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AULA 4 COMPREENSÃO E PRODUÇÃO DE TEXTOS Prof. Phelipe de Lima Cerdeira 2 CONVERSA INICIAL Olá! Sejam bem-vindos à nossa quarta aula da disciplina de Compreensão e Produção de Textos! Em nosso encontro anterior, demos início a uma reflexão pontual a respeito de um dos eixos fundamentais de nossa disciplina: a compreensão leitora. Para tanto, privilegiamos uma abordagem na qual a leitura não se fundamenta como uma mera decodificação de unidades lexicais ou estruturas de um texto, forjando- se, na verdade, como um processo de construção de significados múltiplos. A partir da metáfora do andaime desenvolvida por Weinrich – e, ainda, por conta das contribuições advindas da linguística textual e da análise do discurso – passamos a tensionar ainda mais o texto. Diante dessa perspectiva, reconhecemos como, no texto, as significações são construídas entre as partes, andar por andar, arquitetando diversas leituras. Ao pensar na leitura, demos privilégio à atuação do leitor-ativo, enaltecendo a sua participação efetiva para interagir, questionar, provocar e (re)construir cada texto. Como leitores, somos atravessados constantemente por distintos discursos de ordem linguística, social, histórica e política, o que significa que a nossa compreensão leitora está, necessariamente, em transformação. Tal como notado pelo linguista Agnaldo Martino (2015, p. 64), é fundamental ter a consciência de que [a] compreensão de texto pressupõe uma definição do papel do leitor na construção de sentidos, e destes com o mundo e seus objetos. [...] O papel do leitor se define, no transcurso da história, de maneiras diferentes, uma vez que a própria constituição dos leitores, sua visão de linguagem e de mundo se alteram ao longo do tempo, uma vez que as formas das sociedades não são constantes. Ao não perder a definição do papel do leitor na construção de sentidos de vista e, principalmente, relembrando que, como a língua, todo texto é atravessado por questões ideológicas, passa a ser ainda mais evidente a relevância que a leitura adquire em nossa rotina. Em sua obra Estratégias de leitura (1998), Isabel Solé enumera seis premissas que justificam a relevância da compreensão leitora: 1. Poder ler, isto é, compreender e interpretar textos escritos de diversos tipos com diferentes intenções e objetivos contribui de forma decisiva para a autonomia das pessoas, na medida em que a leitura é um instrumento necessário para que nos manejemos com certas garantias em uma sociedade letrada. [...] 2. Na leitura, o leitor é um sujeito ativo que processa o texto e lhe proporciona seus conhecimentos, experiências e esquemas prévios. [...] 3 3. A aprendizagem da leitura e de estratégias adequadas para compreender os textos requer uma intervenção explicitamente dirigida a essa aquisição. [...] 4. Nas sociedades ocidentais, a aprendizagem da leitura é encomendada à instrução formal e institucionalizada oferecida pela escola. [...] 5. [...] o ensino da leitura não é questão de um curso ou de um professor, mas questão de escola, de projeto curricular e todas as matérias (existe alguma em que não seja necessário ler?). [...] 6. [...] ensinar e aprender a ler são tarefas complexas, mas gostaria de acrescentar um ponto essencial: também são enormemente gratificantes [...]. (Solé, 1998, p. 18-19) E, se o grande tema desta aula é a compreensão leitora, seguimos entendendo que, além de cotejar teorias da linguística textual, é decisivo que possamos experienciar o objeto de nossa discussão: o texto (singularizado aqui apenas como um efeito de estilo, com a perspectiva de valorizar a sua personalidade). Não será estranho para você, aluno, que ao longo desse encontro tenhamos diversos textos para exemplificar os nossos argumentos. Os aportes quanto às estratégias de leitura trazidos pela linguista Isabel Solé serão acrescidos, aqui, por reflexões com os objetivos da compreensão leitora; observações sobre a macroestrutura, a microestrutura e superestrutura do texto (conceitos arrolados por Van Dijk); e, por último, um comentário pontual sobre os modelos bottom up e top down para a interação entre leitor e texto. Como sempre, o objetivo de sistematizar a nossa reflexão através de seções é justamente um artifício didático para que você localize, parte por parte, os principais argumentos desenvolvidos pela crítica e teoria da Linguística Textual ao longo das últimas três décadas. Seja como for, é interessante que a própria unidade sirva como uma experiência de texto a ser compreendido e lido. O que isso significa? À medida que você acompanha a unidade e construa significados para o tema, avalie como tudo foi arquitetado