Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
A N A I S Fundação Gilberto Freyre Recife, 2005 © Fundação Gilberto Freyre, 2005 Presidente Fernando de Mello Freyre Vice-presidente Sonia Maria Freyre Pimentel Superintendente Geral Gilberto Freyre Neto Superintendente Adjunta de Administração Patrícia Kneip de Sá Coordenação Editorial Ana Cláudia Araújo Projeto Gráfico e Diagramação Mônica Lira Rua Dois Irmãos, 320, Apipucos - 52071-440 - Recife/PE Telefone (81) 3441.1733 . Fax (81) 3441.2883 http://www.fgf.org.br . fgf@fgf.org.br Gastronomia em Gilberto Freyre Pode-se dizer, sem medo de errar que, no Brasil, é com Gilberto Freyre que aspectos vistos como de menor im- portância pela tradição acadêmica, tais como a alimentação, a arquitetura, o vestuário e as práticas corporais e sexu- ais, ganham valor. De fato, em conso- nância com um projeto intelectual onde a cultura é vista a partir das maneiras pelas quais é vivenciada, estas dimen- sões corriqueiras do cotidiano são trans- formadas em objetos privilegiados de investigação, tornando-se fundamentais para o entendimento da vida social. “Através do cotidiano ou quase- cotidiano é que se fixam, nas culturas, os seus característicos e se firmam os seus valores. É que se consolidam nas sociedades as suas constantes.” (Gilber- to Freyre, Açúcar) É este um dos mais importantes e inovadores aspectos de sua monu- mental obra de interpretação da cul- tura brasileira empreendida por Gilber- to Freyre. Enfocando as múltiplas dimensões do cotidiano, é inegável que a alimentação ocupe um lugar muito particular, surgindo como um dos principais elementos explicativos e sendo tratada através de diferentes ângulos e perspectivas, desde o que se refere aos aspectos nutricionais até os que se referem aos significados do que entendemos por comida. Salientando as relações sociais estabelecidas e va- lorizando de maneira inovadora os es- paços sociais, materiais e simbólicos “Velhos retratos; receitas De carurus e guisados As tortas ruas direitas Os esplendores passados” Carlos Drummond de Andrade em poema dedicado a Gilberto Freyre. relacionados ao ato de comer, tais como as cozinhas, os ingredientes, os rituais, enfim os vários aspectos que en- volvem o alimentar-se, colocou-o den- tro de uma perspectiva cultural que ultrapassa em muito o biológico. A alimentação tem também uma importância particular no debate em que Freyre se contrapôs às idéias vigen- tes entre a intelectualidade de sua épo- ca (em especial às dos apologistas da eugenia racial) revolucionando as idéi- as sobre os brasileiros e marcando de forma indelével o pensamento intelec- tual no Brasil. “Muito da inferioridade física do brasileiro, em geral atribuída toda à raça, ou vaga e muçulmanamente ao clima, deriva-se do mau aproveitamen- to dos nossos recursos naturais de nu- trição. Os quais sem serem dos mais ricos, teriam dado para um regime ali- mentar mais variado e sadio do que o seguido pelos primeiros colonos e por seus descendentes, dentro da organi- zação latifundiária e escravocrata.” (Casa-Grande & Senzala) Sobre este assunto, cabe também lembrar esta outra passagem do mes- mo livro: “Se a quantidade e a composição dos alimentos não determinam sozi- nhas, como querem os extremistas – os que tudo crêem poder explicar pela di- eta – as diferenças de morfologia e de psicologia, o grau de capacidade eco- nômica e de resistência às doenças entre as socie- dades humanas, sua importância é entretanto con- siderável, como o vão revelando pesquisas e inqu- éritos nesse sentido. Já se tenta hoje retificar a antropogeografia dos que, esquecendo os regimes alimentares, tudo atribuem aos fatores raça e cli- ma; nesse movimento de retificação deve ser in- cluída a sociedade brasileira, exemplo de que tan- to se servem os alarmistas da mistura de raças ou da malignidade dos trópicos a favor da sua tese de degeneração do homem por efeito do clima ou da miscigenação. É uma sociedade, a brasileira, que a indagação histórica revela ter sido em larga fase do seu desenvolvimento, mesmo entre as classes abastadas, um dos povos modernos mais desprestigiados na sua eugenia e mais comprome- tidos na sua capacidade econômica pela deficiên- cia de alimento.” (Casa-Grande & Senzala) Pode-se mesmo afirmar que a alimentação constitui-se em um importante ponto focal de sua obra e seu estudo é um dos mais frutíferos cami- nhos de acesso ao rico e fecundo universo do pensamento freyriano. Mas cabe sublinhar que a alimentação, em Gilberto Freyre, não é reduzida a inventários de receitas ou a uma procura genética de elementos constitutivos de uma dada cozinha. Ao contrário, como pode ser observado (muito especialmente em Casa-Grande & Senzala), os elementos pro- vindos de culturas diferentes e que vão constituir o patrimônio alimentar brasileiro estão articula- dos dentro de uma perspectiva onde escolhas, abandonos, apropriações e transformações fazem parte de um processo histórico-cultural. Assim, a alimentação brasileira não é formada por um mero somatório de itens de procedência distintas, mas é fruto de um processo onde diferentes elemen- tos com origens em contextos étnicos e culturais muito diferentes são articulados resultando em um sistema alimentar heterogêneo, diverso, variável e desigual. Nos últimos anos, a alimentação, estudada a partir do ponto de vista social e cultural, tem recebido uma atenção crescente. De fato, na ali- mentação o biológico e o cultural se encontram. Porém, mais do que responder à uma necessida- de básica do organismo, o ato de comer é uma prática cultural que implica em relações sociais, crenças, classificações, enfim, formas de conce- ber o mundo. A alimentação tem, então, um gran- de poder simbólico, marcando identidades indi- viduais e sociais e, mais profundamente, algo que implica na relação natureza e cultura. Trata-se, assim, de um campo privilegiado para a discussão antropológica. A antropologia da alimentação visa o estudo de práticas, manifestações e representações rela- cionadas com o ato alimentar dos grupos huma- nos, abarcando assim tanto os aspectos que tradi- cionalmente são classificados como “materiais” quanto os classificados como “simbólicos” – di- mensões indissociáveis de um mesmo fenômeno. Neste sentido, organizou-se, no Brasil, o ICAF (International Commission on the Anthropology of Food) em janeiro de 2003, possibilitando aos pes- quisadores brasileiros uma inserção e intercâmbio internacional, e o GAAB (Grupo de Antropologia da Alimentação Brasileira), ambos dentro de uma perspectiva de trabalho em conjunto, com o ob- jetivo de incentivar os estudos sobre alimentação e promover a articulação de pesquisadores que trabalham com este tema. Não por acaso, o GAAB recebeu acolhida na Fundação Gilberto Freyre e seu lançamento deu-se, justamente, dentro das comemorações dos 70 anos de Casa-Grande & Senzala, com o Semi- nário Gastronomia em Gilberto Freyre, ocorrido de 15 a 17 de outubro de 2003 e que contou com o apoio do Senac, do ICAF/Brasil e da Cáte- dra Gilberto Freyre da Universidade Federal de Pernambuco. O Seminário teve como objetivo promover a discussão em torno das interpretações freyrianas acerca da alimentação e da gastronomia e difun- dir o conhecimento sobre a arte-culinária nacio- nal. Já em sua primeira edição, o Seminário bus- cou juntar, em um mesmo evento, pesquisadores tais como antropólogos, historiadores, museólogos, agrônomos, folcloristas, jornalistas e estudantes, e também profissionais da área de alimentação, como cozinheiros, doceiras, proprietários de res- taurantes e profissionais do Senac, abrindo-se as- sim para perspectivas as mais diversificadas. Neste sentido, a presente publicação reflete esta heterogeneidade de olhares e interpretações. Como poderá ser observado, os autores partem de premissas e idéias muito diferentes,demons- trando o quanto o campo da alimentação pode ser múltiplo e rico. O Seminário contou ainda com um momen- to muito particular: o da apresentação da série Mesa Brasileira, de Ricardo Miranda. A série pro- cura registrar e mostrar como se alimenta o brasi- leiro e assim contar a história a partir da perspec- tiva da alimentação. Percorrendo o país de norte a sul, traz a enorme diversidade alimentar do Bra- sil expressa não apenas em seus pratos típicos, mas também nas diferentes formas cotidianas do co- mer no Brasil. Publicamos aqui o pré-roteiro da série, as sinopses dos documentários assim como os créditos deste trabalho pioneiro. Finalizando está o texto de Instalação do Grupo de Antropologia da Alimentação Brasileira (GAAB), de autoria de Raul Lody, que marca o início da caminhada do grupo. Gilberto Freyre, além de grande intelectu- al, era também um grande apreciador da boa mesa. Assim, nada mais justo que trabalhos com alimentação - estudar ou fazer – sejam reunidos em sua homenagem. Ao final, restou um gostinho de “quero mais”, deixando a perspectiva de um novo encontro onde novamente se reúna sabe- res e sabores. Maria Eunice Maciel Presidente do ICAF/Brasil Sumário O Seminário .......................................................................................................... 7 · Apresentação ................................................................................................ 7 · Programação ................................................................................................. 7 · Comissão Organizadora ................................................................................. 8 MESA-REDONDA: CASA-GRANDE & SENZALA: COZINHA, GÊNERO E RELAÇÕES SOCIAIS · A Culinária e a Negra (Fátima Quintas) ............................................................ 9 · Para uma Antropologia da Alimentação Brasileira (Cláudia Maria de Assis Rocha Lima) .................................................................................................. 