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PSICOLOGIA DA PERSONALIDADE INFANTIL PSICOLOGIA DA PERSONALIDADE INFANTIL PSICOLOGIA DA PERSONALIDADE INFANTIL 1 Sumário Desenvolvimento da personalidade nos primeiros anos de vida ........................ 3 Temperamento ou personalidade? Considerações conceituais quanto aos dois construtos ........................................................................................................... 5 Principais teorias do temperamento infantil ........................................................ 7 A Teoria dos Três Superfatores de Hans Eysenck ........................................... 11 Como avaliar o temperamento infantil? ............................................................ 14 Temperamento e suas associações com as habilidades cognitivas e o desempenho escolar ........................................................................................ 17 DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE DA CRIANÇA: O PAPEL DA EDUCAÇÃO INFANTIL .................................................................................... 22 SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE NA INFÂNCIA ....... 28 REFERÊNCIAS ..................................................................................... 39 2 FACUMINAS A história do Instituto Facuminas, inicia com a realização do sonho de um grupo de empresários, em atender à crescente demanda de alunos para cursos de Graduação e Pós-Graduação. Com isso foi criado a Facuminas, como entidade oferecendo serviços educacionais em nível superior. A Facuminas tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua. Além de promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicação ou outras normas de comunicação. A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de forma confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir uma base profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma das instituições modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela inovação tecnológica, excelência no atendimento e valor do serviço oferecido. 3 Desenvolvimento da personalidade nos primeiros anos de vida É possível observar diferenças individuais relativas ao temperamento do indivíduo desde muito cedo. Os bebês, por exemplo, experimentam emoções de diversos tipos, esboçadas em reações de agrado ou desagrado diante das situações. De acordo com Hidalgo e Palácios (1995), essas reações globais dão passagem para emoções específicas que vão aparecendo progressivamente ao longo do primeiro ano de vida – inicialmente, a alegria e o mal-estar, depois a cólera e a surpresa e, finalmente, o medo e a tristeza. Assim, alegria, aborrecimento, surpresa, ansiedade, medo e tristeza são emoções básicas possíveis de serem observadas em todas as crianças durante a primeira infância. Entre o segundo e terceiro ano de vida as crianças já são capazes de experimentar um conjunto de emoções mais complexas que tem a ver com a descoberta de si mesmas e com a manifestação da relação com os demais. As mais importantes dessas emoções são a vergonha, a culpa e o orgulho. Observa-se que, para a criança sentir vergonha ou orgulho, é necessário um conhecimento das normas sociais, uma avaliação da própria conduta em relação a tais normas e uma atribuição de responsabilidade a si mesma diante do êxito ou fracasso para se ajustar às situações. O sentimento de culpa, por sua vez, está ligado ao desenvolvimento sócio moral e tem estrita relação com o aparecimento de condutas altruístas, já que inibe comportamentos que possam prejudicar os outros e consiste em um motivador para a reparação de danos (Saarni, Mumme & Campo, 1998). A partir dos quatro ou cinco anos de idade, auxiliadas pela regularidade das experiências cotidianas, as crianças já começam a compreender seus próprios estados emocionais. É nesta idade que o processo de avaliação costuma aparecer, permitindo que as emoções comecem a ser explicadas e contextualizadas (Hidalgo & Palácios, 1995). Para Harris (1989), as crianças parecem passar por duas etapas diferentes na compreensão das normas de expressão de suas emoções. Num 4 primeiro momento, podem esconder suas emoções em determinadas situações, mas não são de todo eficazes, pois estão agindo mais conforme o que seus pais lhes ensinam do que de acordo com uma estratégia de dissimulação bem compreendida. Num segundo momento, a partir dos cinco ou seis anos, parecem compreender realmente a diferença entre uma emoção real e uma emoção expressa, sendo conscientes de seus estados mentais e conseguindo esconder, deliberadamente, seus sentimentos com objetivo de se ajustar às normas sociais. Com esta tomada de consciência em relação às suas reações emocionais e comportamentais, pode-se vislumbrar um incipiente padrão de regularidade comportamental na criança, tendo em vista que a mesma já é capaz de buscar ativamente por determinadas situações ou eventos, ao mesmo tempo em que evita outros. Este padrão de regularidade, tanto temporal quanto situacional, é o que se chama de personalidade ou temperamento – mais adiante estes termos serão conceituados e discutidos com maior profundidade – e sua estrutura e desenvolvimento consistem em aspectos a serem melhor explorados pelo campo da pesquisa em psicologia. Neste sentido, um fenômeno que vem sendo alvo de investigação por parte de muitos pesquisadores consiste nas mudanças que ocorrem na personalidade quando se passa da infância para a adolescência e desta para a vida adulta. Assim, indaga-se: o temperamento de uma criança desenvolve-se de forma estável e coerente com a personalidade que ela irá exibir posteriormente? A resposta é positiva. As pesquisas apontam para a possibilidade da estrutura da personalidade de um indivíduo na infância conter importantes similaridades com a estrutura da personalidade deste mesmo indivíduo adulto. De acordo com Caspi, Roberts e Shiner (2005) é preciso atentar para algumas diferenças no desenvolvimento dos traços infantis. Observa-se que a estrutura das diferenças individuais dos dois aos oito anos de idade requer uma atenção especial, pois as mudanças que aparecem durante este período são rápidas e amplas. Assim, as crianças passam da manifestação de um pequeno número de emoções para um grande número muito rapidamente, o que configura sua personalidade como pouco integrada e 5 mais complexa. Não há, para esta faixa etária, um padrão comportamental consistente como há para o adulto. Existem achados apontando que as diferenças comportamentais que aparecem na infância tendem a se manter na vida adulta, o que indica uma alta estabilidade do temperamento infantil. Caspi (2000), em seu famoso estudo em Dunedin sobre as continuidades do desenvolvimento da personalidade, sustenta que as diferenças temperamentais que aparecem no início da vida têm uma influência decisiva no desenvolvimento da estrutura da personalidade adulta. Seus resultados mostram que as crianças que apresentaram, aos três anos de idade, falta de controle sobre si próprias e maior tendência à externalização de problemas (por exemplo, mentir, desobedecer, fazer ameaças) tornaram-se impulsivas, instáveis, agressivas, bem como apresentaram maior taxa de criminalidade e conflito com membros de sua esfera social e profissional, no início da vida adulta. Já aquelas que, aos três anos, foram classificadas como inibidas e com tendênciaà internalização dos problemas (por exemplo, sentir-se inquieto, chorar facilmente, andar amuado ou triste), mostraram-se pouco assertivas e com maior tendência para depressão e escassez de suporte social, aos vinte e um anos de idade. Conclui-se que, embora as manifestações comportamentais se modifiquem com o passar do tempo, o curso do desenvolvimento da personalidade apresenta certa coerência, com características que se mantêm ao longo dos anos. Temperamento ou personalidade? Considerações conceituais quanto aos dois construtos Muitos psicólogos que estudam a personalidade infantil têm se concentrado no estudo do temperamento, da consistência comportamental e dos seus substratos biológicos, por serem fenômenos que aparecem cedo na vida. Há um esforço para se mostrar a ligação entre o temperamento na infância e a personalidade do adulto, mas figura-se como obstáculo principal a dificuldade de delimitação conceitual dos construtos temperamento e personalidade. 6 O temperamento pode ser conceituado como a qualidade das respostas emocionais da criança. É mensurado na infância e tem a tendência de se manifestar em traços mais específicos, sendo influenciado pelos componentes biológicos ou genéticos mais do que pela experiência (Caspi, 2005). Para Strelau (1998), o temperamento consiste em uma característica formal do comportamento, sendo expresso através do nível de energia e de fatores temporais. São traços básicos e relativamente estáveis, presentes desde cedo nas crianças. É primariamente determinado por mecanismos biológicos e, ao longo do tempo, está sujeito a mudanças causadas tanto pela maturação quanto pela interação do indivíduo com o ambiente. De forma geral, o temperamento é atribuído a bebês e crianças pequenas – até cerca de sete anos de idade –, destacando-se por sua forte influência biológica, sendo que a tendência de integração dos comportamentos culmina na formação da personalidade adulta (Goldsmith et al., 1987). O construto denominado personalidade consiste em um domínio mais amplo, envolvendo hábitos, valores, conteúdo da cognição social e padrões de reação e de sentimentos. Há um número significativo de variáveis que estão no cerne de sua concepção e desenvolvimento e, por ser um construto com ampla variabilidade, costuma ser atribuído a crianças mais velhas, adolescentes e adultos. A forte influência de fatores biológicos divide espaço com mecanismos ambientais que irão moldar as características gerais do indivíduo (Rothbart & Bates, 1998; Shiner & Caspi, 2003). Para Colom (1998), a personalidade pode ser compreendida por meio dos atos cotidianos das pessoas e, para abordá-la de forma cientifica é preciso empreender uma investigação das diferenças de conduta numa amostra variada de situações para, então, compreender quais são as propriedades que governam o comportamento das pessoas. Tais comportamentos podem ser consistentes – quando não mudam de forma significativa em diferentes situações – ou estáveis – quando não há uma mudança demasiado grande ao longo do tempo. Assim, partindo-se da regularidade da conduta de uma pessoa, é possível prever seu comportamento futuro. 