou encarnado. E recortado em forma de co-
rações, de cavalinhos, de passarinhos, de peixes,
de galinhas – às vezes com reminiscência de ve-
lhos cultos fálicos ou totêmicos. Arrumado por
cima de folhinhas secas de banana. E dentro de
tabuleiros enormes, quase litúrgicos, forrados de
toalhas alvas com pano de missa. Ficara, célebres
as “Mães Bentas (Freyre, 1966, p. 490)
Com a desafricanização da mesa nas primei-
ras décadas do século XIX, o brasileiro perdeu o
hábito de verduras, tão do agrado do negro. Tor-
nou-se um abstêmio de vegetais: Ficou tendo ver-
gonha de suas mais características sobremesas – o
mel ou melado com farinha, a canjica temperada
com açúcar e manteiga. Só se salvaria o doce com
queijo (Freyre, 2000, p.510). O pão surgiu como
a grande novidade do século XIX. Antes pontifica-
ra o complexo da mandioca, tendo sido o trigo
abandonado, por força das circunstâncias, pelos
nossos colonizadores. Naturalmente uma mudan-
ça de gosto que custou ao lusitano uma boa dose
de sacrifício. Foi a época do beiju de tapioca, ao
almoço, e, ao jantar, a farofa. Ainda: o pirão es-
caldado ou a massa de farinha de mandioca es-
palhada no caldo do peixe ou de carne. O feijão
representou o prato do quotidiano – feijoada com
carne salgada, cabeça de porco, lingüiça, muito
tempero africano. Após a Independência, a cozi-
nha brasileira sofreu a influência direta da france-
sa. Na verdade, neste período, o Brasil aderiu a
Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 13
galicismos de toda a ordem. Diz Freyre: Os livros
franceses de receita e de bom tom começaram o
seu trabalho de sapa.(...) Manteiga francesa, bata-
ta-inglesa, chá também à inglesa, gelo – tudo isso
agiu no sentido da desafricanização da mesa bra-
sileira, que até os primeiros anos da Independên-
cia estivera sob maior influência da África e dos
frutos indígenas (Freyre, 1966, p. 495).
O gelo foi introduzido em 1834, trazido pela
primeira vez ao Brasil por um navio americano, o
Madagascar. A sua chegada avultou em sucesso,
pois os “novos” brasileiros eram grandes bebedo-
res de água em virtude do calor tropical, do ex-
cesso da pimenta e da quase libidinal ingestão do
açúcar. A pimenta, já antiga conhecida dos índios
– foi reforçada pelos negros, apreciadores da
malagueta – a pimenta e o açúcar se dissemina-
ram como produto tanto da gente simples como
da mais sofisticada.
A desafricanização esbarrou diante dos
purismos da europeização. Mediações foram ne-
cessárias para que o resultado ocorresse sem con-
flitos. Os excessos desfilaram entre a cozinha e a
sala, ou da cozinha para a sala. Do caruru ao doce,
o decálogo gastronômico galgou uma imensa ta-
bela de variações. Pimentas, em demasia; tempe-
ros, em estado quase natural; doces, a lembrar
rapadura... Em resumo: um banquete escandalo-
samente agressivo, a carecer reparos e alguns
abrandamentos.
A exuberância alimentar da culinária negra
suscitou naturalmente retoques adaptativos. Uma
certa parcimônia não lhe cairia mal, face aos
histrionismos de sabores. É interessante ressaltar
esse aspecto por envolver a emocionalidade de
um povo, o africano, e por testemunhar o caráter
explosivo de uma cultura que não receou doar
seus valores como os recebeu: sem polimento. Em
estado puro. Quase natureza primitiva. Os quitutes
se excederam em agudos sabores. Um roteiro, o
afro-brasileiro, com enorme vocação para os trans-
bordamentos. Gilberto Freyre adiciona: Não ne-
gamos que a influência africana sobre a alimenta-
ção do brasileiro necessitasse de restrições ou de
corretivo no seu exagero de adubos e de condi-
mentos. ( Freyre, 1966, p. 495)
Não há cozinha mais explícita que a africa-
na, como não há canção de ninar mais embaladora
que a da mesma africana. A negra dominou e foi
percuciente no passado de nossas tataravôs.
Polifônica, polissêmica, polivalente. A sua influ-
ência destacou-se não somente nos quitutes e nos
arranjos das travessas, como igualmente na abun-
dância e na diversidade da mesa brasileira, cuja
variedade de timbres homologa-lhe um caráter
peculiar, extralusitano e marcadamente atávico.
Brasil, brasileiro, com gosto e cheiro de
tropicalidade. Repetindo Carlos Drummond de
Andrade, no poema A Mesa, concluo: E não gos-
tavas de festa.../ Ó velho, que festa grande/ hoje
te faria a gente./ E teus filhos que não bebem/ e o
que gosta de beber,/ em torno da mesa larga,/ lar-
gavam as tristes dietas,/ esqueciam seus fricotes,/
e tudo era farra honesta/ acabando em confidên-
cia. (...) Estamos todos vivos./ e mais que vivos,
alegres. (Drummond, 2001, p.104)
BIBLIOGRAFIA
FREYRE, Gilberto. Açúcar – Em torno da Etnografia
da História e da Sociologia do Doce no Nordeste
Canavieiro do Brasil. Recife: Massangana, 1987.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala – Forma-
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FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala – Forma-
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Patriarcal. 14ª edição. Recife: Imprensa Oficial.
FREYRE, Gilberto. A Presença do Açúcar na Formação
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Açúcar e do Álcool, 1975.
RIBEIRO, Darcy. Ensaios Insólitos. Porto Alegre:
L&PM Editores, 1979.
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Antologia
Poética. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2001.
14
Para uma Antropologia da Alimentação Brasileira
Claudia Maria de Assis Rocha Lima
Graduada em Comunicação Social e pós-graduada em História do Brasil. Escritora e pesquisadora da cultura negra e
cultura popular. Folclorista, fotógrafa e artista plástica. Mestranda em Gestão de Políticas Públicas do Instituto de Forma-
ção e Desenvolvimento Profissional da Fundação Joaquim Nabuco.