14 · Doutor Gilberto Freyre e o Reconhecimento da Culinária como Fenômeno Cultural (Eliane Asfora da Cunha Cavalcanti) ................................................... 18 MESA-REDONDA: NORDESTE: ECOLOGIA, ALIMENTAÇÃO E CULTURA · Nordeste: ecologia, alimentação e cultura (Manoel Correia de Andrade - Coordenador da Mesa) .................................................................................. 20 · Estudo Etnobotânico da Mandioca (Manihot esculenta Crantz - Euphorbiaceae) na Diáspora Africana (Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo) ..................... 22 · Cozinha e Identidade Nacional: notas sobre a culinária na formação da cultura brasileira segundo Gilberto Freyre e Luis da Câmara Cascudo (Rogéria Campos de Almeida Dutra) ......................................................................................... 31 MESA-REDONDA: AÇÚCAR: DOÇARIA E CIVILIZAÇÃO · Doçaria e Civilização: a preservação do fazer (Roberto Benjamim) ................... 37 · A Formação da Culinária Brasileira (Letícia Monteiro Cavalcanti) ..................... 42 COMUNICADOS LIVRES · Acarajé 10: sucesso em Salvador - Bahia (Celso Duarte Carvalho Filho) ............ 44 · O Chouriço: uma doce dádiva (Antonio de Pádua dos Santos, Julie Antoinette Cavignac e Maria Isabel Dantas) ..................................................................... 46 · É Assim que se Faz: etnografia sobre a farinhada no Pêga (Glória Cristiana de Oliveira Morais) ............................................................................................. 53 · A Culinária de Papel (Laura Graziela Gomes e Lívia Barbosa) ........................... 60 · Gilberto Freyre: a representação social da culinária (Rodrigo Alves Ribeiro) ...... 66 Série Mesa Brasileira, de Ricardo Miranda ............................................................ 70 Instalação Nacional do Grupo de Antropologia da Alimentação Brasileira (GAAB): em busca do ethos da alimentação, por Raul Lody ........................................... 75 7 O Seminário APRESENTAÇÃO Gilberto Freyre realizou uma vasta obra de interpretação da cultura brasilei- ra, muito especialmente no entendimento das relações sociais nas regiões agrárias do Brasil, nos quais o patriarcalismo rural e o paternalismo senhorial são faces dominantes da realidade. Sua obra aponta e valoriza de maneira pioneira os cenários sociais das cozi- nhas, dos alimentos, dos muitos rituais que fazem o fazer comida, desenvolver sistemas e formas de gastronomia tropical brasileira, trazendo esses patrimônios em diferentes contextos étnicos e culturais. Assim, Açúcar, Nordeste, Casa Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos, entre outros, introduzem e trazem o valor dos ingredientes, do gênero, do traba- lho, da nutrição, dos muitos significados que integram o fazer, o servir e o consu- mir comida. O Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre visa promover a discus- são em torno das interpretações freyrianas acerca da alimentação e da gastronomia como elemento diferenciador da arte e da cultura dos povos e também difundir o conhecimento sobre a arte-culinária nacional e suas carac- terísticas mais marcantes em nossa cultura. PROGRAMAÇÃO Dia 15/out/2003 15h MESA-REDONDA: Casa-grande & Senzala: cozinha, gênero e relações sociais Coordenadora: Profa. Dra. Maria Eunice de Souza Maciel (UFRGS) Dra. Fátima Quintas – A Culinária e a Negra Dra. Cláudia Maria de Assim Rocha Lima – Para uma Antropologia da Alimentação Brasileira Sra. Eliane Asfora da Cunha Cavalcanti – Doutor Gilberto Freyre e o Reconhecimento da Culinária como Fenômeno Cultural 16h45 SESSÃO DE VÍDEO: série Mesa Brasileira de Ricardo Miranda O pão nosso de cada dia Dia 16/out/2003 16h30 Instalação Nacional do Grupo de Antropologia da Alimentação Brasileira (GAAB) Raul Lody – Em Busca do Ethos da Alimentação 15h MESA-REDONDA: Nordeste: ecologia, alimentação e cultura Coordenador: Prof. Dr. Manoel Correia de Andrade (FGF) Profa. Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo (USP) – Estudo Etnobotânico da Mandioca (Manihot esculenta Crantz - Euphorbiaceae) na Diáspora Africana Profa. Rogéria Campos de Almeida Dutra (UFMG) – Cozinha e Identidade Nacional: notas sobre a culinária na formação da cultura brasileira segundo Gilberto Freyre e Luis da Câmara Cascudo 8 Sr. Petrucio Nazareno (Restaurante Goya) 16h15 DEMONSTRAÇÃO GASTRONÔMICA: Doce de Gerimum com Coco Prof. Antonio José de Oliveira Filho e Prof. Antônio José Medeiros Silva 16h45 APRESENTAÇÃO DE COMUNICADOS LIVRES COMUNICADO 1: Celso Duarte Carvalho Filho – Acarajé 10: sucesso em Salvador - Bahia COMUNICADO 2: Antonio de Pádua dos Santos, Julie Antoinette Cavignac, Maria Isabel Dantas – O Chouriço: uma doce dádiva COMUNICADO 3: Glória Cristiana de Oliveira Morais – É Assim que se Faz: etnografia sobre a farinhada no Pêga 17h45 SESSÃO DE VÍDEO: série Mesa Brasileira de Ricardo Miranda Comedores de Mandioca Dia 17/out/2003 14h30 MESA-REDONDA: Açúcar: doçaria e civilização Coordenadora: Sra. Sílvia Pontual (Restaurante Mourisco) Dr. Roberto Benjamim – Doçaria e Civilização: a preservação do fazer Dra. Letícia Monteiro Cavalcanti – A Formação da Culinária Brasileira Dr. Armênio Ferreira Diogo RELATOS DE EXPERIÊNCIAS Raul Lody (SENAC) – Série “A Formação da Culinária Brasileira” Fernando Soares (SESC/PE) – Banco de Alimentos 15h45 APRESENTAÇÃO DE COMUNICADOS LIVRES COMUNICADO 1: Laura Graziela Gomes e Lívia Barbosa – A Culinária de Papel COMUNICADO 2: Carlos André de Vasconcelos Cavalcanti – SERTA: a experiência com produtos orgânicos no campo da sementeira COMUNICADO 3: Rodrigo Alves Ribeiro – Gilberto Freyre: a representação social da culinária 17h45 SESSÃO DE VÍDEO: série Mesa Brasileira de Ricardo Miranda Mar de Açúcar 18h ENCERRAMENTO Dr. Fernando de Mello Freyre (Presidente da FGF)Profa. Maria Eunice Maciel (Presidente do ICAF/Brasil) Prof. Raul Lody (Secretário Geral do ICAF/Brasil) COMISSÃO ORGANIZADORA COORDENAÇÃO GERAL: Raul Lody FUNDAÇÃO GILBERTO FREYRE Gilberto Freyre Neto Germana Kaercher Patrícia Kneip ICAF BRASIL Maria Eunice Maciel 9 A Culinária e a Negra Fátima Quintas Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-graduação em Antropologia Cultural pelo Instituto de Ciências Sociais e Política Ultramarina (Lisboa – Portugal). Pós-graduação em Museologia pelo Museu das Janelas Verdes (Lisboa – Portugal). Mestrado em Antropologia Cultural pela Universidade Federal de Pernambuco. Coordenadora do Núcleo de Estudos Freyrianos da Fundação Gilberto Freyre. “No meio dos graves problemas sociais cuja solução buscam os espíritos investigadores no nosso século, a publicação de um manual de confeitaria, só pode parecer vulgar a espíritos vulgares; na realidade, é um fenômeno eminentemente significativo. Digamos todo o nosso pensamento: é uma restauração, é a restauração do nosso princípio social” Machado de Assis O espaço reservado à cozinha da casa-grande patriarcal agrupou o encon- tro de raças, combinando emoções com temperos, sentimentos com receitas culinárias, saudades com cheiro e gos- to de condimentos. Nesse desvão, apa- rentemente resguardado, desfilaram as enormes proezas da convivência do- méstica. Oráculo de confissões, de fuxicos, de troca de sigilos. Zona de confraternização. Locus de intercâmbio afetivo. Na “sagrada” cozinha, a con- versa mole, os mexericos, os segredos, o disse-me-disse ganharam a moldura da intimidade. Entre o preparo de um prato e de outro, muitas narrativas fo- ram verbalizadas. Tanto quanto o con- fessionário, o suposto esconderijo do fabrico das guloseimas, simbolizou o canal catártico por onde escoraram con- versações em tom pessoal, segredos re- cônditos, mistérios femininos. Debaixo do manto da solidão, a larga e tosca mesa retangular agasalhou os dispen- sáveis pudores de mulheres acanhadas. Lugar de especial atrativo para o trans- bordamento de dizeres porventura pe- rigosos ou pecaminosos. Com a devida reserva, a palavra soada e ressoada no âmbito da cozinha exerceu importante função libertadora. Freyre alerta: Creio que não há um só diário escrito por mulher. Nossas avós tantas delas anal- fabetas, mesmo quando baronesas e viscondessas, satisfaziam-se em contar os segredos ao padre confessor e à mucama de estimação; e a sua tagareli- ce dissolveu-se quase toda nas conver- sas com as pretas boceteiras, nas tardes de chuva ou nos meios dias quentes, morosos (Freyre,1966, p.XLIV). Pretas velhas, mucamas, sinha- zinhas, sinhás-donas, nhonhôs coabita- ram os momentos de relaxamento que o forno e o fogão possibilitaram. Entre receitas, o rastro dos apetites – seja qual for a sua etiologia, sexual ou palatal – deixou-se verter em discursos reprimi- dos. Pamonha, milho assado, pão-de- ló, arroz-doce, alfenins, alféloa, empa- relharam-se à table da casa-grande, em uma demonstração de hibridismo de paladares. As negras, exímias cozinhei- ras, redondas de tanto comerem, esme- raram-se no preparo de “acepipes” para o regalo do menino, da sinhá ou do patriarca. Imensos panelões compuse- ram a paisagem da comensalidade pa- triarcal. Passava-se o dia a beliscar e a provar pratos temperados ao saibo pre- ferido da próxima refeição ou à blandí- cia da donzela enfraquecida, a neces- sitar de cuidados especiais. Do café da manhã à ceia noturna, o dedo decisivo da negra. Do simples caldo de pintainho à gordurosa feijoada. Da mesa repleta de convidados ao almoço trivial. A qual- Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 10 quer hora, a chaminé estimulante. À fumaça do bueiro, a fruição da comida acalentada pelo “es- tridente” toque africano. Enfatiza Darcy Ribeiro: Para Gilberto Freyre [o negro ensinou] o brasileiro a explorar todas as possibilidades das