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História Moderna As Reformas do Cristianismo no Século XVI Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Edgar da Silva Gomes Revisão Textual: Profa. Ms. Fátima Furlan 5 • Introdução • As Reformas no Cristianismo e a Renascença • Lutero: o líder que faltava • Teses para o cisma do cristianismo no século XVI • O clamor por reforma no cristianismo • A Reforma na Suiça: Calvino e Zwinglio • O Humanismo: um campo de debates • A Reforma Protestante • A Reforma de Henrique VIII • A Reforma Católica Procure ler, com atenção, o conteúdo disponibilizado e o material complementar. Não esqueça: a leitura é um momento oportuno para registrar suas dúvidas, por isso não deixe de registrá-las e transmiti-las ao professor-tutor. Para que a sua aprendizagem ocorra num ambiente mais interativo possível, na pasta de atividades, você também encontrará a atividade de sistematização, o fórum de discussão e a vídeo-aula. Nesta Unidade, vamos aprender um pouco mais sobre um importante tema da história na Idade Moderna: “As reformas do Cristianismo no Século XVI”. As Reformas do Cristianismo no Século XVI 6 Unidade: As Reformas do Cristianismo no Século XVI Contextualização As Reformas: Católica e Protestante se processaram no mesmo período do Renascimento da Península Itálica, no século XVI. Esses acontecimentos moldaram o mundo contemporâneo. Após as Reformas se consolidarem, as disputas ideológicas causaram inúmeras perseguições e “guerras religiosas”. Neste espaço de contextualização, achamos importante inseri-lo(a) numa reflexão crítica sobre a Unidade apresentada, para isto, mais uma vez deixamos alguns filmes e documentários. Não faremos juízo de valor sobre esse material para não influenciá-lo(a). Esperamos que com o conjunto de informações adquiridas você possa observar seu cotidiano e perceber que ainda hoje mais do que dogmas religiosos ou a ortodoxia da fé, o que está em jogo são as disputas pelo poder! Não se esqueça de que um filme ou documentário tem elementos de um fato histórico, mas é uma obra de ficção carregada de interesses: políticos, ideológicos, comerciais e não tem compromisso com a “verdade”. Explore Documentário: Guerra dos 30 Anos (1) – 10:08 • http://www.youtube.com/watch?v=JBW6f7gqwEM Documentário: Guerra dos 30 Anos (2) – 9:47 • http://www.youtube.com/watch?v=qa-3uoQZBuk Documentário: Guerra dos 30 Anos (3) – 9:16 • http://www.youtube.com/watch?v=nWuQWV4UH2E Filme: O Nome da Rosa Duração: 2:03:26 • http://youtu.be/nf1Txqk9HdU?list=PL97EA8CA6C319B43E Filme: Martinho Lutero – A Reforma Protestante Duração: 1:57:56 • http://www.youtube.com/watch?v=eezenm7Tlps Filme: Joana D’arc Duração: 2:25:26 • http://www.youtube.com/watch?v=ExsUvbm5PuU Filme: As Bruxas de Salem Duração: 2:03:00 • http://www.filmesonlinegratis.net/assistir-as-bruxas-de-salem-dublado-online.html http://www.youtube.com/watch?v=JBW6f7gqwEM http://www.youtube.com/watch?v=qa-3uoQZBuk http://www.youtube.com/watch?v=nWuQWV4UH2E http://youtu.be/nf1Txqk9HdU?list=PL97EA8CA6C319B43E http://www.youtube.com/watch?v=eezenm7Tlps http://www.youtube.com/watch?v=ExsUvbm5PuU http://www.filmesonlinegratis.net/assistir-as-bruxas-de-salem-dublado-online.html 7 Introdução As reformas do cristianismo no século XVI que estão dentro do “Espirito” dos tempos modernos e anseio reformador acompanharam cronologicamente o processo de transformações intelectual e moral do renascimento italiano e a transição político-econômica do feudalismo para o capitalismo. Foi um longo processo de acontecimentos externos à religião que a atingiram por estar intrinsicamente ligada aos poderes de Estado, por ela mesma, a religião, ser um estado e agir politicamente em defesa de seus interesses. Nosso principal recorte de análise será politico- institucional, sem deixar de descartar os fatores religiosos e morais que causaram essa revolução no cristianismo que culminou no século XVI. Vale ressaltar que o cristianismo ao longo de seus mais de dois mil anos de história conviveu com inúmeras tensões e crises internas e externas, e na maioria das vezes os problemas enfrentados pela instituição estiveram mais ligados a disputas de poder do que relacionados à doutrina da igreja. Durante as perseguições dos primeiros três primeiros séculos da era cristã os problemas se relacionaram à formação doutrinaria da igreja, ou seja, ainda em formação, muitos dos problemas foram creditados às heresias, apesar de parte deles estarem relacionados às ideologias de cada grupo em disputa pela “verdadeira” ortodoxia da fé1. Ao se tornar religião oficial do império romano no final do século IV manteve-se fiel ao Estado ora instrumentalizando, ou sendo instrumentalizada no jogo de poder entre estado e igreja. A Igreja Católica manteve-se unida ao oriente até o século XI quando divergências politicas, mais do que doutrinárias, fizeram irromper o primeiro grande cisma no cristianismo conhecido como Cisma do Oriente-Ocidente.2 As Reformas no cristianismo que serão abordadas nesta unidade provocaram uma revolução política e cultural no Ocidente. A reforma católica estava se delineando desde o século XIV e culminou com o Concílio de Trento (1545-1563). A Revolução Protestante, iniciada na Alemanha (1517), com o religioso agostiniano Martinho Lutero, se alastrou por alguns países da Europa setentrional com importantes reformadores como Calvino, Zwinglio e Henrique VIII. As causas das reformas ainda são debatidas e algumas teses são apresentadas. Mas, seja qual for a linha defendida pelos estudiosos desse tema, é inegável que a mudança de paradigma provocada pelo renascimento italiano sobre o papel do homem na sociedade Moderna e as transformações econômicas e sociais que vinham se processando com o fim do feudalismo influenciaram decididamente para acelerar as reformas no cristianismo. 1 Este tema foge ao nosso período de estudos, mas para os interessados no tema consultar: FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias (séculos I-VII): conflitos ideológicos dentro do cristianismo. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1995. 2 Este tema foge ao nosso período de estudos, mas para os interessados no tema indicamos dois livros: JOHNSON, Paul. Historia del cristianismo. Barcelona: Vergara, 2004. LENZENWEGER, Josef; STOCKMEIER, Peter; et. al. História da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2006. 8 Unidade: As Reformas do Cristianismo no Século XVI A tese mais tradicional3 para que ocorresse o “espirito” da reforma protestante no século XVI é que esta foi causada pelos abusos de toda ordem: políticos, econômicos e morais, provocados pelo clero e a alta hierarquia da igreja. Para piorar essa situação a filosofia critica acadêmica fundamentada na escolástica medieval não estava dando conta da vida concreta na sociedade. Para Zagheni, essa tese não é desprovida de verdade, mas é muito genérica e exagerada, para esse autor “conhecer o estado da religiosidade popular dessa época histórica não é fácil: só podemos vê-la retratada em documentos secundários, às vezes parciais”. Essa análise deve levar em conta, “nossa dificuldade de retratar a realidade cotidiana concreta do passado”. Acreditava- se que para superar esse estado degradante do cristianismo, “o remédio proposto para essa situação: sacerdotes bons, santos e eruditos”.4 Outra base teórica para a reforma acentua a decadência doutrinária da escolástica medieval, afirmando que a igreja deveria retornar à doutrina da justificação só pela fé e não pelas obras, a filosofia que norteava os pensadores medievais estava distante da realidade vivida pela instituição e pela sociedade. Os abusos eclesiásticos não eram combatidos pelos teólogos cristãos, que passaram a ser criticados pelo movimento reformador surgido nos países baixos no século XIV, devotio moderna5, e pelo humanismo devoto que propugnavam uma teologia que fosse próxima da vida e da fé. No contexto da Reforma, havia a ausência de empenho entre os eclesiásticos em relaçãoà vida pastoral, em especial do alto clero, mais ocupados que estavam com assuntos políticos, familiares e mundanos. No contexto de cristandade, os assuntos políticos e religiosos estavam imbricados, os príncipes detinham grande poder em relação aos assuntos religiosos, em contrapartidas o alto clero estava imerso nos assuntos políticos, “[...] bispos, sendo príncipes feudais, membros da nobreza ou dela dependentes por causa de favores [...] se dedicavam amplamente aos interesses do próprio Estado ou estavam diretamente a serviço do seu príncipe como embaixadores”,6 desempenhavam muitas vezes mais seus cargos políticos temporais do que se dedicavam à vida religiosa. 