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Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa/Profa. Musa – Aula 1 Objetivos da Língua Portuguesa no Ensino Fundamental Introdução: O objetivo principal da escola, no Ensino Fundamental, é garantir a todos os alunos o acesso aos saberes necessários para que possam compreender o código oral e escrito da língua materna. (PCN)1: Linguagem e Participação Social O domínio da língua tem estreita relação com a possibilidade de plena participação social, pois é por meio dela que o homem se comunica, tem acesso à informação, expressa e defende pontos de vista, partilha ou constrói visões de mundo, produz conhecimento. Assim, um projeto educativo comprometido com a democratização social e cultural atribui à escola a função e a responsabilidade de garantir a todos os seus alunos o acesso aos saberes lingüísticos necessário para o exercício da cidadania, direito inalienável de todos. Essa responsabilidade é tanto maior quanto menor for o grau de letramento das comunidades em que vivem os alunos. Considerando os diferentes níveis de conhecimento prévio, cabe à escola promover a sua ampliação de forma que, progressivamente, durante os oito anos do ensino fundamental, cada aluno se torne capaz de interpretar diferentes textos que circulam socialmente, de assumir a palavra e, como cidadão, de produzir textos eficazes nas mais variadas situações. Linguagem, atividade discursiva e textualidade A linguagem é uma forma de ação inter-individual orientada por uma finalidade específica; um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes grupos de uma sociedade, nos distintos momentos da sua história. Dessa forma, se produz linguagem tanto numa conversa de bar, entre amigos, quanto ao escrever uma lista de compras, ou ao redigir uma carta — diferentes práticas sociais das quais se pode participar. Por outro lado, a conversa de bar na época atual diferencia-se da que ocorria há um século, por exemplo, tanto em relação ao assunto quanto à forma de dizer, propriamente — características específicas do momento histórico. Além disso, uma conversa de bar entre economistas pode diferenciar-se daquela que ocorre entre professores ou operários de uma construção, tanto em função do registro e do conhecimento lingüístico quanto em relação ao assunto em pauta. Dessa perspectiva, a língua é um sistema de signos histórico e social que possibilita ao homem significar o mundo e a realidade. Assim, aprendê-la é aprender não só as palavras, mas 1 BASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua portuguesa/Secretaria de Educação Fundamental. Brasília. Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa/Profa. Musa – Aula 1 também os seus significados culturais e, com eles, os modos pelos quais as pessoas do seu meio social entendem e interpretam a realidade e a si mesmas. A linguagem verbal possibilita ao homem representar a realidade física e social e, desde o momento em que é aprendida, conserva um vínculo muito estreito com o pensamento. Possibilita não só a representação e a regulação do pensamento e da ação, próprios e alheios, mas, também, comunicar idéias, pensamentos e intenções de diversas naturezas e, desse modo, influenciar o outro e estabelecer relações interpessoais anteriormente inexistentes. Essas diferentes dimensões da linguagem não se excluem: não é possível dizer algo a alguém sem ter o que dizer. E ter o que dizer, por sua vez, só é possível a partir das representações construídas sobre o mundo. Também a comunicação com as pessoas permite a construção de novos modos de compreender o mundo, de novas representações sobre ele. A linguagem, por realizar-se na interação verbal7 dos interlocutores, não pode ser compreendida sem que se considere o seu vínculo com a situação concreta de produção. É no interior do funcionamento da linguagem que é possível compreender o modo desse funcionamento. Produzindo linguagem, aprende-se linguagem. Produzir linguagem significa produzir discursos. Significa dizer alguma coisa para alguém, de uma determinada forma, num determinado contexto histórico. Isso significa que as escolhas feitas ao dizer, ao produzir um discurso, não são aleatórias — ainda que possam ser inconscientes —, mas decorrentes das condições em que esse discurso é realizado. Quer dizer: quando se interage verbalmente com alguém, o discurso se organiza a partir dos conhecimentos que se acredita que o interlocutor possua sobre o assunto, do que se supõe serem suas opiniões e convicções, simpatias e antipatias, da relação de afinidade e do grau de familiaridade que se tem, da posição social e hierárquica que se ocupa em relação a ele e vice-versa. Isso tudo pode determinar as escolhas que serão feitas com relação ao gênero no qual o discurso se realizará, à seleção de procedimentos de estruturação e, também, à seleção de recursos lingüísticos. É evidente que, num processo de interlocução, isso nem sempre ocorre de forma deliberada ou de maneira a antecipar-se ao discurso propriamente. Em geral, é durante o processo de produção que essas escolhas são feitas, nem sempre (e nem todas) de maneira consciente. O discurso, quando produzido, manifesta-se lingüisticamente por meio de textos. Assim, pode-se afirmar que texto é o produto da atividade discursiva oral ou escrita que forma um todo significativo e acabado, qualquer que seja sua extensão. É uma seqüência verbal constituída por um conjunto de relações que se estabelecem a partir da coesão e da coerência. Esse conjunto de relações tem sido chamado de textualidade. Dessa forma, um texto só é um texto quando pode ser compreendido como unidade significativa global, quando possui textualidade. Caso contrário, não passa de um amontoado aleatório de enunciados. Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa/Profa. Musa – Aula 1 O discurso possui um significado amplo: refere-se à atividade comunicativa que é realizada numa determinada situação, abrangendo tanto o conjunto de enunciados que lhe deu origem quanto as condições nas quais foi produzido. A produção de discursos não acontece no vazio. Ao contrário, todo discurso se relaciona, de alguma forma, com os que já foram produzidos. Nesse sentido, os textos, como resultantes da atividade discursiva, estão em constante e contínua relação uns com os outros. A esta relação entre o texto produzido e os outros textos é que se tem chamado intertextualidade. Todo texto se organiza dentro de um determinado gênero. Os vários gêneros existentes, por sua vez, constituem formas relativamente estáveis de enunciados, disponíveis na cultura, caracterizados por três elementos: conteúdo temático, estilo e construção composicional. Pode-se ainda afirmar que a noção de gêneros refere-se a “famílias” de textos que compartilham algumas características comuns, embora heterogêneas, como visão geral da ação à qual o texto se articula, tipo de suporte comunicativo, extensão, grau de literariedade, por exemplo, existindo em número quase ilimitado. Os gêneros são determinados historicamente. As intenções comunicativas, como parte das condições de produção dos discursos, geram usos sociais que determinam os gêneros que darão forma aos textos. É por isso que, quando um texto começa com “era uma vez”, ninguém duvida de que está diante de um conto, porque todos conhecem tal gênero. Diante da expressão “senhoras e senhores”, a expectativa é ouvir um pronunciamento público ou uma apresentação de espetáculo, pois sabe-se que nesses gêneros o texto, inequivocamente, tem essa fórmula inicial. Do mesmo modo, pode-se reconhecer outros gêneros como cartas, reportagens, anúncios, poemas, etc. Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa/Profa. Musa – Aula 1 Preconceito Linguistico – Marcos Bagno2 Mito n° 1: “A língua portuguesa faladano Brasil apresenta uma unidade surpreendente” Este é o maior e o mais sério dos mitos que compõem a mitologia do preconceito lingüístico no Brasil. Ele está tão arraigado em nossa cultura que até mesmo intelectuais de renome, pessoas de visão crítica e geralmente boas observadoras dos fenômenos sociais brasileiros, se deixam enganar por ele. É o caso, por exemplo, de Darcy Ribeiro, que em seu último grande estudo sobre o povo brasileiro escreveu: É de assinalar que, apesar de feitos pela fusão de matrizes tão diferenciadas, os brasileiros são, hoje, um dos povos mais homogêneos lingüística e culturalmente e também um dos mais integrados socialmente da Terra. Falam uma mesma língua, sem dialetos [grifo meu, Folha de S. Paulo, 5/2/95]. Existe também toda uma longa tradição de estudos filológicos e gramaticais que se baseou, durante muito tempo, nesse (pre)conceito irreal da “unidade lingüística do Brasil”. Esse mito é muito prejudicial à educação porque, ao não reconhecer a verdadeira diversidade do português falado no Brasil, a escola tenta impor sua norma lingüística como se ela fosse, de fato, a língua comum a todos os 160 milhões de brasileiros, independentemente de sua idade, de sua origem geográfica, de sua situação socioeconômica, de seu grau de escolarização etc. [pg. 15] Ora, a verdade é que no Brasil, embora a língua falada pela grande maioria da população seja o português, esse português apresenta um alto grau de diversidade e de variabilidade, não só por causa da grande extensão territorial do país — que gera as diferenças regionais, bastante conhecidas e também vítimas, algumas delas, de muito preconceito —, mas principalmente por causa da trágica injustiça social que faz do Brasil o segundo país com a pior distribuição de renda em todo o mundo. São essas graves diferenças de status social que explicam a existência, em nosso país, de um verdadeiro abismo lingüístico entre os falantes das variedades não-padrão do português brasileiro — que são a maioria de nossa população — e os falantes da (suposta) variedade culta, em geral mal definida, que é a língua ensinada na escola. Como a educação ainda é privilégio de muito pouca gente em nosso país, uma quantidade gigantesca de brasileiros permanece à margem do domínio de uma norma culta. Assim, da mesma forma como existem milhões de brasileiros sem terra, sem escola, sem teto, sem trabalho, sem saúde, também existem milhões de brasileiros sem língua. Afinal, se formos acreditar no mito da língua única, existem milhões de pessoas neste país que não têm acesso a essa língua, que é a norma literária, culta, empregada pelos escritores e jornalistas, pelas instituições oficiais, pelos órgãos do poder — são os sem- 2 BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 2008. Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa/Profa. Musa – Aula 1 lingua. É claro que eles também falam português, uma variedade de português não-padrão, com sua gramática particular, que no entanto não é reconhecida como válida, que é desprestigiada, ridicularizada, [pg. 16] alvo de chacota e de escárnio por parte dos falantes do português-padrão ou mesmo daqueles que, não falando o português-padrão, o tomam como referência ideal — por isso podemos chamá-los de sem-língua. O que muitos estudos empreendidos por diversos pesquisadores têm mostrado é que os falantes das variedades lingüísticas desprestigiadas têm sérias dificuldades em compreender as mensagens enviadas para eles pelo poder público, que se serve exclusivamente da língua- padrão. Como diz Maurizzio Gnerre3 em seu livro Linguagem, escrita e poder. A Constituição afirma que todos os indivíduos são iguais perante a lei, mas essa mesma lei é redigida numa língua que só uma parcela pequena de brasileiros consegue entender. A discriminação social começa, portanto, já no texto da Constituição. É claro que Gnerre não está querendo dizer que a Constituição deveria ser escrita em língua não-padrão, mas sim que todos os brasileiros a que ela se refere deveriam ter acesso mais amplo e democrático a essa espécie de língua oficial que, restringindo seu caráter veicular a uma parte da população, exclui necessariamente uma outra, talvez a maior. Muitas vezes, os falantes das variedades desprestigiadas deixam de usufruir diversos serviços a que têm direito simplesmente por não compreenderem a linguagem empregada pelos órgãos públicos. Um estudo bastante revelador dessa situação foi empreendido por Stella Maris Bortoni-Ricardo4 na periferia de Brasília e publicado no artigo “Problemas de comunicação interdialetal”. Diante do que descobriu, a autora pode afirmar: A idéia de que somos um país privilegiado, pois do ponto de vista lingüístico tudo nos une e nada nos separa, parece-me, contudo, ser apenas mais um dos grandes mitos arraigados em nossa cultura. Um mito, por sinal, de conseqüências danosas, pois na medida em que não se reconhecem os problemas de comunicação entre falantes de diferentes variedades da língua, nada se faz também para resolvê- los. A mesma autora alerta para que não se confunda a idéia de “monolingüismo” com a de “homogeneidade lingüística”. O fato de no Brasil o português ser a língua da imensa maioria da população não implica, automaticamente, que esse português seja um bloco compacto, coeso e 3 GNERRE, Maurízio, Linguagem, Escrita e Poder. 3° edição. São Paulo: Martins Fontes, 1994 4 Stella Maris Bortoni-Ricardo é professora titular aposentada de Linguística da Universidade de Brasília (UnB), onde atuou na Faculdade de Educação (graduação e pós-graduação), no doutorado em Linguística, foi diretora do Instituto de Letras e coordenadora de pós-graduação em Linguística e em Educação. Pela Editora Contexto, é autora do Manual de sociolinguística e Português brasileiro: a língua que falamos e coautora dos livros Ensino de português e sociolinguística; Formação do professor como agente letrador; Linguagem para formação em Letras, Educação e Fonoaudiologia; Linguística aplicada: um caminho com diferentes acessos e Sociolinguística, sociolinguísticas: uma introdução. Suas publicações mais recentes podem ser acessadas em www.stellabortoni.com.br. http://www.stellabortoni.com.br/ Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa/Profa. Musa – Aula 1 homogêneo. Na verdade, como costumo dizer, o que habitualmente chamamos de português é um grande “balaio de gatos”, onde há gatos dos mais diversos tipos: machos, fêmeas, brancos, pretos, malhados, grandes, pequenos, adultos, idosos, recém-nascidos, gordos, magros, bem- nutridos, famintos etc. Cada um desses “gatos” é uma variedade do português brasileiro, com sua gramática específica, coerente, lógica e funcional. É preciso, portanto, que a escola e todas as demais instituições voltadas para a educação e a cultura abandonem esse mito da “unidade” do português no Brasil e passem a reconhecer a verdadeira diversidade linguistica de nosso país para melhor planejarem suas políticas de ação junto à população amplamente marginalizada dos falantes das variedades não-padrão. O reconhecimento da existência de muitas normas lingüísticas diferentes é fundamental para que o ensino em nossas escolas seja conseqüente com o fato comprovado de que a norma lingüística ensinada em sala de aula é, em muitas situações, uma verdadeira “língua estrangeira” para o aluno que chega à escola proveniente de ambientes sociais onde a norma lingüística empregada no quotidiano é uma variedade de português não padrão. Felizmente, essa realidade lingüística marcada pela diversidade já é reconhecida pelas instituições oficiais encarregadas de planejar a educação no Brasil. Assim, nos Parâmetros curriculares nacionais, publicados pelo Ministério da Educação e do Desporto em 1998,podemos ler que A variação é constitutiva das línguas humanas, ocorrendo em todos os níveis. Ela sempre existiu e sempre existirá, independentemente de qualquer ação normativa. Assim, quando se fala em “Língua Portuguesa” está se falando de uma unidade que se constitui de muitas variedades. [...] A imagem de uma língua única, mais próxima da modalidade escrita da linguagem, subjacente às prescrições normativas da gramática escolar, dos manuais e mesmo dos programas de difusão da mídia sobre “o que se deve e o que não se deve falar e escrever”, não se sustenta na análise empírica dos usos da língua. São, de fato, boas novas! Espero que elas desçam das altas esferas governamentais e se propaguem pelas salas de aula de todo o país!