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O corpo nu, aquele estranho conhecido1 Em Outubro de 2017 o Brasil assistiu a espetáculos de perseguição e censura moralista a exposições onde havia obras representando corpos nus em diversos suportes. Entre os mais midiáticos episódios destaca-se a reação violenta de representantes conservadores da sociedade civil contra a performance La Bête, do performer Wagner Schwartz, apresentada na abertura do 35o Panorama de Arte Brasileira do MAM de São Paulo. Fazendo referência direta ao jogo lúdico proposto por Lygia Clark com seus Bichos - esculturas dobráveis para serem manipuladas pelo espectador/co-autor da obra, o artista se estendia nu no chão, deixando-se ser manuseado. No evento, adultos participavam da ação até que uma criança, acompanhada de responsável, se aproximou e tocou na mão, pé e tornozelo daquele homem inerte despido. Não havia erotismo nem sexualização na proposta. Contudo, um vídeo desse momento foi postado na internet - aparentemente sem má fé - e em 24 horas uma edição maldosa já circulava com protestos e acusações de pedofilia ao performer e demais implicados no evento, envolvendo também a criança e sua família em imenso e prolongado constrangimento público. Dias após a performance uma turba enfurecida, liderada por certo ex-ator pornô em busca de fama requentada, invadiu o MAM e agrediu funcionários novamente acusando a instituição de incitar pedofilia. Tal crime define-se como aquele praticado por indivíduo adulto acometido de perversão, atraído sexualmente por crianças, que o leva à prática sexual efetiva com estas. Uma acusação grave e irresponsável, cuja finalidade, no caso, era demonizar artistas, curadores e intelectuais em um falso debate, inócuo no combate à realidade de violência contra menores no Brasil. Na esteira dessa polêmica inventada, mandados de segurança e censura contra obras artísticas em exposições começaram a ser expedidos em cidades do país com apoio de políticos oportunistas, em sua maioria homens religiosos, defensores de uma visão idealizada e portanto irreal de ”família brasileira”. Essa reação, contudo, não está sozinha no cenário mundial e se apóia no recrudescimento de fundamentalismos beatos e abordagens binárias da sociedade, as quais enxergam problemáticas complexas pela ótica da mera oposição de definições estabelecidas, tais como: bem/mal, certo/errado, bom/ruim, moral/imoral, feminino/masculino, etc. Esse tipo de argumentação claramente despreza o pensamento crítico e, por sua vez, enquadra objetos artísticos em apreciações literais, longe da sutileza própria das poéticas. Curiosamente, enquanto a 1 Texto publicado em: DUARTE, Luisa (Org.). Arte, Censura e Liberdade, reflexões à luz do pensamento. Rio de Janeiro: Cobogó, 2018. Pp. 49-54 mídia e publicidade brasileiras banalizam a nudez e o erotismo exibindo-os ad nausea, sem causar maiores revoltas na população, na arte exposta em museus o corpo sem roupa foi atacado como algo mau e que não nos pertence. A representação do corpo nu acompanha a história da arte desde os tempos mais remotos. Dos desenhos rupestres à representação de anjos na pintura renascentista, chegando às Demoiselles cubistas e à performance, a nudez sempre esteve presente, recontextualizada de acordo com as luzes da época. Há quase 150 anos, nas primeiras rupturas estéticas do modernismo europeu, impulsionadas pelo ímpeto de eliminar barreiras entre arte e vida, artistas começaram a propor experiências estéticas que estimulavam reflexões críticas sobre o mundo, tocando em assuntos que estavam para além da imagem representada na obra. Na metade do Século XX, após duas Guerras Mundiais, revoluções culturais, tecnológicas, científicas, conquistas de direitos civis entre outros acontecimentos, compreensões sobre ser e estar no mundo mudaram, afetando igualmente modos de fazer e pensar os propósitos da arte. Em 1959, nos Estados Unidos, quando emergia a segunda vanguarda artística moderna, novas práticas experimentais envolvendo o corpo do artista e do público surgiram. Naquele ano, Allan Kaprow cria o Happening: ações artísticas coletivas, em parte orquestradas, ocorridas em ambientes onde os espectadores podiam participar e integrar a obra, subvertendo seu posto de observador distante e passivo. Os Happenings se