7 A literatura, porém, não aponta uma distinção clara entre os termos temperamento e personalidade infantis, que são tratados muitas vezes como conceitos sobrepostos (Rothbart &Bates, 1998; Shiner & Caspi, 2003). Para Teiglasi (1995), o contraste entre os dois conceitos é obscuro, pois apresentam um vocabulário descritivo semelhante, havendo também uma carência de dados capazes de diferenciá-los com base em fatores biológicos. É possível elencar três formas de sobreposição ou relacionamento apontados na literatura entre os conceitos temperamento e personalidade: 1) o temperamento pode ser considerado como um dos elementos da personalidade; 2) como seu sinônimo; 3) ou como um fenômeno totalmente independente da personalidade (Strelau, 1991, como citado em Hofstee, 1991). Mas também é possível estabelecer, a partir da literatura, algumas diferenças fundamentais entre os dois construtos: a) o temperamento é biologicamente determinado, enquanto a personalidade é um produto do ambiente social; b) os traços de temperamento podem ser identificados desde cedo na vida, enquanto a personalidade é investigada em períodos posteriores do desenvolvimento; c) diferenças individuais no temperamento – como ansiedade e busca de estimulação – podem ser observadas também em animais, enquanto a personalidade é uma prerrogativa do ser humano; d) o temperamento inclui características mais estilísticas e formais do comportamento, enquanto a personalidade refere-se mais a conteúdos do comportamento (Strelau, 1998). Diante do exposto, muitos autores preferem fazer uso do termo temperamento no lugar de personalidade quando se referem a crianças pequenas, ou até mesmo a bebês, tendo em vista que o temperamento constitui a base afetiva e ativacional da personalidade posterior (Rothbart, & Bates, 1998). Principais teorias do temperamento infantil Dentre as diversas teorias que explicam o temperamento infantil, destaca-se a de Thomas e Chess, que foram os primeiros a realizarem um estudo longitudinal (New York Longitudinal Study) com o objetivo de descrever 8 as categorias do temperamento na infância. Para estes autores, o temperamento é um atributo que interage com outros, mas mantém sua independência. O estudo longitudinal começou em 1956 e foram observadas 100 crianças nos Estados Unidos. A coleta de informações a respeito das crianças se fez principalmente por meio do relato dos pais e professores e a partir da observação direta das mesmas. Nove categorias foram analisadas a partir das informações coletadas: nível de atividade; ritmicidade; aproximação/afastamento; adaptabilidade; limiar de resposta; intensidade da reação; qualidade do humor; distração; duração da atenção e persistência. A partir destas categorias foi possível classificar as crianças em três grupos distintos: a) temperamento fácil: humor positivo, responde adequadamente à novidade e à mudança, tem horários regulares de sono e alimentação, sorri a estranhos, adapta-se facilmente a novas situações e rotinas e aceita melhor as frustrações; b) temperamento difícil: humor negativo, chora alto (e também ri alto), responde mal à novidade e mudança, aceita lentamente novos alimentos, é desconfiada com estranhos; c) temperamento de aquecimento lento: reações de intensidade moderada, ora positiva, ora negativa, responde lentamente à novidade e mudança, resposta inicial negativa e moderada a novos estímulos. (Chess & Korn, 1982; Thomas & Chess, 1990). O modelo pioneiro proposto por Thomas e Chess foi investigado, posteriormente, por vários pesquisadores e, devido à baixa replicabilidade dos seus nove traços, novos modelos inspirados no referido estudo foram propostos. Um deles foi o desenvolvido por Buss e Plomin, em 1975 (Shiner, 1998), o qual é conhecido como modelo Emocionalidade- Atividade- Sociabilidade- Impulsividade (EASI). Esses pesquisadores sustentam que essas dimensões são as fundações essenciais da individualidade da nossa espécie, posto que elas aparecem cedo no desenvolvimento, mostram alguma estabilidade e estão entre os traços mais herdáveis na personalidade. Outra importante pesquisadora do temperamento infantil é Mary Rothbart, que postula que o temperamento corresponde às diferenças individuais em relação à reatividade e regulação. Essas características seriam estáveis ao longo do tempo e determinadas biologicamente. Rothbart afirma 9 que o temperamento pode ser medido nos primeiros meses de vida e exerce influência sobre aspectos do comportamento da criança. Contudo, o temperamento não é o único fator queinfluencia o comportamento. Outros fatores como estados motivacionais do indivíduo, estruturas de conhecimento e as expectativas influenciam igualmente e intervêm no desenvolvimento. A pesquisadora avalia o temperamento da criança a partir da sua resposta a estímulos sensoriais e propõe algumas dimensões que podem sofrer alteração ao longo do tempo. Tais dimensões classificam-se em: a) reatividade negativa: aversão à aproximação e expressão de sentimentos negativos; b) reatividade positiva: aproximação e expressão de sentimentos positivos; c) comportamento inibido diante de estímulos novos e intensos; e c) capacidade de manter a atenção (Rothbart, 1981, como citado em Rothbart & Bates, 1998). Seguindo a mesma abordagem psicobiologia de Rothbarts, Robert Cloninger, propôs um modelo composto por quatro dimensões do temperamento: 1) Busca por novidade: relaciona-se à ativação e iniciação de comportamentos por estímulos novos, implicando uma predisposição para a excitabilidade, impulsividade e comportamento exploratório; 2) Evitação de danos: cessação ou inibição de comportamentos frente a sinais de estímulos aversivos, implicando uma tendência para pessimismo, apreensão, fatigabilidade, medo e timidez; 3) Dependência da recompensa: manutenção de comportamentos previamente associados com recompensa, visando a obtenção de prêmios e vínculos sociais satisfatórios, estabelecendo uma tendência à sentimentalidade e dependência da aprovação de terceiros; 4) Persistência: medida do grau em que uma pessoa mantém um comportamento sem receber reforços imediatos. O autor sugere que as três primeiras dimensões são também observadas em animais, sendo que a persistência é a única vista somente em humanos (Cloninger, Battaglia, Przybeck & Bellodi, 1996). Diante da diversidade de abordagens teóricas que tentam explicar o desenvolvimento do temperamento em crianças, Goldsmith et al (1987), em revisão bibliográfica, elencaram pontos de concordância e discordância entre as principais teorias. Quanto aos consensos é posto que: a) as dimensões do 10 temperamento refletem tendências mais comportamentais; b) há uma ênfase na origem biológica do temperamento e na sua continuidade com a personalidade que será formada ao longo do tempo; c) há uma tendência a se centrar o estudo do temperamento no período da infância devido à ideia de que nessa fase a relação entre temperamento e ambiente é menos complexa; d) o temperamento se refere a diferenças individuais mais do que a características gerais de uma espécie. Mas há também divergências fundamentais entre as principais teorias, que instigam o desenvolvimento de novas pesquisas: a) os teóricos postulam distintos critérios para definir o temperamento, como por exemplo: estilos de comportamento, reações emocionais ou estabilidade da conduta; b) os teóricos também divergem no momento de definir as dimensões que são consideradas como temperamento. Há um consenso para as dimensões nível de atividade e a emocionalidade, mas nem todas as dimensões propostas são aceitas por todos os teóricos; c) a maioria dos investigadores do temperamento está de acordo que este é um componente da personalidade, mas divergem ao estabelecer os limites entre estes dois conceitos. Em síntese, a maioria dos modelos do temperamento infantil inclui os seguintes elementos como descritivos do temperamento: a) nível de energia ou atividade; b) emoções positivas: tendência para humor positivo e para evocar atenção social, com suscetibilidade para recompensas; c) emoções negativas: podem ser internalizastes (culpa, medo, insegurança e ansiedade) ou externalizantes (irritabilidade, raiva e frustração); d) timidez social; e) esquiva de novas situações; f) capacidade de se confortar (Rothbart & Bates, 1998; Shiner & Caspi, 2003). Embora consideráveis avanços tenham sido observados nos estudos da personalidade infantil, tal área depara-se ainda com alguns obstáculos. Um deles refere-se à inexistência de uma taxonomia única e consensual que descreva a estrutura da personalidade da criança. Os pesquisadores trabalham com modelos diferentes, o que leva ao segundo obstáculo: a pouca convergência entre as tantas medidas existentes para se avaliar o temperamento infantil (Caspi et al., 2005). 