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Arlindo Ugulino Netto ● MEDRESUMOS 2016 ● PARASITOLOGIA 1 www.medresumos.com.br ESTRONGILOIDÍASE A estrongiloidíase é uma afecção intestinal causada pelo parasita nemátode Strongyloides stercoralis. Ao contrário de outros parasitas, estes nemátodes podem viver indefinidamente no solo como formas livres. Há pelo menos 52 espécies descritas do nematódeo do gênero Strongyloides, no entanto, atualmente, somente duas delas são consideradas infectantes para os humanos: S. stercoralis (Bavay, 1876) e S. fuelleborni (Von Linstow, 1905). O S. stercoralis apresenta distribuição mundial, especialmente nas regiões tropicais, a maioria infectando mamíferos, entre eles cães, gatos e macacos. O parasito do cão é morfobiologicamente indistinguível do humano. O S. f. fuelleborni parasita macacos e quase todos os casos de infecção em humanos foram registrados na África e na Ásia. O intuito deste capítulo é o de estudar a estrongiloidíase e, portanto, conhecer o S. stercoralis de uma forma especial. No Brasil, a importância deste parasito como agente etiológico da estrongiloidíase, estrongiloidose ou anguilulose foi salientada primeiramente por Ribeiro da Luz, em 1880, e enfatizada por Moraes, em 1948. A elevada prevalência em regiões tropicais e subtropicais, a facilidade de transmissão, o caráter de cronicidade e autoinfecção, originando formas graves de hiperinfecção e disseminação, além da possibilidade da reagudização em indivíduos imunodeprimidos, evoluindo muitas vezes para óbito, tornam a estrongiloidíase um importante problema médico e social. MORFOLOGIA FÊMEA PATOGENÉTICA PARASITA Possui corpo cilíndrico com aspecto filiforme longo, extremidade anterior arredondada e posterior afilada. Mede de 1,7 a 2,5mm de comprimento por 0,03 a 0,04mm de largura. Apresenta cutícula fina e transparente, levemente estriada no sentido transversal em toda a extensão do corpo. Aparelho digestivo simples com boca contendo três lábios; esôfago longo, ocupando 25% do comprimento do parasito, tipo filarioide ou filariforme, cilíndrico, que à altura do quinto anterior é circundado por um anel nervoso também denominado colar esofagiano; seguido pelo intestino simples, terminando em ânus, próximo da extremidade posterior. O aparelho genital, com útero em disposição anfidelfa ou divergente, apresenta ovários, ovidutos e a vulva, localizada no terço posterior do corpo. Os ovos são alinhados em diferentes estágios de desenvolvimento embrionário, no máximo até nove em cada ramo uterino, o anterior e o posterior. Não há receptáculo seminal. A fêmea, que coloca de 30 a 40 ovos por dia, é ovovivípara, pois elimina na mucosa intestinal o ovo já larvado; a larva rabditoide, que é frequentemente libertada ainda no interior do hospedeiro, toma-se a forma evolutiva de fundamental importância no diagnóstico. FÊMEA DE VIDA LIVRE OU ESTERCORAL Possui aspecto fusiforme, com extremidade anterior arredondada e posterior afilada. Mede de 0,8 a 1,2mm de comprimento por 0,05 a 0,07mm de largura. Apresenta cutícula fina e transparente, com finas estriações. Seu aparelho genital é constituído de útero anfidelfo, contendo até 28 ovos, ovários, ovidutos e a vulva situada próxima ao meio do corpo. Apresenta receptáculo seminal. MACHO DE VIDA LIVRE Possui aspecto fusiforme, com extremidade anterior arredondada e posterior recurvada ventralmente. Mede 0,7mm de comprimento por 0,04mrn de largura. Boca com três lábios, esôfago tipo rabditoide, seguido de intestino terminando em cloaca. Aparelho genital contendo testículos, vesícula seminal, canal deferente e canal ejaculador, que se abre na cloaca. Apresenta dois pequenos espículos, auxiliares na cópula, que se deslocam sustentados