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Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais ISSN 2177-6687 1 AS MURALHAS COMO FATOR DE IDENTIDADE DAS CIDADES MEDIEVAIS RIBEIRO, Luiz Augusto Oliveira (PIBIC/AF/ UEM) REIS, Jaime Estevão dos (DHI/PPH/ UEM) A presente pesquisa tem como objetivo analisar as muralhas como fator de identidade das cidades medievais. Buscamos entender, por meio da análise historiográfica, as diversas interpretações acerca do desenvolvimento das cidades no Ocidente medieval nos fins do século X e começo do século XI, e o processo concomitante de construção de muralhas como estratégia de defesa do espaço urbano. Entre os autores analisados nesta pesquisa, citamos Jacques Le Goff, Henri Pirenne, Guy Fourquin, Thierry Dutour, Leonardo Benevolo, Patrick Boucheron, Denis Menjot, Emílio Mitre, Georges Jehel e Philippe Rancinet, que darão embasamento à nossa discussão. Esses autores, especialistas nas questões relativas ao espaço urbano na Idade Média, têm analisado as cidades medievais em seus mais variados aspectos, e, igualmente, têm chamado a atenção para a necessidade de se aprofundar o conhecimento sobre aspectos ainda pouco estudados, no tocante às questões de defesa das cidades medievais. Em fins do século X e início do século XI deu-se início a um amplo processo de desenvolvimento urbano no Ocidente, seja em função da dinamização das antigas cidades de origem romana, ou pelo nascimento e estruturação de cidades novas, fundadas por iniciativa de mercadores, como defende Henri Pirenne, ou ainda por iniciativa da nobreza, motivada pelos progressos do campo, como defende Guy Fourquin. O aparecimento dos núcleos urbanos no Ocidente nesse período tem suscitado acaloradas discussões entre os especialistas, sobre as reais causas que teriam suscitado tal (re)aparecimento, tal como apontamos acima. Todavia, interessa-nos, nesta discussão, observar não os motivos que teriam provocado a expansão urbana, mas a identidade das cidades medievais e o seu sistema de defesa. Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais ISSN 2177-6687 2 A cidade medieval tem uma estrutura particular, uma identidade conforme explica Jacques Rossiaud: A cidade medieval é, antes de mais nada, uma sociedade da abundância, concentrada num pequeno espaço em meio a vastas regiões pouco povoadas. Em seguida, é um lugar de produção e de trocas, onde se articulam o artesanato e o comércio, sustentados por uma economia monetária. É também o centro de um sistema de valores particular, do qual emerge a prática laboriosa e criativa do trabalho, o gosto pelo negócio e pelo dinheiro, a inclinação para o luxo, o senso da beleza. É ainda um sistema de organização de um, espaço fechado com muralhas, onde se penetra por portas e se caminha por ruas e praças, e que é guarnecido por torres. Mas também é um organismo social e político baseado na vizinhança, no qual os mais ricos não formam uma hierarquia e sim um grupo de iguais – sentados lado a lado – que governa uma massa unânime e solidária. Face ao tempo tradicional, enquadrado e ritmado pelos regrados sinos da Igreja, essa sociedade laica urbana conquistou um tempo comunitário, em que sinos laicos indicam a irregularidade das chamadas à revolta, à defesa, à ajuda (ROSSIAUD, apud, LE GOFF, 2006, p.223). A cidade medieval constitui o espaço urbano de trocas, de produção, de construção; é acima de tudo um espaço no qual se desenvolveu novas formas de vida, novos valores e uma nova estrutura. Como afirma Rossiaud, o espaço é fechado com muralhas, com grandes portas, fronteiras que são guardadas por torres e garantem a segurança da população. Segundo Jacques Le Goff, Se a maioria dos grandes medievalistas do século XX interessados pelas cidades medievais insistiu na separação entre a cidade antiga e a cidade medieval, eles não estão de acordo nem quanto a época dessa ruptura, nem, sobretudo, sobre as causas da aparição e desenvolvimento das cidades medievais. (LE GOFF, 2006, p. 222) A questão das origens das cidades medievais tem provocado acaloradas discussões, como a que apontamos acima. Existem historiadores que atribuem esse aparecimento apenas ao comércio, outros ao movimento demográfico ocorrido na Europa em fins do século X e começos do século XI, outros estudiosos atribuem essa origem ao artesanato. No entanto, o que se pode dizer é que o aparecimento dessas cidades não dependeu exclusivamente de um desses fatores, mas da relação entre eles, Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais ISSN 2177-6687 3 de forma que garantiu a ampliação e o melhoramento de uma “rede urbana” (LE GOFF, 2006). Para Le Goff, a construção de uma muralha é o primeiro passo da fundação de uma cidade. A muralha dá identidade ao espaço urbano medieval, pois ela é o “elemento mais importante da [sua] realidade física e simbólica” (1992, p.15). De certa