11 A Teoria dos Três Superfatores de Hans Eysenck O motivo da inclusão de um tópico específico sobre a teoria dos Três Superfatores proposta pelo pesquisador Han Eysenck se deve ao fato de a construção do questionário para avaliação do temperamento em crianças pré- escolares realizada nesta pesquisa basear-se neste modelo. A opção por esta abordagem foi feita partindo-se de duas razões principais: 1) É fundamental dispormos de evidências biológicas na explicação do temperamento e, como será discutido adiante, os substratos biológicos responsáveis pelas diferenças individuais nas dimensões da personalidade são especificados nesta abordagem, 2) No Brasil, há evidências de replicabilidade deste modelo para faixa etária infantil fornecidas por meio das pesquisas realizadas por Fermino Sisto com a construção da ETPC (Sisto, 2004a). Dentre as diversas abordagens teóricas sobre a personalidade, uma que vem se destacando por sua objetividade na descrição das propriedades desse construto são as teorias fatoriais ou dos traços. Tais teorias investigam as dimensões que descrevem de modo mais completo e adequado a personalidade, buscando a relação entre a conduta das pessoas com o ambiente e os fatores biológicos. As propriedades da personalidade correspondem aos traços ou fatores que compõem esse constructo, os quais são alcançados através de testes capazes de medir, com garantias psicométricas, os supostos fatores do conceito a ser investigado. As teorias fatoriais desenvolveram-se através do estudo psicolexical e fatorial de dados. O primeiro sustenta que as diferenças individuais mais salientes e socialmente relevantes vêm codificadas nas várias línguas. Assim, a linguagem cotidiana seria a fonte que permitiria identificar os termos que melhor descrevem a personalidade. Já a perspectiva fatorial permite o rearranjo de dados com o objetivo de descobrir o menor número de fatores independentes que possam descrever e classificar tais dados. A técnica fatorial determina quais comportamentos estão relacionados e são independentes de outros, determinando as unidades da estrutura da personalidade (Calvin, Lindzey, 12 Gardner & Campbell, 2000; Flores-Mendoza & Colom, 2006; Pervin & John, 2004). Hans Jurgen Eysenck, um dos teóricos pioneiros no estudo da estrutura fatorial da personalidade, desenvolveu uma teoria partindo da definição de que a personalidade consiste em uma integração das características afetivas, volitivas, cognitivas e físicas, de modo a formar uma estrutura que o diferencie dos outros sujeitos. Ele reconhece o papel crítico desempenhado pela aprendizagem e pelas forças ambientais, mas enfatiza o papel determinante e causal dos fatores biológicos, havendo evidência de componentes herdáveis para a estrutura proposta (Eysenck, 1959). A abordagem de Eysenck especifica os substratos biológicos que são responsáveis pelas diferenças individuais em dimensões fundamentais da personalidade. Seu modelo inclui três dimensões tipológicas básicas, estruturadas numa hierarquia. No nível inferior encontram-se as respostas específicas e no nível superior encontram-se os tipos, que consistem em agrupamentos de características estáveis e recorrentes do sujeito (traços). Dessa forma, o modelo propõe três tipos fundamentais da estrutura da personalidade humana, sendo que as pessoas diferem entre si no tocante à intensidade da manifestação de cada tipo. 1 Extroversão: altos escores neste fator descrevem o sujeito como sociável, animado, ativo, assertivo,despreocupado, dominante, cordial, aventureiro e com busca de sensações. Baixos escores reúnem características opostas e definem o sujeito como introvertido. 2 Neuroticismo: sujeitos com altos escores neste fator são definidos como ansiosos, deprimidos, tensos, irracionais, tímidos, melancólicos, emotivos, com tendência a sentir culpa e baixa autoestima. Baixos escores neste fator caracterizam o sujeito como emocionalmente estável. 3 Psicoticismo: descrito, quando há altas pontuações, por adjetivos como agressivo, frio, egocêntrico, impessoal, impulsivo, 13 antissocial, não-empático, criativo e obstinado. Sujeitos com escores baixos neste fator apresentam características contrárias e são definidos pelo controle de impulsos. De acordo com Sisto et al. (2004b), o Psicoticismo, apesar de ser retratado como uma dimensão da personalidade normal, caracteriza crianças com altas pontuações como despreocupadas com os outros, solitárias e hostis, inclusive com os mais próximos. Além disso, sentem prazer em perturbar os outros ou deixá-los de mau humor. A manifestação desta dimensão está estreitamente associada com a socialização, sendo que crianças com alto Psicoticismo apresentam indícios de anti-sociabilidade, o que gera uma expectativa de rejeição social, especialmente por parte dos pares. Resultado similar é sustentado por Omar (1994), que encontrou que crianças com tendência ao Psicoticismo mostraram predisposição a comportamentos antissociais e foram mais rejeitados pelos colegas. Heaven, Newbury e Wilson (2004) também encontraram que o Psicoticismo possui um alto poder preditivo para uma diversidade de comportamentos delinquentes, como o uso de drogas, advertência policial e dano de propriedade. Inicialmente, os três fatores foram estudados em adultos, mas as pesquisas se estenderam para a faixa etária infantil e têm evidenciado uma replicabilidade do modelo também para crianças (Campbell et al., 2000; Eysenck, 1959). O modelo causal de Eysenck relaciona as diferenças entre introvertidos e extrovertidos em termos de níveis de excitação, localizando as estruturas no sistema nervoso central em que ocorrem tais diferenças. Uma explicação neurológica é também oferecida para diferenciar neuróticos de pessoas emocionalmente estáveis. As diferenças entre Introversão e Extroversão são em termos de níveis de atividade no sistema ativador reticular ascendente (SARA) – a atividade desse sistema serve para estimular o córtex cerebral, levando à maior excitação cortical. Os introvertidos caracterizam-se por uma maior atividade no SARA, o que gera níveis mais altos de excitação cortical. São, portanto, mais excitados e mais excitáveis do que os extrovertidos. Por 14 ficarem superestimados mais facilmente, procuram ambientes mais tranquilos e com menos estimulação. O contrário ocorre com sujeitos extrovertidos, caracterizados por uma menor atividade no SARA e, portanto, buscam ativação no ambiente. Em relação ao Neuroticismo, as diferenças dependem de níveis de atividade do sistema nervoso autônomo (SNA). Indivíduos neuróticos caracterizam-se por níveis mais elevados de ativação e por limiares mais baixos no SNA. Há poucos dados referentes aos mecanismos biológicos do fator Psicoticismo, mas sabe-se que o mesmo associa-se ao sistema de ataque-fuga pertencente à malha cortiço-amigdalar, ou circuito do medo. Dessa forma, sujeitos com alto Psicoticismo apresentam baixa atividade no córtex pré- frontal, o que gera agressividade e impulsividade, bem como apresentam uma dificuldade de experimentar o medo, o que está vinculado à falta de empatia (Campbell et al., 2000; Eysenck, 1992; Juan-Espinosa, 2006). Inicialmente, Eysenck desenvolveu uma série de questionários de auto relato para medir as diferenças individuais nas dimensões Neuroticismo e Extroversão. O primeiro deles foi o Maudsley Personality Inventory (MPI), desenvolvido na década de 50 e que foi substituído pelo Eysenck Personality Inventory (EPI), e mais tarde pelo Eysenck Personality Questionnaire (EPQ). Este último tendo sua primeira versão na década de 70. Uma das alterações diz respeito aos itens do traço impulsividade, que carregavam na escala de Extroversão do EPI e que foram transpostos para a escala de Psicoticismo do EPQ. O EPQ conta com uma versão para adultos (EPQ-Adult) e com uma versão para adolescentes (EPQ- Junior), estando esta última em processo de adaptação para o contexto brasileiro. Como avaliar o temperamento infantil? A mensuração das diferenças individuais no temperamento de crianças compõe-se dos hetero-relatos dos pais e professores – que respondem sobre comportamentos e sentimentos observados nos filhos e alunos - aos quais são incorporadas as técnicas de observação e os questionários de auto relato. Sabe-se que a mensuração através de relatos de múltiplos informantes e 15 métodos diversos de avaliação são necessários para fornecer informações mais confiáveis e válidas da personalidade da criança. Segundo Measelle, Ablow, P. Cowan e C. Cowan (2005), as medidas de auto relato para crianças, apesar da vantagem de oferecerem informações muitas vezes não disponíveis nos relatos de outros, apresentam algumas complicações. Dentre elas, a limitada capacidade cognitiva, níveis inconscientes de engajamento e vieses motivacionais. Observa-se, também, que tais medidas nem sempre são confiáveis, posto que fatores como desejabilidade social, inteligência, autoestima e autoconceito, que ainda estão em processo de formação, influenciam nas descrições que as crianças fazem de si. No que se refere ao relato de pais e professores, sabe-se que eles são os informantes mais privilegiados do funcionamento comportamental da criança, e por isso, o uso de tais relatos tem sido extensivo, tanto na pesquisa clínica quanto na desenvolvimental (Rothbart, Ahadi & Evans, 2000). Os pais são considerados informantes por excelência da personalidade das crianças, uma vez que se situam em posição de observar uma variedade de comportamentos em diferentes situações e por longo intervalo de tempo. Eles observam comportamento da criança em situação natural, podendo, com isso, ter acesso a comportamentos que, para outros, podem parecer infrequentes (Rothbart & Bates, 1998). Já o relato de professores é bastante utilizado porque, ao interagir por um período de tempo considerável com as crianças, possuem um amplo referencial com base no qual respaldam suas respostas (Laidra, Allik, Harro, Merenakk & Harro, 2006). Embora o hetero-relato consista em um método fundamental de avaliação da personalidade de crianças, as medidas de auto relato – quando aplicadas a crianças em idade suficiente para respondê-las - são indispensáveis, considerando que as crianças são capazes de utilizar pistas internas que não são acessíveis aos demais observadores. Elas encontram-se, por isso, em posição singular de observar como se comportam em diferentes ambientes. 