papilas da língua, bem como os nervos do faro, com a sua magia culinária. ( Ribeiro, 1979, p. 94) Quando se pensa numa comida apetitosa, a deixar água na boca, tende-se a recordar a ima- gem da preta velha maquinando pratos de requin- tes maquiavélicos. No regime alimentar brasileiro, a contribuição africana afirmou-se principalmen- te pela introdução do azeite-de-dendê e da pimen- ta-malagueta, tão característicos da cozinha baiana; pela introdução do quiabo; pelo maior uso da banana; pela grande variedade na maneira de preparar a galinha e o peixe. Várias comidas por- tuguesas ou indígenas foram no Brasil modifica- das pela condimentação ou pela técnica culinária do negro, alguns dos pratos mais caracteristica- mente brasileiros são de técnica africana: a farofa, o quibebe, o vatapá (Freyre, 1966, p. 489). Os serviços culinários, no período colonial, tiveram um prévio escalonamento. As pretalhonas, as escolhidas, instigaram o âmbria com mãos de tecelã. Mas houve negros incapazes de servir no eito, com tendências a maricas, que foram inigualáveis no preparo de quitutes. Homens efeminados a desejarem manifestar os seus pen- dores no espaço dedicado à mulher, o da cozi- nha. Talvez até para provar a capacidade de exe- cutar tarefas de tradição não masculina, capricharam em sutilezas, agudamente “satânicas” no que tange à expressão de uma gastronomia sofisticada. Freyre realça: Dentro da extrema es- pecialização de escravos no serviço doméstico das casas-grandes, reservaram-se sempre dois, às ve- zes três indivíduos, aos trabalhos de cozinha. De ordinário, grandes pretalhonas; às vezes negros incapazes de serviço bruto, mas sem rival no pre- paro de quitutes e doces. Negros sempre amaricados; uns até usando por baixo da roupa de homem cabeção picado de renda, enfeitado de fita cor-de-rosa; e ao pescoço tetéias de mu- lher. Foram estes, os grandes mestres da cozinha colonial (Freyre, 1966, p. 489). Desse modo, a cozinha brasileira africanizava-se, granjeando a inspiração exótica dos seus acepipes. Exuberante. Indiscreta. Histriônica. Com donaires agudíssimos. Gordas e alegres, as pretas orgulhavam-se dos pratos que elas próprias elaboravam. Novidades a toda hora. Temperos excêntricos vindos de uma África não menos excêntrica. A fortuna aconteceu no brio do paladar e na adequação a um regime tropical- mente sensual. Uma dieta que se adaptava ao calor excessivo de regiões quentes e úmidas. Ao mes- mo tempo, refeições buriladas em pimentas e molhos, o que sugeria aparentes incoerências para um clima de altas temperaturas. As inconexões demonstraram a versatilidade e a combustão do temperamento africano, intensamente explosivo. O clima tropical, com certeza, não determinou, mas concorreu para a extroversão culinária. O Nordeste aceitou de muito bom grado as ambrosias de uma etnia que soube mimetizar origens e atavismos com o erudito modo de ser de um Oci- dente “civilizado”. A mistura deu certo. Criou-se um sincretismo culinário, de saibos vivos e alguns até berrantes. Senhora de densos “refogados”, a negra atraiu para si atenções e se- gredos que se anelavam em “armadilhas” capa- zes de ofuscar o brilho da portuguesa. Exerceu, com uma certa maledicência, o desafio da mesa. Há que se render vênia a essa emulação. Quem duvidará da competência da negra na arte de co- zinhar? Mocotós, vatapás, mingaus, pamonhas, canjicas, acaçás, abarás, arroz-de-coco, feijão-de- coco, angus, pão-de-ló-de-arroz, pão-de-ló-de- milho, rolete de cana, isto é, rebuçados etc (Freyre, 1966, p.490). Africano também é o acarajé, prato precioso na Bahia: feito com feijão-fradinho rala- do na pedra; como tempero leva cebola e sal; a massa é aquecida em frigideira de barro onde se derrama um bocado de azeite-de-cheiro. Além das receitas genuínas, a africana sobressaiu-se na práxis da adaptação e no apuro dos doces lusita- nos à Terra do pau- Brasil. E quebrando arestas, ajeitandoali ou acolá, os ingredientes foram do- sados com a mestria do amálgama cultural. É nos- sa opinião que no preparo do próprio arroz-doce, tradicionalmente português, não há como o de rua, ralo, vendido pelas negras em tigelas gordas donde o guloso pode sorvê-lo sem precisar de colher. Como não há tapioca molhada como a do tabuleiro, vendida à maneira africana, em folha de bananeira ( Freyre, 1966, p. 490, 491). Dentre os pratos africanos que se impuseram na mesa patriarcal, e firmaram-se até com uma certa arrogância, distinguem-se: o caruru e o vatapá. Os eleitos. Os mais apreciados. Os que se fixaram com uma autenticidade quase intocada. Sem retoques Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 11 significativos. Puros e absolutamente distintos. En- sina Freyre: Prepara-se o caruru com quiabo ou fo- lha de capeba, taioba, oió, que se deita ao fogo com pouca água. Escoa-se depois a água, espreme- se a massa que novamente se deita na vasilha com cebola, sal, camarão, pimenta-malagueta seca, tudo ralado na pedra de ralar e lambuzado de azeite-de- cheiro. Junta-se a isto a garoupa ou outro peixe as- sado (Freyre, 1966, p. 492) Por muito tempo, a mesa do engenho foi afri- cana. Pelo menos, até meados do século XIX. O paladar girou em torno das variações da negra, que, habilmente, articulou doses “marotas” de condi- mentos. Arte, acima de tudo arte, subscreveu a mescla das influências, misturando especiarias e retirando-lhes as possíveis indisposições. Graduan- do o alimento com ternura e ofertando-o ao meni- no ou à menina com gesto maternal. Freyre asse- vera: A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida: machucou-as, tirou- lhe as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles. (...) Palavras que só faltam desmanchar-se na boca da gente (Freyre, 2003, p. 387). Não se pode falar em culinária nacional sem remeter ao mastro balizador da espaventosa glicose. A arte do doce espargiu-se do Nordeste para o Brasil afora. A sua expressão sociológica, econômica, sentimental advém da família patriar- cal, gorda, extensiva, horizontal, a repousar na imensidão de um monopólio canavieiro, orgulhoso de exclusivismos. A escravidão propiciou o culto da hipérbole da sacarose. A cana ofertava-se com largueza, e a mão-de-obra escrava concretizava, em dispendiosas e complicadas receitas, o telúrico e o bucólico degustar da invejada especiaria. Na gangorra do açúcar, não se mediram es- tímulos para açular o paladar – e já asseverava Eduardo Prado que o paladar corresponde à últi- ma sensação a desnacionalizar-se no homem. A escrava foi fundamental na produção do doce. As intermináveis receitas reivindicavam o ofício da persistência, longas tardes à beira do fogão, a vigi- ar as panelas em que se preparavam caldas em ponto de visgo. Porções estrambóticas entornaram quilos de açúcar, de rapadura, de mel – o mel de abelha indígena que, segundo José de Alencar, morava nos lábios de Iracema. Ovos e mais ovos esbanjavam dos tachos, borbulhando o creme, que se transformaria em refinados postres. Exigiu-se o máximo de perseverança para levar a termo os “preciosismos” da doçaria. A constância, a resig- nação, a firmeza da africana acentuaram-se na realização das fórmulas prescritas. Somente a pasmaceira da casa-grande per- mitia operacionalizar o fabrico de doces compli- cadíssimos. Tempo. Horas. Pacatez. O complexo da cana, com as suas derivações, jamais teria se validado com tamanha efervescência, não fora a quantidade de escravas, o tédio das horas mornas e intermináveis, o pausado badalar do relógio, os minutos por consumir, o longo intervalo do nada... Cedo começava o preparo. Receitas demoradas, demoradíssimas, só explicadas pelo excesso de ócio. Sinhás-donas gulosas e adictas de glicídios à espera da catarse alimentar. Houve, no Brasil, uma maçonaria do doce, isto é, um poder coeso de mulheres sobre o sigilo das receitas de bolo de família. O caderno de receitas – período em que as mulheres já escreviam – foi repassado de gera- ção a geração, através de um inventário sentimen- tal. Não se banalizou o receituário gastronômico em mãos à-toa. Prevaleceu uma intencional e es- merada escolha na descendência dos bolos e do- ces de família. A doçaria patriarcal, recebeu-a a filha/sobrinha eleita, aquela que garantisse a dis- crição do claustro da glutonaria. A história do açú- car guarda fortes veios de privacidade. De misté- rios de família. De endogamia culinária. O doce e a escravidão combinaram-se em prolongados passadios de fartíssimos manjares. Um e outro estiveram tão juntos que parece difícil elidi- los. O Padre Antônio Vieira identificava o Brasil com o Nordeste, e o Nordeste com o açúcar, ou mais especificamente, com o negro a serviço do açúcar. A paisagem dulcificou o desenvolvimento de requintadas guloseimas, em razão da matéria- prima abundante. A cana, o massapê, a escravi- dão. Subtraindo um desses elementos, com cer- teza, a doçaria não teria alcançado o paroxismo da culinária brasileira dos tempos de outrora. Há de se particularizar a tipologia das frutas, essas dulcíssimas, a aliarem-se à cana na conjuga- ção do supinamente melífluo. O paladar ajustou- se, pois, ao que vinha de fora – de Portugal e da África. O endógeno e o exógeno acasalaram-se. Tudo contribuiu para que na Nova Lusitânia as receitas com base nos glicídios proliferassem. De Portugal, sobretudo dos mouros, chega-nos uma herança singularmente açucarada. Freyre elucida: Note-se do açúcar que se tornou abundante na cozinha e na doçaria européias, a partir do século Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 12 XVI, que grande parte dele era de engenhos do Brasil. Tanto que a palavra, de uso tão brasileiro, mascavo tornou-se, desde então, inglesa. E a mar- melada e a goiabada brasileira ganharam, desde velhos dias, apreciadores europeus. Inclusive a goiabada apreciadíssima pela