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AULA 3 COMPREENSÃO E PRODUÇÃO DE TEXTOS Prof. Phelipe de Lima Cerdeira 2 CONVERSA INICIAL Em nossas duas primeiras aulas, dedicamos atenção especial para problematizar o texto não como um mero encadeamento de frases e parágrafos, mas, sobretudo, como uma unidade completa de sentido, capaz de expressar um ou mais significados com base na interação com o(s) seu(s) interlocutores. Para tanto, foi decisiva a diferenciação entre texto, discurso e enunciado por meio da observação de gêneros textuais diversos. Além disso, coube ao primeiro terço da nossa disciplina discorrer a respeito da linguística textual e da relevância de inúmeros aportes teóricos desenvolvidos por essa área, responsáveis – dentre tantas contribuições – por trazer à tona a questão da textualidade, cotejando o texto como um complexo discursivo repleto de nuanças e de significações. Em sua obra A organização do texto descritivo em Língua Portuguesa, a estudiosa Sueli Cristina Marquesi (2004) relembrará justamente o fato de que coube à linguística textual dar conta de questões que fugiam do escopo da gramática da frase, por exemplo: Para Conte [referindo-se à linguista Maria Elisabeth Conte], uma das razões que levaram à projeção de uma linguística textual deve-se ao fato de a gramática da frase não dar conta de fenômenos como a correferência, a pronominalização, a seleção de artigos, a ordem das palavras no enunciado, a relação entre tópico e comentário, a entonação do enunciado. (Marquesi, 2004, p. 20) Marquesi é outro exemplo de linguista que volta a pensar a década de sessenta como um período fundamental para o desenvolvimento da linguística textual, ponderando o texto verdadeiramente como uma unidade de análise (Marquesi, 2004). Saiba mais MARQUESI, S. C. A organização do texto descritivo em língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004. Este livro está diretamente relacionado à experiência que a estudiosa obteve como docente, garantindo a sua reflexão metodológica para o ensino de redação e leitura nas séries de ensino fundamental e médio. Como reflexo desse trabalho, Marquesi arrolou considerações que acabaram fazendo parte de sua tese de doutorado. Retomada tal reflexão, será possível tocarmos, enfim, ao eixo central que contará com a nossa atenção para esta e a próxima aula: a compreensão leitora, 3 ou, se preferirem, a leitura. Para dar conta de tal desafio e respeitando a nossa abordagem didática, teremos a nossa aula organizada da seguinte maneira: 1. A importância da leitura; 2. Estratégias de leitura; 3. A leitura processual; 4. Interação e indeterminação; 5. A leitura, o texto e a metáfora do andaime; Cada uma das divisões apontadas anteriormente tentará assumir um papel fundamental para organizar os nossos argumentos e, ao mesmo tempo, descortinar, pouco a pouco, como a compreensão leitora não é um ato mecânico, porém, efetivamente, um processo, uma ação discursiva. Nessa perspectiva, demonstraremos o quanto é fundamental entender que “a leitura é um processo de emissão e verificação de previsões que levam à construção da compreensão do texto” (Solé, 1998, p. 115-116). Convido cada aluno a fazer do estudo desta unidade uma experiência discursiva única, a oportunidade para perceber o quanto a leitura nos ajuda a (des)construir significados e ressignificar diferentes construções textuais. Seja quem for, todos nós somos feitos de e por leituras. CONTEXTUALIZANDO Como receptores, ao nos depararmos com o termo leitura, quase que imediatamente acionamos em nosso repertório discursivo diversas hipóteses que, em maior ou menor grau, estarão relacionadas à nossa experiência empírica como leitores. Como seres de discurso e atravessados a todo momento por uma infinidade de textos, o que mais deveríamos ter era justamente intimidade com o ato de ler, não é mesmo? Infelizmente, a proposição não parece ser uma verdade absoluta. Talvez, o oxímoro entre realidade e prática quando pensamos em compreensão leitora parece estar justamente no fato de que, ao longo de nossa experiência leitora normativa, construímos – de maneira equivocada – a ideia de que a leitura está atrelada a um ato obrigatório, gélido, praticamente mecânico, que responde a uma dada consignação ou exercício estrutural (poderíamos pensar aqui na máxima do o que