textualmente. Atuando como leitor(a)-ativo(a), faça desta leitura, portanto, uma experiência pragmática para pensar e tensionar a compreensão de textos. Bons estudos! CONTEXTUALIZANDO Em nossa “Conversa Inicial”, ratificamos como a leitura se constitui enquanto processo de construção de significados. Para tensionar essa máxima, resgatamos uma reflexão desenvolvida por Frank Smith (2003, p. 15, grifos nossos) em uma obra que já é canônica para os estudos da compreensão leitora na perspectiva da psicolinguística: 4 Não há nada de especial na leitura, a não ser tudo que nos possibilita fazer. O poder que a leitura proporciona é enorme, não somente por dar acesso a pessoas distantes e possivelmente mortas há muito, mas também por permitir o ingresso em mundos que, de outro modo, não seriam experimentados, que, de outro modo, não existiriam. A leitura permite-nos manipular o próprio tempo, envolvermo-nos em ideias ou acontecimentos em uma proporção e em uma sequência de nossa própria escolha. A escolha por resgatar a asseveração de Smith se dá não somente pelo fato de que este teórico é fundamental para os estudos da nossa disciplina. Trata- se, pois, de uma oportunidade para que você, discente e – sempre – leitor, precise a relevância da leitura para o exercício do seu dia a dia. Seja porque você é professor e tem os distintos gêneros textuais como objeto de pesquisa e avaliação; seja porque você é advogado e faz da compreensão dos interstícios dos textos um ponto de partida para o seu argumento; seja porque você é alguém da área de Exatas que, via textos não-verbais, precisa representar o seu embasamento, o fato é que a leitura será mesmo a principal forma que irá encontrar para “fazer as coisas” e “manipular o próprio tempo”. Compete-nos, assim, pensar a compreensão leitora de maneira crítica, garantindo maior intimidade com os textos. Segundo Frank Smith, caberia à compreensão leitora certas características próprias, forças discursivas capazes de a distinguirem. Assim, “A leitura é vista como uma atividade construtiva e criativa, tendo quatro características distintivas e fundamentais – é objetiva, seletiva, antecipatória, e baseada na compreensão, temas sobre os quais o leitor deve, claramente, exercer o controle” (Smith, 2003, p. 17). Além de seguir transferindo ao leitor a incumbência de um agente ativo, Smith agrega as nossas proposições o fato de que toda e qualquer leitura acaba por ser direcionada por suas características-mestras. A objetividade está ligada a ideia de que, seja qual for o texto, temos que cumprir com um dado objetivo (se é uma receita, porque queremos descobrir como devemos preparar certo prato; se é uma bula de remédio, porque precisamos saber se o remédio tem alguma contraindicação; se é um anúncio publicitário em uma revista, simplesmente porque queremos satisfazer a nossa curiosidade e estarmos em dia com as novidades daquele novo produto). Para garantir um entendimento claro a respeito do que estamos lendo, a compreensão leitora se fundamenta pela seleção. Como é possível inferir, cabe a essa característica recortar o que é imprescindível no texto, resguardando que a macroestruturatextual seja mantida e entendida. 5 Resgatando o que já havíamos apregoado ao pensar nas estratégias para se ler, ficará mais fácil entender o porquê de a leitura ser antecipatória. Isso porque, ainda que não tenhamos lido um texto por completo (seja um romance de mais de quinhentas páginas, seja a nova fotografia premiada pela National Geographic), instantaneamente elencamos algumas hipóteses para direcionar e dar início a nossa leitura. Trata-se de uma espécie de acomodação e adaptação para o desafio que estará por vir. Já a característica da compreensão é uma espécie de tautologia, uma redundância – afinal, toda leitura é feita para atender o princípio de compreender algo. TEMA 1 – SEGUIMOS LENDO... PARA DESLER É importante destacar que, para teóricos como Frank Smith, a compreensão e o aprendizado são fundamentalmente a mesma coisa. Quando assumimos os aportes de linguistas como Isabel Solé, reiteramos a leitura sempre a partir do seu viés pragmático, ou seja, relacionamos a compreensão leitora a uma dada finalidade. Para Solé (1998, p. 22), “a leitura é um processo de interação entre o leitor e o texto; neste processo tenta-se satisfazer [obter uma informação pertinente para] os objetivos que guiam sua leitura”. De alguma maneira, a prática leitora sempre tem certo fim pragmático, é acionada por alguma necessidade ou decisão do leitor. É decisivo, assim, encarar que [a] leitura nunca é uma atividade abstrata, sem finalidade, embora seja frequentemente estudada deste modo por pesquisadores