Ao longo da historiografia da ali-
mentação pelo mundo, a maneira de
preparar os mesmos alimentos diferem,
de um povo para outro, ou mesmo di-
ferenciam-se em seus próprios ambien-
tes, em função da variação tecnológica,
econômica e social.
Na fixação do homem a terra, tra-
ços formadores de um novo sistema de
vida foram identificados em 7000 a.C.,
no Neolítico, na Era da Revolução Agrí-
cola, no continente africano. O inusita-
do desenvolvimento deste complexo
cultural, advindo de um sistema de vida
nômade, ou semi-sedentário de produ-
zir alimentos e recolher o pescado, es-
tabelecem elementos que justificam as
moradias fixas próximas às margens de
rios e lagos.
Plantas e animais disponíveis,
como material inicial para a
domesticação, foram pressupostos na
acumulação de alimentos. O grupo que
pretendesse crescer, para tanto, basea-
va-se na produção de alimentos.
Da Pré-História e das primeiras
civilizaçõesà época contemporânea,
identidades em formas alimentares fo-
ram levadas pelo mundo, os alimen-
tos e as bebidas do Antigo Egito, os pro-
dutos e recursos alimentares dos
Fenícios e Cartaginenses, os modelos
do mundo clássico, os banquetes ro-
manos, as refeições gregas, os bárba-
ros e cristãos na aurora da cultura ali-
mentar européia, as cozinhas
medievais, a alimentação oriental e
africana, a cozinha árabe e suas nor-
mas islâmicas, os costumes alimenta-
res judeus, entre outros tantos.
Estudar a cultura na mesa brasilei-
ra é ir bem mais além das tradições e
influências dos nativos indígenas, das
iguarias africanas e das suculências por-
tuguesas. Pois, a cozinha é um reativo
de rara sensibilidade para avaliar a cul-
tura de uma população, é um conjunto
de signos e símbolos que ao serem in-
terpretados dão compreensão a histó-
ria civilizatória de um povo.
A alimentação como objeto de
conhecimento é, também, uma ferra-
menta de educação, pois, as tradições,
as representações, as linguagens, as idéi-
as e teorias despertam curiosidades, ve-
rificações e comunicações. Quanto mais
o indivíduo percebe as diferenças, mais
aumenta as possibilidades da busca do
saber. A complexidade humana reúne
e organiza conhecimentos dispersos, o
ensino através das origens do cultivo,
do preparo, do servir, do comer, dos
tabus, dos hábitos e comportamentos,
das superstições e costumes alimenta-
res, estabelece uma comunicação entre
disciplinas e a compreensão da trajetó-
ria das sociedades humanas. A cultura
é construída por fragmentos, separações
e distinções que se reúnem e se articu-
lam. A coisa e a causa se confundem.
Cultura e culto procedem do mes-
mo verbo latino colo, focando o seu sig-
nificado no cultivo, nos deslocando as
matizes do passado pela ocupação do
chão, amarrando os signos que apon-
tam o ser humano preso a terra e, nela,
abrindo covas que lhe fornecem o ali-
mento e lhe abriga depois da morte.
Cultus é sinal de que a sociedade
que produziu o seu alimento já tem
Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 15
memória. O culto faz do solo o local do sagrado.
A cova que receberá o grão que fora transforma-
do em alimento poderá ser, também, a cova que
receberá os que partiram. Os sepultados, na ver-
dade, são plantados para que renasçam. O solo
no qual repousam os antepassados é o mesmo do
qual brota, a cada ano, o sustento alimentar do
corpo, inferindo aos espíritos dos antepassados a
cooperação na germinação das plantas cultivadas.
É o ciclo do nascer e do morrer. Do plantar
e do renascer. Da luta pelos meios da sobrevi-
vência e do religar ao passado pelas mediações
e pelos laços que irão sustentar a identidade das
origens.
A Antropologia da alimentação no Brasil têm
como referencial, as obras de Gilberto Freyre. No
livro “Assucar: algumas receitas de doces e bolos
dos engenhos do Nordeste” publicado em 1939,
tendo a segunda edição, aumentada e revisada,
em 1967, com o subtítulo, “em torno da
etnografia, da História e da Sociologia do doce no
Nordeste canavieiro”, ressalta a influência subje-
tiva do açúcar no sentido de adoçar maneiras,
gestos e palavras. De forma definitiva, em Casa
Grande & Senzala, Freyre, trata da alimentação
como valor essencial para a análise sociológica,
até então, relegada às categorias secundárias da
investigação científica.
No Brasil os elementos trazidos nas bagagens,
na memória, intrínsecos nas heranças culturais,
vivo nos hábitos, fiéis nas tradições, aculturaram-
se, reformularam-se, reelaboram-se numa cozinha,
que em um primeiro momento mobiliza a base
alimentar do índio, nativo brasileiro.
Traços marcantes das culturas dos nossos
antepassados indígenas, tais como gêneros alimen-
tícios, práticas de cultivo e utensílios para fazer a
comida, para guardá-la, para pisar o milho ou o
peixe, moquecar a carne, espremer as raízes, pe-
neirar as farinhas, utilizando os alguidares, as
urupemas, os tipitis, as cuias, as cabaças, os balaios,
foram incorporados à cozinha colonial, e,
freqüentemente encontrados nos dias de hoje nas
casas do norte, do centro e do nordeste do Brasil.
Das comidas preparadas pela mulher indí-
gena brasileira, as principais eram as que faziam
com a massa ou a farinha de mandioca, sendo
adotada pelos colonos no lugar do pão de trigo,
tornando-se a base do regime alimentar de todo
colonizador. A mandioca como a mais brasileira
de todas as plantas, tem uma ligação direta com
o desenvolvimento histórico, social e econômico
do Brasil.
Assim como ensinou ao português o cultivo
e o consumo da mandioca, o indígena fez o mes-
mo com o milho. Alimento tradicional dos povos
americanos, o milho foi o único cereal encontra-
do no Brasil e levado para a Europa. A farinha de
milho foi comida de escravos e de bandeirantes,
não tão consumida quanto à farinha de mandio-
ca, foi difundida por todo o Brasil, através do pre-
paro do cuscuz, este, por sua vez, transformado
na cozinha brasileira, da sua origem árabe à base
de arroz, para a reelaboração com farinha de mi-
lho e coco.