o autor quis dizer). A incongruência entre a teoria e a prática voltadas à compreensão leitora é refletida por linguistas como Angela Kleiman, já na década de oitenta do século 4 XX. Segundo Kleiman (1989), tal descompasso acaba explicando o fato de a leitura ter sido relegada a um papel secundário na rotina de estudos, repercutindo uma práxis que insiste em sistematizar a leitura como um ato cartesiano de decodificação de palavras e não – como deveria se pressupor – uma manifestação de um processo cognitivo de atribuição e construção de sentidos: Hoje em dia por exemplo [referindo-se à década de 80], ninguém diz acreditar que a leitura seja equivalente à decodificação e processamento de palavras; entretanto, muitas práticas de ensino desmentem esse fato, revelando assim um mal-entendido tanto sobre a inter-relação dos pressupostos teóricos que subjazem a uma prática e a natureza dessa prática, quanto sobre a ação definidora do prático pelo domínio teórico. Ignora-se muitas vezes na prática o fato de a leitura ser a atividade cognitiva por excelência; o complexo ato de compreender começa a ser compreensível apenas se aceitarmos o caráter multifacetado, multidimensionado desse processo que envolve percepção, processamento, memória, inferência, dedução. (Kleiman, 1989, p. 7) Afinal, qual seria a nossa dificuldade em perceber que a leitura consagra um processo, constitui-se em diferentes ações para que possamos construir uma dada compreensão ao tensionarmos um texto? A inquietude é fundamental, justamente por percebermos que nós, brasileiros, continuamos a ocupar tristes estatísticas quando o assunto é a compreensão leitora e a afinidade com a leitura. Em uma reportagem relativamente recente, datada de 2016, o portal G1 (2016) apresenta como título de sua matéria a seguinte informação: “Muitos brasileiros não entendem tudo o que leem, diz estudo”. Ler e não entender o que foi lido? Exatamente. Para permitir que cada aluno atribua sentidos ao título e à reportagem como um todo, reservo-me a destacar a seguir um trecho considerável da reportagem publicada: Uma pesquisa sobre alfabetização chamou atenção para dificuldade que os brasileiros têm para entender o que leem. O reflexo disso aparece no mercado de trabalho. Começamos pela notícia boa para os brasileiros. Nos últimos 15 anos o número de analfabetos no Brasil caiu de 12% para 4% da população. Se unirmos analfabetos com os que até leem o nome ou o letreiro do ônibus temos os analfabetos funcionais. Número que também caiu em 2001 eram 39%, hoje são 27. A notícia ruim vem dos alfabetizados. Hoje 73% sabem ler e escrever, mas 65% tem algum nível de dificuldade. Então de acordo com a pesquisa, só 8% dos brasileiros estão nesse melhor índice de alfabetização, conseguem ler e interpretar qualquer tipo de texto, por mais complicado que ele seja. Agora se a gente for olhar a divisão por trabalho, por área de trabalho, tem três setores que tem uma média bem melhor, até maior que o dobro da média nacional. São eles: comunicação, artes e cultura com 26%, administração pública 18% dos trabalhadores desses setores estão nesse melhor nível de alfabetização e educação com 16%. Esses são os melhores resultados nacionais. Agora, vamos combinar que esses não são números muito bons não. 5 Os resultados são ainda piores em outros setores. Construção civil ou indústria tem só 3% no melhor nível de alfabetização. Comércio 10%. E a área de saúde apenas 11%. “Saúde e educação encontram até um percentual de profissionais proficientesmaior do que outros setores. Mas se você pensar especificamente nos dois setores, na importância do letramento, do alfabetismo, na saúde e principalmente na educação, o nível é baixo”, diz Ana Lúcia Lima, coordenadora da pesquisa. Quer ver um exemplo? Muita gente que vai prestar concurso corre atrás de reforço. “A maioria das questões não é você resolver o problema da matemática. Conta qualquer um faz. Só que você tem que pegar a interpretação do texto pra passar pra conta”, explica Alan Galvão, eletricista. Mas como estamos falando de profissionais, já adultos e formados, os pesquisadores garantem que a melhoria da escola não vai resolver o problema desse pessoal. A ajuda tem que vir do próprio mercado. Coisa que uma gigante do setor de vestuário já percebeu. Oferece para os funcionários cursos, aulas, programas