e teóricos e, infelizmente, ainda seja ensinada deste modo para muitos aprendizes. Os leitores sempre leem algo, leem com uma finalidade; a leitura e sua rememorização sempre envolve emoções, bem como conhecimento e experiência. Em outras palavras, a leitura nunca pode ser separada das finalidades dos leitores e de suas consequências sobre eles. (Smith, 2003, p. 198, grifos nossos) Diante do desafio de ler, nos caberia perguntar qual é exatamente a relação entre os verbos ler e aprender. Nós aprendemos porque lemos? Ou lemos porque aprendemos? Não se trata aqui de construir uma antimetábole, uma frase de efeito conquistada a partir da inversão entre aprender e ler. A intenção é dar dimensão para o binômio ler-aprender, valorizar que as duas proposições caminham juntas. Ao ler, construímos significados e, por isso, aprendemos. Da mesma maneira, ao aprender, adquirimos mais repertório e, portanto, aumentamos a nossa capacidade discursiva e escopo para ler. Como já sabemos, ler é também desler. Isso significa que, pela leitura, (des)construímos certezas cristalizadas, 6 questionamos, expandimos o nosso repertório, (re)significamos cada um dos textos com os quais interagimos. E, para pensar em tudo isso, nada melhor do que cotejarmos a teoria com a prática, não é mesmo? Leiamos, a seguir, a íntegra da crônica A selva de asfalto, do escritor Fernando Sabino, presente na obra Deixa o Alfredo falar! (1976, p. 113-6): A SELVA DE ASFALTO DESISTI de tomar aquele ônibus ali na Avenida Rio Branco, e bem andei, pois eu não iria longe: logo ao arrancar, esbarrou no pára-choque de um fusca verde à sua frente. O trocador desceu para espiar. O dono do fusca verde, um homem já de cabelos brancos, saltou vermelho de raiva: - Se é para arrebentar, arrebenta logo. Como resposta, o motorista fez o ônibus avançar, empurrando o fusca. - Você não faça isso de novo que eu lhe arrebento a cara! – ameaçou o outro, plantado em plena rua, junto à janela do ônibus. - Cara que mamãe beijou? – e o motorista se abriu num sorriso de desafio; tornou a movimentar o ônibus. Desta vez o fusca levou por trás uma boa traulitada, saiu rodando uns vinte metros. A jovem ia cruzando a rua e deu um pulo de susto ao ver que ia sendo atropelada por um carro sem chofer. O fusca se voltou para a calçada e a fila ao longo do meio-fio se espalhou em pânico. O dono do fusca ergueu o punho para o motorista: - Desce daí se você é homem! Te levo já pro distrito. - Então leva – respondeu o chofer, sem sair do lugar. E o trânsito paralisado. O povo se juntava para assistir à cena, alguns rindo, outros dando palpites, outros protestando. O ambiente de modo geral era hostil ao chofer do ônibus, que achou mais prudente se mandar dali. Atirou seu carro blindado contra o povo, espalhando-o como formigueiro pisado, e acelerou – mas o que fez tão rápido que deixou para trás o trocador. O trocador resolveu comprar a briga: caiu em cima do homem aos socos e pescoções. O homem era valente, apesar dos cabelos brancos: agarrou o trocador numa violenta gravata, que quase troca em miúdos. A esta altura o motorista do ônibus dera falta do seu trocador. Abandonando o carro superlotado no meio da Avenida, voltou como um gladiador, seguido de dois escudeiros, que, solidários, também haviam deixado os respectivos ônibus: - Quede o homem? - Vamos dar um ensino nele. - Vamos é pro distrito! – insistia o dono do fusca. A multidão parecia prestigiá-lo: - Prende! - Pro distrito! - Não respeitam nada. Esta judiciosa observação foi feita por mim. O trocador, mal refeito da gravata que sofrera e tentando endireitar a sua, não mais que um trapo negro dependurado ao pescoço, voltou-se para mim: - Ele me deu um pontapé. - Quem? Ele te deu um pontapé, meu irmão? – um crioulo desenroscou- se à minha frente. Era um dos motoristas. - Não... – falei, conciliador: - Eu estava dizendo... Ele não parecia muito interessado em saber o que eu estava dizendo. Prudentemente resolvi recolher-me à minha insignificância, fui tratando de dar o fora. O povo se fechava ao redor dos ases do volante, já ameaçando linchá-los. Eles agora reconsideravam sua disposição, buscando uma saída digna: 7 - O homem não é de nada. - Deixa pra lá. - Viemos só buscar o trocador. Quede o trocador? O boné do trocador? Recolheram o trocador, recolheram o boné do trocador e se afastaram, como uma patrulha inimiga depois de cumprida a missão, cada um para o seu ônibus. O povo foi-se dispersando, entre comentários. O homem de cabelos brancos voltou para o seu fusca verde. Mas – ó bestas do tráfego! ó selva do asfalto! – havia um táxi à sua frente. Alguém lhe disse: “Pode ir. Pode ir que já dá.” Ele foi mesmo e não dava. O