por uma estrutura quitinizada denominada gubernáculo. OVOS São elípticos, de parede fina e transparente, praticamente idênticos aos dos ancilostomídeos. Os originários da fêmea parasita medem 0,05mm de comprimento por 0,03mm de largura e os da fêmea de vida livre são maiores, medindo 0,07mm de comprimento por 0,04rnrn de largura. Excepcionalmente, os ovos podem ser observados nas fezes de indivíduos com diarreia grave ou após utilização de laxantes. Arlindo Ugulino Netto. PARASITOLOGIA 2016 Arlindo Ugulino Netto ● MEDRESUMOS 2016 ● PARASITOLOGIA 2 www.medresumos.com.br LARVA RABDITOIDE O esôfago, que é do tipo rabditoide, dá origem ao nome das larvas. As originárias das fêmeas parasita são praticamente indistinguíveis das originadas das fêmeas de vida livre. Apresentam cutícula fina e hialina. Medem 0,2 a 0,03mm de comprimento por 0,015 mm de largura. Apresentam vestíbulo bucal curto, cuja profundidade é sempre inferior ao diâmetro da larva, característica que a diferencia das larvas rabditoides de ancilostomídeos em que o vestíbulo bucal é alongado e sua profundidade é igual ao diâmetro do corpo (10μm). O intestino termina em ânus afastado da extremidade posterior. Apresentam primórdio genital nítido formado por um conjunto de células localizadas um pouco abaixo do meio do corpo. Essa característica também auxilia na diferenciação das larvas de ancilostomídeos que apresentam somente vestígio de primórdio genital. Terminam em cauda pontiaguda. Visualizada a fresco, as larvas se mostram muito ágeis com movimentos ondulatórios. LARVAS FILARIOIDES O esôfago, que é do tipo filarioide, dá origem ao nome das larvas. Este é longo, correspondendo a metade do comprimento da larva. Cutícula fina e hialina. Medem de 0,35 a 0,50mm de comprimento por 0,01 a 0,031nm de largura. Apresentam vestíbulo bucal curto e intestino terminando em ânus, um pouco distante da extremidade posterior. A porção anterior é ligeiramente afilada e a posterior afina-se gradualmente terminando em duas pontas, conhecida com cauda entalhada, que a diferencia das larvas filarioides de ancilostomídeos, que é pontiaguda. Esta é a forma infectante do parasito (L3) capaz, portanto, de penetrar pela pele ou pelas mucosas; além de serem vistas no meio ambiente, também podem evoluir no interior do hospedeiro, ocasionando os casos de autoinfecção interna. CICLO BIOLÓGICO As larvas rabditoides eliminadas nas fezes do indivíduo parasitado podem seguir dois ciclos: o direto, ou partenogenético, e o indireto, sexuado ou de vida livre, ambos monoxênicos. A fase dos ciclos que se passa no solo exige condições semelhantes às do ancilostomídeos: solo arenoso, umidade alta, temperatura entre 25 e 30°C e ausência de luz solar direta. No ciclo direto as larvas rabditoides no solo ou sobre a pele da região perineal, após 24 a 72 horas, se transformam em larvas filarioides infectantes. No ciclo indireto as larvas rabditoides sofrem quatro transformações no solo e após 18 a 24 horas, produzem fêmeas e machos de vida livre. Os ciclos direto e indireto se completam pela penetração ativa das larvas L3 na pele ou mucosa oral, esofágica ou gástrica do hospedeiro. Estas larvas secretam melanoproteases, que as auxiliam, tanto na penetração quanto na migração através dos tecidos, que ocorre numa velocidade de 10cm por hora. Algumas morrem no local, mas o ciclo continua pelas larvas que atingem a circulação venosa e linfática e através destes vasos seguem para o coração e pulmões. Chegam aos capilares pulmonares, onde se transformam em L4, atravessam a membrana alveolar e, através de migração pela árvore brônquica, chegam a faringe. Podem ser expelidas pela expectoração, que provocam, ou serem deglutidas, atingindo o intestino delgado, onde