A tradição alimentar indígena, com as frutas
e os frutos brasileiros, combinados com as especi-
arias, trazidas pelos portugueses, tais como: cra-
vo, canela, gengibre, noz-moscada e erva-doce e,
mais, o modo tradicional do fazer bolos, doces e
conservas, passados pela alquimia do preparo bra-
sileiro, como parte de um processo intercultural,
no qual, o milho, nativo do Brasil; o açúcar de
cana, planta originária da Ásia e o coco, de pro-
cedência indiana, resultaram em complexas re-
ceitas, guardadas em segredo, como verdadeiras
maçonarias.
O português foi o principal europeu forma-
dor da nossa árvore genealógica. Mas, é necessá-
rio esclarecer que a formação étnica do nosso co-
lonizador português foi uma decorrência de longos
anos de aculturação e assimilação. Desde os tem-
pos mais primitivos do continente europeu, fize-
ram parte da sua história: os celtas e os íberos,
tendo, também, em sua estrutura civilizatória, os
povos mediterrâneo-camitas, originários da África
do Norte. As invasões romanas fazem entrar em
território português povos diversos: sírios,
armenóides, itálicos. A influência judia fixou-se,
impondo aspectos políticos e sociais na difusão
de sua cultura no território português.
Dos romanos, recebeu a formação portu-
guesa variada influência, que, de modo geral, tor-
nou-se básica, no levantamento do nível intelec-
tual da população, na facilidade da comunicação
através da construção de estradas, na edificação
de cidades, no sentido municipalista, na organi-
zação política, bem como o cristianismo, que se
tornou um dos fundamentos de sua formação
cultural. Às invasões germânicas, sucederam-se
as romanas, resultando na integração de novos
grupos humanos na população portuguesa, en-
Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 16
tre eles, alanos, vândalos, godos, suevos,
visigodos, com a predominância do elemento de
procedência nórdica. Com os germanos, intro-
duziu-se, em Portugal, a aristocracia, que veio
chocar-se com a democracia romana.
Invasões árabes levaram a Portugal novos
elementos étnicos e novos valores culturais, onde
perduram até hoje, na arquitetura, com os
arabescos mouriscos; na agricultura, na introdu-
ção de técnicas de irrigação; nos minhos de água;
nas indústrias; nos trabalhos em pele; no aperfei-
çoamento de tecidos de lã e linho; nas artes; na
língua; nos trajes. A entrada dos mouros, que eram
escravos trazidos da Mauritânia, país que fica no
norte africano, entre o mundo árabe e a chamada
África Negra, trouxeram características sutis à cul-
tura portuguesa. Dos mouros, sabe-se que muitos
dos libertos isolaram-se em grupos, formando as
mourarias. Assim, o colonizador português, trou-
xe permeando o seu processo histórico a
aculturação, que decorreu durante séculos, até a
sua formação quinhentista. Neste contexto,sua
historiografia justifica a facilidade em Instalar-se
em novas terras.
Ao fincar-se em definitivo no Brasil, o por-
tuguês recriou o ambiente familiar, cercando-se
dos recursos de curral, quintal e horta. Trouxe
vacas, touros, ovelhas, cabras, carneiros, porcos,
galinhas, gansos, pombos e o mais disputado
animal entre os indígenas, o cachorro. Trouxe
também as festas tradicionais e as devoções aos
santos católicos. Outros verdes vestiam a nova
terra: figo, romã, laranja, limão, lima, cidra, me-
lão e melancia. Pepino, coentro, alho, cebola,
hortelã, manjericão, cenoura e bredos. Tornaram-
se, habituais, também, o uso da manteiga, do
ovo, do azeite e do vinho. As conexões geográfi-
cas realizadas pelos portugueses possibilitaram o
desenvolvimento da diversificação na produção
de alimentos no Brasil.
Compondo a tríade formadora do nosso
tronco cultural, sobre o qual a sociedade brasilei-
ra foi modelada, o negro africano, ainda em sua
terra natal, sofreu influências de diversas culturas.
O processo de expansão ultramarina, faz com que
o português chegue ao continente africano no sé-
culo XV, exercendo junto com outros países vizi-
nhos, um amalgamento de culturas. Essas influên-
cias acrescida da diversidade étnica africana, teve
maior peso na formação do povo brasileiro, o
patrimônio cultural do africano negro, trouxe pe-
culiaridades comuns e valores diversos, contribu-
indo para que a transmissão da cultura africana
não fosse apenas por um, dois ou três elementos,
mas, de inúmeras nações com culturas variadas e
impregnadas pela influência européia e islâmica.
Os ciclos do açúcar, do ouro e do café, for-
maram o caminho das iguarias africanas pelo Bra-
sil. As sociedades secretas e os ritos religiosos, com
suas comidas sagradas, resignificaram as oferendas
dos orixás, em pratos do cotidiano da mesa do
brasileiro.
A palmeira, de onde se extrai o azeite-de-
dendê, o óleo de palma ou o azeite-de-cheiro,
plantada pela orla ocidental e oriental africana,
foi trazida para o Brasil nas primeiras décadas do
século XVI, possibilitando o acesso a um dos ele-
mentos primordiais da culinária afro-brasileira.
A cozinha africana firmou suas característi-
cas e elaborou suas técnicas, depois do Brasil ter
sido povoado, na segunda metade do século XVI.
Foi o período em que as espécies nativas brasilei-
ras foram transladadas ao continente africano, tais
como, a mandioca, a macaxeira-aipim, o milho,
o amendoim, o caju, entre outros.
O vatapá representante oficial da cozinha
afro-brasileira e, principalmente, da baiana, foi
uma concepção nacional, na qual, o leite de coco,
junta-se à farinha de milho ou a farinha de man-
dioca e ao azeite de dendê para compor com o
peixe e os camarões um prato singular agregador
das culturas indo-íbero-afro. Na África o leite de
coco não possui o prestígio que usufrui no Brasil,
ao que se sabe, vatapá não é palavra de nenhum
idioma banto. É apenas em Angola, que alguns
pratos se aproximam do vatapá, o muambo de
galinha e o quitande de peixe. O vatapá foi de-
senvolvido nas cozinhas baianas, tomando o rumo
das mesas brasileiras e continuando a evoluir e a
complicar-se em sua química, pela adição e subs-
tituição dos seus componentes pelas diversas re-
giões brasileiras.