16 No tocante ao grau de concordância entre o relato dos diferentes informantes sobre a criança, tem-se, de acordo com revisão realizada por De Fruyt e Vollrath (2003), uma alta correlação entre relatos de pais e mães, bem como uma alta correlação entre o relato de professores. Já a correlação entre o relato de pais e professores, apresenta-se como moderada. A falta de uma alta convergência no relato dos vários informantes reflete o fato de que diferentes observadores fornecem um perfil diferente da criança, posto que eles observam-na em diferentes contextos, mas também porque possuem experiências distintas com a mesma. Os pesquisadores aceitam que as diferenças entre múltiplos informantes podem refletir: a) especificidade interacional; b) especificidade comportamental, e c) distorções naspercepções individuais (Grietens et al., 2004). No caso específico dos professores, Laidra et al. (2006) acreditam que dois fatores podem atuar na diminuição da acurácia do relato: 1) a avaliação de várias crianças ao mesmo tempo, e 2) a falta de motivação dos professores para tal tarefa. A existência de baixo acordo encontrado em alguns estudos entre adultos pode também ser decorrente do que Watson, Hubbard e Wiese (2000) chamam de “Efeito da Visibilidade do Traço”. Segundo os autores, há traços de personalidade que são facilmente observados (aqueles com claras e frequentes manifestações comportamentais). Esses traços apresentam maior acordo entre informantes do que aqueles para os quais a informação externa disponível é pequena. Acentua-se, por fim, que a baixa concordância encontrada em alguns estudos não implica que um determinado tipo de relato seja preferível, apenas indica que as pessoas podem utilizar diferentes referenciais quando avaliam a sua personalidade e a dos outros. No Brasil, destacam-se as pesquisas na área do temperamento e personalidade infantil realizadas por Raquel Guzzo (Guzzo & Pereira, 2002), que vem desenvolvendo pesquisas sobre o temperamento e a personalidade na infância e adaptou a escala Pavlovian Temperament Survey (PST) para crianças e adolescentes de 7 a 14 anos. A escala avalia três dimensões do 17 temperamento: 1) Força de Excitação: maneira como o indivíduo reage à estimulação; 2) Força de Inibição: capacidade do indivíduo de inibir um comportamento quando necessário; 3) Mobilidade: habilidade do indivíduo em responder adequadamente às mudanças ambientais. Destaca-se também o trabalho de Fermino Sisto (Sisto, 2004), que desenvolveu a Escala de Traços de Personalidade para Crianças (ETPC), tendo como base o modelo de estruturação da personalidade proposto por Hans Eysenck. A ETPC avalia quatro fatores da personalidade em crianças de 5 a 10 anos de idade, num questionário de auto relato: Neuroticismo, Psicoticismo, Extroversão e Sociabilidade. Para avaliação de crianças na faixa etária pré-escolar, entende-se que os questionários de hetero-relato são mais adequados, considerando as limitações da criança nesta idade para refletir sobre seu comportamento nas diversas situações, compará-lo com o de outras crianças e responder a perguntas sobre si. No Brasil, contudo, ainda não dispomos de questionários de avaliação no formato hetero-relato para a faixa etária pré-escolar. Temperamento e suas associações com as habilidades cognitivas e o desempenho escolar De acordo com Reeve, Meyer e Bonaccio (2006), a relação entre inteligência e personalidade vem sendo alvo de interesse científico ao longo dos últimos cem anos. Embora muitos psicólogos diferencialistas vejam a inteligência e a personalidade como inextrincavelmente ligadas, estes dois domínios foram historicamente tratados de forma separada. Contudo, a última década foi marcada pelo esforço de se estudar as duas principais instâncias das diferenças individuais como sendo relacionadas ao invés de independentes. Os estudos, em sua maioria, têm sido voltados para a faixa etária adulta, sendo que as conclusões sobre a associação entre temperamento e cognição em pré-escolares permanecem insólitas. De acordo com Miklewska, Kaczmarek e Strelau (2006), os construtos temperamento e cognição podem ser relacionados na infância a partir de três grupos de hipóteses: 18 A primeira hipótese sustenta a ideia de uma base comum entre os dois construtos. Tal base seria o nível de estimulação cerebral (arousal), conceito presente em vários modelos do temperamento, como o modelo EASI de Buss e Plomin, ou a busca por sensação de Zuckerman. O nível de estimulação cerebral é reportado como um forte influente na eficácia do aprendizado e como uma medida dos traços de temperamento relativos à necessidade de estimulação - como o nível de atividade ou a busca por sensações. D. Robinson e Behbehani (1996) investigaram a relação entre a inteligência e o nível de estimulação cerebral e concluíram que este último exerce influência sobre os recursos de atenção e memória de trabalho. A segunda hipótese defende que o desenvolvimento da inteligência está sob influência de características temperamentais. Zuckerman (1994) mostrou que os valores de correlação entre o QI e a busca por sensação giram em torno de 0,19 – 0,34. Contudo, Lemelin, Tarabulsy e Provost (2006) ressaltam que um alto nível de atividade e energia consiste em uma característica favorável para o aprendizado apenas até os quinze meses de idade. Em consonância com este achado, Saklofske e Kostura (1990) não encontraram nenhuma correlação significativa entre escores de QI e a Extroversão em crianças com idade a partir de quarenta e oito meses. Tais resultados levam à conclusão de que as relações hipotéticas entre a necessidade de estimulação - expressada pelo nível de atividade e busca por sensação – e a inteligência podem ser modificadas por outros fatores. Tem-se, por exemplo, dados apontando que os extrovertidos operam cognitivamente de forma mais eficiente sob condições de alta estimulação, enquanto os introvertidos operam mais eficientemente em condições de baixa estimulação, isto é, em situações monótonas (Eysenck & Eysenck, 1985, como citado em Furnham & Medhurst, 1995). Assim, a relação entre necessidade de estimulação e habilidade intelectual pode ser mediada por fatores como a natureza da tarefa intelectual ou seu nível de novidade e dificuldade. Por fim, uma terceira hipótese é a de que o temperamento influencie na mensuração da inteligência, sendo um moderador no processo de avaliação cognitiva, que é comumente sentido como estressante e ameaçador na cultura 19 ocidental. Nesse caso, características temperamentais ligadas à emocionalidade negativa prejudicariam a execução de tais tarefas (Miklewska et al. 2006). De acordo com Lemelin et al. (2006), as diferenças individuais na irritabilidade e níveis de atividade influenciam a capacidade de processamento de informação e, posteriormente, afeta a habilidade de aprender. Porém, há uma considerável variabilidade de resultados quanto à natureza das associações. Por exemplo, Matheny (1989) reportou correlações negativas entre nível de atividade e o desenvolvimento mental de 1 a 12 anos de idade. Lemelin et al (2006) também observaram uma associação negativa entre nível de energia e medidas cognitivas aos trinta e seis meses de idade. Já em estudo envolvendo pares de gêmeos, DiLalla et al. (1990) reportaram correlações positivas entre o nível de atividade acessado aos nove meses de idade e medidas cognitivas de 1 a 3 anos de idade. Miklewska et al. (2006) encontraram, para pré-escolares, correlações negativas entre a inteligência fluida e a emocionalidade negativa, enquanto a inteligência cristalizada foi positivamente relacionada ao nível de atividade. Os mesmos autores reportaram correlação negativa entre força de excitação (tolerância a estimulações longas e duráveis) e a inteligência fluida para crianças de 8 e 9 anos. Tal divergência nos achados foi explicada por Lemelin et al. (2006), que sugeriram que o nível elevado de atividade no início da infância (aos nove meses) pode servir para organizar a estimulação, eliciar a interação adulto- criança e permitir que as crianças fiquem alertas às diferentes dimensões do ambiente. Porém, se o nível elevado se mantiver (a partir dos quinze meses) pode acabar obstruindo estes processos. Esta variabilidade de resultados levou alguns autores a sugerirem uma quarta explicação para a relação entre temperamento e funções cognitivas. Tal hipótese propõe que esta relação é moderada por outros aspectos ambientais, tais como a qualidadeda interação entre a mãe e o filho, o QI dos pais, idade da mãe e nível socioeconômico da família (Lemelin et al., 2006). Esta hipótese 20 mostra-se interessante, posto que a literatura nem sempre apresenta relações robustas entre temperamento