para estudar em casa. Foi um bom negócio? “Treinar é muito melhor do que trocar, não só pelo custo, pelo desempenho. É um dos fatores de retenção muito claros da nossa equipe”, diz Michel Sarkis, empresário. (G1, 2016) Ainda que a manchete e o conteúdo da reportagem também permitam a discussão a respeito da impossibilidade de alguém no planeta (brasileiro ou não) entender “tudo o que lê” e mesmo que, veladamente, todo o discurso utilizado pelo jornalista seja recortado por uma perspectiva linguística superficial e vertical – impregnada pela lógica em que a norma significa a única possibilidade –, é fato que, no cerne da questão, estão destacadas justamente as dificuldades atreladas à compreensão leitora. Ler é um exercício discursivo que implica aprendizado, treino e, em uma instância, fruição. Nós, como leitores, precisamos assumir, portanto, uma função ativa. E o que quer dizer exatamente essa função ativa? Para Solé (1998, p. 118), um leitor ativo é aquele que “constrói uma interpretação do texto à medida que o lê”. Em outras palavras, poderíamos dizer que é por meio dessa função ativa que um leitor/interlocutor é capaz de ir além da decodificação estrutural de um texto, saindo de uma mera dimensão superficial da unidade textual para aportar significados, estabelecer pontes e propor (inter)relações entre textos e discursos. É necessário, pois, estar aberto para o processo da leitura. Segundo Kleiman (1989, p. 37), na grande maioria das vezes, “a compreensão dependerá das relações que o leitor estabelece com o autor durante a leitura do texto.”. E estar aberto pressupõe fazer da leitura não apenas uma resposta puramente pragmática para uma dada necessidade, mas, como já dito desde o início, uma experiência de construção de significados. 6 TEMA 1 – A IMPORTÂNCIA DA LEITURA Na apresentação da obra Leitura: ensino e pesquisa (1989), a já referida linguista Kleiman propõe uma reflexão fundamental para que possamos pensar na relevância da compreensão leitora e da responsabilidade de todos os agentes neste processo. Para que possamos dar continuidade à nossa reflexão, permito- me reproduzir tal excerto: Lendo, certa vez, um livro chamado Why Johnny can’t read encontrei a seguinte afirmação, que, embora exagerada, ainda me pareceu válida: o autor, Rudolph Fresch, dizia que dedicava seu livro a pais e mães, porque, assim como a guerra era um assunto muito grave para ser deixado nas mãos dos generais, o ensino da leitura era um assunto também importante demais para ser deixado apenas nas mãos dos educadores. Concordo com o espírito da citação: o ensino da leitura compete não a uns poucos, mas a todos nós. (Kleiman, 1989, p. 7, grifo nosso) A citação da autora contextualiza uma problemática que vai além do que propomos até aqui, já que o seu enunciado se volta à responsabilidade de cada um dos agentes que participam do processo de formação leitora de uma criança (pais, educadores, a escola etc.). Embora extrapole o nosso raio imediato de interesse, o raciocínio da linguista é fundamental para que percebamos como a leitura não pode ser tratada como uma atividade coadjuvante, justamente por se tratar de um ponto-chave de convivência social e linguística. E por que será que lemos um texto, seja ele um romance, uma receita, uma fotografia ou uma charge? A resposta imediata pode lhe parecer tola ou óbvia, mas está longe de ser desimportante. Lemos para compreender o que está expresso. A questão é que, no exercício de decodificação oferecido pela compreensão textual, construímos uma rede de significados responsável por múltiplas interações e novas realizações. Em certa esfera, a leitura será responsável por criarmos o que chamamos de polissemia, que é, por sua vez, “o processo que, na linguagem, permite a criatividade. É a atestação da relação entre o homem e o mundo” (Orlandi, citada por Guimarães, 2007, p. 14). Não seria exagero, assim, dizer que lemos para garantir o nosso próprio crescimento e desenvolvimento. Ao pensar nas razões para se ler especificamente um texto verbal, Solé (1998) nos ajuda a encontrar ao menos nove motivos para alguém experienciar o ato da leitura: 7 1. Obter uma informação precisa; 2. Seguir instruções; 3. Obter uma informação de caráter geral; 4. Aprender; 5. Revisar um escrito próprio; 6. Comunicar um texto a um auditório; 