3 G. Martina: La chiesa nell’età della Riforma; J. Delumeau: La paura in Occidente; R. G. 4 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, pp. 31 e 27. 5 No final do século XIV, surgiu nos Paises Baixos uma reação contra a vida segregada dos mosteiros. Gerard Groote abandonou a clausura do seu mosterio e iniciou um movimento de aproximação entre a vida religiosa e os fiéis. Traduziu trecho da biblia e instruiu a população. Homens e mulheres seguiram sua proposta de levar uma vida simples e sem distinção hierárquica entre religiosos e fiéis. Essa atitude deu inicio ao movimento chamado de “Devotio Moderna”. Seu maior propósito era reformar a igreja oficial. CHAUNU, Pierre. O Tempo das Reformas (1250 – 1550). A Crise da Cristandade. Lisboa: Estampa, 1993. 6 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, p. 29. Teses para o cisma do cristianismo no século XVI Fonte: Wikimedia Commons Alto Clero da Idade Média 9 É digno de nota esclarecer que o alto clero passava longe das obrigações pastorais e religiosas, sua indicação, na maioria das vezes obedecia a critérios políticos de senhores feudais que agiam a base do nepotismo para garantir sua influência política sobre a diocese instalada em seus domínios. Em muitos casos, um mesmo bispo poderia ser titular de mais de uma diocese, nomeando para o seu lugar um preposto pouco instruído e mal pago. “Os bispos e cardeais levavam, em geral, uma vida mundana, principesca [...] essa estrutura também era funcional ao sistema político, econômico e social vigente; por isso era, em geral aceita como algo normal”.7 A tese oposta à tese tradicional, defendida pela historiografia mais recente coloca seu acento em questões essencialmente políticas que dizem respeito, sobretudo às novas relações entre a Igreja Católica e os emergentes Estados nacionais. O problema moral não é descartado, mas minimizado nessa análise historiográfica. Aliás, em qualquer análise que seja feita sobre as reformas religiosas do século XVI, pode-se acentuar mais um aspecto que outro, no entanto, jamais descartá-los integralmente. Frente à formação dos Estados nacionais, a própria Igreja buscava sua independência e autonomia. Essa tese encontra apoio na análise de Green, sobre a reforma do Sacro Império Romano realizado por Maximiliano (1493-1519). Para Green “O Sacro Império Romano e o Papado foram as duas instituições supremas da Idade Média. Numa era de mudança como o século XVI, a sua permanência dependia essencialmente da sua capacidade de ajustamento às necessidades e ideias dum novo período da História”.8 Para Green, a mundaneidade do Papado em vez de provocar sua perdição, ao contrário, ajudou-o a se adaptar às exigências do mundo Moderno. As causas dessa adaptação podem ser encontradas na própria estrutura administrativa que possuía a Cúria Romana: “um secretariado permanente e uma organização mundial que continuava a funcionar mesmo com um papa débil ou de espirito secular; isto além das suas pretensões à devoção e fidelidade de milhões de cristãos, as quais vinham já dos tempos do Império Romano”,9 Zagheni nesta linha da reestruturação da Igreja nos tempos Modernos corrobora com Green, afirmando que “prevalece na Igreja – acima de tudo – o interesse pela independência e a autonomia, buscadas por meio da construção de um estado soberano e absoluto”.10 Com a ascensão dos Estados Modernos, os soberanos procuraram controlar cada vez mais toda estrutura politico-ideológica que girava em torno de si, e a Igreja era uma instituição supranacional, muitas vezes vista com desconfiança pelos reis que faziam de tudo para “nacionalizar” suas ações. Essa disputa de poder causou sucessivas divisões no cristianismo a partir da Reforma na Alemanha. Exemplo clássico de cisma por razões politicas foi a Inglaterra de Henrique VIII com o anglicanismo aprovado pelo “Ato de Supremacia” no parlamento inglês em 1534. 7 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, p. 30. 8 GREEN, Vivian H. H. Renascimento e reforma: a Europa entre 1456-1660. Lisboa: D. Quixote, 1984, p. 113. 9 GREEN, Vivian H. H. Renascimento e reforma: a Europa entre 1456-1660. Lisboa: D. Quixote, 1984, p. 113. 10 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, p. 29. 10 Unidade: As Reformas do Cristianismo no Século XVI O humanismo que teve seu berço na Península Itálica no século XIV se expandiu, por volta da segunda metade do século XVI pelo Norte da Europa. Calcado nos estudos dos clássicos greco- latino, seus intelectuais assimilaram muito de seu estilo e erudição, racionalidade e humanidade. A literatura moral que emergiu dessa redescoberta criticou o barbarismo intelectual e a submissão do homem medieval às leis do feudalismo, que não expressavam suas potencialidades por estar preso ao mundo metafisico do teocentrismo e da filosofia escolástica. O humanismo renascentista, cuja característica é o antropocentrismo, buscou compreender o homem, tal qual ele se encontra na literatura clássica e confrontá-lo com a vida cristã. O retorno às fontes clássicas e a valorização dos estudos com a reforma das escolas e universidades no humanismo estavam de acordo com as reformas católica e protestante. No entanto, há divergentes posições entre os historiadores em relação à influência do humanismo renascentista sobre as reformas cristãs do século XVI. “alguns sustentam que sem o humanismo não haveria a Reforma; para outros, essa afirmação é insustentável; outros, ainda, procuraram demonstrar que existem laços entre humanismo e reforma”11 . Zagheni concorda que não existiu entre o humanismo e a Reforma uma relação de causa e efeito, mas salienta que o humanismo condicionou profundamente o universo intelectual europeu no qual estavam imersos os atores que fizeram as Reforma católica e protestante. Esclarece ainda que entre os reformadores protestantes havia humanistas como Zwinglio, Melancton e Calvino. Existem muitos pontos divergentes entre o humanismo e a Reforma. O humanismo, no entanto, teve uma influência profunda e duradoura sobre a história cultural europeia. Como elemento constitutivo das reformas esteve aquém das propostas de ambas, mais radicais e desconfiadas de um modo de agir conciliador e pouco dogmático apresentado pelo humanismo renascentista. Apesar da intima relação que tiveram, Reforma e Renascença não fazem parte do mesmo movimento. As Reformas, católica e protestante, foram gestadas por quase dois séculos, e está na mesma corrente de individualismo que revolucionou a sociedade dos séculos XIV ao XVI. Burns comenta que, “ambas tiveram um fundo semelhante de causas econômicas, no desenvolvimento do comércio e na ascensão de uma sociedade urbana”12. Mas, enquanto a Renascença se fundamentou teoricamente nos clássicos gregos e latinos, a Reforma bebeu nas fontes bíblicas e dos Padres da igreja. Na renascença, a religião ocupou um lugar subalterno, onde o acento foi a devoção ao humano e a natureza; embora orientados pelo passado tivessem visão de mundo praticamente opostas. 11 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, p. 29. 12 BURNS, Edward M.; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. 42 ed. São Paulo: Globo, 2003, p. 376. O Humanismo: um campo de debates As Reformas no Cristianismoe a Renascença 11 A renascença foi também um movimento de elite, enquanto a reforma não desconsiderou a realidade do homem comum e a transformação de sua vida. A Reforma, como não poderia deixar de ser, acentua as coisas do espirito e quase um total desprezo pela vida terrena e o prazer do homem, “no julgamento humanista, a natureza do homem era intrinsicamente boa; do ponto de vista dos reformadores, era indivisivelmente corrupta e depravada”. 