e cognição - as correlações normalmente variam de fracas a moderadas. Os dados sugerem que estas características podem contribuir, em interação com outras variáveis, para uma parte da variância no funcionamento cognitivo. Dentre as variáveis moderadoras na relação temperamento/cognição, a qualidade da interação materna é uma das mais estudadas. Maziade et al. (1987) sugeriram que uma alta irritabilidade pode eliciar uma interação mãe- filho mais frequente do que uma baixa irritabilidade da criança. Considerando que: a) o comportamento materno eliciado num ambiente de alto risco pode ser menos apropriado para um desenvolvimento cognitivo saudável; e b) o comportamento eliciado em ambientes de baixo risco pode auxiliar o desenvolvimento cognitivo, espera-se que a qualidade da interação mãe/criança na predição do desenvolvimento cognitivo seja mediada pela vulnerabilidade social do ambiente. Resultado similar foi encontrado por J. Robinson e Acevedo (2001), que mostraram que, em contexto de interação positiva entre mãe e filho, o distress (aflição, angústia) apresentado pela criança foi positivamente relacionada com seu desenvolvimento cognitivo posterior. Isto sugere que mesmo comportamentos relacionados à emocionalidade negativa da criança podem auxiliar seu desenvolvimento cognitivo, ao passo que geram interação com a mãe. Contudo, tal suposição é esperada apenas para ambientes de interação positiva. Lemelin et. al. (2006), em estudo longitudinal, mostraram uma associação negativa entre a tendência à raiva e o desenvolvimento cognitivo em grupos de baixo risco social, mas quase nenhuma correlação entre estas duas variáveis no grupo de alto risco. Há também evidências empíricas suportando que crianças de nível socioeconômico baixo exibem dimensões associadas ao temperamento difícil (Smart, Prior, Oberklaid & Pedlow, 1994). Contudo, há divergências quanto à influência destas terceiras variáveis. Coplan et. al. (1999) observam que muitos autores recorrem à explicação de 21 que a associação entre temperamento e desempenho acadêmico é mediada por variáveis como sexo, nível de instrução dos pais, nível socioeconômico e vocabulário da criança. Porém, estes autores constataram, em pesquisa com pré-escolares, que o temperamento permanece como um preditor do desempenho acadêmico mesmo quando essas terceiras variáveis são controladas. De acordo com estes autores, as habilidades numérica e linguística estão positivamente associadas com atenção; negativamente com a emocionalidade negativa; e não apresentam correlação significativa para soothability (capacidade de se acalmar) e sociabilidade. As habilidades emergentes no aprendizado da leitura e escrita, além das habilidades aritméticas foram relacionadas também com a educação parental e extensão do vocabulário das crianças. Os resultados revelaram que temperamento – principalmente a emocionalidade e o nível de atividade – prediz habilidades linguísticas e numéricas. Estas duas características temperamentais foram consideradas, pelos autores, como as que apresentam a mais forte ligação com o sucesso escolar. Conclusão similar foi reportada por Matheny (1989), ao observar que o nível de energia e a emocionalidade podem contribuir para as diferenças individuais na forma como a criança absorve o material ensinado no contexto escolar. Em revisão bibliográfica, Martin (1989, como citado em Coplan et al., 1999) observou alguns padrões de relação entre o temperamento em pré- escolares e o desempenho acadêmico futuro, sugerindo que, no início da infância, crianças que são mais ativas, mais distraídas e menos persistentes – entendido como capacidade de dar continuidade a tarefas difíceis - tendem a ter baixos escores em medidas de desempenho escolar. No tocante às diferenças de gênero sobre o temperamento e o desempenho acadêmico, essas parecem estar bem estabelecidas nos primeiros anos escolares. Meninos são geralmente reportados como tendo níveis maiores de atividade (Coplan et al., 1999) e emocionalidade positiva do que as meninas (Shoen & Nagle, 1994). Já as meninas são superiores em habilidades verbais, de pré-leitura e em vocabulário (Schoen & Nagle, 1994), superando os meninos também em habilidades numéricas e linguísticas 22 (Coplan et al., 1999). Sisto et al (2004b) também observou, em crianças de 7 a 9 anos, que as meninas obtiveram índices maiores de Neuroticismo e Psicoticismo em relação aos meninos, não sendo encontradas diferenças significativas para a Extroversão. No Brasil, não foram encontrados estudos que verificassem a associação entre temperamento, inteligência e rendimento escolar nos anos pré-escolares. Este é um campo que merece atenção dos pesquisadores, tendo em vista a importância da personalidade e da inteligência na predição do sucesso do indivíduo em diversas esferas da vida. DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE DA CRIANÇA: O PAPEL DA EDUCAÇÃO INFANTIL Quando nasce uma criança, que responsabilidades seu nascimento agrega à vida dos pais e à sociedade que a cerca? Como devem ser organizadas suas condições de vida e educação? Quais as suas necessidades presentes e futuras? Que capacidades ela formará ao longo da vida? Como educá-la para que seja sujeito de seus atos, consciente de seu posicionamento e lugar no mundo? O nascimento de cada criança representa um grande desafio para todos aqueles que se responsabilizam pelo seu cuidado e pela sua educação. Simultaneamente, representa a renovação das esperanças de homens e mulheres, pois nasce com ela uma nova oportunidade de alcançar a plena humanização do sujeito, com a consolidação de capacidades práticas, intelectuais e artísticas (Zaporóshetz, 1987) e de afetos constituídas na sua integração à vida social, as quais se expressam na sua forma singular de ser, de sentir e de agir. Como a escola da infância pode contribuir no processo de desenvolvimento da personalidade de cada criança? Qual a função da Educação Infantil na formação integral dos pequenos e pequenas, propalada pelos textos acadêmicos e legais, mas nem sempre concretizada nas práticas educativas em creches e pré-escolas (Brasil, 2009a, 2009b)? É a essas questões que nossas reflexões se dedicam. Sabemos, não obstante, que, dada a sua complexidade, não temos condições de esgotá-las em um artigo. 23 Buscaremos, assim, apresentar alguns princípios que consideramos fundamentais para a compreensão do desenvolvimento da personalidade das crianças pequenas, a partir dos pressupostos da Teoria Histórico-Cultural. Entendemos que o diálogo que aqui travamos com os autores que nos ajudam a refletir sobre o tema sob essa perspectiva pode ampliar-se em/para outros espaços, contribuindo para que professores e professoras tomem ciência de quanto - ainda que muitas vezes de maneira pouco intencional - interferem na formação da personalidade infantil e sobre como o entendimento desse processo pode tornar mais desenvolvente (Davídov, 1988) a sua atuação junto às crianças. Assim, compreendemos que a discussão conceitual sobre o desenvolvimento da personalidade e, sobretudo, sobre a interferência que o processo educativo exerce sobre ele constitui temática importante à formação de professores e professoras que atuam ou atuarão em creches e pré-escolas. Acreditamos ser imprescindível, ao lado da observação atenta das crianças, o aprofundamento das leituras, dos estudos e debates protagonizados pelos professores e professoras que trabalham nesses espaços, já que na suaprática se concretiza a produção de currículos específicos da e para a Educação Infantil (Carvalho, 2011; Brasil 2009a), o que lhes possibilita contribuir para ampliar e qualificar positivamente o modo pelo qual meninos e meninas se relacionam com o mundo a seu redor, com as pessoas, e nesse processo, como constroem progressivamente a compreensão de si mesmos. Neste artigo, convidamos o leitor a refletir conosco sobre os fundamentos teóricos que nos permitem perceber como o trabalho pedagógico intervém na formação das capacidades especificamente humanas em cada criança de que cuidamos e a quem educamos. Afinal, o fazer docente interfere – tenhamos consciência disso ou não – no desenvolvimento da personalidade infantil, que torna cada menino ou menina um indivíduo único e irrepetível, e das forças intelectuais e práticas essenciais à sua vida presente e futura. Para compreender a importância da educação no processo de desenvolvimento da personalidade, comecemos pela discussão do que significa, para a Teoria Histórico-Cultural, falar sobre este conceito. 24 Sabemos que, com base no Materialismo Histórico-Dialético, o movimento e a contradição constituem categorias essenciais à explicitação dos fenômenos. Vigotski3 e seus colaboradores embasaram todo o seu construto teórico nesta filosofia. Com base neste ponto de vista, compreendemos que o desenvolvimento humano envolve, em movimento contínuo, duas forças que, se do ponto de vista do senso comum se mostram contraditórias e independentes, são, para a Teoria Histórico-Cultural, essencialmente inter- relacionadas: as forças sociais e as forças biológicas. De acordo com Vygotsky (1931/2013a), Ambos os planos de desenvolvimento – o natural e o cultural – coincidem e se amalgamam um ao outro. As mudanças que têm lugar nos dois planos se intercomunicam e constituem, na realidade, um processo único de formação biológico-social da personalidade da criança. Na medida em que o desenvolvimento orgânico se produz em um meio cultural, passa a ser um processo biológico historicamente condicionado. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento cultural adquire um caráter muito peculiar que não pode comparar-se com nenhum outro tipo de desenvolvimento, já que se produz simultânea e conjuntamente com o processo de maturação orgânica e que seu portador é o mutante organismo infantil em vias de crescimento e maturação. (p. 36, tradução nossa). Perceber a interinfluência entre fatores biológicos e sociais, atribuindo ao desenvolvimento cultural a força de interferir na formação das capacidades especificamente humanas, que Vygotsky (1931/2013a) denomina funções psíquicas superiores, tem implicações diretas no modo de vislumbrar o trabalho pedagógico. Desta forma entendemos que, como professores e professoras, podemos atuar sobre o desenvolvimento infantil organizando espaços e tempos, estabelecendo relações e propondo experiências envolventes e enriquecedoras do repertório cultural das crianças que lhes possibilitem desenvolver atividades com os objetos da cultura e, assim, apropriar-se deles (Carvalho, 2011; Duarte, 1993). À medida que a atividade se torna mais complexa, tornam-se mais complexas também as capacidades intelectuais e a 25 personalidade, uma vez que essas se formam na e pela atividade (Bissoli, 2005). Perguntamos aqui: o que isso significa? Quando a criança está envolvida em fazeres com significado, quando sabe o porquê e o para quê das suas ações e mobiliza-se emocionalmente para alcançar seus objetivos, ela está em atividade e, por isso desenvolve de forma plena as suas capacidades, tomando, paulatina e progressivamente, consciência dos motivos de sua conduta (Leontiev, 2010). Assim, conceito de atividade nos permite perceber a indissociabilidade entre cognição e afetividade no desenvolvimento da personalidade, que, segundo Leontiev (1978, p. 135) é “uma nova formação psicológica que se vai conformando em meio às relações vitais do indivíduo, como fruto da transformação da sua atividade.” Para o autor, a personalidade configura-se como uma formação integral, cujas qualidades sistêmicas são engendradas pelas relações sociais, nas quais cada indivíduo assume papel de sujeito da atividade. É o que fica evidente em suas palavras: “... a base real da personalidade do homem é o conjunto de suas relações com o mundo, que são sociais por natureza, mas das relações que se realizam, e são realizadas por sua atividade, mais exatamente pelo conjunto de suas diversas atividades” (Leontiev, 1978, p. 143, itálicos do autor). Neste sentido, quando o adulto permite que a criança participe das decisões sobre como expressar aquilo que aprendeu na visita ao zoológico, por exemplo – por intermédio da elaboração de um painel, ou de uma dramatização, ou ainda de um fichário contendo as curiosidades sobre os animais lá conhecidos –, cada tarefa adquire sentido e, pelo envolvimento emocional que permite, contribui para o desenvolvimento das diferentes capacidades da criança. Neste sentido, memória, atenção, linguagem oral, escrita ou plástica e autocontrole são algumas das funções psíquicas superiores que se fortalecem, interferindo diretamente no desenvolvimento da personalidade. É importante ressaltar que a personalidade é uma formação complexa do psiquismo humano (Leontiev, 1978), que engloba tanto as capacidades cognitivas quanto as emoções, a vontade, os traços de caráter. A personalidade é um sistema constituído por distintas funções psicológicas que, 26 integradas, caracterizam a forma peculiar de cada indivíduo atuar no mundo. É um sistema estável. Assim, a personalidade desenvolvida caracteriza-se por determinadas reações unívocas aos acontecimentos (relativa unidade de comportamentos, reações do indivíduo ao que acontece no seu entorno) e por valores unitários. Isso significa que ela não é meramente reativa às situações. Uma pessoa com personalidade madura tem consciência de suas possibilidades, dos motivos de sua conduta, e acima de tudo, pode dominar ativamente seu comportamento. Não obstante, Duarte (2013), com base nos estudos de Vygotsky, ressalta que o desenvolvimento da personalidade dos indivíduos está condicionado pelo desenvolvimento já alcançado pela sociedade da qual ele faz parte, uma vez que o psiquismo humano é histórico e social. O autor destaca que é o processo de o sujeito se apropriar da cultura de forma ativa o elemento propulsor do domínio das capacidades próprias à dinâmica social e, também, do domínio da conduta, atribuindo ao processo educativo uma importância fundamental: a ampliação do capital cultural, efetivada na escola, sofistica as formas de compreensão dos sujeitos sobre a sociedade e sobre si mesmos, possibilitando a transformação qualitativa da sua consciência e, com ela, de suas formas de atuação e da personalidade. Se este é um processo complexo que se estende por um longo período na ontogênese, tê-lo como objetivo desde a primeiríssima infância é o modo pelo qual professores e professoras podem contribuir para o enriquecimento das vivências das crianças. Segundo Vigotski, as vivências representam a unidade entre os elementos do meio cultural e as particularidades da personalidade e determinam a forma como cada criança se relaciona com o seu entorno em cada momento de seu desenvolvimento (Vigotski, 1935/2010; Mello, 2010). Propor experiências que ampliem as referências culturais das crianças por meio de atividades envolventes que as tenham como sujeitos significa construir um currículo que interfere intencionalmente no desenvolvimento das diferentes funções psíquicas infantis, das emoções e da personalidade (Carvalho, 2011). 27 Diferentemente de outras abordagens, a Teoria Histórico-Cultural tem como um de seuspressupostos que o desenvolvimento da personalidade não é natural, mas histórico e social, ou seja, depende da integração do indivíduo, desde os primeiros momentos de vida, na sociedade, que é repleta de exigências, expectativas e costumes. Por isso as regularidades que caracterizam a formação da personalidade desde a infância até a vida adulta são – como o são todas as esferas do desenvolvimento da pessoa sob essa mesma óptica–, resultantes do intercâmbio entre as peculiaridades do desenvolvimento psicofisiológico da criança e de seu desenvolvimento cultural (Vygotski, 1931/2013a). É na atividade social que a personalidade se configura. Na infância se estabelecem os primeiros níveis da formação da personalidade do indivíduo. Leontiev (1978) afirma que este é o período espontâneo do desenvolvimento deste sistema. É nos primeiros anos de vida que a criança aprende valores, normas de conduta e capacidades especificamente humanas e torna-se capaz de expressar-se de maneira singular diante do mundo: ela forma uma consciência cada vez mais complexa sobre os objetos e seu conhecimento, sobre as relações humanas e, sobretudo, sobre si mesma (a autoconsciência). Esse processo é mediado pelas situações que a criança vivencia, por isso podemos afirmar que a personalidade de cada um resulta de sua biografia: das suas condições de vida e educação, das atividades que desenvolve, das aprendizagens que empreende e do desenvolvimento do seu psiquismo, como destacam Vigotski (1929/2000) e Sève (1979). Por essa razão o processo educativo intencional e sistematizado que acontece na escola da infância assume um papel fundamental. Como professores e professoras, baseados no permanente aprofundamento teórico, que permite compreender a criança e construir formas específicas de ensinar, podemos e devemos mediar a formação desse sistema integrativo, que marca a singularidade de cada criança. Busquemos compreender as implicações pedagógicas dessa afirmativa. 28 SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE NA INFÂNCIA Ao nascer, a criança é imediatamente inserida nas relações sociais: todas as suas necessidades são atendidas pelo adulto, que se torna o centro das atenções do bebê. O carinho, a atenção e a fala constante com a criança criam nela uma necessidade socialmente mediada: a necessidade de novas impressões (Bozhovich, 1981), isto é, a necessidade de ver mais, ouvir mais, tocar mais e ser mais tocada. É importante lembrar que, no bebê, os aparatos visuais e auditivos não estão ainda completamente desenvolvidos. É o enriquecimento das impressões visuais e auditivas que contribui para que a evolução orgânica dos sentidos aconteça de forma satisfatória. Por isso, quanto mais ricas forem as vivências da criança com o adulto - que se torna o mediador dos primeiros contatos sensoriais do bebê com o mundo à sua volta - , mais positivo será o desenvolvimento físico e emocional nesse primeiro período de vida. A formação psicológica central do primeiro ano de vida é a percepção. Ela permite a apropriação sensorial do mundo em um processo comunicativo- emocional direto com o adulto. O que isso significa? Nesse primeiro período do desenvolvimento psíquico, a atividade principal – aquela que possibilita o desenvolvimento mais amplo das capacidades intelectuais e práticas e da personalidade da criança nesse momento (Leontiev, 2010) – é a comunicação emocional que o bebê estabelece com as pessoas de seu entorno (Elkonin, 1987). Por isso, apesar de nos primeiros meses de vida o bebê ainda não conseguir se expressar por meio da fala convencional, ele não deixa de se comunicar com as pessoas que estão à sua volta. Para isso ele usa outras linguagens, como o choro, o sorriso, os movimentos de lançar os braços e o corpo na direção do adulto e dos objetos que deseja, fechar as mãozinhas como se quisesse pegar algo que não alcança, etc. É importante perceber que todos esses comportamentos do bebê estão matizados afetivamente, ou seja, eles acontecem porque as pessoas que estão no entorno dele e os objetos que lhe apresentam despertam emoções, como a alegria de alcançá-los ou o prazer do contato físico com o adulto, criando a necessidade de novas impressões. 