gente nordestina.. (...) O que é doce, afinal? Dizem os dicioná- rios que é aquilo que tem um sabor como o de açúcar ou de mel; e que, assim sacarino, não é amargo, nem salgado, nem picante; e – ainda – a composição que é temperada com açúcar, mel ou outro ingrediente sacarino (Freyre, 1987, p. 34, 44). A representação do doce no Nordeste se dá com tamanha veemência que aponta para a for- mulação de uma Sociologia do Doce, eivada de traços de confeitaria, pastelaria, e estética de so- bremesa, o que leva a implicações socioculturais da maior relevância. O açúcar venceu. E venceu com a escravi- dão. De mãos dadas com o massapê. Na casa- grande vicejaram os “torpedos” do doce. E o luxo da sobremesa, dos doces e das guloseimas de açú- car [são] de criação mais pernambucana do que baiana. (Freyre, 2000, p. 508, 509) O regime escravista não só possibilitou a arte da sobremesa através do exercício da paciência bíblica como aprimorou a estética da sua apre- sentação. Os caprichos foram completos. Em tor- no do doce brotou uma ritualística quase mitoló- gica. O doce exigiu finas devoções: homens, mulheres, crianças à sua volta. A liturgia reivindi- cou o máximo de reverência. Crianças adultizadas, mulheres subjugadas, patriarcas hipnotizados pelo poder econômico. E a escravidão, a selar a vitória do imperialismo açucareiro. Gilberto Freyre afi- ança: Sem a escravidão não se explica o desenvol- vimento, no Brasil, de uma arte de doce, de uma técnica de confeitaria, de uma estética de mesa, de sobremesa e de tabuleiro tão cheias de compli- cações e até de sutilezas e exigindo tanto vagar, tanto lazer, tanta demora, tanto trabalho no pre- paro e no enfeite dos doces, dos bolos, dos pra- tos, das toalhas e das mesas. Só o grande lazer das sinhás ricas e o trabalho fácil das negras e das molecas explicam as exigências de certas receitas das antigas famílias das casas-grandes e dos so- brados; receitas quase impossíveispara os dias de hoje (Freyre, 1987, p. 55, 57,58). Os pratos ou tabuleiros nos quais se acomo- davam as guloseimas eram enfeitados de modo a alucinar os olhos. As negras recortadoras esmera- vam-se em detalhes e mais detalhes: ritmos inventivos, inspirações fantásticas, visando a embelezar a oferenda do produto. E o princípio da gula é, antes de mais nada, plástico, com acen- tos pictóricos. O olhar antecipa o olfato na “fer- mentação” do apetite. A estética da ornamenta- ção aprimorou o espetáculo “pirotécnico”. E a arte fez-se no açúcar e por meio do açú- car. Os tabuleiros ficaram famosos pela delicade- za do rendilhado e pela coreografia poética. Do- ces produzidos por negras e embelezados por negras. Algumas delas forras, que iam vendê-los na rua, exibindo, assim, dotes físicos e culinários. Bolos e doces, coisas de doçaria, de pastelaria e de cozinha, estão entre as que o autor vem consi- derando mais atraentes do ponto de vista pictóri- co e não apenas gastronômico; do artístico e não apenas do sociológico. (...) Mas o legítimo doce ou quitute de tabuleiro foi o das negras forras. O das negras doceiras. Doce feito ou preparado por elas. Por elas próprias enfeitado com flor de papel azul ou encarnado. E recortado em forma de co- rações, de cavalinhos, de passarinhos, de peixes, de galinhas – às vezes com reminiscência de ve- lhos cultos fálicos ou totêmicos. Arrumado por cima de folhinhas secas de banana. E dentro de tabuleiros enormes, quase litúrgicos, forrados de toalhas alvas com pano de missa. Ficara, célebres as “Mães Bentas (Freyre, 1966, p. 490) Com a desafricanização da mesa nas primei- ras décadas do século XIX, o brasileiro perdeu o hábito de verduras, tão do agrado do negro. Tor- nou-se um abstêmio de vegetais: Ficou tendo ver- gonha de suas mais características sobremesas – o mel ou melado com farinha, a canjica temperada com açúcar e manteiga. Só se salvaria o doce com queijo (Freyre, 2000, p.510). O pão surgiu como a grande novidade do século XIX. Antes pontifica- ra o complexo da mandioca, tendo sido o trigo abandonado, por força das circunstâncias, pelos nossos colonizadores. Naturalmente uma mudan- ça de gosto que custou ao lusitano uma boa dose de sacrifício. Foi a época do beiju de tapioca, ao almoço, e, ao jantar, a farofa. Ainda: o pirão es- caldado ou a massa de farinha de mandioca es- palhada no caldo do peixe ou de carne. O feijão representou o prato do quotidiano – feijoada com carne salgada, cabeça de porco, lingüiça, muito tempero africano. Após a Independência, a cozi- nha brasileira sofreu a influência direta da france- sa. Na verdade, neste período, o Brasil aderiu a Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 13 galicismos de toda a ordem. Diz Freyre: Os livros franceses de receita e de bom tom começaram o seu trabalho de sapa.(...) Manteiga francesa, bata- ta-inglesa, chá também à inglesa, gelo – tudo isso agiu no sentido da desafricanização da mesa bra- sileira, que até os primeiros anos da Independên- cia estivera sob maior influência da África e dos frutos indígenas (Freyre, 1966, p. 495). O gelo foi introduzido em 1834, trazido pela primeira vez ao Brasil por um navio americano, o Madagascar. A sua chegada avultou em sucesso, pois os “novos” brasileiros eram grandes bebedo- res de água em virtude do calor tropical, do ex- cesso da pimenta e da quase libidinal ingestão do açúcar. A pimenta, já antiga conhecida dos índios – foi reforçada pelos negros, apreciadores da malagueta – a pimenta e o açúcar se dissemina- ram como produto tanto da gente simples como da mais sofisticada. A desafricanização esbarrou diante dos purismos da europeização. Mediações foram ne- cessárias para que o resultado ocorresse sem con- flitos. Os excessos desfilaram entre a cozinha e a sala, ou da cozinha para a sala. Do caruru ao doce, o decálogo gastronômico galgou uma imensa ta- bela de variações. Pimentas, em demasia; tempe- ros, em estado quase natural; doces, a lembrar rapadura... Em resumo: um banquete escandalo- samente agressivo, a carecer reparos e alguns abrandamentos. A exuberância alimentar da culinária negra suscitou naturalmente retoques adaptativos. Uma certa parcimônia não lhe cairia mal, face aos histrionismos de sabores. É interessante ressaltar esse aspecto por envolver a emocionalidade de um povo, o africano, e por testemunhar o caráter explosivo de uma cultura que não receou doar seus valores como os recebeu: sem polimento. Em estado puro. Quase natureza primitiva. Os quitutes se excederam em agudos sabores. Um roteiro, o afro-brasileiro, com enorme vocação para os trans- bordamentos. Gilberto Freyre adiciona: Não ne- gamos que a influência africana sobre a alimenta- ção do brasileiro necessitasse de restrições ou de corretivo no seu exagero de adubos e de condi- mentos. ( Freyre, 1966, p. 495) Não há cozinha mais explícita que a africa- na, como não há canção de ninar mais embaladora que a da mesma africana. A negra dominou e foi percuciente no passado de nossas tataravôs. Polifônica, polissêmica, polivalente. A sua influ- ência destacou-se não somente nos quitutes e nos arranjos das travessas, como igualmente na abun- dância e na diversidade da mesa brasileira, cuja variedade de timbres homologa-lhe um caráter peculiar, extralusitano e marcadamente atávico. Brasil, brasileiro, com gosto e cheiro de tropicalidade. Repetindo Carlos Drummond de Andrade, no poema A Mesa, concluo: E não gos- tavas de festa.../ Ó velho, que festa grande/ hoje te faria a gente./ E teus filhos que não bebem/ e o que gosta de beber,/ em torno da mesa larga,/ lar- gavam as tristes dietas,/ esqueciam seus fricotes,/ e tudo era farra honesta/ acabando em confidên- cia. (...) Estamos todos vivos./ e mais que vivos, alegres. (Drummond, 2001, p.104) BIBLIOGRAFIA FREYRE, Gilberto. Açúcar – Em torno da Etnografia da História e da Sociologia do Doce no Nordeste Canavieiro do Brasil. Recife: Massangana, 1987. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala – Forma- ção da Família patriarcal sob o regime de Economia Patriarcal. 41ª edição. Rio de Janeiro: São Paulo, 2000. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala – Forma- ção da Família Brasileira sob o regime de Economia Patriarcal. 14ª edição. Recife: Imprensa Oficial. FREYRE, Gilberto. A Presença do Açúcar na Formação Brasileira. Rio de Janeiro: Divulgação do Instituto de Açúcar e do Álcool, 1975. RIBEIRO, Darcy. Ensaios Insólitos. Porto Alegre: L&PM Editores, 1979. DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Antologia Poética. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2001. 