No imenso território que é o Brasil, seja na
zona rural ou na zona urbana, nossos ancestrais
africanos, deixaram enraizadas as suas culturas,
miscigenadas pela confluência de gostos, aromas
e sabores, além do folclore, da arte, da música,
da dança e de outras influências encontradas na
cultura brasileira.
A cozinha nossa nacional com a presença
marcante da cultura indígena, negra e portuguesa
desperta o deleite, no prazer da mistura.
Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 17
As sabedorias do plantar, a prática do co-
lher, as técnicas de conservar, a arte de preparar,
o ritual do servir, o prazer do comer e degustar,
revelam a marcha da formação do povo brasilei-
ro. O desbravamento do nosso país pode ser lido
através do multiculturalismo alimentar. Grupos
étnicos diversos aqui, fixaram-se, formando um
ladrilho cultural, reelaborados em cada região, nas
combinações das sobrevivências dos hábitos e cos-
tumes, instaurando-se como indicadores das nos-
sas raízes e da nossa identidade.
18
Doutor Gilberto Freyre e o Reconhecimento da Culinária
como Fenômeno Cultural
Eliane Asfora
A culinária sempre teve um papel
muito importante na formação cultural
dos povos. Não se pode negar que a
importância da culinária vai muito mais
além do que um simples interesse de
rodas femininas. Isso seria subestimá-la.
Sabemos que a alimentação de um povo
reflete o seu próprio modo de vida. Não
se pode, portanto, desprezar a culinária
como importante fator cultural.
Entretanto, nem sempre houve
esse reconhecimento. Coube ao Dr.
Gilberto Freyre, com sua forte veia
regionalista e progressista, chamar a
atenção, em 1926, no seu “Manifesto
Regionalista”, para a importância da
culinária na formação da nacionalida-
de brasileira, o que até então ninguém
tinha tido coragem de fazer.
Mais adiante, em 1939, em sua
obra “Assucar – Algumas receitas de bo-
los e doces do NE do Brasil”, ajudou a
quebrar ainda mais essa resistência em
admitir a culinária como fenômeno cul-
tural, pois, pela primeira vez, alguém
ousava admitir que as receitas culinárias
propulsavam muito mais que simples
conversas de mulheres. Nessa obra, em
que ele escreve sobre diversas receitas
culinárias seculares recolhidas junto a
famílias e engenhos da região, Dr. Gil-
berto chega a escandalizar alguns con-
servadores que, indignados por ele per-
der tempo com o que consideravam
simples “fricote feminino”, passaram a
apelidá-lo, pejorativamente, com vários
nomes atribuídos a quitutes de açúcar.
Falando em açúcar, é importante
ressaltar a sua importância na culinária
nordestina.
Durante muito tempo, o açúcar
foi a principal fonte de riqueza de nos-
sa região. Mas já houve épocas em que,
curiosamente, quando ainda era tido
como uma raridade, chegou a fazer
parte dos bens que a noiva levava
como dote.
O açúcar, porém, não gerou ape-
nas lucros. Inspirou também diversos
artistas. Assim é que vemos muitos es-
critores, à semelhança do Dr. Gilberto,
retratando a realidade dos engenhos,
também inúmeros pintores assim o fi-
zeram. E, como não poderia deixar de
ser, a culinária. Afinal, como dizia Dr.
Gilberto, o nordestino trata-se de um
povo que, “depois de salgar o estôma-
go”, não dispensa o “adoçar da boca”.
O açúcar, doce como todos que-
rem que a vida seja, já era usado na
culinária pernambucana desde a épo-
ca das casas-grandes, despertando a
gula das pessoas. Os holandeses, por
sua vez, também eram grandes apre-
ciadores dos doces e, podemos ressal-
tar, das frutas cristalizadas, hoje utili-
zadas no tradicional bolo de noiva.
Chega a ser engraçado pensarmos que
o Conde Maurício de Nassau, ao
retornar à Holanda, levou em suas
bagagens, entre inúmeras outras coi-
sas, nada menos que 103 barriletes de
frutas confeitadas...
Hoje, sabemos que o famoso bolo
de noiva virou uma tradição em PE. E,
com muito orgulho, podemos dizer que
Dona Leonie Asfora teve um papel de-
cisivo para que isto se consolidasse.
Com a criatividade, que é característi-
ca do povo pernambucano, esta
Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 19
“pernambucana de coração” transformou o açú-
car em arte e ajudou a divulgar, através do seu
trabalho, o nosso estado, não só no restante do
país, mas, inclusive, fora dele, afinal muitas foram
as encomendas recebidas por ela ( e que continu-
am até hoje através de suas filhas) originadas de
Brasília, do sudeste do Brasil, passando pelos EUA,
Europa e até Japão. Com isso, ela não angariava
prestígio apenas para os seus bolos, mas também
para o nosso querido Leão do Norte.
E reforçando a tese do Dr. Gilbertode que a
culinária se revela como importante fenômeno
cultural, diferenciador dos povos, constatamos que
o bolo de noiva, feito à base das frutas cristaliza-
das que tanto atraíram os holandeses, e confeita-
do tal como Dona Leonie Asfora o consagrou,
mostra-se um produto, genuinamente, regional,
especialmente pernambucano, tanto que, se for-
mos em outras regiões do país, percebemos que
ele não é concebido nesses moldes e nos depara-
remos com bolos brancos, de chocolate, de no-
zes etc., a compor as mesas das noivas.
Dr. Gilberto foi testemunha do trabalho de-
senvolvido por Leonie Asfora. Acompanhou a tra-
jetória dessa piauiense, filha de imigrantes árabes,
sempre participando a arte dela nas festas famili-
ares e diversos eventos sociais aos quais se fazia
presente, nunca dispensando o chamado “bolo
de noiva”. Foi assim no casamento de suas filhas,
no aniversário de seus netos, nas festividades da
Fundação Gilberto Freyre etc.