29 Assim, conversar com a criança, mostrar a ela os objetos e as pessoas, tomá-la no colo, tocá-la de maneira carinhosa são formas de comunicação mediadas afetivamente que sofisticam a percepção e promovem o desenvolvimento funcional do cérebro através do enriquecimento das impressões sobre o mundo e as pessoas e da possibilidade de o bebê realizar as suas primeiras formas de generalização: as generalizações sensoriais. Basta recordar a unidade sensório-motora que caracteriza o primeiro ano de vida. A percepção acontece à medida que o bebê atua sobre os objetos à sua volta, em interação constante com o adulto. Cabe lembrar que é justamente essa interação o motivador principal do desenvolvimento intelectual e afetivo do bebê. Assim, conhecendo quanto o trabalho educativo sistematizado e intencional pode impulsionar o desenvolvimento das crianças desde muito pequenininhas, podemos compreender a importância de que na Educação Infantil, desde o berçário, os bebês sejam cuidados e educados por professores e professoras (Brasil, 2009a, 2009b). A atividade conjunta com o adulto desperta uma nova necessidade culturalmente mediada e dá origem a um novo momento do desenvolvimento psíquico da criança: o momento da manipulação dos objetos (Elkonin, 1987), que se estende pelo período de um a três anos aproximadamente. No momento da manipulação dos objetos a memória se torna, a princípio, a função que se desenvolve como linha principal, subordinando as demais formações psíquicas. A criança bem pequenininha deixa de submeter- se completamente aos estímulos presentes em seu campo perceptivo. Se até pouco tempo atrás o adulto podia distraí-la, colocando à sua frente diferentes objetos por si mesmos atrativos, agora, com a evolução da memória, a criança demonstra já a sua condição de sujeito. Ela não quer mais qualquer objeto. Quer um determinado objeto do qual se recorda e pelo qual seu comportamento está motivado. Há, pela primeira vez, um indício claro de sua personalidade em desenvolvimento. Têm-se então as representações motivantes (Bozhovich, 1987), as quais atestam a presença de um novo nível de pensamento: se antes o bebê pensava apenas por intermédio de ações, agora passa a pensar também por imagens. Assim, quanto mais o professor 30 conversar com os bebês sobre os objetos que manipula e reconhece – que devem ser variados e atrativos –, mais estará contribuindo para incrementar o seu pensamento. Nesse período, a percepção da criança torna-se cada vez mais semântica, isto é, ela já é capaz de compreender o mundo à sua volta de modo mais integrado. A criança pequenininha passa a perceber-se como sujeito das ações que realiza, e esse é um progresso central para o desenvolvimento de sua personalidade. Desse modo, ainda que o adulto continue sendo o motivador central do comportamento da criança, nesse momento ele passa a uma nova posição: a de companheiro nas ações empreendidas sobre os objetos sociais. A criança manipula-os, apropriando-se de suas características físicas e, simultaneamente, percebendo as suas próprias possibilidades como sujeito que realiza ações com esses objetos. Por isso é tão comum ela repetir inúmeras vezes as mesmas ações: abrir e fechar a porta; jogar e recuperar um objeto do chão; empurrar e puxar... Ela está envolvida em um complexo processo de percepção das coisas e de autopercepção, mediado pela presença do adulto – primeiro como colaborador, depois, como modelo de ações. É importante considerar que nesse momento a criança imita as ações do adulto em si mesmas. Acontece então o queVigotski (1932/2013b) denomina de um “quase jogo” (p. 359). Se aparentemente a atividade que realiza é um faz-de-conta, na realidade a criança não cria uma situação fictícia, que é pressuposto do jogo de papéis. Ela ainda não é capaz de representar simbolicamente um papel. Por isso ela nina sua boneca, mas não deixa de considerá-la como boneca, enquanto para uma criança maior, envolvida no faz- de-conta, a boneca seria, dentro de uma situação imaginária, a filha, e ela, a mãe. Podemos dizer que a criança imita externamente as ações do adulto, sem se colocar no lugar dele. Ainda antes dos três anos consolida-se uma primeira forma de autoconsciência na criança: a afetiva. Embora ela não saiba conscientemente que é alguém diferente do adulto e ainda que não se perceba como pessoa e não tenha desenvolvido plenamente a sua identidade, a criança já tem vontades próprias que, muitas vezes, contradizem a vontade do adulto, o que 31 dá mostras de que sua personalidade está em vias de passar por uma completa transformação. No período em que a atividade principal é a manipulação dos objetos, a criança desenvolve uma capacidade fundamental, que marcará uma nova etapa em seus processos de pensamento: a linguagem oral. Nesse momento ela busca ampliar suas possibilidades comunicativas expandindo deliberadamente o seu vocabulário. Ela quer saber os nomes dos objetos, como se aqueles fossem propriedades desses. O enriquecimento da linguagem oral permite novos níveis de generalização, que passam a mediar as ações infantis. É interessante observar que, mesmo sem um domínio completo das estruturas da linguagem, a criança passa a comunicar-se muito bem: cria expressões, palavras e frases que permitem compreendê-la, embora seu pensamento se diferencie radicalmente do pensamento adulto. Nesse sentido, adultos e crianças compartilham as palavras, o que permite aos pequenos a assimilação de um vocabulário cada vez mais rico e um pensamento progressivamente menos situacional, embora os significados dessas mesmas palavras estejam passando por um processo evolutivo e guardem características próprias (Vygotsky, 1934/2001). Assim, a linguagem oral possibilita que a criança faça generalizações mais complexas e pense em objetos e relações que não estão presentes em seu campo perceptivo. Esse enriquecimento desvela a consolidação de uma nova forma de pensamento: o pensamento verbal. Por isso é fundamental conversar com a criança. Estar atento ao que ela fala e dialogar com ela sobre os fatos e os objetos são atitudes que mobilizam o desenvolvimento cada vez mais amplo da linguagem e do pensamento. Vigotski (1935/2010) nos ajuda a refletir sobre uma questão essencial à compreensão do desenvolvimento da personalidade da criança: em cada momento da vida e de acordo com as possibilidades já alcançadas em seu desenvolvimento, a criança é capaz de compreender os fatos e situações à sua volta e de se relacionar emocional e cognitivamente com eles de maneira completamente nova. Assim, o desenvolvimento do pensamento verbal assume 32 importância fundamental na formação da personalidade. O autor afirma que nossas memórias mais antigas em relação à primeira infância têm origem a partir do momento em que linguagem e pensamento deixam de ser processos independentes e passam a constituir um único processo, mediado pelos significados das palavras – que passam a ser o substrato tanto da forma como pensamos o mundo quanto da forma como expressamos nossa compreensão dele (Vygotsky, 1931/2013a). Nesse sentido, se antes a criança pequenininha tinha uma compreensão dos fatos, das pessoas e das relações que se limitava àquilo que era imediatamente visto e presenciado, sem terem se estabelecido relações mais complexas, agora, com o pensamento verbal, ela pode fazer novas e mais sofisticadas relações, por intermédio das palavras, que representam os objetos, os fatos, as pessoas (Mello, 2010). Isso permite que pouco a pouco a criança vá se desvencilhando do efeito coercitivo que os objetos exerciam sobre ela e passe a atuar de acordo com planos e motivos que se expressam por intermédio da linguagem oral, que representa a forma verbal do pensamento. Ela se torna capaz de pensar, e também de se emocionar e de motivar seu comportamento por palavras, o que representa uma sofisticação intensa de suas possibilidades de se relacionar e de compreender o mundo à sua volta. Por volta dos três anos de idade inicia-se um novo momento no desenvolvimento da personalidade infantil, que vai se estender até os seis anos aproximadamente: o momento dos jogos e atividades lúdicas (Bissoli, 2005). Nesse período a criança passa por uma completa transformação em sua personalidade, sendo marcada por uma nova formação central: a descoberta de si mesma como sujeito, a formação da própria identidade, ou, nas palavras de Bozhovich (1987, p. 261), do “sistema eu”. Se até algum tempo atrás a criança não tinha consciência de ser uma pessoa independente do adulto, agora essa mudança acontece. Ela passa a referir-se a si mesma por intermédio do pronome “eu” e a buscar marcar a sua possibilidade de realizar atividades sem a ajuda daqueles que cuidam dela. Quer vestir-se, banhar-se e comer sozinha; indispõe-se com o adulto que pretenda controlar suas ações. A 33 consciência dos pais e dos professores sobre a importância desse momento crítico, que representa uma virada no desenvolvimento da criança, é fundamental para evitar as crises (Vygotsky, 1932/2013b), que acontecem quando há uma profunda diferença entre aquilo que a criança já é capaz de fazer e o que efetivamente lhe é permitido pelos adultos. Neste contexto, se não é possível deixar que a criança resolva tudo por si mesma, o adulto pode apresentar opções para que ela faça escolhas. O importante é que ela assuma uma nova posição nas relações, que não seja mais tratada como um bebê e que exercite, na