se transformam em fêmeas partenogenéticas. Os ovos são depositados na mucosa intestinal e as larvas alcançam a luz intestinal. O período pré-patente, isto é, o tempo decorrido desde a penetração da larva filarioide na pele até que ela se tome adulta e comece a eliminar ovos larvados, e eclosão das larvas no intestino, é de aproximadamente 15 a 25 dias. Quando adultas, as fêmeas são capazes de se multiplicarem com posturas de 40 ovos por dia, que se transformamem Arlindo Ugulino Netto ● MEDRESUMOS 2016 ● PARASITOLOGIA 3 www.medresumos.com.br larvas. Elas podem ser eliminadas pelas fezes enquanto que algumas larvas não infectantes podem sofrer mutações em infectantes, que invadem a parede gastrointestinal e estabelecem uma autoinfecção endógena ou hiperinfecção. Esse ciclo é único do S. stercoralis e explica a importância dessa verminose. A autoinfecção por S. stercoralis aumenta devido ao grande número de larvas filariformes que penetram na mucosa dos intestinos delgado e grosso e se alojam posteriormente nos capilares pulmonares, onde sintomas respiratórios similares a pneumonia e asma podem ser observados. TRANSMISSÃO HETERO OU PRIMOINFECÇÃO Larvas filarioides infectantes (L3) penetram usualmente através da pele (não tendo preferência por um ou outro ponto do tegumento), ou, ocasionalmente, através das mucosas, principalmente da boca e do esôfago. Em condições naturais, a infecção percutânea se realiza de modo idêntico ao dos ancilostomídeos. Nas pessoas que não usam calçados a penetração ocorre através da pele dos pés, particularmente nos espaços interdigitais, e lateralmente, uma vez que a superfície plantar muito espessa pode constituir uma barreira. Este modo de transmissão parece ser o mais frequente. AUTOINFECÇÃO EXTERNA OU EXÓGENA Larvas rabditoides presentes na região perianal de indivíduos infectados transformam-se em larvas filarioides infectantes e aí penetram completando o ciclo direto. Este modo de infecção pode ocorrer em crianças, idosos ou pacientes internados que defecam na fralda, roupa ou ainda em indivíduos, que, por deficiência de higiene, deixam permanecer restos de fezes em pêlos perianais. AUTOINFECÇÃO INTERNA OU ENDÓGENA Larvas rabditoides, ainda na luz intestinal de indivíduos infectados, transformam-se em larvas filarioides, que penetram na mucosa intestinal (íleo ou cólon). Esse mecanismo pode cronificar a doença por vários meses ou anos. Em casos raros, nesse tipo de autoinfecção, podem ser encontradas fêmeas partenogenéticas nos pulmões. Esta modalidade pode ocorrer em indivíduos com estrongiloidíase e constipação intestinal devido ao retardamento da eliminação do material fecal. Em pacientes com ou sem retardo de eliminação de fezes mas com baixa de imunidade devido ao uso de drogas imunossupressoras, radioterapia, indivíduos imunodeprimidos por neoplasias, síndrome nefrótica, presença do vírus da imunodeficiência humana (HIV), síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS), gravidez, desnutrição proteico-calórica, alcoolismo crônico e idade avançada, pode ocorrer autoinfecção interna com presença de L1, L2, e L3, em diferentes órgãos. A autoinfecção interna pode acelerar-se, provocando a elevação do número de parasitos no intestino e nos pulmões (localizações próprias das larvas), fenômeno conhecido como hiperinfecção; ou disseminar por vários órgãos do paciente, conhecido como forma disseminada. Ambas são consideradas formas graves, potencialmente fatais, em indivíduos imunodeprimidos. Contudo, somente poucos casos de estrongiloidíase disseminada têm sido relatados em pacientes com AIDS, sendo a hiperinfecção a forma mais frequente e realmente fatal, com a maioria dos casos diagnosticados post-rnortem. PATOGENIA, PATOLOGIA