pára-choque enganchou-se no do táxi. Lá vem o chofer do táxi: “Que negócio é esse? É para arrebentar?” O homem saltou do carro. “Vai começar tudo de novo”, pensei. E fui-me embora a pé. Para pensar na leitura da crônica, comecemos com o mais importante: como foi a sua experiência ao frui-lo? Quais foram as suas sensações? Acaso você estabeleceu alguma estratégia inicial para ler a crônica? Que hipóteses poderiam ser enunciadas a partir das informações “Fernando Sabino”, “crônica” e o título “A selva de asfalto”? Na fase de compreensão leitora, quais estratégias foram elencadas? Muito provavelmente, ao interagir inicialmente com o texto, você traçou relações com outros textos do mesmo gênero. Nessa instância, é possível que o primeiro parâmetro tenha sido refletir a respeito dos limites do discurso histórico e do discurso ficcional. Isso porque, no caso da crônica, tentamos, por vezes, encontrar na narrativa o que pode ser substrato do contexto no qual o autor do texto está inserido e, do outro lado, o que é fundamentalmente ficcional. O texto selecionado busca ir além de todas essas interrogações. A escolha pela crônica de Sabino almeja retratar a ideia do (des)ler, o fato de como, à medida da leitura, (des)contruímos impressões iniciais e percebemos que a violência urbana acaba se transformando em uma espécie de ciclo vicioso que fundamenta a conduta de todos os personagens. O exercício de desler a crônica é uma oportunidade para que saiamos da superfície de um texto, valorizando a importância de interagir e se estabelecer de maneira ativa. TEMA 2 – OS OBJETIVOS DA LEITURA Se ler é mesmo um desler,sem dúvida alguma, tal conduta para (des)construir e atribuir distintos significados a um texto se fundamenta a partir dos objetivos que nós, leitores, atribuímos no processo de leitura. Para Isabel Solé, é fundamental estabelecer os objetivos de uma leitura, justamente por entender que um mesmo texto poderá ser compreendido de maneiras diferentes, a partir dos interesses e do horizonte de expectativas de cada leitor: 8 ainda que o conteúdo de um texto permaneça invariável, é possível que dois leitores com finalidades diferentes extraiam informação distinta do mesmo. Assim, os objetivos da leitura são elementos que devem ser levados em conta quando se trata de ensinar as crianças a ler e a compreender. (Solé, 1998, p. 22, grifos do original) Ainda que a reflexão da linguista esteja diretamente relacionada à formação leitora de crianças, é verossímil pensar que, também para o contexto de jovens e adultos leitores, o estabelecimento de objetivos para o ato de ler acabará permitindo o direcionamento da leitura e a ampliação da competência da compreensão leitora. Bastaria observar empiricamente, a partir de um novo texto que nos é apresentado. A seguir, pensemos na canção Flor da pele, do cantor e compositor Zeca Baleiro1. Limitando-nos ao que diz respeito ao estabelecimento dos objetivos de leitura, poderíamos enumerar proposições assertivas como: 1) definir a temática geral plasmada no fragmento do texto; 2) identificar como se dá a relação entre título e as estrofes disponibilizadas; 3) observar como se constrói o eu poético na canção; 4) listar metáforas, comparações e outras eventuais figuras de linguagem criadas para construir o efeito poético da canção; 5) determinar a minha leitura a partir da necessidade que se apresenta. De maneira livre, apresentamos alguns dos possíveis objetivos que poderiam ativar a compreensão leitora do fragmento da canção. A ideia é exemplificar como, a partir de premissas bem definidas, o ato da leitura passa a ser direcionado, facilitando a observação e a interpretação do texto. Por meio dos objetivos, nosso olhar fica calibrado, buscando conexões que, talvez, poderiam passar despercebidas. Outrossim, são também os objetivos os responsáveis por desencadear, em um segundo momento, novos tensionamentos e construções de significados que requerem relações e informações contextuais. TEMA 3 – MACROESTRUTURA E MICROESTRUTURA Quando pensamos em compreensão leitora, é fundamental retomar o conceito de texto apregoado pela Linguística Textual. Percebendo-o com uma unidade completa de sentido, passa a ser possível inferir que a sua formação é um resultado de macro e microestruturas. Na teoria linguística, será Van Dijk, no início da década de setenta do século XX, o responsável por desenvolver a diferenciação entre a macroestrutura e a microestrutura de um texto. O linguista 1 Caso não conheça a música, sugere-se que o leitor pesquise a letra antes de seguir a explicação. 