7. Praticar a leitura em voz alta; 8. Verificar o que se compreendeu; 9. Fruir. De maneira geral, as proposições elencadas por Solé apresentam uma dimensão pragmática, isto é, lemos para atender uma determinada demanda, responder uma ou mais necessidades. Tal realidade não é privilégio do texto verbal, obviamente; lemos uma charge também para obter uma informação, para buscar relações entre o que está plasmado na representação imagética e o que reconhecemos ou o que nos é familiar com base em nosso repertório, em nosso horizonte de expectativas. Resta entendermos como se dá o processo da leitura e, mais, se é possível desenvolver estratégias capazes de facilitar e nos ajudar a compreender determinado texto. TEMA 2 – ESTRATÉGIAS DE LEITURA Desde a década de oitenta do século XX, diversos teóricos da linguística textual passaram a versar e refletir a respeito de estratégias que poderiam arquitetar e viabilizar uma melhor compreensão textual. Em muitos casos, esses teóricos passavam a problematizar tal questão por conta da observação do comportamento de discentes de diferentes âmbitos de formação escolar, desde o nível da alfabetização até mesmo a instância do ensino superior. Nomes como o de Michel Petit e de Daniel Pennac, no caso da linhagem francesa, são exemplos fulcrais para refletir a respeito da importância da leitura. No caso pontual de Pennac, a leitura será tomada como elemento primordial para pensar, inclusive, no ensino da literatura. No âmbito específico da linguística – e no contexto teórico e crítico brasileiro, é fundamental retomar enunciados de nomes como Marcuschi, linguista que já conhecemos nas aulas anteriores. Mas será mesmo possível utilizar ferramentas para construir a nossa leitura? Segundo Solé (1998), todo leitor deve congregar certas sistemáticas para fundamentar o seu ato de decodificação de um texto: 8 quem lê deve ser capaz de interrogar-se sobre sua própria compreensão, estabelecer relações entre o que lê e o que faz parte do seu acervo pessoal, questionar seu conhecimento e modificá-lo, estabelecer generalizações que permitam transferir o que foi aprendido para outros contextos diferentes...” (Solé, 1998, p. 72, grifos nossos) Cabe, então, ao leitor ativo questionar-se e estabelecer relações à medida que um texto é lido. Ao retomar teóricos simbólicos, tais como Palincsar e Brown (1984), Solé (1998) irá recuperar quatro estratégias para o processo de compreensão leitora. Para construir uma leitura eficiente, seria necessário: • Formular previsões sobre o texto a ser lido. • Formular perguntas sobre o que foi lido. • Esclarecer possíveis dúvidas sobreo texto. • Resumir as ideias do texto. (Solé, 1998, p. 118) Ao ler as sugestões numeradas anteriormente, fica claro o destaque dado à espécie de fase de pré-leitura, momento em que o leitor poderá, com base em seu repertório, elencar hipóteses e questionamentos que podem ajudar no processo de decodificação e construção de um texto. A priori, não parece haver nenhum mistério ao desenvolver essas estratégias, certo? Para verificar o impacto efetivo dessa conduta, deparemo-nos com um texto selecionado. Sem lê-lo totalmente (sobretudo as informações verbais presentes na charge), apenas baseando-se em uma elaboração e organização inicial de ideias, tente traçar justamente estratégias para formular previsões e perguntas sobre do que se trata o exemplo a seguir: Figura 1 – Charge Fonte: Kayser, 2018. 9 Tentando não interpretar a charge da Figura 1 com base no texto verbal, quais foram as hipóteses elencadas por você em uma primeira leitura? A que poderia se referir essa charge? A representação do texto não verbal busca representar que tipo de conversa? Por que o cartunista Kayser teria escolhido reconstruir o diálogo entre duas pessoas a partir dos ícones de um grande grupo de comunicação e da Constituição brasileira? Quais relações poderiam existir entre o grupo e a Constituição? Por que o ícone que representa o grupo de comunicação parece demonstrar certo descontentamento? A Constituição, por sua vez, denota que tipo de reação diante do ícone do grupo de comunicação? Acaso existiu, em algum contexto histórico, uma relação de questionamento entre o grupo de comunicação e a Constituição Federal? Perceba que, sem ler a frase atribuída ao ícone do grupo de comunicação, já foi