multiplicaram e legitimaram como linguagem levando ao desenvolvimento, na década seguinte, da performance arte - ou da arte de ação - como expressão artística visual ao vivo, de caráter sobretudo individual. Naquele momento, fosse na vida ou na arte, o ato de se despir ganhava contornos políticos, de crítica e deboche contra sociedades conservadoras, brancas, apoiadoras de ações bélicas, ditaduras e ódio às minorias. Por outro lado, no Brasil do período artistas como Lygia Clark, Lygia Pape e Helio Oiticica, entre outros à frente da fundação do Neoconcretismo, lançavam propostas estéticas que novamente incitavam a participação ativa - física ou conceitualmente - do público, compreendido como co-autor da obra. Nesse contexto surgem proposições como os Bichos, de Clark, os Parangolés de Oiticica ou o Balé Neoconcreto de Pape. A originalidade destas propostas assim como o próprio movimento Neoconcreto, entendido hoje como uma vanguarda artística singular, fez a arte brasileira ser conhecida internacionalmente - mesmo que por vezes associada a estereótipos de sensualidade, espontaneidade da forma e exotismo. A arte contemporânea do país é, contudo, filha da tradição moderna construtiva em diálogo com o imaginário popular urbano, aliado a um pensamento conceitual que revisou essas mesmas bases, e ainda o faz. Admirada no meio da arte internacional, a cena contemporânea do Brasil como um todo é uma das mais interessantes do mundo e, no entanto, é desconhecida pela população em geral e agora parece ser detestada. Diversos motivos podem estar no cerne desse “detestar”. Arrisco dizer que um deles é o histórico acesso restrito à educação, problema de base na formação da sociedade desde a colônia, que levou à conformação de uma massa com dificuldade para se articular criticamente. Esta é facilmente submissa aos interesses de uma elite mandante colonialista, líder dos movimentos censores que identificam o nu artístico como um mal contra "a família de bem". Além desta situação histórica, os equipamentos culturais brasileiros, erroneamente compreendidos como exclusivos, são pouco populares salvo excessões, sendo os menos visitados os museus de arte moderna e contemporânea.2 No que tange de novo à questão da nudez artística e sua censura atual no Brasil, deve-se considerar que este é um país de base católica, regido por mentalidade machista, com altas taxas de prostituição infantil, onde a bunda feminina é símbolo nacional. Tal quadro torna quase impossível olhar o corpo despido sem um misto de erotização, depravação e culpa. Na obra de arte, onde a finalidade da nudez é em geral poética mesmo quando política, é importante diferenciar representações do corpo pornográfico, erótico e natural. No primeiro caso, a nudez é gratuita e exagerada, chegando a causar aversão ou mesmo indiferença dado o excesso de exposição das intimidades corporais; no erotismo, o elemento sexual é sugerido como um clima, e há mais desejo oculto do que literalidade das fantasias; por último, no corpo natural este se mostra sem apelo sexual, exposto principalmente em sua forma e beleza inatas - tal como na proposta de Schwartz em La Bête. Reagir com censura e escândalo a ações artísticas e obras que apresentam imagens do corpo nu, como se estas fizessem pura apologia à pornografia ou crime sexual denota falta de informação e má fé, ressucitando polêmicas datadas com roupagem nova por quem evita se aprofundar em reflexões sobre o mundo, despreza histórias da arte, teorias filosóficase seus desdobramentos na contemporaneidade. Entender a ação artística de um homem desnudo em um museu sinalizado, iluminado, como um ato de perversão criminoso, análogo à pedofilia quando acontece perto de crianças acompanhadas de seus responsáveis, é atestar os próprios recalques existentes na dificuldade de aceitar o corpo como ele é: nu, apenas. E exigir a censura de obras de arte onde figuram imagens desses corpos despidos é impedir o desenvolvimento do pensamento analítico, acreditando que o 2 Sobre os dados dos museus brasileiros ver: Museus em Números Volume 1 e 2. Instituto Brasileiro de Museus - IBRAM. http://www.museus.gov.br/tipo-publicacao/documentos-e-relatorios/ acessado em 20/12/2017 mal está na transparência da informação e na poesia, e não no deserto provocado pela ausência destas. Daniela Labra