9 chegara a tal questionamento ao pensar a respeito das diferenças entre a estrutura textual profunda (macroestrutura) e a estrutura textual superficial (microestrutura). Sobre tais diferenças, a linguista Maria-Elisabeth Conte (citado por Marquesi, 2004, p. 33) assevera: A estrutura profunda (ou macroestrutura) está na base da estrutura textual superficial por ser a ordenação global (plano global) que rege sequências de enunciados da estrutura superficial do texto. Os enunciados da estrutura superficial subsequentes no texto, vice-versa, são chamados de microestrutura. Para entender melhor as vicissitudes de macro e microestrutura, concentremo-nos em suas apresentações pontuais a partir de um mesmo texto. 3.1 Macroestrutura De maneira bastante simples, poderíamos descrever a macroestrutura textual como aquilo que poderia resumir o texto, o seu núcleo-chave, o elemento, unidade ou ideia que o torna particular. Para a linguista Sueli Marquesi, (2004, p. 34) “as macroestruturas representam formalmente o significado global de um texto, do qual depende cada um dos enunciados locais”. Exatamente por congregar o significado global do texto, é crível postular que a macroestrutura textual “tem um papel central na organização de nosso comportamento verbal e, em geral, de nosso comportamento cognitivo” (Marquesi, 2004, p. 35). Já para Leonor Lopes Fávero (1991), a macroestrutura poderia ser aquela identificada como o nível profundo de um texto, uma espécie de forma lógica que o governa (Fávero, 1991). Diante de tais explicações, fica perceptível a relevância das macroestruturas não somente para o nível da compreensão textual, mas até mesmo para a produção de um texto (assunto que abordaremos nas últimas duas aulas). Tal como já apontado por Marquesi (2004, p. 35), Van Dijik salienta que tanto na produção quanto na recepção de textos a macroestrutura desempenha um papel fundamental: na recepção, fazemos uma idéia global do que é dito, construindo planos semânticos globais; na produção, primeiro formamos um plano semântico global, para depois podermos falar e/ou escrever coerentemente. Na Linguística Textual, Van Dijik & Kintsch [referindo-se a uma reflexão desenvolvida pelos linguistas em 1975] enfatizam que uma macroestrutura, bem como resumo que a exprime, não tem de, necessariamente, ser constituída de proposições que aparecem no texto, já que ela pode resumir uma 10 seqüência inteira de proposições. Eles também salientam que existem vários níveis de macroestruturas, uma vez que há a possibilidade de fixarmos, por uma dada macroestrutura, outra mais global, e exemplificam essa afirmação comparando, no caso de um romance, o resumo que podemos fazer de algumas páginas, de um capítulo ou de uma obra toda. (Marquesi, 2004, p. 36) Para pensar a respeito da macroestrutura, pensamos no seguinte texto retratado na figura abaixo. Figura 1 – Charge Fonte: Correio do Brasil, 2018. A charge de Jota A, publicada no blog Correio do Brasil, apresenta-se como um texto bastante oportuno para que possamos exemplificar o que diz respeito à macroestrutura textual. Na criação, o chargista constrói em seu texto – seja de maneira verbal, seja pelo âmbito não-verbal – uma macroestrutura para cotejar o contexto de crise vivido pelo Brasil desde o final de 2016. Inscrições como as unidades lexicais “inflação”, “desemprego”, “crise”, a frase “pior do que isso não pode ficar” e a sigla “CPMF” são ampliadas pela imagem de uma mão projetando- se para fora de uma cova (ideia de morte) e retirando dinheiro de alguém nitidamente afetado pelas notícias lidas no jornal. A estrutura macro, o disparador da charge é, então, a crise que assola o país, não necessariamente a volta da cobrança da CPMF no contribuinte. 11 3.2 Microestrutura Enquanto à macroestrutura está dimensionada pela ideia geral de um texto, certo nível profundo de um dado objeto textual, no âmbito textual superficial – a microestrutura –, localizamos elementos que, ainda que estejam atrelados à macroestrutura, conservam certa autonomia no processo de significação. Segundo Marquesi (2004, p. 36), as microestruturas “[...] consistem em sua estrutura proposicional linear”. Na microestrutura, é possível verificar como os elementos se ordenam via coesão e coerência, por exemplo. Abaixo, podemos verificar tal fenômeno a partir do mesmo texto anterior utilizado para observarmos a ideia de macroestrutura. Ao voltar a pensar na charge de Jota A, agora, para problematizar as microestruturas textuais, bastaria darmos dimensão aos enunciados isolados, superficiais, que compõe a criação como um texto. Na inscrição verbal “Pior do que isso não pode ficar” – verbalizada pelo personagem, é exatamente por conta das unidades da microestrutura que a frase passa a ser lida com coesão ecoerência. Para estabelecer