14 Para uma Antropologia da Alimentação Brasileira Claudia Maria de Assis Rocha Lima Graduada em Comunicação Social e pós-graduada em História do Brasil. Escritora e pesquisadora da cultura negra e cultura popular. Folclorista, fotógrafa e artista plástica. Mestranda em Gestão de Políticas Públicas do Instituto de Forma- ção e Desenvolvimento Profissional da Fundação Joaquim Nabuco. Ao longo da historiografia da ali- mentação pelo mundo, a maneira de preparar os mesmos alimentos diferem, de um povo para outro, ou mesmo di- ferenciam-se em seus próprios ambien- tes, em função da variação tecnológica, econômica e social. Na fixação do homem a terra, tra- ços formadores de um novo sistema de vida foram identificados em 7000 a.C., no Neolítico, na Era da Revolução Agrí- cola, no continente africano. O inusita- do desenvolvimento deste complexo cultural, advindo de um sistema de vida nômade, ou semi-sedentário de produ- zir alimentos e recolher o pescado, es- tabelecem elementos que justificam as moradias fixas próximas às margens de rios e lagos. Plantas e animais disponíveis, como material inicial para a domesticação, foram pressupostos na acumulação de alimentos. O grupo que pretendesse crescer, para tanto, basea- va-se na produção de alimentos. Da Pré-História e das primeiras civilizaçõesà época contemporânea, identidades em formas alimentares fo- ram levadas pelo mundo, os alimen- tos e as bebidas do Antigo Egito, os pro- dutos e recursos alimentares dos Fenícios e Cartaginenses, os modelos do mundo clássico, os banquetes ro- manos, as refeições gregas, os bárba- ros e cristãos na aurora da cultura ali- mentar européia, as cozinhas medievais, a alimentação oriental e africana, a cozinha árabe e suas nor- mas islâmicas, os costumes alimenta- res judeus, entre outros tantos. Estudar a cultura na mesa brasilei- ra é ir bem mais além das tradições e influências dos nativos indígenas, das iguarias africanas e das suculências por- tuguesas. Pois, a cozinha é um reativo de rara sensibilidade para avaliar a cul- tura de uma população, é um conjunto de signos e símbolos que ao serem in- terpretados dão compreensão a histó- ria civilizatória de um povo. A alimentação como objeto de conhecimento é, também, uma ferra- menta de educação, pois, as tradições, as representações, as linguagens, as idéi- as e teorias despertam curiosidades, ve- rificações e comunicações. Quanto mais o indivíduo percebe as diferenças, mais aumenta as possibilidades da busca do saber. A complexidade humana reúne e organiza conhecimentos dispersos, o ensino através das origens do cultivo, do preparo, do servir, do comer, dos tabus, dos hábitos e comportamentos, das superstições e costumes alimenta- res, estabelece uma comunicação entre disciplinas e a compreensão da trajetó- ria das sociedades humanas. A cultura é construída por fragmentos, separações e distinções que se reúnem e se articu- lam. A coisa e a causa se confundem. Cultura e culto procedem do mes- mo verbo latino colo, focando o seu sig- nificado no cultivo, nos deslocando as matizes do passado pela ocupação do chão, amarrando os signos que apon- tam o ser humano preso a terra e, nela, abrindo covas que lhe fornecem o ali- mento e lhe abriga depois da morte. Cultus é sinal de que a sociedade que produziu o seu alimento já tem Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 15 memória. O culto faz do solo o local do sagrado. A cova que receberá o grão que fora transforma- do em alimento poderá ser, também, a cova que receberá os que partiram. Os sepultados, na ver- dade, são plantados para que renasçam. O solo no qual repousam os antepassados é o mesmo do qual brota, a cada ano, o sustento alimentar do corpo, inferindo aos espíritos dos antepassados a cooperação na germinação das plantas cultivadas. É o ciclo do nascer e do morrer. Do plantar e do renascer. Da luta pelos meios da sobrevi- vência e do religar ao passado pelas mediações e pelos laços que irão sustentar a identidade das origens. A Antropologia da alimentação no Brasil têm como referencial, as obras de Gilberto Freyre. No livro “Assucar: algumas receitas de doces e bolos dos engenhos do Nordeste” publicado em 1939, tendo a segunda edição, aumentada e revisada, em 1967, com o subtítulo, “em torno da etnografia, da História e da Sociologia do doce no Nordeste canavieiro”, ressalta a influência subje- tiva do açúcar no sentido de adoçar maneiras, gestos e palavras. De forma definitiva, em Casa Grande & Senzala, Freyre, trata da alimentação como valor essencial para a análise sociológica, até então, relegada às categorias secundárias da investigação científica. No Brasil os elementos trazidos nas bagagens, na memória, intrínsecos nas heranças culturais, vivo nos hábitos, fiéis nas tradições, aculturaram- se, reformularam-se, reelaboram-se numa cozinha, que em um primeiro momento mobiliza a base alimentar do índio, nativo brasileiro. Traços marcantes das culturas dos nossos antepassados indígenas, tais como gêneros alimen- tícios, práticas de cultivo e utensílios para fazer a comida, para guardá-la, para pisar o milho ou o peixe, moquecar a carne, espremer as raízes, pe- neirar as farinhas, utilizando os alguidares, as urupemas, os tipitis, as cuias, as cabaças, os balaios, foram incorporados à cozinha colonial, e, freqüentemente encontrados nos dias de hoje nas casas do norte, do centro e do nordeste do Brasil. Das comidas preparadas pela mulher indí- gena brasileira, as principais eram as que faziam com a massa ou a farinha de mandioca, sendo adotada pelos colonos no lugar do pão de trigo, tornando-se a base do regime alimentar de todo colonizador. A mandioca como a mais brasileira de todas as plantas, tem uma ligação direta com o desenvolvimento histórico, social e econômico do Brasil. Assim como ensinou ao português o cultivo e o consumo da mandioca, o indígena fez o mes- mo com o milho. Alimento tradicional dos povos americanos, o milho foi o único cereal encontra- do no Brasil e levado para a Europa. A farinha de milho foi comida de escravos e de bandeirantes, não tão consumida quanto à farinha de mandio- ca, foi difundida por todo o Brasil, através do pre- paro do cuscuz, este, por sua vez, transformado na cozinha brasileira, da sua origem árabe à base de arroz, para a reelaboração com farinha de mi- lho e coco. A tradição alimentar indígena, com as frutas e os frutos brasileiros, combinados com as especi- arias, trazidas pelos portugueses, tais como: cra- vo, canela, gengibre, noz-moscada e erva-doce e, mais, o modo tradicional do fazer bolos, doces e conservas, passados pela alquimia do preparo bra- sileiro, como parte de um processo intercultural, no qual, o milho, nativo do Brasil; o açúcar de cana, planta originária da Ásia e o coco, de pro- cedência indiana, resultaram em complexas re- ceitas, guardadas em segredo, como verdadeiras maçonarias. O português foi o principal europeu forma- dor da nossa árvore genealógica. Mas, é necessá- rio esclarecer que a formação étnica do nosso co- lonizador português foi uma decorrência de longos anos de aculturação e assimilação. Desde os tem- pos mais primitivos do continente europeu, fize- ram parte da sua história: os celtas e os íberos, tendo, também, em sua estrutura civilizatória, os povos mediterrâneo-camitas, originários da África do Norte. As invasões romanas fazem entrar em território português povos diversos: sírios, armenóides, itálicos. A influência judia fixou-se, impondo aspectos políticos e sociais na difusão de sua cultura no território português. Dos romanos, recebeu a formação portu- guesa variada influência, que, de modo geral, tor- nou-se básica, no levantamento do nível intelec- tual da população, na facilidade da comunicação através da construção de estradas, na edificação de cidades, no sentido municipalista, na organi- zação política, bem como o cristianismo, que se tornou um dos fundamentos de sua formação cultural. Às invasões germânicas, sucederam-se as romanas, resultando na integração de novos grupos humanos na população portuguesa, en- Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 16 tre eles, alanos, vândalos, godos, suevos, visigodos, com a predominância do elemento de procedência nórdica. Com os germanos, intro- duziu-se, em Portugal, a aristocracia, que veio chocar-se com a democracia romana. Invasões árabes levaram a Portugal novos elementos étnicos e novos valores culturais, onde perduram até hoje, na arquitetura, com os arabescos mouriscos; na agricultura, na introdu- ção de técnicas de irrigação; nos minhos de água; nas indústrias; nos trabalhos em pele; no aperfei- çoamento de tecidos de lã e linho; nas artes; na língua; nos trajes. A entrada dos mouros, que eram escravos trazidos da Mauritânia, país que fica no norte africano, entre o mundo árabe e a chamada África Negra, trouxeram características sutis à cul- tura portuguesa. Dos mouros, sabe-se que muitos dos libertos isolaram-se em grupos, formando as mourarias. Assim, o colonizador português, trou- xe permeando o seu processo histórico a aculturação, que decorreu durante séculos, até a sua formação quinhentista. Neste contexto,sua historiografia justifica a facilidade em Instalar-se em novas terras. Ao fincar-se em definitivo no Brasil, o por- tuguês recriou o ambiente familiar, cercando-se dos recursos de curral, quintal e horta. Trouxe vacas, touros, ovelhas, cabras, carneiros, porcos, galinhas, gansos, pombos e o mais disputado animal entre os indígenas, o cachorro. Trouxe também as festas tradicionais e as devoções aos santos católicos. Outros verdes vestiam a nova terra: figo, romã, laranja, limão, lima, cidra, me- lão e melancia. Pepino, coentro, alho, cebola, hortelã, manjericão, cenoura e bredos. Tornaram- se, habituais, também, o uso da manteiga, do ovo, do azeite e do vinho. As conexões geográfi- cas realizadas pelos portugueses possibilitaram o desenvolvimento da diversificação na produção de alimentos no Brasil. Compondo a tríade formadora do nosso tronco cultural, sobre o qual a sociedade brasilei- ra foi modelada, o negro africano, ainda em sua terra natal, sofreu influências de diversas culturas. O processo de expansão ultramarina, faz com que o português chegue ao continente africano no sé- culo XV, exercendo junto com outros países vizi- nhos, um amalgamento de culturas. Essas influên- cias acrescida da diversidade étnica africana, teve maior peso na formação do povo brasileiro, o patrimônio cultural do africano negro, trouxe pe- culiaridades comuns e valores diversos, contribu- indo para que a transmissão da cultura africana não fosse apenas por um, dois ou três elementos, mas, de inúmeras nações com culturas variadas e impregnadas pela influência européia e islâmica. Os ciclos do açúcar, do ouro e do café, for- maram o caminho das iguarias africanas pelo Bra- sil. As sociedades secretas e os ritos religiosos, com suas comidas sagradas, resignificaram as oferendas dos orixás, em pratos do cotidiano da mesa do brasileiro. A palmeira, de onde se extrai o azeite-de- dendê, o