possível, estrategicamente, desenvolver distintas hipóteses para a construção da compreensão leitora. Todas as possíveis respostas podem ajudar e ser decisivas para o processo de construção e para a leitura global da charge. De forma pragmática, o exercício realizado para a leitura da charge anterior possibilita percebermos o quanto a estratégia de construção de hipóteses pode ser decisiva para o adiantamento da construção de significados do texto estudado. Se seguimos pensando nas estratégias observadas por Palincsar e Brown (1984), partiremos para a fase de leitura do texto. Ao ler a frase atribuída ao ícone do grupo de comunicação, será possível perceber que o texto verbal guarda uma ambiguidade, afinal, não se trata apenas de um questionamento sobre a identidade de quem pergunta, mas também uma insinuação de poder e de coerção. Para os leitores que tenham um repertório prévio e detenham informações sobre a questão, será possível cotejar o texto-charge com a determinação do Grupo Globo, publicada em um documento de página inteira no jornal O Globo de 1 de julho, no qual fica estabelecida a proibição de que os jornalistas do grupo verbalizem diretamente qualquer relação com um candidato político em suas redes sociais pessoais. Na condição de que o leitor tenha o conhecimento prévio a respeito do posicionamento do grupo, o responsável pela compreensão leitora certamente relacionará a charge com o caso, ironizando como a imposição de uma empresa acaba fissurando o que é estabelecido na própria Constituição Federal, ou seja, o direito à liberdade de expressão. Já na hipótese de que tal contexto discursivo não faça parte do espectro e horizonte de expectativas do leitor, é bem provável que a estratégia de elencar perguntas na 10 fase pré-textual poderá ajudar a criar caminhos secundários para uma leitura possível da charge (mesmo que sem a profundidade e complexidade crítica do caso anterior). Ao seguir refletindo sobre eventuais estratégias de leitura para a construção de significados de um texto, Solé (1998) se aprofunda e passa a viabilizar seis premissas para a construção da compreensão leitora. Diante da relevância de tal contribuição, concentremo-nos atentamente na leitura das estratégias da linguista na próxima página: 1. Compreender os propósitos implícitos e explícitos da leitura, equivaleria a responder às perguntas. Que tenho que ler? Por que/para que tenho que lê-lo? 2. Ativar e aportar à leitura os conhecimentos prévios relevantes para o conteúdo em questão. Que sei sobre o conteúdo do texto? Que sei sobre conteúdos afins que possam ser úteis para mim? Que outras coisas sei que possam me ajudar: sobre o autor, o gênero, o tipo de texto...? 3. Dirigir a atenção ao fundamental, em detrimento do que pode parecer mais trivial (em função dos propósitos perseguidos; [...] Qual é a informação essencial proporcionada pelo texto e necessária para conseguir o meu objetivo de leitura? Que informações posso considerar pouco relevantes, por sua redundância, seu detalhe, por serem pouco pertinentes para o propósito que persigo? 4. Avaliar a consistência interna do conteúdo expressado pelo texto e sua compatibilidade com o conhecimento prévio e com o “sentido comum”. Esse texto tem sentido? As ideias expressadas no mesmo têm coerência? É discrepante com o que eu penso, embora siga uma estrutura de argumentação lógica? Entende-se o que quer exprimir? Que dificuldades apresenta? 5. Comprovar continuamente se a compreensão ocorre mediante a revisão e a recapitulação periódica e a autointerrogação. Que se pretendia explicar neste parágrafo – subtítulo, capítulo – ? Qual é a ideia fundamental que extraio daqui? Posso reconstruir o fio dos argumentos expostos? Posso reconstruir as ideias contidas nos principais pontos? Tenho uma compreensão adequada dos mesmos? 6. Elaborar e provar inferências de diverso tipo, como interpretações, hipóteses e previsões e conclusões. Qual poderá ser o final deste romance? Que sugeriria para resolver o problema exposto aqui? Qual poderia ser – por hipótese – o significado desta palavra que me é desconhecida? Que pode acontecer com este personagem? (Solé, 1998, p. 73-74) Além de destacar o que chamamos de condutas para leitura de superfície e pré-global, Solé frisa o quanto estratégias como a concentração no que é elementar e a reflexão a respeito da coesão e coerência interna do texto ratificam como as estratégias de leitura – muitas vezes, utilizadas de maneira involuntária e altamente imediata – são a grande chave para a construção de leituras vigorosas e mais producentes. 