a comparação, utiliza-se a conjunção “que” para estabelecer a relação entre o que é lido no jornal (resumido pelo dêitico “isso”) e o que é antecipado pela o texto não-verbal (a mão saindo da cova que personifica o imposto CPMF). O estarrecimento de um leitor, surpresa por notícias ruins que viram manchete no jornal, erige-se como outro exemplo de microestrutura. TEMA 4 – SUPERESTRUTURA Além das macro e microestruturas, um texto é organizado a partir de estruturas abstratas chamadas, na linguística textual, como superestrutura. E a proposição abstrata se deve ao fato de que as superestruturas não fazem parte literal da estrutura do texto, mas o organizam, definem os caminhos de sua tessitura. De alguma forma, são as superestruturas que acabam definindo cada um dos gêneros textuais. Segundo Sueli Marquesi (2004, p. 40), “a superestrutura funciona como um tipo de esquema abstrato, pelo qual se pode preencher os vazios com o investimento semântico próprio de cada texto e, portanto, orienta a construção das macroestruturas textuais”. Na prática, poderíamos dizer que “as superestruturas textuais são estruturas globais que se assemelham a um esquema. Desse modo, diferem das macroestruturas, pois não determinam um conteúdo global, mas sim a forma 12 global do texto, definida em sintaxe, em termos de categorias esquemáticas” (Marquesi, 2004, p. 39). Para exemplificar o funcionamento de uma superestrutura para definir um gênero textual específico – a notícia –, dediquemo-nos à leitura do fragmento do texto a seguir (Estadão, 2018): Meninos resgatados em caverna na Tailândia terão alta na quinta Time de futebol ficou preso por 18 dias em uma gruta de difícil acesso no Norte do país. Quatro tiveram infecção nos pulmões. O governo da Tailândia anunciou neste sábado (14) que os 12 garotos resgatados de uma caverna inundada terão alta do hospital na próxima quinta-feira. "Precisamos preparar as crianças e suas famílias para a atenção que receberão quando saírem", afirmou o ministro da Saúde do país, Piyasakol Sakolsatayadorn. Em uma longa e tensa operação de resgate, os meninos do time de futebol, além de seu treinador, foram retirados da caverna Tham Luang, no norte do país, perto da fronteira com Mianmar, na noite de terça-feira (10). Após o resgate, eles foram levados para um hospital, para que se recuperassem física e emocionalmente. Três crianças e o treinador tiveram infecção nos pulmões e estão tendo que tomar remédios por sete dias. Os 12 meninos e o técnico estavam explorando as cavernas de Tham Luang Nang Non em 23 de junho e ficaram presos quando o local alagou devido a fortes chuvas. Os meninos, com idades entre 11 e 16 anos, perderam em média 2 kg no período em que ficaram na caverna –de 18 dias, para os últimos a sair. Nos dez dias antes de serem achados, tomavam água que pingava da parede. Para sair, cada um deles fez o trajeto usando tanques de oxigênio e foi acompanhado por dois mergulhadores durante o percurso, que incluiu passagens escuras e apertadas, cheias de água barrenta. Com o fim do resgate, a caverna deve ser fechada para ter a segurança reforçada e depois será reaberta ao turismo. Apenas lendo a notícia, você seria capaz de desenvolver um esquema para explicar como se estrutura a notícia? Tente, ainda que de maneira rápida, estabelecer os nexos e eixos responsáveis pela construção da notícia lida. Somente após tal etapa, observe, na Figura 2 a seguir, o esquema de superestrutura criado por Sueli Marquesi em sua obra A organização do texto descritivo em Língua Portuguesa (2004) para apresentar como se fundamenta uma notícia de jornal. 13 Figura 2 – Discurso da notícia Fonte: Marquesi, 2004, p. 43. A partir do esquema proposto por Marquesi para representar a superestrutura de uma reportagem, é possível perceber como tal gênero é alicerçado. A experiência proposta pela imagem é como se, por analogia, pudéssemos enxergar os tecidos, órgãos e, claro, o esqueleto de alguém que estivesse falando conosco. Sabemos, evidentemente, que a situação hipotética não é possível. No entanto, imaginar tal feito pode ser de grande valia em termos linguísticos, justamente para entendermos como a arquitetura de uma notícia – seja ela qual for – acaba atendendo a premissas bastante semelhantes. Pensar na superestrutura é percorrer as etapas de elaboração ou esmiuçar como conseguimos chegar a um resultado que defina um determinado gênero. Manter em nosso horizonte de expectativas a superestrutura de uma notícia não é, então, buscar as macro ou microestruturas que compõem o texto, mas, sim, os caminhos lógicos e de argumentação de quem a escreveu. Como é possível inferir, cada gênero textual terá uma superestrutura