óleo de palma ou o azeite-de-cheiro, plantada pela orla ocidental e oriental africana, foi trazida para o Brasil nas primeiras décadas do século XVI, possibilitando o acesso a um dos ele- mentos primordiais da culinária afro-brasileira. A cozinha africana firmou suas característi- cas e elaborou suas técnicas, depois do Brasil ter sido povoado, na segunda metade do século XVI. Foi o período em que as espécies nativas brasilei- ras foram transladadas ao continente africano, tais como, a mandioca, a macaxeira-aipim, o milho, o amendoim, o caju, entre outros. O vatapá representante oficial da cozinha afro-brasileira e, principalmente, da baiana, foi uma concepção nacional, na qual, o leite de coco, junta-se à farinha de milho ou a farinha de man- dioca e ao azeite de dendê para compor com o peixe e os camarões um prato singular agregador das culturas indo-íbero-afro. Na África o leite de coco não possui o prestígio que usufrui no Brasil, ao que se sabe, vatapá não é palavra de nenhum idioma banto. É apenas em Angola, que alguns pratos se aproximam do vatapá, o muambo de galinha e o quitande de peixe. O vatapá foi de- senvolvido nas cozinhas baianas, tomando o rumo das mesas brasileiras e continuando a evoluir e a complicar-se em sua química, pela adição e subs- tituição dos seus componentes pelas diversas re- giões brasileiras. No imenso território que é o Brasil, seja na zona rural ou na zona urbana, nossos ancestrais africanos, deixaram enraizadas as suas culturas, miscigenadas pela confluência de gostos, aromas e sabores, além do folclore, da arte, da música, da dança e de outras influências encontradas na cultura brasileira. A cozinha nossa nacional com a presença marcante da cultura indígena, negra e portuguesa desperta o deleite, no prazer da mistura. Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 17 As sabedorias do plantar, a prática do co- lher, as técnicas de conservar, a arte de preparar, o ritual do servir, o prazer do comer e degustar, revelam a marcha da formação do povo brasilei- ro. O desbravamento do nosso país pode ser lido através do multiculturalismo alimentar. Grupos étnicos diversos aqui, fixaram-se, formando um ladrilho cultural, reelaborados em cada região, nas combinações das sobrevivências dos hábitos e cos- tumes, instaurando-se como indicadores das nos- sas raízes e da nossa identidade. 18 Doutor Gilberto Freyre e o Reconhecimento da Culinária como Fenômeno Cultural Eliane Asfora A culinária sempre teve um papel muito importante na formação cultural dos povos. Não se pode negar que a importância da culinária vai muito mais além do que um simples interesse de rodas femininas. Isso seria subestimá-la. Sabemos que a alimentação de um povo reflete o seu próprio modo de vida. Não se pode, portanto, desprezar a culinária como importante fator cultural. Entretanto, nem sempre houve esse reconhecimento. Coube ao Dr. Gilberto Freyre, com sua forte veia regionalista e progressista, chamar a atenção, em 1926, no seu “Manifesto Regionalista”, para a importância da culinária na formação da nacionalida- de brasileira, o que até então ninguém tinha tido coragem de fazer. Mais adiante, em 1939, em sua obra “Assucar – Algumas receitas de bo- los e doces do NE do Brasil”, ajudou a quebrar ainda mais essa resistência em admitir a culinária como fenômeno cul- tural, pois, pela primeira vez, alguém ousava admitir que as receitas culinárias propulsavam muito mais que simples conversas de mulheres. Nessa obra, em que ele escreve sobre diversas receitas culinárias seculares recolhidas junto a famílias e engenhos da região, Dr. Gil- berto chega a escandalizar alguns con- servadores que, indignados por ele per- der tempo com o que consideravam simples “fricote feminino”, passaram a apelidá-lo, pejorativamente, com vários nomes atribuídos a quitutes de açúcar. Falando em açúcar, é importante ressaltar a sua importância na culinária nordestina. Durante muito tempo, o açúcar foi a principal fonte de riqueza de nos- sa região. Mas já houve épocas em que, curiosamente, quando ainda era tido como uma raridade, chegou a fazer parte dos bens que a noiva levava como dote. O açúcar, porém, não gerou ape- nas lucros. Inspirou também diversos artistas. Assim é que vemos muitos es- critores, à semelhança do Dr. Gilberto, retratando a realidade dos engenhos, também inúmeros pintores assim o fi- zeram. E, como não poderia deixar de ser, a culinária. Afinal, como dizia Dr. Gilberto, o nordestino trata-se de um povo que, “depois de salgar o estôma- go”, não dispensa o “adoçar da boca”. O açúcar, doce como todos que- rem que a vida seja, já era usado na culinária pernambucana desde a épo- ca das casas-grandes, despertando a gula das pessoas. Os holandeses, por sua vez, também eram grandes apre- ciadores dos doces e, podemos ressal- tar, das frutas cristalizadas, hoje utili- zadas no tradicional bolo de noiva. Chega a ser engraçado pensarmos que o Conde Maurício de Nassau, ao retornar à Holanda, levou em suas bagagens, entre inúmeras outras coi- sas, nada menos que 103 barriletes de frutas confeitadas... Hoje, sabemos que o famoso bolo de noiva virou uma tradição em PE. E, com muito orgulho, podemos dizer que Dona Leonie Asfora teve um papel de- cisivo para que isto se consolidasse. Com a criatividade, que é característi- ca do povo pernambucano, esta Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 19 “pernambucana de coração” transformou o açú- car em arte e ajudou a divulgar, através do seu trabalho, o nosso estado, não só no restante do país, mas, inclusive, fora dele, afinal muitas foram as encomendas recebidas por ela ( e que continu- am até hoje através de suas filhas) originadas de Brasília, do sudeste do Brasil, passando pelos EUA, Europa e até Japão. Com isso, ela não angariava prestígio apenas para os seus bolos, mas também para o nosso querido Leão do Norte. E reforçando a tese do Dr. Gilbertode que a culinária se revela como importante fenômeno cultural, diferenciador dos povos, constatamos que o bolo de noiva, feito à base das frutas cristaliza- das que tanto atraíram os holandeses, e confeita- do tal como Dona Leonie Asfora o consagrou, mostra-se um produto, genuinamente, regional, especialmente pernambucano, tanto que, se for- mos em outras regiões do país, percebemos que ele não é concebido nesses moldes e nos depara- remos com bolos brancos, de chocolate, de no- zes etc., a compor as mesas das noivas. Dr. Gilberto foi testemunha do trabalho de- senvolvido por Leonie Asfora. Acompanhou a tra- jetória dessa piauiense, filha de imigrantes árabes, sempre participando a arte dela nas festas famili- ares e diversos eventos sociais aos quais se fazia presente, nunca dispensando o chamado “bolo de noiva”. Foi assim no casamento de suas filhas, no aniversário de seus netos, nas festividades da Fundação Gilberto Freyre etc. Podemos afirmar, sem medo de errar, que, pelas mãos de Dona Leonie Asfora, provou-se que o açúcar, muito mais que insumo para doces, pode-se revelar verdadeiro instrumento de arte. E, pela coragem e ousadia de Dr. Gilberto, que a culinária de nossa região, muito mais que saciar a fome insaciável dos contumazes devoradores de doces, revela-se, não só um diferenciador cultu- ral dos povos, mas, antes, fonte de orgulho para todos nós, família pernambucana: orgulho de ser nordestino, orgulho de ser pernambucano, orgu- lho de ter um Gilberto Freyre que nos ensinasse a ter orgulho de nós mesmos... 20 Nordeste: ecologia, alimentação e cultura Palavras de abertura da mesa-redonda, proferidas pelo professor Manoel Correia de Andrade, coordenador da mesa, a que se seguiriam as intervenções dos expositores Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo, da USP, Rogéria Campos de Almeida Dutra, da UFMG, e Petrucio Nazareno, do Restaurante Goya em Olinda. O grande interesse neste seminá- rio é analisar o relacionamento entre ali- mentação, o meio ambiente e a cultura. Assim os homens organizam o seu siste- ma alimentar com uma certa dependên- cia do meio natural, da disponibilidade de acesso aos produtos que vai utilizar na alimentação e ao preparar estes ali- mentos eles vão naturalmente sofrer uma forte influencia cultural. Assim no Nor- deste os habitantes vieram de origens di- ferentes, os portugueses e judeus da Eu- ropa, os negros da África e os indígenas já se encontravam na terra. Ao se encontrarem esses três gru- pos que se hostilizavam na luta pelo domínio da terra e pela supremacia do poder, os europeus levaram a vantagem da maior dominação cultural, tecnológica e econômica e tentaram impor seus hábitos e costumes aos in- dígenas, considerados por eles como bárbaros e pelos negros escravizados e trazidos da África. Mas estes europeus logo viram que se encontravam em uma terra diferente da sua, por suas condi- ções naturais e que os produtos de que dispunham na área de origem não se encontravam no país, na colônia que procuraram construir. Aqui eles não dispunham dos ali- mentos típicos da Europa, como o trigo, o centeio, as frutas ditas de clima tem- perado, os méis silvestres, os peixes e as carnes sobretudo bovina e ovina. Tive- ram assim que ir se adaptando a alimen- tação com farinha de mandioca, que chamavam desdenhosamente de farinha de pau, com o milho, com os tubércu- los, e com as frutas tropicais, algumas delas logo tornadas indispensáveis a ali- mentação como os cajus e o sapoti. Por isto tratado de introduzir no novo pais, animais domésticos da Europa, da Áfri- ca e da Índia, para irem substituindo os animais silvestres, muito abundantes e facilmente caçados na época, como antas, veados, macacos, tatus, pacas, cotias e aves de médio porte. Os vegetais europeus tiveram maior dificuldade de transplante face as dificuldades climáticas, mas os eu- ropeus procuraram