11 TEMA 3 – A LEITURA PROCESSUAL Como vimos na seção anterior, a compreensão leitora pode ser subsidiada com base na construção de diferentes estratégias. Ao desenvolver essas ações, fica mais evidente o quanto a leitura se faz de maneira processual, ou seja, ao ler, arquitetamos certo processo, composto por fases que partem de uma pré-leitura, uma leitura e uma pós-leitura. Essa sistemática, de alguma maneira, favorece a retomada de contribuições de linguistas como as de Van Dijk (1977) ao propor a distinção entre estrutura profunda e estrutura textual superficial. Segundo essa diferenciação, será viável inferir que todo e qualquer texto é consolidado com base de suas macro e microestruturas. Essa divisão será abordada de maneira mais detalhada em nossa próxima aula, no entanto, neste momento, é válido considerar tal separação para demonstrar como a leitura constitui-se como um processo, em virtude dos elementos cotextuais – aqueles que particularizam e podem ser observados em um texto – e contextuais (aqueles que costuram, via discurso, a existência de um texto). TEMA 4 – INTERAÇÃO E INDETERMINAÇÃO Para pensar no processo da leitura, a linguista Kleiman (1989) também destacará dois conceitos fundamentais ao abordar tal temática. Trata-se das discussões que dizem respeito à interação e à indeterminação. A seguir, vejamos detidamente cada um deles. 4.1 Interação Quando discorremos sobre a leitura como um processo e ponderamos a respeito da relevância de uma postura em que o leitor seja ativo, adiantamos,de alguma maneira, as discussões sobre o conceito da interação como uma das bases da compreensão leitora. Ao ler, passa a ser esperado que cada leitor/interlocutor ative – via repertório pessoal ou mesmo coletivo – diversas informações e conhecimentos para o processo de decodificação da mensagem e construção de significados. Não me refiro aqui apenas ao que diz respeito ao reconhecimento de aspectos sintáticos e semânticos que orquestram o texto analisado, mas, também, questões que podem estar ligadas à esfera do discurso que intersecciona e atravessa determinado texto. A interação volta-se, portanto, à atitude do leitor para deflagrar e viabilizar a leitura. 12 De forma geral, ao pensar no processo de interação voltado à leitura, é necessário considerar duas perspectivas principais. A primeira, ligada aos psicólogos da educação, contempla a leitura como um processo interativo porque o “desvendamento” do texto se dá simultaneamente através da percepção de diversos níveis ou fontes de informação que interagem entre si. Assim, por exemplo, o sujeito- leitor utiliza conhecimentos ortográficos, sintáticos-semânticos, pragmáticos, enciclopédicos para ter acesso ao texto. (Kleiman, 1989, p. 38, grifos nossos) Essa perspectiva se dá como uma alternativa para o que, para alguns teóricos da linguística textual, é intitulado como os modelos bottom-up e top-down (por conta de sua relevância para os estudos da compreensão leitora, dedicaremos uma seção para abordar essa questão em nossa Aula 4). A segunda perspectiva atrelada ao conceito de interação para pensar o processo de leitura advém da pragmática. Nesse caso, são cruciais a relação do locutor com o interlocutor através do texto e a determinação de ambos pelo contexto num processo que se institui na leitura. Para Orlandi estas relações determinariam “as condições de produção” da leitura e seria através delas que o texto recupera o seu caráter aberto. Numa perspectiva social o papel do interlocutor se esvazia toda vez que o leitor aceita o texto como objeto acabado, toda vez que ele não exerce seu direito de interlocução, privilegiando com isso o autor no processo. (Kleiman, 1989, p. 39) Como é possível inferir, na segunda e última perspectiva, a interação será definida com base na relação entre o produtor do texto (identificado por Kleiman como locutor) e o seu interlocutor (podemos pensar no leitor, no caso de textos verbais, ou espectador na ocasião de textos não verbais, por exemplo). Seja como for, ressalta-se como a interação em ambos os casos passará a registrar de maneira mais saliente a relação entre as partes que compõem o texto, demonstrando o impacto do contexto – poderíamos pensar aqui efetivamente do discurso – para a construção de significados e a mediação da compreensão leitora. 