específica. TEMA 5 – OS MODELOS BOTTOM UP E TOP DOWN Em nosso material da Aula 3, havíamos adiantado, na seção que fala a respeito da interação textual, a existência dos modelos bottom up (ideia de ascensão, sequência e hierarquia) e top down. No primeiro caso, há certa primazia 14 do texto, uma vez que se imagina que a decodificação se dá a partir da observação encadeada de cada um dos elementos do texto. Já no segundo caso, ganha relevância o repertório e o horizonte de expectativas do leitor (relação com a teoria da recepção e com a perspectiva de Jauss, mas, principalmente, de Iser). No processo bottom up, utilizado com bastante regularidade na leitura de textos de uma língua estrangeira, partimos da identificação de elementos linguísticos que conhecemos (léxicos, frases, conjunções etc.) e, a partir daí, tentamos estabelecer uma leitura linear em direção ao sentido. Em uma charge, por exemplo, partiremos do reconhecimento de elementos que nos são familiares, seja na perspectiva verbal, seja no que diz respeito ao texto não verbal. Tal como relatado, em um contexto de língua estrangeira, por exemplo, o modelo bottom up acaba exercendo uma entrada possível para a leitura do texto, ainda que essa seja parcial. No processo top down, “quanto mais informação possuir um leitor sobre o texto que vai ler, menos precisará se “fixar” nele para construir uma interpretação”. (Solé, 1998, p. 24). Neste caso, ainda que não saibamos todos os léxicos empregados em um determinado texto, como leitores, propomos estratégias e hipóteses para decodificá-lo. Se pensamos, mais uma vez, em uma notícia, a partir do modelo top down estabelecemos nexos de significado e acionamos leituras anteriores que possam dialogar ou mesmo tensionar o que leremos. Ao nos depararmos com um título hipotético, tal como Novos casos de corrupção no Brasil apontam um problema que é apartidário e crônico, não é necessário ler a notícia para que possamos arrolar diferentes propostas e suposições do que está plasmado no dado texto. De acordo com o nosso repertório e o nosso conhecimento contextual, será possível acessar diferentes níveis de leitura, partindo de topo, ou seja, da temática que atravessa a notícia, para o que efetivamente está descrito na notícia. FINALIZANDO Ao longo desta e da última aula, buscamos ponderar a respeito da leitura e da sua formulação não como um ato de decodificação estrutural, mas, ao contrário, como um processo no qual se busca sempre a construção de significados para um texto. Nunca é excessivo retomar o que fora apregoado por Frank Smith (2003, p. 201, grifos nossos): 15 A leitura não é uma questão de identificar letras, a fim de reconhecer as palavras para que se obtenha o significado das sentenças. A identificação do significado não requer a identificação de palavras individuais, exatamente como a identificação de palavras não requer a identificação de letras. Na verdade, qualquer esforço por parte de um leitor, para identificar palavras uma de cada vez, sem aproveitar a vantagem de sentido como um todo, indica um fracassopara a compreensão e está provavelmente fadado ao fracasso. Não há dúvidas de que “a aquisição da leitura é imprescindível para agir com autonomia nas sociedades letradas, e ela provoca uma desvantagem profunda nas pessoas que não conseguiram realizar essa aprendizagem” (Solé, 1998, p. 32). Mais do que isso, a partir da compreensão leitora transcendemos a instância do ler, verificando a possibilidade de (des)ler e construir sentidos. Ainda que possamos sistematizar e pensar o ler via linguística textual, há na relação entre a leitura e a adequação contextual um aspecto único chamado motivação. Por conta disso, “Para que uma pessoa possa se envolver em uma atividade de leitura, é necessário que sinta que é capaz de ler, de compreender o texto que tem em mãos, tanto de forma autônoma como contando com a ajuda de outros mais experientes que atuam como suporte e recurso” (Solé, 1998, p. 42). Para finalizar esta unidade e valorizar o quanto a leitura é capaz de abrir novos mundos e provocar o nosso fascínio, entendemos que um texto poderia ser um grande convite para a continuidade da reflexão, não somente no que diz respeito à teoria, mas, sobretudo, quanto à prática leitora. Convido a cada aluno e aluna à leitura de um excerto do romance A história sem fim, do escritor alemão Michael Ende (1985, p. 6-7, grifos nossos): As paixões humanas são misteriosas, e das crianças não o são menos que as dos adultos. As pessoas que experimentaram não as sabem explicar, e as que nunca as viveram não as podem compreender. Há pessoas que arriscam a vida para atingir o cume de uma montanha. Outras arruínam-se