Podemos afirmar, sem medo de errar, que,
pelas mãos de Dona Leonie Asfora, provou-se que
o açúcar, muito mais que insumo para doces,
pode-se revelar verdadeiro instrumento de arte.
E, pela coragem e ousadia de Dr. Gilberto, que a
culinária de nossa região, muito mais que saciar a
fome insaciável dos contumazes devoradores de
doces, revela-se, não só um diferenciador cultu-
ral dos povos, mas, antes, fonte de orgulho para
todos nós, família pernambucana: orgulho de ser
nordestino, orgulho de ser pernambucano, orgu-
lho de ter um Gilberto Freyre que nos ensinasse a
ter orgulho de nós mesmos...
20
Nordeste: ecologia, alimentação e cultura
Palavras de abertura da mesa-redonda, proferidas pelo professor Manoel Correia de Andrade,
coordenador da mesa, a que se seguiriam as intervenções dos expositores Maria Thereza Lemos de
Arruda Camargo, da USP, Rogéria Campos de Almeida Dutra, da UFMG, e Petrucio Nazareno, do
Restaurante Goya em Olinda.
O grande interesse neste seminá-
rio é analisar o relacionamento entre ali-
mentação, o meio ambiente e a cultura.
Assim os homens organizam o seu siste-
ma alimentar com uma certa dependên-
cia do meio natural, da disponibilidade
de acesso aos produtos que vai utilizar
na alimentação e ao preparar estes ali-
mentos eles vão naturalmente sofrer uma
forte influencia cultural. Assim no Nor-
deste os habitantes vieram de origens di-
ferentes, os portugueses e judeus da Eu-
ropa, os negros da África e os indígenas
já se encontravam na terra.
Ao se encontrarem esses três gru-
pos que se hostilizavam na luta pelo
domínio da terra e pela supremacia do
poder, os europeus levaram a vantagem
da maior dominação cultural,
tecnológica e econômica e tentaram
impor seus hábitos e costumes aos in-
dígenas, considerados por eles como
bárbaros e pelos negros escravizados e
trazidos da África. Mas estes europeus
logo viram que se encontravam em uma
terra diferente da sua, por suas condi-
ções naturais e que os produtos de que
dispunham na área de origem não se
encontravam no país, na colônia que
procuraram construir.
Aqui eles não dispunham dos ali-
mentos típicos da Europa, como o trigo,
o centeio, as frutas ditas de clima tem-
perado, os méis silvestres, os peixes e as
carnes sobretudo bovina e ovina. Tive-
ram assim que ir se adaptando a alimen-
tação com farinha de mandioca, que
chamavam desdenhosamente de farinha
de pau, com o milho, com os tubércu-
los, e com as frutas tropicais, algumas
delas logo tornadas indispensáveis a ali-
mentação como os cajus e o sapoti. Por
isto tratado de introduzir no novo pais,
animais domésticos da Europa, da Áfri-
ca e da Índia, para irem substituindo os
animais silvestres, muito abundantes e
facilmente caçados na época, como
antas, veados, macacos, tatus, pacas,
cotias e aves de médio porte.
Os vegetais europeus tiveram
maior dificuldade de transplante face
as dificuldades climáticas, mas os eu-
ropeus procuraram se adaptar aos pro-
dutos da terra e a introduzir espécies
africanas, das Índias e da Oceania,
como o coqueiro, o fruta-pão, a man-
gueira, a jaqueira, etc. que se adapta-
ram de tal forma ao nosso pais que ate
parecem nativas. Entre estas culturas
trazidas ao Brasil, destacou-se pela sua
maior importância a cana-de-açúcar
que alimentaria inicialmente a nossa
primeira atividade agro-industrial. De-
moraria muito a ser introduzida no pais
a cultura da vinha e a produção do vi-
nho que era alimento básico dos colo-
nos europeus, fazendo-os importar e
consumir muitas vezes já deteriorados
pelo efeito do tempo e do clima. O
mesmo aconteceria durante o domí-
nio holandês com os queijos importa-
dos que eram em geral consumidos
pelos colonos já bichados, em estado
de putrefação.
Mas estes colonos que logo se
miscigenaram tanto sexualmente, como
culturalmente com negros e índios sou-
beram desenvolver técnicas culinárias
e associando produtos de origem diver-
sas, dar uma cor local a alimentação
Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 21
brasileira. Em Pernambuco deve-se destacar-se a
importância do açúcar, que desenvolveu grandes
variedades de doçarias, que deliciavam as classes
melhor aquinhoadas da terra. Assim os
pernambucanos tornavam-se cedo gordos e vo-
luptuosos com o excesso de doces que comiam e
as facilidades de contatos sexuais com negras e
índias. Gilberto Freyre que estudou em profundi-
dade a formação da sociedade patriarcal brasilei-
ra chama a atenção para este fato em senhores de
engenho e autoridades do reino se cercavam de
filhos os mais diversos, mestiços de negros e índi-
as, ao lado dos brancos e seus solares patriarcais.
Na Bahia, embora seja forte a influencia ne-
gra na culinária com o uso da pimenta malagueta,
do azeite de dendê, do cravo e de outros produ-
tos na formação dos chamados pratos baianos,
considerados por muitos como africanos. Daí a
importante influencia e prestigio dentro e fora da
Bahia dos seus acarajés, vatapás e carurus.
E na região semi-árida a importância da fari-
nha de milho e a influencia árabe chegando ate la
com os seus cuscuz e com o uso freqüente do
leite. Conciliação muito feliz do milho com o lei-
te, segundo o geógrafo Josué de Castro, porque
um corrige as deficiências alimentícias do outro.
Mais recentemente se faz sentir a influencia
em expansão da cozinha italiana com o uso in-
tenso das massas e gaúcha, com o uso maximizado
da carne na alimentação nordestina. Finalizando,
aconselhando que leiam sobre o assunto o livro
Açúcar de Gilberto Freyre, passo a palavra aos
expositores que como especialistas melhor
aprofundarão o tema.
22
Estudo Etnobotânico da Mandioca (Manihot esculenta
Crantz - Euphorbiaceae) na Diáspora Africana
Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo
Centro de Estudos da Religião Duglas Teixeira Monteiro, USP/PUC.