13 A Reforma provocou uma verdadeira revolução nos costumes sociais a partir de sua eclosão rompendo radicalmente com a Idade Média, Além disso, a Reforma estava intimamente ligada a certas tendências políticas que persistiram até os tempos modernos. O nacionalismo [...] foi uma das principais causas da Revolução Protestante [...] os reformadores protestantes dificilmente teriam feito muitos prosélitos se não houvessem associado sua causa à poderosa maré montante dos ressentimentos nacionais da Europa setentrional contra um sistema eclesiástico que passara a ser visto como sendo de caráter predominantemente italiano [...] parece não ser infundado considerar a Reforma como um dos limiares do mundo Moderno. 14 A Reforma religiosa teve base política, enquanto que muitos humanistas não priorizavam a política, pois se interessavam apenas pelo homem enquanto individuo. Erasmo foi um humanista de visão internacionalista de sociedade, oposto ao nacionalismo que prevaleceu como politica dos reformadores. A Reforma não foi parte do movimento renascentista. Zagheni cita um texto bíblico do livro de Paulo aos romanos para afirmar que desde o século XIV no concilio de Viena (1311-1312), a Europa já estava clamando por uma reforma no cristianismo, “Transformai-vos, renovando vossa mente – Rm 12,2”15 . Nesse concilio, Guilherme Durando, bispo de Mende (Gévaudan, França), fez um programa de reforma que envolvia toda a Igreja. Essa proposta de reforma geral foi um tema que acompanhou o cristianismo durante os séculos XIV-XVI. Um ponto importante dessa proposta era a convicção de que para ser eficaz a reforma deveria começar pelo papa, cardeais e Cúria romana, “exprimem-se claramente nesse sentido os concilio ecumênicos da época – Constança, Basiléia, Florença, Lateranense V – os diversos programas de reforma – os de Pedro d’Ailly, João Gerson, Nicolau Cusano, Domingos Caprânica – e inúmeros documentos”.16 13 BURNS, Edward M.; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. 42 ed. São Paulo: Globo, 2003, p. 376. 14 BURNS, Edward M.; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. 42 ed. São Paulo: Globo, 2003, p. 376. 15 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, p. 33. 16 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, p. 34. Exemplos de documentos que propunham as reformas no cristianismo: “Consilium de emendanda Eclesia, Gravimina Nationis Germaniae, Libellus as Leonem X. in, MARCOCCHI, M. La reforma cattolica: documenti e testimonianze; VILLOSLADA, R. G. Radici storiche del luteranesimo. O clamor por reforma no cristianismo 12 Unidade: As Reformas do Cristianismo no Século XVI A Reforma tem suas raízes na Baixa Idade Média e é um anseio da Europa Ocidental que se confrontava com as mesmas expectativas e problemas, com a mesma situação cultural, espiritual e político-econômico, condicionadas por um desafio comum. Uma reforma efetiva no cristianismo não tomou um vulto maior antes do século XVI porque a maioria do alto clero que gozava das vantagens que a instituição oferecia se colocaram contra qualquer mudança que pudesse lhes afetar. Cardeal Cisneros (1436-1517) Martinho Lutero (1483-1546) Nota: Historiadores que se ocupam do estudo das Reformas Católica e Protestante deixaram de utilizar o antigo conceito de Contra-Reforma, pois o concilio de Trento vem na esteira de outras reformas que vinham se processando no cristianismo como, por exemplo, a reforma espanhola, empresa realizada pelo cardeal Cisneros na transição dos séculos XV-XVI, ou mesmo no século XIV, nos Países Baixos, com Gerhard Groote com os Irmãos da vida comum. O Concílio de Trento deu início a inúmeras reformas no catolicismo. Lutero escreveu no ano de 1520 a crítica intitulada, “A nobreza cristã da nação alemã, sobre a reforma da sociedade cristã”, onde comentou as tentativas e programas de reforma da igreja de Roma julgando as superficiais e obras humanas e não de Deus. Para Lutero essas propostas deveriam compreender a reforma dos estudos, da pregação e da teologia baseados na justificação gratuita pela fé na misericórdia de Deus. Para Lutero, sua proposta era uma “alfabetização religiosa”. Posteriormente, Calvino fará sua formulação na qual seu movimento religioso se organizará como “comunidade e Igreja alternativa”, uma igreja reformada segundo a palavra de Deus. No final do século XVI, a palavra reformados indica os calvinistas em oposição aos luteranos, “protestantes indica originariamente os luteranos que apresentam um protesto contra as decisões da maioria, na segunda dieta de Espira, de 1529; evangélicos indica o conjunto dos reformados”. 17 17 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, pp. 34-35. Fonte: W ikim edia C om m ons 13 A causa da Reforma Protestante não é única, muito menos de elevado clamor religioso, a maioria dos seus fatores está relacionada às condições políticas e econômicas da época. A reforma religiosa era uma preocupação do cristianismo a partir do século XIV. A Reforma protestante no século XVI revelou em todos os seus matizes a grave crise da vida religiosa e a necessidade de mudanças. Os sinais e causas da crise religiosa foram enumerados por Zagheni18 da seguinte forma: • Nas mudanças sociais, econômicas e políticas: guerras, pestes, insegurança, despovoamento do campo, urbanização; • No cisma na Igreja ocidental verificado depois do “exilio de Avignon” (1305-1337) e nas consequências negativas que daí derivaram (entre as quais é bastante significativa, sem dúvida, a divisão das obediências: em muitas dioceses houve, ao mesmo tempo, dois bispos e duas cúrias, isto é, duas estruturas eclesiais contrapostas; em muitos mosteiros houve dois abades); • Nas controvérsias, rivalidade e invejas entre sacerdotes seculares e religiosos, entre as diversas ordens, a respeito de problemas de competência, privilégios, benefícios e precedência, sobretudo nas pequenas cidades com muitos conventos; • No relaxamento da disciplina religiosa e da pobreza, por causa dos privilégios e das dispensas das regras (isso se verificou de modo especial no regime da dupla obediência, durante o cisma da Igreja ocidental); • No recrutamento pouco cuidadoso de noviços e na formação insuficiente, tanto do ponto de vista cultural quanto espiritual: às vezes, os conventos tornavam-se mero refúgio para crianças pobres. Lutero colocou em cheque a vida monástica nos países da Reforma ao criticá-la duramente no seu escrito De votis monasticis. Para o ex-monge agostiniano, a liberdade do cristão deve rejeitar a justificação por meio das obras não ordenadas por Deus, que o homem realiza para se salvar. A exploração dos fiéis por parte do clero causava escândalo por toda parte. Na Alemanha, essa exploração foi enfatizada pelo momento politico, o nacionalismo estava se acentuando por toda parte. A acumulação de capital por parte do Estado pontifício para além de suas fronteiras e a ascensão da burguesia comercial na Europa, que apoiava cada vez mais a nobreza e a centralização do poder nas mãos do rei encontra combustível nas criticas da Reforma protestante à figura do papa-monarca possuidor de grandes propriedades para apoiar Lutero. Para Engels, a Reforma protestante é uma das “três grandes e decisivas batalhas na longa luta da burguesia contra o feudalismo”19. A filosofia protestante não pode ser ignorada quando se trata da ascensão do capitalismo, não apenas ela, mas é uma das bases teóricas para que o capitalismose instalasse a partir do século XIX até os dias atuais; não se pode esquecer-se da influência das religiões sobre o comportamento econômico das sociedades. Para alguns governantes interessados no apoio financeiro da burguesia, a limitação do poder da Igreja e do papado passou a ser imprescindível. 18 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, p. 40. 