4.2 Indeterminação O segundo conceito que rege o processo da leitura é a indeterminação. Para versar a seu respeito, é fundamental que pensemos no espelhamento do texto com a própria linguagem. Quando citamos o caráter de indeterminação atrelado à língua, por exemplo, consideramos como essa é forjada pelo atributo da ambiguidade. Consideramos certa ambiguidade constitutiva, que será 13 responsável por favorecer leituras com base em diversos ângulos, segundo a experiência discursiva de cada falante. No que diz respeito ao âmbito do texto, a indeterminação será responsável justamente pela abertura do espectro de significados oferecidos por um texto, sugerindo a sua polissemia por conta da recepção e dos leitores. Na prática, poder-se-ia dizer que cabe à indeterminação demonstrar o impacto causado pela experiência contextual de cada leitor. Para pensar sobre como os conceitos de interação e indeterminação podem operar na construção de significados de um texto, dediquemo-nos a ler o texto a seguir: Figura 2 – Charge de Elians Fonte: Elians, S.d. A charge acima já ganhou, por vezes, destaque como um dos textos selecionados para diferentes provas da etapa preliminar à entrada da educação em nível superior. Parte integrante de exames como o Enem, inserido na etapa de Linguagens, códigos e suas tecnologias, o texto, além de forjar-se como uma interessante experiência discursiva, favorece percebermos como, enquanto leitores ativos, acionamos os conceitos de interação e de indeterminação para viabilizar uma leitura. Em um primeiro nível de leitura, via interação, nos caberá interagir com o texto, ou seja, decodificar e identificar cada uma das estruturas que compõem a tessitura da charge de Elians. 14 Com base no cotejo das duas frases, o leitor mais atento poderá perceber que ambas apresentam a mesma sintaxe e praticamente as mesmas unidades lexicais, excetuando os verbetes coberto e descoberto. Se pensamos em uma esfera semântica, ou seja, de sentido, é possível afirmar que a grande diferença entre as duas frases se dá pela diferença dos dois léxicos; no entanto, problematizando as unidades em um nível sintático, vislumbraríamos mais semelhanças, já que a diferença se limitaria à questão morfológica, apenas por conta do sufixo “des”. Ainda no que diz respeito aos índices verbais do texto- charge, em um segundo ou terceiro nível de leitura, por conta do conceito da interação, seria possível perceber que os sinais gráficos e as pontuações (reticências versus pontos de exclamação) alterariam, de alguma maneira, o nível semântico do enunciado. Pois bem, interagindo com o texto não verbal – as representações das duas mulheres – poderíamos identificar e, depois, problematizar, as diferentes representações e aspirações voltadas à figura da mulher. Do lado esquerdo, uma mulher facilmente enquadrada em padrões ocidentais, ainda que, para alguns contextos, particularizada por uma experiência pragmática (quem sabe, uma mulher desfrutando de suas férias na praia). Já do lado direito, o reconhecimento de uma vestimenta tipicamente ligada ao universo que entendemos como não ocidental, relacionará a mulher de vestes negras ao contexto oriental (provavelmente, para muitos leitores, para uma particular expressão do mundo muçulmano). Em um nível discursivo, caberá à interação estimular que o leitor perceba o quanto o texto problematiza as diferenças culturais existentes entre o Ocidente e Oriente. Sob o mesmo eixo – a cultura machista – o texto fortalece a polissemia assegurada pela ambiguidade da ideia de liberdade, demonstrando, de maneira mais ampla, como a nossa percepção de mundo acaba por impedir a autocrítica e uma perspectiva em prol da diversidade e da interculturalidade. Na mesma charge, o conceito de indeterminação será responsável por exemplificar como a charge será lida, em um primeiro momento, segundo as lentes de uma experiência cultural ocidental. Apenas após a verificação da ambiguidade e da crítica quanto às diferenças culturais, será possível ser colocado no lugar do outro. De maneira interessante, pode-se perceber como o texto, via linguagem, se fragmenta e se indetermina de acordo com o repertório e o horizonte de expectativas de cada interlocutor. 