INTRODUÇÃO
As relações interculturais que se
estabeleceram com a diáspora africana
depois da chegada das primeiras levas
de escravos africanos ao Brasil no sécu-
lo XVI, são marcantes no tocante às
plantas úteis, tanto medicinais como ali-
mentícias.
Os estudos de tais plantas, sob a
ótica da Etnobotânica, permitirão um
melhor conhecimento quanto as rela-
ções homem/planta em suas diferen-
tes dimensões, visando resgatar dos
grupos humanos o saber quanto aos
papéis que as plantas desempenham
nos diferentes ambientes culturais e os
significados que os grupos sociais lhes
atribuem.
Considerando a dispersão dos es-
cravos africanos, desde épocas pretéri-
tas, dentro da própria África e para além
mar, muitas espécies botânicas seguiram
os mesmos caminhos, pois, ao mesmo
tempo em que se traficava escravos, as
plantas de interesse comercial eram le-
vadas de suas regiões de origem, para
novas terras, para aí serem cultivadas
com o trabalho escravo.
O processo de dispersão das plan-
tas, contando sempre com o trabalho
escravo, permitiu que este não só tra-
balhasse a terra para seu cultivo,como
também, passasse a consumi-las como
alimento e como remédio.
A mandioca, sob a ótica da
diáspora africana, tendo em vista seu
papel na alimentação dos povos africa-
nos receptores e dos brasileiros é o ob-
jeto desta comunicação.
MATERIAL E MÉTODO
Dado o caráter interdisciplinar
que norteia os estudos de Etnobotânica,
vários autores que trataram da mandi-
oca nas diferentes áreas de suas especi-
alizações foram consultados, de forma
a permitir um melhor entendimento
quanto ao uso da mandioca e seus de-
rivados na alimentação do brasileiro e
dos povos africanos das regiões domi-
nadas pelos portugueses, a partir do
século XVI.
Torna-se importante destacar as
obras deixadas por cronista e cientis-
tas que desde o século XVI até nossos
dias vêm documentando os usos e
costumes alimentares no Brasil, des-
tacando o papel da mandioca, como:
Pero de Magalhães Gandavo; Fernão
Cardim; Gabriel Soares de Sousa;
Augusto Saint Hilaire, Spix e Martius
e, mais modernamente, Giberto
Freyre, Câmara Cascudo, A. J.
Sampaio, entre muitos e muitos ou-
tros, cujas obras e seus autores, arro-
lados na bibliografia apresentada no
final, foram de suma importância para
o entendimento dos fatos relaciona-
dos à mandioca na alimentação dos
povos brasileiro e africano.
Muitos dados sobre os hábitos ali-
mentares, em que a mandioca vem
comparecendo com bastante assiduida-
de na culinária do brasileiro e de povos
africanos em tempos passados e con-
temporâneos, foram coletados na
Internet, cujos sites estão identificados
em todas as citações, cujas informações
foram obtidas por esse meio.
Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 23
RESULTADOS
Manihot esculenta Crantz - Euphorbiaceae,
Origem: América do Sul (Brasil) (Joly &Leitão Fi-
lho, 1979:74)
Spix e Martius no século19, por não terem
encontrado a mandioca em estado silvestre, che-
garam a admitir sua origem africana, com base na
lenda de Sumé ou São Tomé divulgada por
Anchieta, na qual dizia que o Apóstolo São Tomé
a teria trazido consigo para o Brasil (Pereira,
1980:373). Dizia Anchieta que em São Vicente
estavam as pegadas de çumé que devia ser de São
Tomé.(Rodrigues, s/d:21). Também, disse Manuel
da Nóbrega em carta: é tradição antiga que veio o
bem-aventurado apóstolo São Tomé a esta Bahia
e lhes deu a mandioca e a banana São Tomé
(Cascudo, 1980: 723).
Nomes vulgares: aipim, macaxeira, mandi-
oca, mandioca-brava, mandioca-mansa, maniva,
maniviera, pão-de-pobre, uaipi. Em países de lín-
gua inglesa: cassava. Padre Anchieta em 1554
chamou a mandioca de pão dos trópicos e outros
diziam pão caboclo e pão nosso-de-cada-dia.
Princípios ativos: As raízes de mandioca re-
presentam importante fonte de energia de onde
se extrai amido e as folhas são ricas em vitaminas
A e C, ferro e cálcio, além de serem fonte de pro-
teína. www.abc.com.py:2417/suple/rural/anuários/
anuario2001/jun018.html [3/08/2003]
A planta toda apresenta o glicosídio
cianogenético, o princípio tóxico.
São muitas as variedades de mandioca exis-
tentes no Brasil, sendo que as mesmas podem ser
divididas em dois grupos: a mandioca brava, pró-
pria para a industrialização e imprópria para ali-
mentação, devido ao alto teor de glicosídio
cianogenético, com cerca de 0,02% a 0,03%;
mandioca mansa com baixo teor do princípio tó-
xico (cerca de 0,005% (FIBGE, 1980).
De fácil produção, a mandioca é cultivada
em todos os estados brasileiros. Oriunda de re-
gião tropical, encontra condições favoráveis em
todos os climas tropicais e subtropicais.
www.obatateiro.hpg.ig.com.br/mandioca.htm [3/
08/2003]
África, Ásia e América representam quase a to-
talidade da produção mundial de mandioca, sendo a
Nigéria o principal produtor do mundo e o Brasil o
segundo em produção. www.agrocadenas.gov.co/
inteligencia/int_yuca.htm [3/08/2003]
A CULTURA DA MANDIOCA
A primeira descrição da cultura da mandio-
ca no Brasil foi feita pelo cronista Magalhães
Gandavo em sua História da província de Santa
Cruz, de 1573.
No século 16, já se falava de diferentes cas-
tas de mandioca:
1. com hastes avermelhadas;
2. com pequenos ramos que se plantam em lu-
gares sujeitos a tempos tormentosos para que
não quebrem ao vento;
3. aquelas que se deixam criar, dá raízes de 5 a 6
palmos e muito grossas. A folha cozida o índio
come com pimenta, em tempo de escassez de
alimentos. (Sousa, 1974:88).