E SINTOMATOLOGIA Indivíduos portadores de pequeno número de parasitos no intestino geralmente são assintomáticos ou oligossintomáticos, mas isso não significa ausência de ação patogênica e de lesões. Formas graves, as vezes fatais, relacionam-se com fatores extrínsecos, principalmente pela carga parasitária adquirida e com fatores intrínsecos (subalimentação com carência de proteínas provocando enterite; ocorrência de diarreia e vômitos facilitando os Arlindo Ugulino Netto ● MEDRESUMOS 2016 ● PARASITOLOGIA 4 www.medresumos.com.br mecanismos de autoinfecção; alcoolismo crônico, infecções parasitárias e bacterianas associadas; comprometimento da resposta imunitária natural ou adquirida, intervenções cirúrgicas gastroduodenais e outras cirurgias que utilizam anestesia geral, pois facilitam a estase broncopulmonar). Os sintomas clínicos mais comuns dos pacientes parasitados são os quadros de pneumonia grave com insuficiência respiratória aguda (caracterizada por tosse com ou sem expectoração, febre, dispneia e crises asmatiformes decorrentes das larvas filarioides e, ocasionalmente, de fêmeas, que aí podem atingir a maturidade, produzindo ovos e larvas rabditoides), instabilidade hemodinâmica e distensão abdominal. As complicações mais comuns são meningite por Gram negativos e septicemia devido à entrada dos microrganismos intestinais na corrente sanguínea, acompahando a penetração das larvas e alojando-se no sistema nervoso central. A invasão dos tecidos não ocorre em pacientes imunocompetentes provalvemente devido à imunidade celular eficaz. O papel dos anticorpos humorais no controle da infecção é incerto. A estrongiloidíase sistêmica ocorre quando as barreiras de defesa, particularmente imunidade mediada por células, encontra-se comprometida. Vários métodos para o diagnóstico podem ser negativos, sem entretanto afastar essa patologia. DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO O diagnóstico pode ser feito através da pesquisa do Strongyloides stercoralis nas fezes, líquido duodenal, líquido pleural, líquido cefalorraquidiano e exsudato pulmonar. Como métodos parasitológicos (diretos) mais comumente utilizados, destacamos: exame de fezes, pesquisa de larvas em secreções e outros líquidos orgânicos, endoscopia digestiva, biópsia intestinal, etc. Como método métodos indiretos, citamos: hemograma, diagnósticos por imagem, métodos imunológicos, etc. Das infecções causadas por nematódeos, a estrongiloidíase é a mais difícil de ser tratada. O mebendazol, em doses eficazes para outros parasitos, não atua sobre S. stercoralis, mas, observando-se a contraindicação no período gestacional e durante a lactação, as outras drogas do grupo dos benzimidazólicos (tiabendazol, cambendazol e albendazol) e a ivermectina são empregadas no tratamento específico da estrongiloidíase. A forma de ação, a dose, a eficácia e os efeitos colaterais destes medicamentos estão resumidos a seguir: Tiabendazol: atua somente sobre as fêmeas partenogenéticas, provavelmente inibindo o desencadeamento das vias metabólicas do parasito. O tratamento preconizado é feito com tiabendazol 25 mg/Kg, duas vezes ao dia, durante 2 a 3 dias. Albendazol: atua sobre as fêmeas partenogenéticas e sobre larvas. É recomendado tanto para crianças acima de 2 anos como para adultos na dose de 400mg/dia durante três dias consecutivos (com eficácia em tomo de 50%), ou 800mg/dia durante três dias (com eficácia de 90%). Ivermectina: Recomendada em dose única oral de 200µmkg com eficácia acima de 80%. Nas formas graves e disseminadas da doença e em pacientes com AIDS, recomendam-se multidoses de 200 μm/kg nos dias 1,2, 15 e 16 de tratamento. Os efeitos colaterais são leves, observando-se diarreia, anorexia e prurido.