19 ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo cientifico. Porto: Novo Tempo [s.d.], p. 27. A Reforma Protestante 14 Unidade: As Reformas do Cristianismo no Século XVI Trocando Ideias Nota: Na Alemanha, país de Martinho Lutero, no ano de 1555, foi assinada a Paz de Augsburgo, pela qual ficou determinado que, na Alemanha, cada príncipe teria o direito de escolher a religião para seu principado. O pensamento medieval católico atrelava as atividades econômicas à moral religiosa, “condenava-se, em geral, o exercício do comércio como modo de vida; considerava-se pecado o desejo de enriquecer para cada um elevar a sua condição social e a da sua família; proibia-se o empréstimo de dinheiro a juros”, detentora e beneficiária do feudalismo, a igreja defendia seu sistema econômico.20 Para Burns, “se não fossem as mudanças políticas fundamentais ocorridas na Europa e o desenvolvimento de novos interesses econômicos, é possível que o catolicismo romano não tivesse sofrido mais que uma evolução gradual”. A venda de Indulgências e a veneração de relíquias Os abusos políticos e econômicos do papado eram inúmeros, mas Lutero combateu especialmente a venda de indulgências e a veneração às relíquias. Uma indulgência é na prática o ato de absolvição, o perdão de um pecado concedido pelo papa que poderia livrar o fiel do castigo nesta vida ou no purgatório. Essa doutrina foi desenvolvida no século XIII por teólogos escolásticos, chamada de “Tesouro dos Merecimentos”, dizia que as virtudes de Jesus e dos santos devidos às suas virtudes “supérfluas” na terra acumularam no céu um merecimento excessivo que, esse tesouro de graças poderia então ser sacado pelo papa em beneficio dos fiéis. As indulgências, em consonância com a doutrina escolástica, não eram para ser cobradas, ou tratadas como um negócio, mas os papas renascentistas, com sua avareza, não demoraram em ver nas indulgências uma lucrativa fonte de renda, inclusive negociando-as à base de comissão com banqueiros como, por exemplo, os Fuggers, de Augsburgo, que vendiam indulgências para Leão X.21 A veneração às relíquias sagradas se constituiu num elemento importante do culto cristão e existia há séculos. A crença de que havia um poder curativo ou protetor nas relíquias dos santos e mártires fazia com que os fiéis se empenhassem em tocá-las, e, às vezes, faziam longas peregrinações para conseguir esse objetivo. No entanto, o grande problema é que essa crença alimentou um comércio fraudulento de relíquias pela Europa. Nobres e camponeses eram convencidos facilmente por qualquer mercador de relíquias dizendo que portavam um lasca de madeira da cruz de Jesus, “de acordo com Erasmo, as igrejas da Europa possuíam pedaços de madeira da verdadeira cruz em quantidade suficiente para construir um navio”22 entre outros objetos relacionados aos santos, à Virgem e a Jesus. Esses abusos contra a fé dos cristãos foi duramente combatido por Lutero, que ficou escandalizado com o que viu em sua viagem a Roma, ou mesmo com as “relíquias” que pode presenciar em poder de nobres alemães. No castelo de Wittenberg, Alberto de Brandenburgo guardava 17.415 relíquias, que tornavam possível lucrar 128.000 anos de indulgência. 23 20 NUNES. Antònio José Avelãs. Os sistemas económicos. Coimbra: Insignia Universitas, 1994, p. 70. 21 BURNS, Edward M.; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. 42 ed. São Paulo: Globo, 2003, p. 378. 22 BURNS, Edward M.; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. 42 ed. São Paulo: Globo, 2003, p. 378. 23 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, p. 72. 15 A teologia dos reformadores Mas, segundo consenso entre historiadores, apesar dos abusos, entre as causas religiosas o fator primário era o próprio catolicismo medieval, contra a teologia escolástica, com sua complicada teoria dos sacramentos, a teoria da autoridade divina delegada aos padres, à crença nas boas obras como elemento complementar à fé para a salvação. Existiram dois sistemas diferentes de teologia durante toda a Idade Média, o sistema conhecido como agostiniano, formulado por santo Agostinho, que propunha uma teologia da salvação não baseado nas obras, mas na predestinação, que Deus por Suas razões determinou que ganhasse a vida eterna. A teologia agostiniana tinha como fonte as epistolas de São Paulo. Essa doutrina era mais comum na Alemanha de Lutero e muitos de seus seguidores a adotaram por acreditarem que essa seria a interpretação mais lógica da fé cristã. A outra doutrina mais comum em toda a Europa na época de Lutero e que dominava os ambientes acadêmicos foi a teologia escolástica desenvolvidas por Pedro Lombardo e Tomás de Aquino. A teologia agostiniana tinha um tom mais pessimista da condição humana, no final da idade média, em consequência da melhora de vida, a teologia escolástica desenvolveu uma teoria mais otimista da condição humana. Pedro Lombardo e Tomas de Aquino, ao contrário de Agostinho que havia determinado em sua teologia que Deus já havia “eleito” os homens destinados à salvação, acreditavam no livre arbítrio dado aos homens por Deus, esses homens poderiam escolher o bem e evitar o mal. Mas, para isso os homens dependiam de uma mediação para alcançar a graça da salvação, e essa mediação era os sacramentos da Igreja, que os apoiaria para não cair em tentação de cometer pecado e perder a graça. Os três sacramentos, mais importante desse período, seriam o batismo, a penitência e a eucaristia. Os reformadores combateram especialmente o sistema de teologia escolástico, embora esse sistema estivesse praticamente incorporado à teologia oficial do cristianismo, suas doutrinas nunca foram universalmente aceitas. Para os críticos dessa doutrina, a escolástica, fortalecia muito a autoridade do clero. Com isso, os reformadores concordavam e queriam um retorno ao cristianismo primitivo e à doutrina que tinha como fonte as escrituras, rejeitavam todo ensinamento que não tivesse base bíblica, “em especial pelas epistolas paulinas, ou que não fossem reconhecidas pelos Padres da Igreja [...] condenavam não apenas a teoria do sacerdócio e o sistema sacramental [...] como certos aditamentos medievais à fé [...] celibato do clero”.24 Os reformadores rejeitavam os ensinamentos escolásticos por considerá-los liberais. O ideal religioso que promoveu a revolução protestante repousava mais nos ensinamentos agostinianos do pecado original, da predestinação de alguns escolhidos para a salvação, da escravidão da vontade e da depravação total do homem, muito mais difíceis de justificar pela razão. 24 BURNS, Edward M.; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. 42 ed. São Paulo: Globo, 2003, p. 380. Fo nt e: W ik im ed ia C om m on s 16 Unidade: As Reformas do Cristianismo no Século XVI Causas político-econômicas da revolução protestante As causas politicas mais evidentes da revolução provocada pela reforma protestante foram, em primeiro lugar a formação de uma consciência nacional, mas não um nacionalismo no sentido que conhecemos hoje. Desde a baixa idade Média, havia um crescente sentimento no norte da Europa de independência em relação à interferência estrangeira. Nesse sentido, encaravam o papa como uma fonte externa de interferência na soberania nacional. Esse sentimento estava mais latente em países como: Alemanha, França e Inglaterra. Na Inglaterra, em meados do século XIV foram promulgados estatutos que limitavam o poder papal em seus territórios, os Estatutos de Provisores tornavam sem valoras nomeações feitas pelo papa para cargos eclesiásticos na Inglaterra e o Praemunire proibia o recurso a Roma de decisões dos tribunais ingleses. Em 1439, uma lei abolia quase toda autoridade papal em território francês, inclusive nomeações e cobrança de tributos. Na Alemanha, devido ao sistema administrativo não foi promulgada nenhuma lei nacional de repudio à interferência da Igreja de Roma em relação aos assuntos internos, mas não faltaram leis autônomas que proibiam nomeações eclesiásticas ou mesmo a venda de indulgências sem o consentimento de algum príncipe.25 Com o sentimento nacional estimulado, segundo Bruns, por príncipes ambiciosos com o intuito de aumentar seu poder, foram se formado os Estados nacionais com governantes que tinham pretensões de autoridade absoluta e fatalmente começaram a ocorrer atritos com a autoridade papal. Com os déspotas no comando, a religião não poderia ficar fora de seu controle, também não poderiam ser déspotas enquanto houvesse