Conforme observado por Gabriel Soares de
Sousa (1974) no século 16, os indígenas planta-
vam por estaca, pedaços de mais ou menos um
palmo, retirados da rama, chamado-os manaiba
ou maniva, os quais eram enterrados até a meta-
de, em número de três a quatro em cada cova.
Cova não era entendida como buraco, mas sim
como montículos de terra cavada, bem afofada.
Esse plantio se fazia em forma ordenada, em filei-
ras, com seis palmos distante uma cova da outra.
Diziam que esta técnica fora ensinada por São
Tomé, aos índios.
Lendo os cronistas que andaram pelo Brasil
por diferentes épocas e regiões, percebe-se que
as técnicas do plantio da mandioca por eles des-
critas, sofriam pequenas variações, levando-nos a
crer em uma quase uniformidade em tais costu-
mes de lidar com a terra e manejo com as mudas.
A mandioca, depois de conhecida dos por-
tugueses, passou a ser considerada por Portugal
um elemento de fundamental importância para o
desenvolvimento de suas atividades relacionadas
não só às conquistas de novas terras como ao de-
senvolvimento do tráfico negreiro. Dessa forma,
tal importância recaía no valor nutricional desses
tubérculos que permitiam alimentar não só os
portugueses que iam se fixando nos pontos da
costa africana onde eram instaladas feitorias, como
também servia de alimentação dos escravos, tan-
to nos navios com nos diferentes pontos do Brasil,
onde eram negociados e levados por seus com-
pradores para diferentes áreas do país.
O indígena tinha por hábito deixar o solo
em repouso por um determinado tempo entre os
Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 24
plantios para que o solo se recuperasse e esse
hábito tem sua lógica, pois La mandioca absorve
del suelo más nutrientes que la mayoria de los
cultivos tropicales, y tiene um índice de extración
K/N (nitrogênio, fósforo e potássio) mui elevado.
Aún cuando la información es tan variable en
cuando a la cantidad de nutrientes que absorve,
puede expresarse en términos medios que para
cada tonelada de raíces, se necessitan aproxima-
damente 2,4Kg. de nitrógeno, 0,46Kg. de fóforo y
3,5Kg. de potásio (Cenoz &Lopez & Burgos, 2000)
PRODUTOS INDÍGENAS DERIVADOS D A
MANDIOCA
Segundo Maestri Filho (1978:85), os primei-
ros portugueses que chegaram ao Brasil já pude-
ram constatar a gama de produtos derivados da
mandioca que o indígena produzia, tais como:
Mbeu - espécie de bolo de farinha de mandioca
cozida sobre pedra quente, o que hoje se co-
nhece por beiju;
Mambeca - ancestral do atual pirão, feita com ras-
pas de mandioca torrada;
Poqueca - espécie de bola feita da raspa da man-
dioca condimentada que é cozida envolta de
folha de Marantaceae;
Curuba - raspa de mandioca acrescida de casta-
nha-do-pará (Berthollettia exelsa) ou sapucaia
cozido em fogo brando;
Cica - mingau condimentado preparado à base
de fécula fina;
Puba - farinha obtida da raiz macerada e fermenta-
da em água, lavada, espremida e secas ao sol.
Os indígenas também utilizavam-se das fo-
lhas para preparar a maniçoba cuja, técnica de
preparação exigia vários dias.
No período do Brasil colonial os fornos de
preparar a farinha de mandioca eram feitos de ar-
gila e, primitivamente, só utilizavam a superfície
de larga pedra de quartzo, montada num tripé.
Para o preparo da farinha de mandioca, pri-
meiramente se colocavam as raízes de molho em
áreas alagadas ou em uma depressão à margem
dos rios e de igarapés, visando tornar mais fácil a
retirada das cascas.Em seguida ralam os tubércu-
los da planta, em ralos de diversas formas e tama-
nhos. Em seguida a massa tem que passar pelo
tipiti (tipi = espremer + ti=sumo, líquido) para a
compressão e expressão. A massa assim obtida (li-
vre do sumo que se aproveita para se preparar o
tucupi, prato típico do norte do país) passará por
uma peneira, sendo recolhida num cofo (cesto de
taguara de boca estreita) e dali levada ao tacho
do forno alimentado por fogo vivo. Movimentan-
do um rodo e a metade de uma cuia para espa-
lhar a massa e atirá-la de quando em quando para
evitar que se aglutine em bolões e, ao mesmo tem-
po, para arejar, sendo este o mais importante tra-
balho das mulheres indígenas nas operações da
farinhada a uy-munhangaua. A casa-de-farinha
produz a farinha-d’água, surui, tapioca e carimã
(Pereira, 1974:163,169)
Em 1565 os portugueses já se utilizavam da
farinha-de-pau, como suprimento alimentar leva-
da nos navios, provavelmente antes da introdu-
ção da mandioca na África. Farinha-de-pau era a
designação que os portugueses davam à farinha-
de-mandioca. Em 1700 a mandioca era plantada
na Bahia a fim de se preparar a farinha necessária
para a alimentação nos navios durante as viagens
(Bueno, 1998: 265,278,290)
A farinha-de-guerra como, também, era cha-
mada, fazia parte dos suprimentos levados pelos
bandeirantes quando de suas saídas para o ser-
tão. Rocha Pita, que relatou a Guerra dos
Emboabas por volta de 1725, citado por (Taunay,
1954:83) esclarece que era assim chamada por
ser a munição de boca dos soldados. Preparavam
os pães que eram cozidos para torná-los compac-
tos, para depois envolvê-los em folhas, a fim de
conservá-los até um ano e sem perder o sabor.
Os sertanistas, nos locais de paradas mais
longas, ou seja, nos acampamentos, onde iam se
formando os arraiais, que criavam pelo caminho
durante as expedições, faziam roças de milho, que
era de produção rápida e roças de mandioca, cuja
produção demorava mais tempo, servindo de ali-
mento certo quando do retorno do sertão, onde,
ainda, deixavam novas roças plantadas para ga-
rantir seu sustento em novas jornadas.