maneira a muralha representa a divisão entre o campo e o espaço urbano, delimita a dialética interior e exterior, garantindo assim a proteção àqueles que residem dentro desse espaço, mas também àqueles que estão no campo, que em períodos de guerra adentram os grandes portões. Algumas generalizações de historiadores que buscaram definir as cidades medievais relacionam diretamente a existência delas a construção das muralhas. “La ciudad medieval empieza con la construcción de la primeira muralla y desaparece con la construcción de la última” (RENOUARD apud BOUCHERON/ MENJOT, s. d. p.13). Questões sociais levaram a construção daquela que seria o maior símbolo das cidades medievais. Foram fatores tais como: guerra, invasão, falta de mantimentos e o processo de cristianização permitiu a organização dessa estrutura interna (BOUCHERON/ MENJOT, s. d. p. 13). As fortificações das cidades por vezes se tornavam insatisfatórias, exigindo ampliações. A movimentação demográfica no inicio da formação dessas cidades era intensa, o que fez com que um contingente se aglomerasse em volta das muralhas existentes, e, posteriormente, novas estruturas fossem erguidas, cada vez ampliando mais o espaço urbano. Segundo Leonardo Benevolo, No início da expansão demográfica, uma parte da nova população que não encontra trabalho nos campos retira-se para a cidade, aumentando o número dos artesãos e dos mercadores que vivem à margem do mundo feudal. A cidade fortificada da Alta Idade Média, designada habitualmente por burgo, não é suficiente para os albergar; às portas das cidades, formam-se outros aglomerados populacionais – os subúrbios – que depressa se podem comparar com o núcleo originário e exigem a construção de muralhas cada vez maiores. (BENEVOLO, 1995, p. 56 – 57) Nesse sentido, a muralha caracteriza-se enquanto a obra pública mais dispendiosa, e que só recebe ampliação no momento em que não há mais espaço interno Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais ISSN 2177-6687 4 livre, o que fazia da cidade um espaço restrito, fechado e privilegiado (BENEVOLO, 1995, p 57 ). No Ocidente medieval as cidades muradas variam de região para região, ganhando essa função de protetora, ao passo que existe a insegurança, e as pessoas se aproximam das muralhas construídas, formando grande número de aglomerações (BOUCHERON/ MENJOT, s.d. p.13). Além do papel de proteção, a muralha desempenha outras funções e é percebida a partir de outros olhares, como no excerto abaixo: La muralla condiciona la creación de uma fiscalidad y contribuye al desarrollo de una administración municipal, ya que su construcción es una empresa costosa y de larga duración, y su mantimiento y defensa (torres de guardia y atalayas) requieren una financiación importante y regular y exigen una organización. (BOUCHERON/ MENJOT, s. d. p.147) Faz-se necessário pontuar não somente as muralhas, mas também as torres, os castelos, os sinos, entre outros, todos os componentes daqueleque seria um grande sistema de fortificação, desenvolvido e pensado exclusivamente para esse período e que conferem identidade à cidade medieval. Por fim, as cidades medievais não podem ser definidas apenas em sua estrutura física ou caracterizada apenas como um espaço fechado isolado do mundo agrário. Na identificação das cidades medievais e no estudo das formas urbanas enquanto espaço físico com identidade própria deve-se considerar outros elementos que lhes dão feição e as identifica. Aspectos culturais e sociais como: o imaginário urbano, o conhecimento dos diferentes níveis de ensino (do primário ao superior), a arte gótica, a produção de um urbanismo único; são fatores que também contribuíram para a legitimação do espaço urbano (LE GOFF, 1992). REFERÊNCIAS BENEVOLO, Leonardo. A Cidade na História da Europa. Lisboa: Presença, 1995. Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais ISSN 2177-6687 5 DE SETA, Cesare. LE GOFF, Jacques (eds.). La ciudad y las murallas. Madrid: Catedra, 1991. FORQUIN, Guy. História Económica do Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, 1991. JEHEL, G.; RACINET, Ph. La ciudad medieval: del occidente cristiano al Oriente musulmán (siglos V – XV). Barcelona: Ediciones Omega, 1999. LE GOFF, J; SCHMITT, J-C. (Coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC/ São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2006. LE GOFF, Jacques. O Apogeu da Cidade Medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992. MITRE, E. La ciudad Cristiana del Occidente medieval (c. 400 – c. 1500). Madrid: Actas, 2010. MEDIANERO HERNÁNDEZ, J. M. Historia de las formas urbanas medievales. Sevilla: Unoversidad Sevilla, 2004. PIRENNE, Henri. As Cidades da Idade Média. Mem Martins: Publicações Europa- América, s. d. PINOL, Jean-Luc (dir.). BOUCHERON, Patrick. MENJOT, Denis. Historia de la Europa Urbana. Valencia: Universitat de València, 2010.