uma dupla jurisdição dentro do país. A ambição dos príncipes buscou o fundamento para assumir o controle da religião no direito romano, “com sua doutrina de que o povo havia delegado todo seu poder ao governante secular”, ou seja, a autoridade antes delegada ao papa poderia ser assumida pelo chefe de estado. Era chegada a hora em que o crescente antagonismo que foi se desenvolvendo entre os príncipes seculares e o papa pode ser capitalizado em favor dos chefes seculares que colocaram a Igreja sob seus domínios.26 Junto ao desejo de poder, os príncipes seculares, conseguiram ganhos na área econômica ao eliminar os tributos papais que eram recolhidos em seus territórios, além de se apropriarem de vastas propriedades da Igreja, que ao longo de sua história conquistou enorme fortuna se transformando num vasto império econômico, “era a maior proprietária de terras da Europa ocidental, não se falando de seu enorme cabedal de bens imóveis, sob a forma de ricas alfaias, joias, metais preciosos etc.”27 , muitos de seus bens foram doados por reis e nobres, mas não podemos deixar de citar que, por exemplo, que Júlio II (1503-1513), comandou exércitos pessoalmente em campanhas militares e conquistou territórios para os Estados pontifícios. Outro ganho econômico foi a quebra das restrições da Igreja aos ganhos com empréstimos a juros, essa restrição da moral religiosa católica incomodava os governantes, banqueiros e a burguesia em ascensão. Os reis viviam em guerra e precisavam ampliar suas rendas. Com a queda do regime senhorial, muitos príncipes alemães que se encontravam em sérias dificuldades financeiras 25 BURNS, Edward M.; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. 42 ed. São Paulo: Globo, 2003, p. 380. 26 BURNS, Edward M.; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. 42 ed. São Paulo: Globo, 2003, pp. 380- 381. 27 BURNS, Edward M.; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. 42 ed. São Paulo: Globo, 2003, p. 381. 17 cobiçavam os bens da Igreja. E para complicar mais ainda a situação de estranhamento entre os Estados pontifícios e os regimes absolutistas em ascensão, a tributação da população por meio do dizimo fazia escoar boa parte da riqueza desses países europeus para a Itália. Outra classe que estava ansiosa pelo fim da autoridade papal era os comerciantes. A nova classe mercantil e a doutrina ascética do cristianismo medieval não se conjugavam. Os filósofos escolásticos condenavam os negócios com objetivo de enriquecimento. Todo lucro obtido para além da justa retribuição aos serviços prestados a comunidade deveria ser entregue a Igreja para proveito dos necessitados, a cobrança de juros, quando não existisse real risco no negócio, e a usura era condenada, pois para os escolásticos o lucro “capacita o homem que empresta o dinheiro a viver sem trabalhar”. Essas leis não eram respeitadas nem mesmo pela Igreja, muito menos pelos comerciantes e a nobreza que não se contentavam em receber “salários” e estavam participando do universo capitalista que estava suplantando a economia estática das corporações medievais.28 Porque a Alemanha foi o berço da Revolução Protestante! É difícil precisar uma única causa para que a Revolução que ocorreu no cristianismo no século XVI tivesse origem no território alemão. O país estava fraco e dividido e não tinha um governante poderoso como na França e na Inglaterra para defendê-la contra o papado, e também ao contrário dos países da península ibérica não contava com a benevolência do papa. Leão X aproveita as debilidades alemãs para impulsionar a venda de indulgências. A igreja também detinha uma grande extensão de terras cultiváveis nesse país. A Alemanha era, nesse período, a maior vítima dos abusos cometidos pelos papas. Além dos motivos citados, Burns acrescenta que “há provas de que o país mostrava enorme insatisfação devido a transição demasiado rápida entre uma economia estática e uma economia de lucros e salários [...] ao raiar do século XVI, a Alemanha estava madura para a Revolução religiosa”.29 Martinho Lutero nasceu em Turíngia, no ano de 1483, de família camponesa, seu pai abandonou o campo e conseguiu certa prosperidade como coproprietário de uma mina em Mansfeld. Ao completar 18 anos, foi para a Universidade de Erfurt onde estudou com afinco e era considerado um aluno acima da média. Segundo Zagheni, Lutero doutorou-se em filosofia no ano de 1505, mesmo ano em que entrou para o mosteiro agostiniano. Entre seus dilemas de fé, chegou à conclusão de que o ser humano deveria ser justificado apenas pela fé e não pelas obras, o que viria a se tornar mais tarde a centralidade de sua teologia.30 28 BURNS, Edward M.; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. 42 ed. São Paulo: Globo, 2003, p. 382. 29 BURNS, Edward M.; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. 42 ed. São Paulo: Globo, 2003, p. 382. 30 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, pp. 55-62. BURNS, Edward M.; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. 42 ed. São Paulo: Globo, 2003, pp. 383-384. Lutero: o líder que faltava 18 Unidade: As Reformas do Cristianismo no Século XVI Alguns historiadores concordam que “a Reforma implantada por Lutero está ligada não só aos grandes acontecimentos da época, mas também à sua história pessoal e, em particular, à sua angustia”, mas também não se pode confundir sobre esse aspecto e colocar na sua angustia as causas de sua critica a instituição, “é necessário dimensionar corretamente esse aspecto, sem, porém reduzir o fenômeno da Reforma a isso”.31 Lutero começa sua militância reformadora a partir do ano de 1514, primeiro como professor em Wittenberg e depois como escritor se empenhando na difusão de suas próprias convicções. Suas convicções não partiram do nada, antes de tudo Lutero foi um ótimo aluno e depois um ávido leitor de obras da mística teológica como, por exemplo, do franciscano Guilherme de Ockham, do dominicano Joahannes Tauler e de João de Paris. Nessa ocasião, surgiu na cidade vizinha, diocese de Magdeburgo, pregando a cobrança de indulgência jubilar para construção da Igreja de São Pedro em Roma, Johannes Tetzel. Ligado à cobrança dessas indulgências estava o arcebispo Alberto de Brandenburgo, que havia contraído uma divida com os banqueiros Fugger, de Augsburg, para se tornar titular de sua terceira diocese na Mogúncia, cada nomeação significava para o povo alemão o pagamento de 14 mil ducados à Roma. Essa nomeação estava infringindo as leis do direito canônico, mas o papa Leão X não se deixou intimidar pelas dificuldades jurídicas e confirmou a nomeação de Alberto para sua terceira diocese, “quando estavam em jogo interesses econômicos e políticos, ofereceu a confirmação da eleição mediante o pagamento de mais 10 mil ducados, a título de taxa para a dispensa do acúmulo do beneficio”.Esse tipo de transação envolvia altas somas em valores e muitos personagens: bispos, papas, banqueiros, príncipes e até o imperador: “pessoas de confiança dos Fugger acompanhavam os pregadores das indulgências para embolsar no próprio lugar a parte que cabia aos banqueiros.”32 As indulgências, neste caso, tiveram um atraso e só começaram no inicio de 1517. O dominicano encarregado dessa cobrança chegou a Juterborg, próxima Wittenberg, no mês de abril onde arrecadou grandes quantias devido ao exagerado tom de sua pregação, “a alma era libertada do purgatório tão logo a moeda caísse na caixa de esmola”.33 Lutero ficou sabendo da pregação de Tetzel e ficou escandalizado, reagindo com raiva, escreveu para vários bispos alemães, para o ordinário Jerônimo Schulz e para seus colegas do clero agostinianos. Para o bispo Alberto de Brandenburgo, acrescentou as “95 teses”. A correspondência solicita a participação de todos os destinatários que compareçam a Wittenberg para discutir as proposições das 95 teses, e acrescenta “Para que brilhe a verdade tudo que está abaixo será discutido [...] todos os que não puderem estar presentes para discutir verbalmente conosco, façam-no por escrito”.34 A radicalização da revolução protestante se deu entre os anos de 1517-1521. Os escritos de Lutero se propagaram rapidamente graças à invenção da imprensa mecânica pelo alemão Gutenberg, que foi fundamental para eventos como a renascença, a reforma e a revolução cientifica, além de ter lançado as bases do aprendizado em massa, “as 95 teses35 foram publicadas em Leipzig, Basiléia, Nuremberg: passados apenas 14 dias, essas propositiones tinham se espalhado por toda a Alemanha e, em quatro semanas, por quase toda a cristandade”36. 