se adaptar aos pro- dutos da terra e a introduzir espécies africanas, das Índias e da Oceania, como o coqueiro, o fruta-pão, a man- gueira, a jaqueira, etc. que se adapta- ram de tal forma ao nosso pais que ate parecem nativas. Entre estas culturas trazidas ao Brasil, destacou-se pela sua maior importância a cana-de-açúcar que alimentaria inicialmente a nossa primeira atividade agro-industrial. De- moraria muito a ser introduzida no pais a cultura da vinha e a produção do vi- nho que era alimento básico dos colo- nos europeus, fazendo-os importar e consumir muitas vezes já deteriorados pelo efeito do tempo e do clima. O mesmo aconteceria durante o domí- nio holandês com os queijos importa- dos que eram em geral consumidos pelos colonos já bichados, em estado de putrefação. Mas estes colonos que logo se miscigenaram tanto sexualmente, como culturalmente com negros e índios sou- beram desenvolver técnicas culinárias e associando produtos de origem diver- sas, dar uma cor local a alimentação Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 21 brasileira. Em Pernambuco deve-se destacar-se a importância do açúcar, que desenvolveu grandes variedades de doçarias, que deliciavam as classes melhor aquinhoadas da terra. Assim os pernambucanos tornavam-se cedo gordos e vo- luptuosos com o excesso de doces que comiam e as facilidades de contatos sexuais com negras e índias. Gilberto Freyre que estudou em profundi- dade a formação da sociedade patriarcal brasilei- ra chama a atenção para este fato em senhores de engenho e autoridades do reino se cercavam de filhos os mais diversos, mestiços de negros e índi- as, ao lado dos brancos e seus solares patriarcais. Na Bahia, embora seja forte a influencia ne- gra na culinária com o uso da pimenta malagueta, do azeite de dendê, do cravo e de outros produ- tos na formação dos chamados pratos baianos, considerados por muitos como africanos. Daí a importante influencia e prestigio dentro e fora da Bahia dos seus acarajés, vatapás e carurus. E na região semi-árida a importância da fari- nha de milho e a influencia árabe chegando ate la com os seus cuscuz e com o uso freqüente do leite. Conciliação muito feliz do milho com o lei- te, segundo o geógrafo Josué de Castro, porque um corrige as deficiências alimentícias do outro. Mais recentemente se faz sentir a influencia em expansão da cozinha italiana com o uso in- tenso das massas e gaúcha, com o uso maximizado da carne na alimentação nordestina. Finalizando, aconselhando que leiam sobre o assunto o livro Açúcar de Gilberto Freyre, passo a palavra aos expositores que como especialistas melhor aprofundarão o tema. 22 Estudo Etnobotânico da Mandioca (Manihot esculenta Crantz - Euphorbiaceae) na Diáspora Africana Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo Centro de Estudos da Religião Duglas Teixeira Monteiro, USP/PUC. INTRODUÇÃO As relações interculturais que se estabeleceram com a diáspora africana depois da chegada das primeiras levas de escravos africanos ao Brasil no sécu- lo XVI, são marcantes no tocante às plantas úteis, tanto medicinais como ali- mentícias. Os estudos de tais plantas, sob a ótica da Etnobotânica, permitirão um melhor conhecimento quanto as rela- ções homem/planta em suas diferen- tes dimensões, visando resgatar dos grupos humanos o saber quanto aos papéis que as plantas desempenham nos diferentes ambientes culturais e os significados que os grupos sociais lhes atribuem. Considerando a dispersão dos es- cravos africanos, desde épocas pretéri- tas, dentro da própria África e para além mar, muitas espécies botânicas seguiram os mesmos caminhos, pois, ao mesmo tempo em que se traficava escravos, as plantas de interesse comercial eram le- vadas de suas regiões de origem, para novas terras, para aí serem cultivadas com o trabalho escravo. O processo de dispersão das plan- tas, contando sempre com o trabalho escravo, permitiu que este não só tra- balhasse a terra para seu cultivo,como também, passasse a consumi-las como alimento e como remédio. A mandioca, sob a ótica da diáspora africana, tendo em vista seu papel na alimentação dos povos africa- nos receptores e dos brasileiros é o ob- jeto desta comunicação. MATERIAL E MÉTODO Dado o caráter interdisciplinar que norteia os estudos de Etnobotânica, vários autores que trataram da mandi- oca nas diferentes áreas de suas especi- alizações foram consultados, de forma a permitir um melhor entendimento quanto ao uso da mandioca e seus de- rivados na alimentação do brasileiro e dos povos africanos das regiões domi- nadas pelos portugueses, a partir do século XVI. Torna-se importante destacar as obras deixadas por cronista e cientis- tas que desde o século XVI até nossos dias vêm documentando os usos e costumes alimentares no Brasil, des- tacando o papel da mandioca, como: Pero de Magalhães Gandavo; Fernão Cardim; Gabriel Soares de Sousa; Augusto Saint Hilaire, Spix e Martius e, mais modernamente, Giberto Freyre, Câmara Cascudo, A. J. Sampaio, entre muitos e muitos ou- tros, cujas obras e seus autores, arro- lados na bibliografia apresentada no final, foram de suma importância para o entendimento dos fatos relaciona- dos à mandioca na alimentação dos povos brasileiro e africano. Muitos dados sobre os hábitos ali- mentares, em que a mandioca vem comparecendo com bastante assiduida- de na culinária do brasileiro e de povos africanos em tempos passados e con- temporâneos, foram coletados na Internet, cujos sites estão identificados em todas as citações, cujas informações foram obtidas por esse meio. Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 23 RESULTADOS Manihot esculenta Crantz - Euphorbiaceae, Origem: América do Sul (Brasil) (Joly &Leitão Fi- lho, 1979:74) Spix e Martius no século19, por não terem encontrado a mandioca em estado silvestre, che- garam a admitir sua origem africana, com base na lenda de Sumé ou São Tomé divulgada por Anchieta, na qual dizia que o Apóstolo São Tomé a teria trazido consigo para o Brasil (Pereira, 1980:373). Dizia Anchieta que em São Vicente estavam as pegadas de çumé que devia ser de São Tomé.(Rodrigues, s/d:21). Também, disse Manuel da Nóbrega em carta: é tradição antiga que veio o bem-aventurado apóstolo São Tomé a esta Bahia e lhes deu a mandioca e a banana São Tomé (Cascudo, 1980: 723). Nomes vulgares: aipim, macaxeira, mandi- oca, mandioca-brava, mandioca-mansa, maniva, maniviera, pão-de-pobre, uaipi. Em países de lín- gua inglesa: cassava. Padre Anchieta em 1554 chamou a mandioca de pão dos trópicos e outros diziam pão caboclo e pão nosso-de-cada-dia. Princípios ativos: As raízes de mandioca re- presentam importante fonte de energia de onde se extrai amido e as folhas são ricas em vitaminas A e C, ferro e cálcio, além de serem fonte de pro- teína. www.abc.com.py:2417/suple/rural/anuários/ anuario2001/jun018.html [3/08/2003] A planta toda apresenta o glicosídio cianogenético, o princípio tóxico. São muitas as variedades de mandioca exis- tentes no Brasil, sendo que as mesmas podem ser divididas em dois grupos: a mandioca brava, pró- pria para a industrialização e imprópria para ali- mentação, devido ao alto teor de glicosídio cianogenético, com cerca de 0,02% a 0,03%; mandioca mansa com baixo teor do princípio tó- xico (cerca de 0,005% (FIBGE, 1980). De fácil produção, a mandioca é cultivada em todos os estados brasileiros. Oriunda de re- gião tropical, encontra condições favoráveis em todos os climas tropicais e subtropicais. www.obatateiro.hpg.ig.com.br/mandioca.htm [3/ 08/2003] África, Ásia e América representam quase a to- talidade da produção mundial de mandioca, sendo a Nigéria o principal produtor do mundo e o Brasil o segundo em produção. www.agrocadenas.gov.co/ inteligencia/int_yuca.htm [3/08/2003] A CULTURA DA MANDIOCA A primeira descrição da cultura da mandio- ca no Brasil foi feita pelo cronista Magalhães Gandavo em sua História da província de Santa Cruz, de 1573. No século 16, já se falava de diferentes cas- tas de mandioca: 1. com hastes avermelhadas; 2. com pequenos ramos que se plantam em lu- gares sujeitos a tempos tormentosos para que não quebrem ao vento; 3. aquelas que se deixam criar, dá raízes de 5 a 6 palmos e muito grossas. A folha cozida o índio come com pimenta, em tempo de escassez de alimentos. (Sousa, 1974:88). Conforme observado por Gabriel Soares de Sousa (1974) no século 16, os indígenas planta- vam por estaca, pedaços de mais ou menos um palmo, retirados da rama, chamado-os manaiba ou maniva, os quais eram enterrados até a meta- de, em número de três a quatro em cada cova. Cova não era entendida como buraco, mas sim como montículos de terra cavada, bem afofada. Esse plantio se fazia em forma ordenada, em filei- ras, com seis palmos distante uma cova da outra. Diziam que esta técnica fora ensinada por São Tomé, aos índios. Lendo os cronistas que andaram pelo Brasil por diferentes épocas e regiões, percebe-se que as técnicas do plantio da mandioca por eles des- critas, sofriam pequenas variações, levando-nos a crer em uma quase uniformidade em tais costu- mes de lidar com a terra e manejo com as mudas. A mandioca, depois de conhecida dos por- tugueses, passou a ser considerada por Portugal um elemento de fundamental importância para o desenvolvimento de suas atividades relacionadas não só às conquistas de novas terras como ao de- senvolvimento do tráfico negreiro. Dessa forma, tal importância recaía no valor nutricional desses tubérculos que permitiam alimentar não só os portugueses que iam se fixando nos pontos da costa africana onde eram instaladas feitorias, como também servia de alimentação dos escravos, tan- to nos navios com nos diferentes pontos do Brasil, onde eram negociados e levados por seus com- pradores para diferentes áreas do país. O indígena tinha por hábito deixar