para conquistar o coração de uma determinada pessoa que nem quer saber delas. Outras, ainda, destroem-se a si mesmas porque não são capazes de resistir aos prazeres da mesa – jogo de azar, ou sacrificam tudo a uma idéia fica que nunca se pode realizar. Algumas pensam que só podem ser felizes em outro lugar que não naquele onde estão e vagueiam pelo mundo durante toda a vida. Há ainda as que não descansam enquanto não conquistam o poder. Em suma, as paixões são tão diferentes quanto o são as pessoas. A paixão de Bastian Baltasar Bux eram os livros. Quem nunca passou tardes inteiras diante de um livro, com as orelhas ardendo e o cabelo caído sobre o rosto, esquecido de tudo o que o rodeia e sem se dar conta de que está com fome ou com frio... Quem nunca se escondeu embaixo dos cobertores lendo um livro à luz de uma lanterna, depois de o pai ou a mãe ou qualquer outro adulto lhe ter apagado a luz, com o argumento bem-intencionado de que já é hora de ir para a cama, pois no dia seguinte é preciso levantar cedo... Quem nunca chorou, às escondidas ou na frente de todo mundo, lágrimas amargas porque uma história maravilhosa chegou ao fim e é 16 preciso dizer adeus às personagens na companhia das quais se viveram tantas aventuras, que foram amadas e admiradas, pelas se temeu ou ansiou, e sem cuja companhia a vida parece vazia e sem sentido... Quem não conhece tudo isto por experiência própria provavelmente não poderá compreender o que Bastian fez em seguida. Olhou fixamente o título do livro e sentiu, ao mesmo tempo, arrepios de frio e uma sensação de calor. Ali estava uma coisa com a qual ele já havia sonhado muitas vezes, que tinha desejado muitas vezes desde que dele se apoderara aquela paixão secreta: uma história que nunca acabasse! O livro dos livros! LEITURA COMPLEMENTAR Texto de abordagem teórica SMITH, F. Compreendendo a leitura: uma análise psicolinguística da leitura e do aprender a ler. 4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. SOLÉ, I. Estratégias de leitura. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998. Texto de abordagem prática KLEIMAN, A. Leitura: ensino e pesquisa. Campinas: Pontes, 1989. Saiba mais FÁVERO, L. L. Linguística textual: memória e representação. Revista Filol. Linguíst. Port., n. 14, v. 2, p. 225-233, 2012. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/flp/article/viewFile/59911/63020>. Acesso em: 11 set. 2018. 17 REFERÊNCIAS ALMEIDA, M. J. et al. O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2006. CORREIO DO BRASIL. Blogsfero, 2018. Disponível em: <http://blogoosfero.cc/correiodobrasil/brasil?npage=4>. Acesso em: 11 set. 2018. COSTA, I. B.; FOLTRAN, M. J. A tessitura da escrita. São Paulo: Contexto, 2013. ENDE, M. A história sem fim. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1985. FÁVERO, L. L. Coesão e coerência textuais. São Paulo: Ática, 1991. Série Princípios. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4099630/mo d_resource/content/1/LIVRO%20OK%20Coes%C3%A3o%20e%20coer%C3%A Ancia%20textuais%20Leonor%20F%C3%A1vero%281%29.pdf>. Acesso em: 11 set. 2018. FERNANDES. C. A.; PAULA, B. A. Compreensão e produção de textos em língua materna e língua estrangeira. Curitiba: InterSaberes, 2012. FIORIN, J. L.; SAVIOLI, F. P. Para entender o texto: leitura e redação. 17 ed. São Paulo: Ática, 2007. GOLDSTEIN, N.; LOUZADA, M. S.; IVAMOTO, R. O texto sem mistério: leitura e escrita na universidade. São Paulo: Ática, 2009. GUIMARÃES, E. Texto & Argumentação. Um estudo de conjunções no português. Campinas: Pontes, 2007. HARTMANN, S. H. de G.; SANTAROSA, S. D. Práticas de leitura para o letramento no ensino superior. Curitiba: InterSaberes, 2012. KOCH, I. G. V.; ELIAS, V. M. Ler e escrever: estratégias de produção textual. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2010. KOCH, I. G. V.; TRAVAGLIA, C. L. A coerência textual. São Paulo: Contexto, 2010. KÖCHE, V. S.; BOFF, O. M. B.; MARINELLO, A. F. Leitura e produção textual. Gêneros textuais do argumentar e expor. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 2014. MACEDO, W. Elementos para uma estrutura da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Presença Edições, 1976. 18 MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008. MARQUESI, S. C. A organização do texto descritivo em língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004. MARTINO, A. A linguística textual na prática de leitura e interpretação de texto em língua portuguesa. Revista Verbum, n. 8, p. 64-79, maio 2015. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/verbum/article/view/23311>. Acesso em: 11 set. 2018. SABINO, F. 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