31 Para saber mais: MARTINA, Giacomo. História da igreja: de Lutero a nossos dias – o período da reforma. São Paulo: Loyola, 1993; LORTZ, Joseph A. Il Giovane Lutero, in La reforma in Germania pp. 169-220; CONGAR Yves. Sulla’angoscia di Lutero, pp. 143-160; in, MARTINA, Giacomo. La chiesa nell’età della Riforma. 32 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, p. 72-73. 33 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, p. 74. 34 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, p. 75. 35 Os textos das 95 teses podem ser consultados em italiano em: LUTERO, M. Scritti religiosi. Turim: Utet, 1967. 36 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, p. 75. 19 Em vez de se refletir sobre seus erros, os dominicanos levantaram suspeita de heresia sobre Lutero e proclamaram Tetzel doutor em maio de 1518. Nesse capitulo dominicano, Tetzel defendeu 95 teses contra Lutero. No mês de junho de 1518, as teses de Lutero foram avaliadas por Silvestre Mazzolini, mestre dos Sagrados Palácio de Roma, que redigiu uma avaliação das teses a pedido do papa e, o auditor da Câmara Apostólica, monsenhor Ghiducci, convocou Lutero a dar explicações em Roma. Lutero consultou seu amigo Georg “Spalatin” Burkhardt, secretário de Frederico da Saxônia, para sondar a possibilidade de ser julgado na Alemanha, e foi o que aconteceu. Em novembro do mesmo ano, o vice-chanceler papal, Júlio de Médici, solicitou aos agostinianos que solicitassem silêncio obsequioso de Lutero em relação as suas teses. Lutero havia pronunciado um discurso violento contra a excomunhão papal. Em todo o episódio de seu julgamento, Lutero contou com a sorte, em primeiro lugar porque com o adiamento do julgamento em Roma, Frederico conseguiu que ele fosse julgado no território alemão, segundo ele, Lutero foi interrogado “paternalmente” pelo cardeal Caetano. Outro ponto a favor de Lutero foi a situação politica secular, o papa para obter o apoio politico de Frederico da Saxônia contra o futuro imperador Carlos V voltou atrás em sua postura contra Lutero para agradar Frederico.37 Após o colóquio com Caetano, Lutero aprofundou suas convicções e escreveu aos amigos de Wittenberg, desdenhando dos conhecimentos bíblicos de Caetano e finalizou dizendo que o problema era, “se a igreja romana é de fato cristã”. O fato é que havia entre Lutero e a Igreja romana uma profunda ruptura dogmática e leva o reformador “à conclusão de que é preciso separar-se de Roma”, e Lutero rejeita a retratação que lhe fora dada.38 Iconografia de 1557 - Martinho Lutero e o Cardeal Caetano Fonte: Wikimedia Commons A partir daí, Lutero se põe a escrever um programa concreto de reforma da Igreja, para ele era preciso reconstruir a vida da Igreja desde seus fundamentos, “a casa comum em que até então a cristandade havia habitado: esse foi o objetivo dos grandes escritos reformadores de Lutero de 1520”. Para Lutero, a autoridade havia se tornado uma grande perdição para a 37 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, p. 79. 38 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, p. 62. 20 Unidade: As Reformas do Cristianismo no Século XVI Igreja. Ao contestá-la afirma a infalibilidade da “sola scriptura”, ainda questionando o poder do papa sobre a igreja, afirma a autoridade dos leigos, “qualquer cristão pode convocar o concílio, e os mais indicados para fazer isso são os que detêm a autoridade civil”39. No dia 21 de maio de 1520, reuniram-se teólogos e canonista para debater as teses de Lutero, entre eles estavam os dominicanos Caetano e Eck, que reprovam as teses e seus livros. Elabora- se a bula Exsurge Domine onde é exigida a submissão de Lutero no prazo de sessenta dias. Essa bula ao ser anunciada na Alemanha encontrou resistência por parte de bispos e universidade. Lutero após demonstração de indiferença a publicação dessa bula resolveu “excomungar” o papa e sua Cúria com a publicação do escrito “adversus execrabilem bullam antichristi”. Após esse gesto, o papa Leão X excomungou Lutero no dia 3 de janeiro de 1521 com a bula papal “decet romanum pontificem”. Lutero já era popular na Alemanha e a excomunhão teve efeito quase nulo. O papa solicitou a intervenção do Imperador que não pôde atendê-lo, mas convocou Lutero para comparecer à dieta de Worms, que ocorreu entre os dias 16 e 25 de abril de 1521, lhe concedendo um salvo conduto. Lutero compareceu, pois tinha a garantia de sua integridade física. Após os debates ocorridos em Worms, Lutero partiu para o castelo de Coburg, em Wartburg, onde permaneceu em exilio voluntário por quase um ano, período trabalhando na conclusão de seu revolucionário projeto de reforma.40 Depois de 1521, a Reforma se espalhou pela Alemanha e por outras regiões da Europa. A razão dessa expansão pode ser encontrada tanto na política dos príncipes alemães, quanto no Imperador e nos papas desse período. Os príncipes alemães se dividiram em relação à Reforma, cada um defendeu seus interesses concretos na hora da escolha ou não de seguir “protestando” contra a Igreja romana. O concilio defendido inclusive por Lutero não foi convocado. Conflitos entre o Estado pontifício e o Imperador Carlos V atrasaram uma solução para reverter a situação do cisma que estava se acentuando. Após quase 10 anos de conflitos e interesses diversos, Carlos V, depois da paz de Cambray em agosto de 1529, intencionando resolver o avanço turco sobre a Europa e a situação religiosa da Alemanha, convocou a dieta de Augusta para 1530. Mas, o contexto politico não ajudou, 39 Segundo Zagheni, esta ideia já era comum na canonistica medieval do século XII. ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, p. 83. 40 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, p. 87-90. Fonte: W ikim edia C om m ons 21 “o imperador queria a paz religiosa interna e a unidade das nações europeias na luta contra os turcos. João da saxônia, que apoiava Lutero queria um acordo com o imperador para se tornar príncipe eleitor”, mas outros príncipes que preferiam a Reforma estavam contra um acordo com Roma, pois para a Reforma era conveniente a oposição aos Habsburgos. Na dieta de Augusta, de caráter conciliar, não foi possívelsanar as divergências entre os católicos e os reformadores. Foi assinada só pelos católicos que exigiam a restituição dos bens confiscados pelos protestantes e a autoridade episcopal com prazo estipulado em um ano. A posição protestante se radicalizou. Interessado na paz de seu império e necessitando da ajuda dos príncipes que apoiavam Lutero para combater os turcos, Carlos V cedeu, em troca da ajuda militar propôs a “Trégua de Nuremberg” na qual concedeu a liberdade de escolha religiosa aos príncipes alemães até a convocação de um concílio.41 Assinada a paz com a França e uma trégua com os turcos, Carlos V se ocupou em combater os protestantes. No entanto, era tarde demais, “a ofensiva [...] levou a uma radicalização das posições protestantes. Esses se recusaram a participar do concilio que se abria em Trento e levaram ao fracasso os vários colóquios de religião que se realizaram para tentar a união”.42 A figura de Lutero foi o centro dos acontecimentos políticos e religiosos que marcaram a Alemanha até o ano de 1530, “desse ano em diante, sua figura vai aos poucos se apagando: ele vive praticamente afastado do mundo novo que tinha ajudado a criar. Dedica-se, sobretudo à família e a publicação das obras de teologia e exegese”.43 A exposição de Lutero nesse contexto fez de sua figura objeto de interpretações contrastantes, exaltado pelo protestantismo e demonizado pelos católicos até o inicio do século XX. A tendência atual que privilegia os estudos ecumênicos, cuja fonte principal é a tradução de suas obras teológicas e pastorais, busca entender o homem e sua obra em seu contexto. Segundo Burns, a revolução protestante iniciada por Lutero na Alemanha não logrou adeptos para além de suas fronteiras, pois mesmo em suas fronteiras encontrou resistência. Para além delas, o protestantismo de Lutero só encontrou solo fértil na Dinamarca, Noruega e Suécia. Mas a fórmula de renovação encontrou ressonância em outros países, na Suíça a consciência nacional já vinha se fortalecendo. No campo político, os suíços já haviam contestado no final da idade média o direito dos austríacos de governá-los. Em 1449, o imperador Maximiliano reconheceu o direito à independência dos suíços, tanto em relação aos Habsburgos, quanto ao Sacro Império Romano. Sendo assim não foi difícil os suíços encamparem a ideia de uma religião independente do jugo papal. 