15 TEMA 5 – A LEITURA: O TEXTO E A METÁFORA DO ANDAIME Ao longo de toda a nossa discussão, percebemos como a leitura se constitui processualmente. Para tanto, poderíamos pensar e vislumbrar o texto como uma justaposição de estruturas menores e maiores, alicerçando uma mensagem maior. Desse raciocínio, surgiu na linguística textual, sobretudo por conta das contribuições de Weinrich, a perspectiva de se pensar no texto como uma trama, uma espécie de andaime construído – parte a parte – e que leva o leitor até andares diferentes: as significações. Cada unidade e frase se ligam por múltiplos processos de subordinação e encaixe, garantindo a construção de significados graduais e amplos. Para pensar na metáfora do andaime, bastaríamos imaginar o objeto empírico: Figura3 – Andaime Fonte: Bannafarsai_Stock/Shutterstock. Observando a imagem da página anterior, passamos a pensar na proposição de que um texto é, sem dúvida, uma totalidade em que tudo está relacionado. As orações seguem-se umas às outras numa ordem lógica, de forma que cada oração entendida ajuda a compreensão orgânica da seguinte. De uma parte, a oração seguinte, quando entendida, influi sobre a compreensão da precedente, de forma que esta se entende melhor quando se volta a pensar nela. É assim que alcançamos a compreensão de um texto. Por isso, toda oração está subordinada a outra na medida em que não só não se compreende por si mesma, mas também contribui para a compreensão de todas as outras. Isso demonstra que não só a oração isolada, como também o texto interno, é um andaime de determinações cujas partes são interdependentes (Weinrich, citado por Fávero; Koch, 1983, p. 45) 16 FINALIZANDO Nesta aula, começamos a dar destaque a um dos eixos fundamentais da nossa disciplina: a compreensão textual. Para tanto, foi necessário entender a leitura não como um mero ato de decodificação de estruturas ou unidades, mas, sim, como um processo viabilizado por estratégias para construir significados. Da mesma forma, foi possível dar dimensão a um leitor ativo, não somente por ser o agente da interpretação, mas fundamentalmente por ser responsável pelo estabelecimento de hipóteses, pela formulação de questionamentos e pela viabilização de significações. Cabe-nos, em um próximo momento, seguir com o nosso raciocínio, observando como um texto se constitui de múltiplas estruturas, determinando o que conhecemos como o ato de ler. Para finalizar esta unidade, parece pertinente refletirmos a relação entre a leitura e a compreensão com base no raciocínio de Solé, responsável por nos lembrar que quando um leitor compreende o que se lê, está aprendendo; à medida que sua leitura o informa, permite que se aproxime do mundo de significados de um autor e lhe oferece novas perspectivas ou opiniões sobre determinados aspectos... etc. A leitura nos aproxima da cultura, ou melhor, de múltiplas culturas e, neste sentido, sempre é uma contribuição essencial para a cultura própria do leitor. Talvez pudéssemos dizer que na leitura ocorre um processo de aprendizagem não-intencional, mesmo quando os objetivos do leitor possuem outras características, como no caso do ler por prazer. (Solé, 1998, p. 46) LEITURA COMPLEMENTAR Texto de abordagem teórica SMITH, F. Compreendendo a leitura: uma análise psicolinguística da leitura e do aprender a ler. 4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. SOLÉ, I. Estratégias de leitura. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998. Texto de abordagem prática KLEIMAN, A. Leitura: Ensino e pesquisa. Campinas: Pontes, 1989. 17 Saiba mais MARTINO, A. A linguística textual na prática de leitura e interpretação de texto em língua portuguesa. Revista Verbum, n. 8, p. 64-79, maio 2015. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/verbum/article/view/23311>. Acesso em: 25 jul. 2018. 18 REFERÊNCIAS ALMEIDA, M. J. et al. O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2006. COSTA, I. B.; FOLTRAN, M. J. A tessitura da escrita. São Paulo: Contexto, 2013. ELIANS. Culturas diferentes. Blog de História. Disponível em: <https://historiaparao6ano.wordpress.com/tag/diversidade-cultural/>. Acesso em: 25 jul. 2018. FAVERO, L. L.; KOCH, G. V. 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