medida do possível, a sua autonomia. Assim, se as condições de vida e de educação incentivaram a sua condição de sujeito em desenvolvimento, com voz e vez, esta autonomia resulta das vivências anteriores da criança, nas quais ela foi desenvolvendo a fala, o andar, a memória, as percepções em geral e a percepção de si mesma. Cabe recordar que sua relação com o entorno mudou proporcionalmente ao desenvolvimento de suas capacidades. Ela é capaz de compreender os fatos e a si mesma de maneira inteiramente nova, e nessas condições, o adulto tem o papel essencial de evitar crises, permitindo que a criança assuma novos papéis nas relações com as pessoas (Leontiev, 2010). Os jogos de papéis ou jogos de faz-de-conta constituem a atividade principal desse momento do desenvolvimento (Elkonin, 1987,2009), que se inicia por volta dos três anos de idade. A criança, que já imitava as ações do adulto desde o período anterior, passa a reconhecer que tais ações têm uma função social. O desejo de realizar as mesmas atividades que realiza o adulto e a impossibilidade de fazê-lo, aliados ao desenvolvimento até aqui alcançado, condicionam o aparecimento do faz-de-conta. Como se caracteriza nesse momento o seu desenvolvimento? Podemos dizer que, com a organização adequada da vida da criança e com as experiências vividas nos três primeiros anos de vida a criança terá formado ou estará em vias de formar: a percepção semântica do mundo, que permite que ela compreenda a realidade de maneira integrada; a memória desenvolvida; o pensamento verbalizado; a linguagem intelectualizada; a atenção cada vez mais concentrada, que a libera das reações a todo e qualquer estímulo presente em seu campo perceptivo; a 34 possibilidade de realizar ações com objetivos indiretos; a representação simbólica, que permite o uso de objetos substitutivospara representar objetos reais; a consciência, primeiro afetiva e cada vez mais racional de si como pessoa que, além de realizar ações, também participa de relações como um “eu social” (Bozhovich, 1987, p. 264); a subordinação de motivos, que permite que a criança hierarquize suas ações e atue segundo essa hierarquização; a formação de instâncias éticas internas (Vygotski, 1932/2013b), que possibilitam que a criança diferencie o querer do dever e, no jogo, atue conforme as regras, apropriando-se das normas e valores sociais. Com todo esse desenvolvimento, que é cognitivo e afetivo, integradamente (Gomes, 2008), agora, ao brincar, a criança imita os papéis sociais dos adultos que pôde observar em suas experiências reais de vida. Ela representa simbolicamente as atividades realizadas por eles, desenvolvendo, progressivamente, suas formas de compreender o mundo, as pessoas e a si mesma. É importante destacar que o jogo de papéis não se desenvolve espontaneamente (Vigotski, 2007; Mukhina, 1996; Martins, 2006), ele é também socialmente mediado: os temas das brincadeiras das crianças são aqueles presentes em seu cotidiano e passíveis de observação. Disso decorre a importância essencial do adulto no enriquecimento das experiências infantis. Quando o adulto lê histórias diariamente, quando incentiva a observação dos papéis sociais presentes no entorno, quando enriquece as vivências infantis com conhecimentos sobre o mundo e as pessoas, a possibilidade de brincar de faz-de-conta torna-se muito mais ampla e desenvolvente. Por outro lado, algo precisa ser lembrado: embora tenham importância essencial, os jogos de papéis não são os únicos responsáveis pelo desenvolvimento de todas as aprendizagens importantes da criança na Educação Infantil. O seu envolvimento em outras atividades, que desenvolvam a sua capacidade expressiva e o seu conhecimento do mundo, das pessoas e dos objetos sociais tem um papel fundamental. O desenho, a oralidade, o movimento que promove a consciência corporal, a pintura, a modelagem, os conhecimentos matemáticos, a música, a escrita e a leitura também assumem grande importância na formação das capacidades intelectuais, práticas e 35 artísticas e no desenvolvimento da personalidade. Disso decorre a necessidade de que a criança esteja envolvida em atividades diversificadas e significativas, que instiguem a sua curiosidade e a afetem positivamente e, nesse sentido, mobilizem-na para se apropriar dos objetos culturais, desenvolvendo suas funções psíquicas superiores. Neste contexto, o trabalho do professor enquanto pessoa que, ao propor situações que possibilitem a ampliação das necessidades de conhecer e de se expressar das crianças, diversifiquem e enriqueçam as suas atividades, torna-se essencial para o desenvolvimento da personalidade infantil (Zaporóshetz, 1987). O momento dos jogos e atividades lúdicas cria as bases para um novo período do desenvolvimento da personalidade: o momento da escolarização. Ao imitar os papéis sociais dos adultos, a criança, progressivamente, vai percebendo que ainda não domina os conhecimentos daqueles, os quais se tornam tão interessantes para ela. Adultos (e crianças maiores) sabem muitas coisas que a criança deseja conhecer. Na nossa sociedade, o local privilegiado para a aprendizagem desses conhecimentos é a escola, e desde cedo meninos e meninas sabem disso. Eles desejam ocupar novos espaços nas relações sociais, uma nova situação de desenvolvimento, em que não se sintam mais tão distantes do adulto, mas sejam valorizados por ele. Novas transformações da personalidade hão de vir: formas de pensamento cada vez mais abstrato e a formação de conceitos que disso decorre; uma maior capacidade argumentativa; uma autoconsciência cada vez mais profunda acerca das próprias possibilidades e vontades; a possibilidade de agir tendo objetivos previamente formulados. Todas essas novas capacidades e traços de personalidade tornarão mais complexa a consciência da criança no momento da escolarização (Bozhovich, 1981, 1987; Elkonin, 1987). Imprescindível é o papel de professores nesse processo. Esses profissionais exercem uma função social inalienável no desenvolvimento pleno da criança. Reflitamos sobre isso. Como temos visto até agora, a educação assume papel preponderante no desenvolvimento da criança. Educar é humanizar; é, segundo José Martí 36 (1991, citado por Mészáros, 2008), depositar em cada homem toda a obra humana que o antecede, tornando-o efetivamente humano. Sabemos que a atividade educativa não acontece apenas na escola, também família e a sociedade participam ativamente dessa tarefa. Só que a escola é o local sistematicamente organizado para educar. Sua função social é a de promover, por meio do processo pedagógico, a aprendizagem dos conteúdos da cultura elaborada pela humanidade ao longo da História e, a partir dela, promover o desenvolvimento das capacidades da criança e de sua forma singular de ser e de atuar socialmente. Para isso, o trabalho pedagógico efetivamente promotor do desenvolvimento fundamenta-se no profundo conhecimento teórico acerca do desenvolvimento humano. Cabe ao professor compreender que a cultura, por diferentes formas de mediação, pode ser apropriada pela criança, contribuindo para a sua formação como pessoa completa. Cabe-lhe, ainda, selecionar objetos materiais e não materiais do capital cultural acumulado pela humanidade e, conhecendo as especificidades dos momentos do desenvolvimento da personalidade infantil, organizar tempos, espaços, relações e experiências formativas que permitam a apropriação efetiva de conhecimentos que vão além daqueles já presentes no cotidiano das crianças e são assimilados mesmo sem a participação do trabalho sistematizado da escola. A escola da infância deve ser um espaço que faça diferença na vida da criança: um espaço de atuação sobre as capacidades em formação, um espaço de atividades que possibilitem à criança compreender e compreender- se, perceber e perceber-se, conhecer, fruir (Brasil, 2009a, 2009b). A escola deve ser um espaço de criação de novas necessidades que impulsionem a criança a aprender e a desenvolver-se. Assim, à medida que a criança vai crescendo e vivenciando situações diferentes – vendo, ouvindo, imitando e realizando por si própria o que aprende com as pessoas que vivem ao seu redor, participando da vida em sua família, comunidade e sociedade –, novas formações (Leontiev, 1978) vão se construindo em seu cérebro e novas relações vão sendo estabelecidas pela 37 criança com o seu entorno social. A escola da infância tem um papel fundamental na qualificação desses processos quando realiza um trabalho pedagógico marcado pela intencionalidade e sistematicidade. Atuar pedagogicamente de modo a intervir positivamente no desenvolvimento amplo das crianças pequenas, provocando o desenvolvimento da personalidade, requer conhecer as principais características de cada momento do desenvolvimento infantil e sua dinâmica formativa. Demanda, sobretudo, atuar não sobre as capacidades já formadas, mas, principalmente, sobre aquelas capacidades que estão em processo de formação na criança. Dessa forma, o professor atua, primordialmente, sobre a zona de desenvolvimento próximo da criança (Vygotski, 1932/2013b), e assim seu trabalho impulsiona o desenvolvimento das capacidades intelectuais, afetivas, práticas e artísticas da personalidade infantil. Compreender o que significa ser mediador da aprendizagem e do desenvolvimento torna-se, aqui, fundamental. Etimologicamente, a palavra mediação deriva do latim mediatio, que significa intercessão, interposição, intervenção. Nesse sentido, mediar é posicionar-se entre, é atuar deliberadamente para interferir em um processo ou
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