41 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, p. 99. 42 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, p. 100. 43 ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna. São Paulo: Paulus, 1999, p. 62. A Reforma na Suiça: Calvino e Zwinglio 22 Unidade: As Reformas do Cristianismo no Século XVI Após as cidades de Berna, Genebra, Zurique e Basiléia se tornarem importantes centros comerciais, sua população e seus comerciantes não toleravam mais a ideia de pobreza pregada pelo cristianismo romano. As ideias humanistas se propagavam pelo meio intelectual dessas cidades. Erasmo viveu por algum tempo na Suíça e os vendedores de indulgências haviam feito seu estrago por aquelas regiões. O pai da reforma na Suíça foi Zwinglio. Quando era estudante dedicou-se à filosofia e à literatura e se interessava apenas pelas reformas práticas dos humanistas. No entanto, se ordenou aos 22 anos de idade. A vida clerical só lhe interessava no tocante aos estudos de seus pensadores literários. Quando se voltou mais decididamente aos assuntos religiosos foi justamente no tocante à Reforma que estava se processando na Alemanha. Zwinglio aceitou quase todos os pensamentos de Lutero, mas “para ele, o pão e o vinho eram meros símbolos do corpo e do sangue de Cristo; por conseguinte, Zwinglio reduziu o sacramento da Eucaristia a uma simples comemoração”. No entanto, “orientou tão bem as forças anticatólicas que em 1528 quase todo o norte da Suíça tinha abandonado a antiga fé [...] a revolta protestante na Suíça estendeu-se a Genebra”, o movimento só teve êxito nessa região com a ajuda de pregadores protestantes de Berna e Zurique.44 Após esse contexto, chegou à cidade o francês Calvino, que perdeu a mãe ainda criança e foi criado por estranhos. Estudou na universidade de Paris e depois cursou direito em Orléans, foi onde conheceu alguns discípulos de Lutero e se engajou na reforma a ponto de ser acusado de heresia. Por esse motivo refugiou-se na Suíça no ano de 1534, morou primeiro na Basiléia e depois se instalou em Genebra, ainda convulsionada por uma revolução política.45 Calvino começou arregimentar adeptos com uma pregação radical, no ano de 1541 já governava a cidade e a religião. A cidade era governada com mão de ferro até sua morte no ano de 1564, “são poucos na história os exemplos de homens de índole mais sombria e mais teimosamente convencido da verdade de suas ideias”.46 44 BURNS, Edward M.; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. 42.ed. São Paulo: Globo, 2003, pp. 338-389. 45 BURNS, Edward M.; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. 42 ed. São Paulo: Globo, 2003, p. 389. 46 BURNS, Edward M.; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. 42 ed. São Paulo: Globo, 2003, p. 389. Fonte: T hinkstock / G etty Im ages 23 No governo de Calvino, Genebra transformou-se numa oligarquia religiosa onde funcionou uma verdadeira policia da fé. Conhecido como papa de Genebra, Calvino, organizou a igreja Presbiteriana onde instaurou comissões, composta por religiosos e leigos, que eram verdadeiros aparelhos de espionagem. Qualquer deslize dos fiéis, dependendo da gravidade do “delito”, esses poderiam após o julgamento incorrer nas penas de: prisão, tortura ou morte. Nos quatro primeiros anos de governo, Calvino condenou à morte 58 pessoas, numa população total de aproximadamente 16 mil habitantes.47 Calvino divergia de Lutero em alguns aspectos. Sua interpretação religiosa era mais legalista, acentuando a soberania da lei ao passo que Lutero privilegiava a consciência individual. Com isso o calvinismo se aproxima mais do Antigo testamento. Em matéria econômica, o calvinismo se associava bem as ideias do capitalismo em ascensão. Calvino abençoava o empreendimento dos comerciantes, ao passo que Lutero chegou a condenar a cobiça e defendia os interesses da nobreza alemã, ainda pré-capitalista. Enquanto Lutero manteve alguns princípios do catolicismo, Calvino fez questão de abolir qualquer influência da igreja de Roma. Em contrapartida, enquanto o luteranismo encontrou alguma dificuldade para se expandir para fora da Alemanha, o calvinismo se popularizou na maioria dos países europeus onde o comércio e as finanças haviam se tornado preponderantes. O calvinismo, segundo Weber ajudou a moldar a ética dos tempos modernos.48 Na Inglaterra, a influência dos calvinistas e luteranos não foi a causa da reforma naquele país. O “golpe” foi iniciado pelo monarca Henrique VIII. A reforma inglesa foi um movimento eminentemente politico. A reforma foi endossada pela maioria de seus súditos. Embora os ingleses não estivessem amarrados aos ditames papais, o orgulhoso povo inglês via como uma afronta qualquer intervenção do Estado pontifício. O professor de Oxford, John Wycliffe foi o precursor da reforma inglesa que foi mais de sentimento nacionalista do que religiosa. No contexto da Guerra dos Cem anos (1337-1453) entre Inglaterra e França, o papado estava instalado em Avignon, o que provocou o sentimento de repulsa aos éditos e bulas papais. Wycliffe se contrapôs à cobiça do clero, ao poder temporal dos papas e bispos e ao sistema de sacramentos da Igreja. No século XIV, a Inglaterra limitou os poderes dos papas e proibiu nomeações para cargos eclesiásticos em seu território. O problema entre o monarca e o papa foi precipitado por problemas domésticos. Henrique VIII queria se divorciar de sua esposa e o papa Clemente VII não concedeu a anulação do matrimônio. Catarina, esposa do rei, era tia de Carlos V imperadordo Sacro Império. O papa se encontrava em uma situação muito delicada, e para não descontentar o imperador, perdeu a Inglaterra. 47 http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/inquisicao-protestante. ASSIS, Ângelo Adriano Faria de. Inquisição Protestante, in, 48 WEBER, Max. A ética protestante e o espirito do capitalismo. São Paulo: Cia. das Letras, 2004; WEBER, Max. Obras selectas. Buenos Aires: Distal, 2003. A Reforma de Henrique VIII 24 Unidade: As Reformas do Cristianismo no Século XVI A relação entre Roma e a Inglaterra, que já não era estável desde meados do século XIV, tornou-se insustentável a partir do ano de 1531, quando o rei convocou os prelados ameaçando puni-los por violação ao Estatuto Praemunire, ao se submeterem as autoridades romanas e, aproveitou para induzi-los a aceitá-lo como chefe da igreja inglesa. Gradualmente, Henrique VIII conseguiu cortar as rendas do papado e induziu o Parlamento a proclamar a Igreja Anglicana como unidade nacional. Finalmente no ano de 1534, o rei tornou-se chefe da igreja em seu país.49 Segundo Martina, “as tentativas de uma renovação da Igreja que precederam a reforma protestante e depois se desenvolveram paralelamente a ela, mas com espirito e métodos próprios, dividem-se em:”50 • Surgimento de várias associações leigas: que se propuseram a um duplo fim: a caridade com os pobres e o zelo eucarístico. • A reforma das antigas ordens religiosas: no âmbito de vários Institutos religiosos antigos a vida religiosa, sua prática e observância se tornam mais fiéis e rigorosas com a ortodoxia da fé. • O nascimento de novos institutos religiosos: são inúmeras as iniciativas, alguns institutos são desdobramentos de irmandades leigas. • O trabalho reformador de alguns bispos em suas dioceses: não faltavam bispos que convocavam sínodos, promoviam pregações e se preocupavam com a formação do clero e as visitas pastorais. Na Espanha, o cardeal Cisneros construiu a Santa Casa de Caridade de Illescas, fundou a universidade de Alcalá, encarregou da tradução da Bíblia Complutense. 