o solo em repouso por um determinado tempo entre os Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 24 plantios para que o solo se recuperasse e esse hábito tem sua lógica, pois La mandioca absorve del suelo más nutrientes que la mayoria de los cultivos tropicales, y tiene um índice de extración K/N (nitrogênio, fósforo e potássio) mui elevado. Aún cuando la información es tan variable en cuando a la cantidad de nutrientes que absorve, puede expresarse en términos medios que para cada tonelada de raíces, se necessitan aproxima- damente 2,4Kg. de nitrógeno, 0,46Kg. de fóforo y 3,5Kg. de potásio (Cenoz &Lopez & Burgos, 2000) PRODUTOS INDÍGENAS DERIVADOS D A MANDIOCA Segundo Maestri Filho (1978:85), os primei- ros portugueses que chegaram ao Brasil já pude- ram constatar a gama de produtos derivados da mandioca que o indígena produzia, tais como: Mbeu - espécie de bolo de farinha de mandioca cozida sobre pedra quente, o que hoje se co- nhece por beiju; Mambeca - ancestral do atual pirão, feita com ras- pas de mandioca torrada; Poqueca - espécie de bola feita da raspa da man- dioca condimentada que é cozida envolta de folha de Marantaceae; Curuba - raspa de mandioca acrescida de casta- nha-do-pará (Berthollettia exelsa) ou sapucaia cozido em fogo brando; Cica - mingau condimentado preparado à base de fécula fina; Puba - farinha obtida da raiz macerada e fermenta- da em água, lavada, espremida e secas ao sol. Os indígenas também utilizavam-se das fo- lhas para preparar a maniçoba cuja, técnica de preparação exigia vários dias. No período do Brasil colonial os fornos de preparar a farinha de mandioca eram feitos de ar- gila e, primitivamente, só utilizavam a superfície de larga pedra de quartzo, montada num tripé. Para o preparo da farinha de mandioca, pri- meiramente se colocavam as raízes de molho em áreas alagadas ou em uma depressão à margem dos rios e de igarapés, visando tornar mais fácil a retirada das cascas.Em seguida ralam os tubércu- los da planta, em ralos de diversas formas e tama- nhos. Em seguida a massa tem que passar pelo tipiti (tipi = espremer + ti=sumo, líquido) para a compressão e expressão. A massa assim obtida (li- vre do sumo que se aproveita para se preparar o tucupi, prato típico do norte do país) passará por uma peneira, sendo recolhida num cofo (cesto de taguara de boca estreita) e dali levada ao tacho do forno alimentado por fogo vivo. Movimentan- do um rodo e a metade de uma cuia para espa- lhar a massa e atirá-la de quando em quando para evitar que se aglutine em bolões e, ao mesmo tem- po, para arejar, sendo este o mais importante tra- balho das mulheres indígenas nas operações da farinhada a uy-munhangaua. A casa-de-farinha produz a farinha-d’água, surui, tapioca e carimã (Pereira, 1974:163,169) Em 1565 os portugueses já se utilizavam da farinha-de-pau, como suprimento alimentar leva- da nos navios, provavelmente antes da introdu- ção da mandioca na África. Farinha-de-pau era a designação que os portugueses davam à farinha- de-mandioca. Em 1700 a mandioca era plantada na Bahia a fim de se preparar a farinha necessária para a alimentação nos navios durante as viagens (Bueno, 1998: 265,278,290) A farinha-de-guerra como, também, era cha- mada, fazia parte dos suprimentos levados pelos bandeirantes quando de suas saídas para o ser- tão. Rocha Pita, que relatou a Guerra dos Emboabas por volta de 1725, citado por (Taunay, 1954:83) esclarece que era assim chamada por ser a munição de boca dos soldados. Preparavam os pães que eram cozidos para torná-los compac- tos, para depois envolvê-los em folhas, a fim de conservá-los até um ano e sem perder o sabor. Os sertanistas, nos locais de paradas mais longas, ou seja, nos acampamentos, onde iam se formando os arraiais, que criavam pelo caminho durante as expedições, faziam roças de milho, que era de produção rápida e roças de mandioca, cuja produção demorava mais tempo, servindo de ali- mento certo quando do retorno do sertão, onde, ainda, deixavam novas roças plantadas para ga- rantir seu sustento em novas jornadas. A mais importante bandeira, em 1674, foi a de Fernão Dias Pais, que ganhou o título de Go- vernador da esmeraldas, que morreu junto ao Rio das Velhas, no sertão de Minas, pensando ter des- coberto as esmeraldas, que na realidade eram turmalinas. www.anzwers.org/trade/taxibrasil/ taxicambandeirantes.html [15/7/2003] Os paulistas dos séculos 16 e 17 respiravam desde sua infância, uma atmosfera saturada de Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 25 sertanismo. Vindos de um mar desconhecido, con- vivendo com os longos dias repletos de imprevis- tos, mistérios e riscos de toda sorte, o sertanista se comparava aos marinheiros. Diante do oceano, como diante do sertão, é o mesmo assombro. (...) Homem do mar e homem da floresta têm o mes- mo temperamento, são igualmente simples e bru- tais, ingênuos e intrépidos. É alguém que vai reso- lutamente para o desconhecido. Acompanhavam as bandeiras, tanto meninos de pouca idade como velhos. Noventa anos, tinha Manuel Preto e ses- senta e seis Fernão Dias Paes Leme ao iniciar a jornada das esmeraldas. A Capitania de São Paulo era pobre. Até as vizinhanças do século 18 era enorme a escassez de dinheiro amoedado. Os colonos utilizavam-se dos pagamentos em espécies. Até mesmo a municipalidade recorria a essa forma para pagar quem ali trabalhasse. A farinha-de-guerra entre outras espécies, tinha valor de dinheiro, confor- me relata Alcântara Machado (1978:133-5). Na farinha de mandioca fixou-se a base do nosso sistema alimentar, dizia Gilberto Freyre (1987:32) em Casa-Grande & Senzala. Porém, no planalto paulista, comenta o autor, que no pri- meiro século da colonização esboçava-se uma policultura com destaque ao cultivo do trigo. Essa policultura era constituída, na verdade, de alguns gêneros que já era hábito indígena cul- tivar como alguns tubérculos, o milho, o trigo e o algodão com o qual produziam tecidos, além das frutas da terra e de outras introduzidas pelos por- tugueses. Essa policultura, de certa forma, garantia o sustento dos paulistas, que utilizavam esses pro- dutos não só na alimentação, como, também nas transações comerciais e no pagamento de dívidas; porém, era tudo muito pouco que se produzia e o povo era pobre. A distância do litoral era um dos fatores que dificultavam o progresso no pla- nalto e, na verdade, o dinheiro amoedado somen- te aparece com relativa abundância depois de aberto o ciclo da mineração. Em São Paulo setecentista, a base da alimen- tação do paulistano constituía-se de canjica, angu de fubá e de farinha de mandioca, ensinada pe- los indígenas. Esses angus e a canjica dispensa- vam o sal, o qual era escasso naquela época (Ma- chado, 1978:69), assim como era escasso o talher e o hábito de comer com as mãos era o mais co- mum, fato que exigia dos comensais a lavagem das mãos na presença dos demais. A farinha de mandioca com seu efeito aglutinador fazia parte do preparo da iguaria que se levava a boca. Pega- va-se, por exemplo, um pedaço de carne, já pre- parada em molho, colocava-se na palma da mão, acrescentava-se verdura e farinha, formando um bolo que era levado à boca. A influência indígena na alimentação dos paulistas é marcante, visto que os índios escravi- zados prestavam serviços aos habitantes do pla- nalto. Somente no início dos seiscentos é que co- meçam a serem arrolados nos inventários os tapanhunos, nome dado aos africanos, que em língua geral tapuyna significa gente preta. A escas- sez de africanos devia-se aos altos preços. Foi em 1607 que aparece pela primeira vez um negro de Guiné, valendo quarenta mil reais, uma soma exorbitante para a época. Quando era um tapanhuno ladino, este, então, valia 250 mil. Só no século 18 que aparecem nos inventários, afri- canos de nação benguela e mina (Machado, 1978:173). Percebe-se a influência indígena, principal- mente, no uso da farinha de mandioca na mesa do paulistas e paulistanos, onde a farinheira, ain- da, tem seu lugar reservado, principalmente em casas do interior do Estado. Da farinha de mandioca surgiram as farofas preparadas de diferentes maneiras. Essa influência indígena atingiu os espaços religiosos afro-brasileiros em todo o País, onde as farofas têm seu lugar, também reservado nas cozi- nhas dos orixás, além de outros pratos à base de mandioca, conforme pesquisa realizada por Lody (1979:51). Cita-se, ainda, do agralá, tipo de faro- fa, comida feita com farinha seca, dendê e sal, preparado na Casa das Minas, em São Luís do Maranhão, segundo Ferretti (1986:283,287). Em resumo, no século 17 os paulistas eram cruéis caçadores de índios, no século 18, caçado- res de ouro e no século 19 agricultores e criado- res de gado. Assim, com o término da escravatura indí- gena, houve a maciça substituição pelos escravos africanos nas fazendas de café entre Rio de Janei- ro e São Paulo. Dessa forma a influência indígena na alimen- tação em São Paulo até início do século 18 era decisiva. Importante foi a obra escrita em versos lati- nos, publicada em 1781 sob o título De rusticis Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 26 Brasiliae rebus , descreviam as riquezas do Brasil do século XVIII, dentre elas o cultivo da mandio- ca. De autoria dos padres da Companhia de Je- sus, José Rodrigues de Melo e Prudêncio do Amaral (1997:113-9), esta, em tradução vernácula em prosa recebeu o título: Temas rurais do Brasil. Tais versos, deixando transparecer o pensa- mento etnocêntrico dos portugueses, descreve a maneira como se comia a farinha de mandioca. É sórdido e rústico pegar a farinha com a mão e a lançar à boca, como faziam os índios e os etíopes e a gentalha restante da cidade e o refugo ínfimo do povo, Muito embora também eles possuam sua destreza, sua graça. Com efeito,
Compartilhar