A mais importante bandeira, em 1674, foi a
de Fernão Dias Pais, que ganhou o título de Go-
vernador da esmeraldas, que morreu junto ao Rio
das Velhas, no sertão de Minas, pensando ter des-
coberto as esmeraldas, que na realidade eram
turmalinas. www.anzwers.org/trade/taxibrasil/
taxicambandeirantes.html [15/7/2003]
Os paulistas dos séculos 16 e 17 respiravam
desde sua infância, uma atmosfera saturada de
Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 25
sertanismo. Vindos de um mar desconhecido, con-
vivendo com os longos dias repletos de imprevis-
tos, mistérios e riscos de toda sorte, o sertanista se
comparava aos marinheiros. Diante do oceano,
como diante do sertão, é o mesmo assombro. (...)
Homem do mar e homem da floresta têm o mes-
mo temperamento, são igualmente simples e bru-
tais, ingênuos e intrépidos. É alguém que vai reso-
lutamente para o desconhecido. Acompanhavam
as bandeiras, tanto meninos de pouca idade como
velhos. Noventa anos, tinha Manuel Preto e ses-
senta e seis Fernão Dias Paes Leme ao iniciar a
jornada das esmeraldas.
A Capitania de São Paulo era pobre. Até as
vizinhanças do século 18 era enorme a escassez
de dinheiro amoedado. Os colonos utilizavam-se
dos pagamentos em espécies. Até mesmo a
municipalidade recorria a essa forma para pagar
quem ali trabalhasse. A farinha-de-guerra entre
outras espécies, tinha valor de dinheiro, confor-
me relata Alcântara Machado (1978:133-5).
Na farinha de mandioca fixou-se a base do
nosso sistema alimentar, dizia Gilberto Freyre
(1987:32) em Casa-Grande & Senzala. Porém, no
planalto paulista, comenta o autor, que no pri-
meiro século da colonização esboçava-se uma
policultura com destaque ao cultivo do trigo.
Essa policultura era constituída, na verdade,
de alguns gêneros que já era hábito indígena cul-
tivar como alguns tubérculos, o milho, o trigo e o
algodão com o qual produziam tecidos, além das
frutas da terra e de outras introduzidas pelos por-
tugueses.
Essa policultura, de certa forma, garantia o
sustento dos paulistas, que utilizavam esses pro-
dutos não só na alimentação, como, também nas
transações comerciais e no pagamento de dívidas;
porém, era tudo muito pouco que se produzia e
o povo era pobre. A distância do litoral era um
dos fatores que dificultavam o progresso no pla-
nalto e, na verdade, o dinheiro amoedado somen-
te aparece com relativa abundância depois de
aberto o ciclo da mineração.
Em São Paulo setecentista, a base da alimen-
tação do paulistano constituía-se de canjica, angu
de fubá e de farinha de mandioca, ensinada pe-
los indígenas. Esses angus e a canjica dispensa-
vam o sal, o qual era escasso naquela época (Ma-
chado, 1978:69), assim como era escasso o talher
e o hábito de comer com as mãos era o mais co-
mum, fato que exigia dos comensais a lavagem
das mãos na presença dos demais. A farinha de
mandioca com seu efeito aglutinador fazia parte
do preparo da iguaria que se levava a boca. Pega-
va-se, por exemplo, um pedaço de carne, já pre-
parada em molho, colocava-se na palma da mão,
acrescentava-se verdura e farinha, formando um
bolo que era levado à boca.
A influência indígena na alimentação dos
paulistas é marcante, visto que os índios escravi-
zados prestavam serviços aos habitantes do pla-
nalto. Somente no início dos seiscentos é que co-
meçam a serem arrolados nos inventários os
tapanhunos, nome dado aos africanos, que em
língua geral tapuyna significa gente preta. A escas-
sez de africanos devia-se aos altos preços. Foi em
1607 que aparece pela primeira vez um negro de
Guiné, valendo quarenta mil reais, uma soma
exorbitante para a época. Quando era um
tapanhuno ladino, este, então, valia 250 mil. Só
no século 18 que aparecem nos inventários, afri-
canos de nação benguela e mina (Machado,
1978:173).
Percebe-se a influência indígena, principal-
mente, no uso da farinha de mandioca na mesa
do paulistas e paulistanos, onde a farinheira, ain-
da, tem seu lugar reservado, principalmente em
casas do interior do Estado.
Da farinha de mandioca surgiram as farofas
preparadas de diferentes maneiras.
Essa influência indígena atingiu os espaços
religiosos afro-brasileiros em todo o País, onde as
farofas têm seu lugar, também reservado nas cozi-
nhas dos orixás, além de outros pratos à base de
mandioca, conforme pesquisa realizada por Lody
(1979:51). Cita-se, ainda, do agralá, tipo de faro-
fa, comida feita com farinha seca, dendê e sal,
preparado na Casa das Minas, em São Luís do
Maranhão, segundo Ferretti (1986:283,287).
Em resumo, no século 17 os paulistas eram
cruéis caçadores de índios, no século 18, caçado-
res de ouro e no século 19 agricultores e criado-
res de gado.
Assim, com o término da escravatura indí-
gena, houve a maciça substituição pelos escravos
africanos nas fazendas de café entre Rio de Janei-
ro e São Paulo.
Dessa forma a influência indígena na alimen-
tação em São Paulo até início do século 18 era
decisiva.
Importante foi a obra escrita em versos lati-
nos, publicada em 1781 sob o título De rusticis
Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 26
Brasiliae rebus , descreviam as riquezas do Brasil
do século XVIII, dentre elas o cultivo da mandio-
ca. De autoria dos padres da Companhia de Je-
sus, José Rodrigues de Melo e Prudêncio do Amaral
(1997:113-9), esta, em tradução vernácula em
prosa recebeu o título: Temas rurais do Brasil.
Tais versos, deixando transparecer o pensa-
mento etnocêntrico dos portugueses, descreve a
maneira como se comia a farinha de mandioca. É
sórdido e rústico pegar a farinha com a mão e a
lançar à boca, como faziam os índios e os etíopes
e a gentalha restante da cidade e o refugo ínfimo
do povo, Muito embora também eles possuam sua
destreza, sua graça. Com efeito,

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