49 BURNS, Edward M.; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. 42 ed. São Paulo: Globo, 2003, pp. 391-394. 50 MARTINA, Giacomo. Historia da igreja: de Lutero aos nossos dias – o período da reforma. São Paulo: Loyola, 1993, 197. Fonte: T hinkstock / G etty Im ages A Reforma Católica 25 • Os grupos humanistas cristãos: na Itália com Contarini, Cervini e Seripando e na Inglaterra com o cardeal Pole. Estudavam as Escrituras e os Santos Padres para renovar a teologia escolástica. • Os círculos do evangelho: se relacionavam com a corrente da “devotio moderna” na tentativa de reformar o culto cristão e sua prática. Entre os animadores desses círculos temos: Erasmo na Alemanha; Le Fèvre d’Étaples na França, o bispo de Meaux, Guillaume Briçonet. A Reforma católica na Espanha é uma das mais marcantes tentativas de retorno à ortodoxia. O cardeal Cisneros, no final do século XV com o intuito de combater os mulçumanos e os judeus, obteve permissão dos reis católicos para reformar ordens religiosas, fundar escolas e universidade e casa de caridade. O cardeal Cisneros combateu os abusos nos mosteiros e instigou os padres a aceitarem suas incumbências pastorais. Com a intenção de combater os “hereges”, a reforma na Espanha surtiu um efeito regenerador na vida religiosa da nação.51 No século XIV, a atitude do monge Gerar Groote, nos Países Baixos, teve um impacto bastante positivo na vida cristã daquele período. Groote se rebelou contra os privilégios do clero e a vida segregada dos mosteiros, por essa razão, abandonou a clausura e se tornou um pregador itinerante, vivendo no meio do povo. Groote defendia a boa formação do clero e também o acesso à instrução das pessoas comuns para que essas pudessem ler e ter condições de decidir por si mesmas. Surgiram assim os “irmãos da vida comum” que valorizavam a pobreza, a obediência, a autonegação e a humildade. Groote tinha por objetivo reformar a igreja por meio da educação dos jovens, da instrução religiosa ao povo e da caridade ao próximo. A atitude de Groote se espalhou pela Europa Ocidental iniciando um movimento que ficou conhecido como “Devotio Moderna”. Nesse contexto, foi muito importante o livro anônimo, Imitatio Christi, que espalhou o espirito da doutrina, um modelo de vida religiosa que colocava clero e leigos no mesmo patamar, sem hierarquia.52 A Reação da Igreja de Roma à Revolução Luterana Os papas só se preocuparam com a eminência de um cisma quando a situação na Alemanha já estava fora de controle. As concessões políticas aos príncipes alemães e os conflitos com o imperador Carlos V atrasaram demais uma reação para recuperar o controle da situação. O primeiro papa a tentar uma conciliação com os protestantes foi um não italiano, Adriano VI, nascido em Utrecht, nos Países Baixos, o papa que assumiu no ano de 1522, veio a falecer vinte meses após assumir o cargo no ano de 1523. Após a morte de Adriano VI, o trono papal foi ocupado por um Médici, Clemente VII, foram mais onze anos de abusos e descaso. Somente no pontificado de Paulo III (1534-1549), que a campanha contra os abusos na Igreja retomou os trilhos. Foi em seu pontificado que se instalou o concilio reformador da vida da igreja, o concilio de Trento (1545-1563), ele e seus três sucessores: Paulo IV (1555-1559), Pio V (1566-1572), e Sisto V (1585-1590). Esses, “foram os mais ardorosos cruzados em prol de uma reforma a presidirem a santa Sé desde os tempos de Gregório VII. Reorganizaram as finanças papais, preencheram os cargos eclesiásticos com padres conhecidos pela austeridade”, entre outras medidas necessárias para acabar com os abusos no clero. Com esses papas a reforma católica atingiu seu auge.53 51 BURNS, Edward M.; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. 42 ed. São Paulo: Globo, 2003, pp. 394-395. 52 http://it.wikipedia.org/wiki/Fratelli_della_vita_comune 53 BURNS, Edward M.; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. 42 ed. São Paulo: Globo, 2003, p. 395. 26 Unidade: As Reformas do Cristianismo no Século XVI Outro importante componente da Reforma Católica foi o Concilio de Trento (1545-1563). Convocado pelo papa Paulo III para a cidade de Trento, na Itália, foi um dos mais importantes concílios realizados pelo cristianismo católico. A intenção desse concílio foi a de redefinir as doutrinas da fé católica. Os dogmas contestados pelos reformadores foram todos confirmados pelo concílio. Declarou-se que as boas obras são tão necessárias para a salvação quanto a fé. Manteve-se a teoria dos sacramentos como meios indispensáveis para se alcançar a graça. [...] foram confirmadas, como elementos essenciais do sistema católico, a transubstanciação, a sucessão apostólica do clero, a crença no purgatório, a invocação dos santos, e a regra do celibato para os padres [...] atribui-se igual autoridade à Bíblia e à tradição dos ensinamentos apostólicos [...] O concílio de Trento reiterou ainda a doutrina das indulgências [...] embora condenasse os piores escândalos ligados à venda dos perdões [...] A legislação de Trento não se limitou a questões de dogma, mas compreendeu também medidas importantes para a eliminação de abusos e para o fortalecimento da disciplina da Igreja sobre seus membros.54 A Reforma Católica contou com a colaboração decisiva dos padres da Companhia de Jesus para levar adiante as reformas propostas pelo concílio e as articulações políticas durante o concílio que permitiu aos papas dominarem esse conclave nas situações mais difíceis que se apresentavam. Após o concilio, os jesuítas retomaram grandes territórios dominados pelos protestantes como, por exemplo, a Polônia e o sul da Alemanha. Fundada pelo nobre espanhol Inácio de Loyola (1491-1556), “A Companhia de Jesus foi, de longe, a mais militante das ordens religiosas inspiradas pelo zelo espiritualdo século XVI. Não era uma simples sociedade monacal, mas um regimento de soldados que havia jurado defender a fé”. Os jesuítas também foram muito importantes na expansão da fé católica para fora da Europa. Com a expansão marítima da península Ibérica, os jesuítas chegaram ao Japão, China, África, Índia e América, muito antes de terminar a reforma protestante na Alemanha. O Concílio de Trento é ainda hoje um dos concílios mais complexos em relação a legislação que rege a vida e formação do clero. Mas, ao final das Reformas instalou-se por toda a Europa um acentuado aumento de perseguições e guerras religiosas, “tanto católicos como protestantes partiam do principio de que era impossível tolerar a diversidade de credos religiosos dentro das fronteiras de qualquer país [...] os dissidentes religiosos foram perseguidos, onde quer que fossem encontrados”. 54 BURNS, Edward M.; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. 42 ed. São Paulo: Globo, 2003, 395. Fo nt e: W ik im ed ia C om m on s 27 Material Complementar Faça uma viagem pela história através dos Museus do Vaticano e da Reforma e do Arquivo Secreto Vaticano! Museu do Vaticano – Cidade do Vaticano (Vaticano) • http://mv.vatican.va/ Arquivo Secreto Vaticano – Cidade do Vaticano (Vaticano) • http://www.archiviosegretovaticano.va/archivio/ Museu da Reforma – Genebra (Suiça) • http://www.musee-reforme.ch/ http://mv.vatican.va/ http://www.archiviosegretovaticano.va/archivio/ http://www.musee-reforme.ch/ 28 Unidade: As Reformas do Cristianismo no Século XVI Referências BETTENSON, Henry, Documentos da igreja cristã. 3.ed. São Paulo: ASTE, 1998. BURNS, Edward M.; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. 42.ed. São Paulo: Globo, 2003. CHAUNU, Pierre. O Tempo das Reformas (1250 – 1550). A Crise da Cristandade. Lisboa: Estampa, 1993. DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989. ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo cientifico. Porto: Novo Tempo [s.d.]. FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias (séculos I-VII): conflitos ideológicos dentro do cristianismo. 2.ed. 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